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Pesquisa com práticas artísticas nos estudos de mídia e comunicação: situando questões epistemológicas

Artistic practices in Communication and Media Studies research: situating epistemological matters

Resumo

O presente artigo parte da constatação de uma ausência ou presença tímida da comunicação no debate sobre metodologias de pesquisa baseadas em arte. Para responder e ensejar a aproximação da área ao tema, o artigo discute o processo de epistemologização das artes, aponta para definições de pesquisa artística e o aproxima das referências mais comuns aos campos da comunicação e dos estudos de mídia. Trata-se de uma pesquisa exploratória de revisão metodológica, e os resultados encontrados são a carência de iniciativas, na comunicação, que tragam a pesquisa artística como metodologia central do trabalho.

Palavras-chave
metodologia; arte e comunicação; epistemologia; pesquisa baseada em arte

Abstract

The present article starts from the observation of an absence or timid presence of Communication in the debate about art-based research. To address this, it discusses the process of epistemologization of arts, provides definitions of artistic research, and relates it to more common references in the fields of Communication and Media Studies. This is an exploratory research with a methodological review, and the main findings indicate a lack of initiative in Communication that prioritizes artistic research as a central methodology in scholarly work.

Keywords
methodology; art and communication; epistemology; art-based research

Introdução

Nas últimas décadas, tem se sucedido um processo de epistemologização das práticas, objetos e processos artísticos, tanto no âmbito das instituições e agentes do campo das artes (galerias, museus, artistas, curadores, bienais, residências artísticas) quanto no de instituições universitárias (programas de pós-graduação, agências de fomento etc.). Podemos inicialmente entender por epistemologização a atribuição de outro valor à pesquisa e ao conhecimento nos processos artísticos e ambientes artísticos e, com isso, a multiplicação dos debates pautados em experiências sobre como o conhecimento se relaciona com as artes e como ele pode ser produzido para além da tradição logocêntrica que persiste nas universidades.

Mais recentemente, esse processo passou a transbordar para outras áreas, apontando para múltiplos caminhos experimentais de se realizar pesquisa. O artigo defende a relevância de a comunicação se situar em relação aos movimentos epistemológicos advindos da área de artes e que buscam incorporar as imagens, o corpo, o espaço, as mídias, os algoritmos, o ambiente e o que quer que seja arte no processo de desenvolvimento e comunicação da pesquisa acadêmica. Epistemologizados, as práticas, produtos e processos das artes não são aqui pensados apenas como objetos de estudo da comunicação, mas tanto como meio de produção de conhecimento acadêmico quanto como conhecimento acadêmico corporificado em si.

Apesar de existir uma aproximação significativa entre arte e comunicação no Brasil desde a virada dos anos 1960 e 1970, por meio de teóricos como Vilém Flusser (com suas proposições de ordem metodológica e epistemológica aparentemente ignoradas por décadas), o que ainda ocorre mais comumente no campo comunicacional é tomar as mídias, as imagens, as artes, o corpo, o espaço, os algoritmos ou o ambiente como objetos de pesquisa, muitas vezes para estudar seu conteúdo, sentidos e significados, sem se incorporar práticas e meios artísticos na feitura ou na comunicação dos resultados. Pode-se constatar isso ao se perscrutar tanto os anais do principal encontro acadêmico da área quanto as diretrizes para autores dos seus periódicos.

Visualizando os textos disponíveis nos anais da Compós entre 2013 e 2022, nos eixos temáticos Epistemologia da Comunicação, Comunicação e Experiência Estética, Imagem e Imaginários Midiáticos, Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual, Estudos de Som e Música, Práticas Interacionais e Linguagens na Comunicação e Comunicação, Arte e Tecnologias da Imagem, verificou-se que apenas dois artigos publicados incorporam práticas artísticas como metodologia (MARTINS; MACHADO, 2022MARTINS, A. F.; MACHADO, P. Terra encantada retomado: Processos de pesquisa e realização de experimentos audiovisuais com arquivo. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 31, 2022, Imperatriz (MA). 31 Compós - Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação. Imperatriz: Compós, 2022.; CARDOSO FILHO, BOGADO, SOUZA, 2022CARDOSO FILHO, J. C.; BOGADO, A.; SOUZA, S. Dá uma umbigada na outra: matrizes sensíveis nas encruzilhadas do samba de roda. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 31, 2022, Imperatriz. Anais eletrônicos. Campinas: Galoá, 2022. Disponível em: <https://proceedings.science/compos/compos-2022/trabalhos/da-uma-umbigada-na-outra-matrizes-sensiveis-nas-encruzilhadas-do-samba-de-roda?lang=pt-br>. Acesso em: 08 jun. 2023.
https://proceedings.science/compos/compo...
)1 1 Em Terra encantada retomado: processos de pesquisa e realização de experimentos audiovisuais com arquivo, as pesquisadoras Andréa França e Patrícia Machado compartilham com o grupo de trabalho (GT) Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual o trabalho de apropriação de imagens de arquivo para a criação de quatro curtas-metragens para uma galeria da web página Rio Cinético. As reflexões teóricas e conceituais se fundamentam no experimento, e o resultado da pesquisa tem caráter artístico. No mesmo GT, o artigo Dá uma umbigada na outra: matrizes sensíveis nas encruzilhadas do samba de roda, dos pesquisadores Angelita Bogado, Scheilla Franca de Souza e Jorge Cardoso Filho, propõe uma metodologia de apropriação criativa e epistemológica de diferentes filmes que abordam performance, videodança, território e corpo. .

Ainda, entre os 83 periódicos listados na seção Lista de periódicos da área — revistas ativas na área de comunicação no Brasil, do website da Compós (atualizada até 11 de outubro de 2022 - <https://compos.org.br/publication/lista-de-periodicos-da-area/>), apenas dez aceitam e orientam o formato de propostas visuais e imagéticas em suas diretrizes para autores2 2 Especificamente, os periódicos Conexão – Comunicação e Cultura (Universidade de Caxias do Sul [UCS]), Pós-Limiar (Pontifícia Universidade Católica de Campinas [PUC-Campinas]), Rebeca (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. [Socine]), Revista Alterjor (Universidade de São Paulo [USP]), Revista Comunicação, Cultura e Sociedade (Universidade do Estado de Mato Grosso [Unemat]), Esferas (UCS), Revista Internacional de Folkcomunicação (Universidade Estadual de Ponta Grossa [UEPG]), Revista Movimento (USP), Revista Observatório (Universidade Federal do Tocantins [UFT]) e Revista Passagens (Universidade Federal do Ceará [UFC]). .

Em ambas as constatações, a área apresenta uma quantia estranhamente baixa de trabalhos com proposições metodológicas e epistemológicas que desafiam o logocentrismo da academia. São poucos os estudos que conduzem experimentos de conhecimento elaborado com (e não sobre) os meios que se estudam na área. Como apontado por Gansing (2013, p. 102)GANSING, K. Transversal media practices: Media archaeology, art and technological development. PhD diss. [S.l.]: Malmö University, Faculty of Culture and Society, 2013., não é comum os pesquisadores de Mídia e Comunicação experimentarem processos criativos com os próprios meios que estudam: “ao invés disso, a pesquisa sobre os meios é vista como uma mistura de pesquisa clássica das humanidades com metodologias das ciências sociais, sendo geralmente a opção entre pesquisa quantitativa e qualitativa” (GANSING, 2013GANSING, K. Transversal media practices: Media archaeology, art and technological development. PhD diss. [S.l.]: Malmö University, Faculty of Culture and Society, 2013., p. 102; tradução nossa). Daí ocorre a impressão de que normalmente a comunicação pratica uma espécie de vampirismo epistemológico logocêntrico da área sobre os meios (audiovisuais, fotográficos, corporais, sonoros) que constituem parte considerável dos seus objetos.

É evidente a carência de discussão e de produções bibliográficas nacionais que lancem atenção para o tema, por mais que diversos docentes da área sejam artistas com atuação nas artes visuais, na fotografia, no cinema e na arte digital, e que existam pesquisas e programas de pós-graduação na área da comunicação que tenham abertura e permitam o desenvolvimento de pesquisas em um caráter mais experimental e desafiador (tanto em termos de metodologia quanto de resultado ou de estrutura textual e argumentativa).

Em alguns programas, há flexibilidade de apresentar, com a tese/dissertação, alguma produção artística (livro, roteiro, filme, fotografia, ilustrações etc.) a ser avaliada pela banca examinadora. Além disso, tem sido comum que, além dos tradicionais Qualis Periódicos, Qualis Eventos e Qualis Livros, a área de comunicação também receba Qualis Artístico para os produtos realizados no segmento artístico-cultural.

As artes propõem entender a incorporação de práticas artísticas no desenvolvimento e na comunicação do conhecimento como uma mudança de paradigma de pesquisa (BORGDORFF, 2012BORGDORFF, H. A. H. The conflict of the faculties: Perspectives on artistic research and academia. [S.l.]: Leiden University Press, 2012.). Um efeito epistemológico propagado pelos que percebem esse movimento como uma mudança de paradigma é a redução do privilégio da apresentação oral e do texto escrito academicamente na comunicação do conhecimento, priorizando-se o entrecruzamento entre práticas artísticas e acadêmicas de modo multimodal e aberto para outros públicos.

Isso acaba por impulsionar uma mudança infraestrutural que visa desfavorecer o logocentrismo em revistas, encontros e programas de pesquisa acadêmica. Não apenas como objeto de análise crítica ou interpretação, as práticas artísticas podem estar envolvidas metodologicamente no processo da pesquisa ou na comunicação dos seus resultados, podendo assumir múltiplos formatos, como uma exposição, uma performance, um videoartigo ou uma instalação artística.

Este artigo se propõe a articular referências diversas visando um deslocamento da área de artes para a comunicação, primeiramente, oferecendo uma base de contextualização para que se possa entender o processo de epistemologização da arte; em seguida, expondo características da pesquisa artística; por fim, aproximando tais discussões e o campo da comunicação.

A epistemologização da arte

O processo de estabelecimento da arte contemporânea ao longo do século XX envolveu uma mudança de ênfase da dimensão estética para as dimensões epistêmicas e cognitivas nas práticas e nos processos artísticos. Não precisa haver uma cronologia linear e pacificamente conexa para sintetizar isso, sendo melhor destacar alguns marcos que facilitam a compreensão de que as artes passaram a se posicionar crescentemente como sujeito de conhecimento, e não apenas como ilustração ou objeto de conhecimento para outras áreas.

Como apontado por Holert (2020)HOLERT, T. Knowledge beside itself: contemporary art’s epistemic politics. [S.l.]: MIT Press, 2020., a arte contemporânea foi dedicando cada vez mais “energia discursiva na comunicação, explicação e produção de obras como fatos não só estéticos, mas também epistêmicos” (HOLERT, 2020HOLERT, T. Knowledge beside itself: contemporary art’s epistemic politics. [S.l.]: MIT Press, 2020., p. 15; tradução nossa). Produzir arte hoje, conforme Basbaum (2013)BASBAUM, R. Manual do artista-etc. [S.l.]: Azougue Editorial, 2013.,

é operar com vetores de um campo ampliado. Um campo que se abre ao entrecruzamento das diversas áreas do conhecimento, num panorama transdisciplinar, sem prejuízo de sua autonomia e especificidade enquanto prática de visualidade

(BASBAUM, 2013BASBAUM, R. Manual do artista-etc. [S.l.]: Azougue Editorial, 2013., p. 27).

O coletivo Forensic Architecture bem exemplifica essa tendência na atualidade. Trata-se de um grupo interdisciplinar de acadêmicos da Universidade de Londres, em Goldsmiths, que começou a atuar em 2010 no campo da academia. Suas pesquisas são incorporadas em processos judiciais internacionais, assembleias das Organizações das Nações Unidas, comissões da verdade. Ainda, costumam integrar do mesmo modo o espaço de bienais e exposições de arte com obras instalativas criadas com o uso de fotogrametria, análise de dados, geolocalização, audiovisual, textos, mapas etc.

Como apontado por Bishop (2023)BISHOP, C. Information Overload. In: Artforum, v. 61, n. 8, 2023. em sua crítica à “sobrecarga de informação” que a pesquisa artística trouxe ao mundo da arte,

A Forensic Architecture descobre contraevidências para as narrativas estabelecidas, frequentemente reformulando quem é culpado. Por exemplo, sua apresentação na Turner Prize na Tate Britain em 2018, intitulada “A Longa Duração de um Segundo Dividido”, baseou-se em dezenas de vídeos turvos e caóticos de telefones celulares da invasão noturna da polícia israelense a uma aldeia beduína no ano anterior, que destruiu prédios e matou duas pessoas. A Forensic Architecture analisou os metadados dos vídeos (como registros de tempo) e o som dos tiros, juntamente com relatos de testemunhas oculares, relatórios de autópsia e outros materiais, para desmentir a versão da polícia sobre o que ocorreu.

(BISHOP, 2023BISHOP, C. Information Overload. In: Artforum, v. 61, n. 8, 2023., tradução nossa)

Vale destacar que, na década de 1910, Marcel Duchamp indicou esse deslocamento epistêmico das práticas artísticas ao aplicar uma força de divergência conceitual na arte moderna. A desmaterialização da obra de arte, tão definidora da arte produzida nos anos 1960-1970, foi introduzida por ele em 1913, quando assinou um objeto industrial ordinário como obra, inaugurando o readymade. Como apontado por Camnitzer et alii (1999, p. 8), Duchamp “catalisou uma consciência da arte como um sistema dominado pela linguagem e pelo contexto, com significados determinados pelo consenso e pelo uso, em vez de pelas qualidades inerentes a um objeto manufaturado” (CAMNITZER et alii, 1999CAMNITZER, L.; BANN, S.; BEKE, L.; QUEENS MUSEUM OF ART. Global conceptualism: points of origin, 1950s-1980s. [S.l.]: Queens Museum of Art, 1999., p. 8; tradução nossa).

Teóricos de referência da área da comunicação, como Terranova (2004)TERRANOVA, T. Network culture: cultural politics for the information age. Londres: Pluto Press, 2004. e Lazzarato (2017)LAZZARATO, M. Marcel Duchamp e a recusa ao trabalho. Tradução: Gustavo Gumiero. São Paulo: Scortecci Editora, 2017., reconhecem em Duchamp a capacidade de compreensão das transformações que as tecnologias de informação e comunicação (TICs) causariam em termos de subjetividade e epistemologia. Terranova (2004)TERRANOVA, T. Network culture: cultural politics for the information age. Londres: Pluto Press, 2004. defende que Duchamp antecipou a crise política e linguística da representação (na cultura, nas ciências, na política etc.) causada pelas TICs e, para Lazzarato (2017, p. 48-49)LAZZARATO, M. Marcel Duchamp e a recusa ao trabalho. Tradução: Gustavo Gumiero. São Paulo: Scortecci Editora, 2017., Duchamp foi um dos primeiros a compreender que “nas sociedades de controle [...] a arte não representa mais uma promessa de emancipação, mas constitui, ao contrário, uma nova técnica de governo da subjetividade”, enunciando em sua obra “as condições e os efeitos que caracterizam uma mudança política [...]” que, ao mesmo tempo, “[...] abre espaço para um processo de construção de uma nova subjetividade” e “[...] suspende as relações de poder pré-estabelecidas” (LAZZARATO, 2017LAZZARATO, M. Marcel Duchamp e a recusa ao trabalho. Tradução: Gustavo Gumiero. São Paulo: Scortecci Editora, 2017., p. 48-49).

Ressalta-se que na década de 1960 as práticas artísticas conceituais inundaram o establishment das artes e o fizeram incorporando um modo de criar e expor obras por meio de projetos, programas, instruções, diagramas, fórmulas matemáticas, arquivos e proposições reflexivas que respondiam à crescente dimensão informacional da sociedade. A arte, desde então, passou a incorporar variados modos de se fazer também em entrecruzamentos com a filosofia e a ciência, ao migrar das imagens para as palavras e para o efeito performativo de ideias, conceitos e projetos no corpo e na vida cotidiana (arte da performance), no espaço (arte ambiental, instalação), nas mídias (videoarte, net.arte, bioarte, arte computacional e digital), nos arquivos (práticas de apropriação), na terra (land art, eco-art).

A arte contemporânea realizou um movimento migratório dos artistas do campo das imagens para o campo das palavras, dos textos e dos códigos; da arte para a filosofia e para a ciência, e de volta para a arte enquanto disciplina acadêmica por causa de uma necessidade de “deslocar a questão da autonomia dos campos do conhecimento, de modo a abranger a processualidade e a qualidade das relações que podem ser constituídas e construídas entre as diversas áreas” (BASBAUM, 2013BASBAUM, R. Manual do artista-etc. [S.l.]: Azougue Editorial, 2013., p. 22-23). Por meio de uma diversidade heterogênea de caminhos, deu-se abertura para a emergência e o estabelecimento do conhecimento,

[...] muitas vezes ao lado da “pesquisa” ou da “epistemologia”, como uma área central de competência para a arte contemporânea, aparentemente eclipsando categorias estéticas mais tradicionais que há muito organizam e filtram a produção e apreciação da arte, como beleza, estilo e gênero

(HOLERT, 2020HOLERT, T. Knowledge beside itself: contemporary art’s epistemic politics. [S.l.]: MIT Press, 2020., p. 7-8).

Esses são alguns dos aspectos de transformação da arte contemporânea que sustentam, no campo das artes, o paradigma do que em tópico subsequente entenderemos melhor como pesquisa artística no campo acadêmico. Pode-se apontar que esse paradigma se constrói desde a arte moderna, no que concerne a seus métodos experimentais e ao diálogo autorreflexivo dos artistas, resultando em um campo de produção das artes visuais altamente intelectualizado que se intensifica e se estabelece no seio da arte contemporânea, transbordando aos institutos e programas de pesquisa acadêmicos e científicos.

A virada prática na filosofia da ciência

Ao mesmo tempo que tais transformações foram se dando no campo das artes, a ciência também foi gerando reflexões que convergiram com certos aspectos dessa aproximação. Como apontado por Garbolino (2013)GARBOLINO, P. What the scientist’s eye tells the artist’s brain. In: AMBROŽIČ, M.; VETTESE, A. Art as a thinking process: visual forms of knowledge production. [S.l.: s.n.], 2013. p. 74-88., nos anos 1960, o filósofo e historiador das ciências Thomas Kuhn chegou a aproximar arte e práticas científicas até certo ponto, ao afirmar que formas visuais de conhecimento seriam auxiliares ao cientista, ainda que não fossem conhecimento em si (apenas meios para a obtenção desse).

Kuhn (2021)KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. [S.l.]: Guerra e Paz Editores, 2021. defendeu que o conhecimento científico é proposicional e que a tarefa do cientista é representar o mundo por meio de objetos que são entidades linguísticas (teorias científicas), enquanto o artista trabalharia com entidades não linguísticas (imagens). Tal compreensão, todavia, deu-se antes das viradas decisivas para o entendimento da arte contemporânea: as viradas conceitualista, tecnológica e performativa intensificadas a partir dos anos 1960.

Desde que Kuhn fez essa distinção para fundamentar alguns de seus argumentos, portanto, passaram-se mais de 50 anos e Garbolino (2013)GARBOLINO, P. What the scientist’s eye tells the artist’s brain. In: AMBROŽIČ, M.; VETTESE, A. Art as a thinking process: visual forms of knowledge production. [S.l.: s.n.], 2013. p. 74-88. coloca a emergência de dois fatos que tornam obsoleta essa leitura sobre arte: um deles é que os artistas se engajam em intervenções que não se reduzem à imagem, não fazem representação e objetos limitados à sua dimensão estética, mas produzem eventos e fenômenos, no sentido de ações que acontecem e podem ser percebidas pelos sentidos.

O outro fato apontado por Garbolino é que, nos últimos trinta anos, uma mudança profunda se deu no entendimento de ciência e conhecimento científico, por meio da engenharia genética e outras ciências interventivas e criativas: houve uma conscientização de que a ciência moderna é intervenção em sistemas de informação. Isso aproximou mais os métodos de produção de fenômenos artísticos e os métodos de produção de fenômenos científicos, posto que tanto artistas quanto cientistas intervêm no mundo, e a intervenção é um processo no qual uma realidade causal é usada para fazer ou afetar as coisas.

Garbolino (2013)GARBOLINO, P. What the scientist’s eye tells the artist’s brain. In: AMBROŽIČ, M.; VETTESE, A. Art as a thinking process: visual forms of knowledge production. [S.l.: s.n.], 2013. p. 74-88. aponta que também ocorreram mudanças nas ciências e sua filosofia, especialmente no que concerne à virada prática impulsionada desde a década de 1980 por intelectuais como Ian Hacking, Allan Franklin, Peter Galison, David Gooding e Andrew Pickering. Essa virada prática põe, conforme Garbolino (2013, p. 78)GARBOLINO, P. What the scientist’s eye tells the artist’s brain. In: AMBROŽIČ, M.; VETTESE, A. Art as a thinking process: visual forms of knowledge production. [S.l.: s.n.], 2013. p. 74-88., o experimento e a produção de fenômenos em primeiro plano da reflexão sobre a prática científica, mostrando a variedade de papéis que tais podem desempenhar na produção do conhecimento para além da mera provisão de dados interpretados para se testar teorias. Nessa abordagem, os métodos científicos são experimentais e desafiam a dicotomia teoria/observação ao ver práticas e técnicas de experimentação como centrais para o processo de conceituar, conforme se reconhece no experimento o papel de criar fenômenos. Garbolino (2013, p. 78)GARBOLINO, P. What the scientist’s eye tells the artist’s brain. In: AMBROŽIČ, M.; VETTESE, A. Art as a thinking process: visual forms of knowledge production. [S.l.: s.n.], 2013. p. 74-88. aponta que a física há décadas tem trabalhado com a criação experimental de fenômenos e eventos que são como plutônio: “não existem na natureza, a não ser em ocasiões possivelmente bem raras” (GARBOLINO, 2013GARBOLINO, P. What the scientist’s eye tells the artist’s brain. In: AMBROŽIČ, M.; VETTESE, A. Art as a thinking process: visual forms of knowledge production. [S.l.: s.n.], 2013. p. 74-88., p. 78; tradução nossa).

Essa lógica de aproximação fica bastante evidente se analisarmos a página web do maior laboratório de partículas do mundo, o Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), que tem um programa de artes (residências, comissões e exposições) para ensejar o diálogo entre artistas e físicos, assim introduzido:

A arte é um campo impulsionado pelo conhecimento, enquanto a ciência é uma área que contribui enormemente para a nossa sociedade e é um pilar da cultura contemporânea. Portanto, artistas e cientistas frequentemente seguem caminhos comuns: desde a exploração até a pesquisa, seguidos pela produção, entrega e compartilhamento com suas comunidades e a sociedade em geral. Artistas de todas as disciplinas criativas são bem- vindos ao CERN para vivenciar a forma como as grandes questões sobre nosso universo são buscadas pela ciência fundamental

(CERN, 2023CERN. About. Disponível em: <https://arts.cern/about>. Acesso em: 08 jun. 2023.
https://arts.cern/about...
).

A abordagem prática e experimental da ciência se distingue da orientação positivista na filosofia da ciência, característica de filósofos da metade do século XX, que concebia as teorias como configurações de sentenças escritas para um teste comparado à evidência empírica descrita por uma linguagem observadora, neutra, com respeito às teorias, e disponível intersubjetivamente para todos os observadores imparciais; também é distinta da visão antipositivista de pensadores da ciência como Thomas Kuhn, que nos anos 1960 desafiou a possibilidade de uma linguagem observadora neutra, alegando que as sentenças que descrevem observações são sempre seriamente infectadas pela teoria, e que a teorização científica é sempre prioritária a uma prática experimental.

A emergência da pesquisa artística não necessariamente estaria impulsionada por tais questões que se colocaram e debateram na filosofia da ciência, mas a aproximação feita por Garbolino (2013)GARBOLINO, P. What the scientist’s eye tells the artist’s brain. In: AMBROŽIČ, M.; VETTESE, A. Art as a thinking process: visual forms of knowledge production. [S.l.: s.n.], 2013. p. 74-88. desses debates com o debate sobre pesquisa artística acaba por facilitar a compreensão de um contexto amplo de abertura para a experimentação nas ciências. No próximo tópico, enfim, será tratado de modo mais direto o que seria a pesquisa artística e suas características mais objetivas.

Pesquisa artística

De modos variados, distintos e por vezes descontinuados de referências comuns, a pesquisa artística tem se dado desde a virada dos anos 1970 para os anos 1980 no Brasil, como apontado por Godói (2021a)GODÓI, V. Do pioneirismo brasileiro da pesquisa em arte ao fenômeno mundial da “artistic research”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, p. 53-68, 2021a. no que concerne a defesas de mestrado de artistas como Renina Katz, Regina Silveira, Cláudio Tozzi e Carmela Gross. O pesquisador considera o ano de 1980 como um marco do processo de epistemologização das artes na universidade brasileira, dado que nesse ano a artista Regina Silveira fez a primeira defesa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), apresentando uma exposição no Museu de Arte Contemporânea (MAC-Ibirapuera) e entregando um memorial descritivo como dissertação. Silveira, nesse sentido, pode ser considerada uma das precursoras da pesquisa artística.

Apenas em 1993, todavia, o tema se tornou assunto da tese de doutorado de Silvio Zamboni na ECA/USP, intitulada A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência, publicada em 1998. Zamboni (2012)ZAMBONI, S. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. 4. ed. Campinas, S.P.: Autores Associados, 2012. utiliza a expressão pesquisa em arte para “se referir ao trabalho de pesquisa em criação artística, empreendido por artistas que objetivam atingir como produto final a obra de arte” (ZAMBONI, 2012ZAMBONI, S. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. 4. ed. Campinas, S.P.: Autores Associados, 2012., p. 6), trabalho esse que, para ele, seria desempenhado necessariamente por um artista que assume também a face de pesquisador e que, até então, carecia de um modelo metodológico.

Zamboni, especialmente, foi uma figura importante para o estabelecimento e reconhecimento da área de artes no Brasil, posto que, como funcionário do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordenador da área de ciências sociais, trabalhou para o reconhecimento e incremento do fomento para a área. Seu trabalho buscou estabelecer critérios específicos para a avaliação de pesquisas em artes, articulando-se com as escolas e faculdades do país para o estabelecimento de estratégias e parâmetros comuns para a inserção das artes nas instituições de pesquisa do país.

Em sua tese de doutorado, Zamboni (2012)ZAMBONI, S. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. 4. ed. Campinas, S.P.: Autores Associados, 2012. analisou dissertações e teses de artistas defendidas na ECA/USP, apontando as caraterísticas da pesquisa artística e estabelecendo critérios para a sua avaliação pelas agências de fomento. Significativo para a formação e o reconhecimento dessa modalidade de pesquisa no país, a proposição metodológica do texto de Zamboni não necessariamente converge em detalhes com a aproximação entre arte e pesquisa feita a partir dos anos 2000 em um contexto anglo-saxônico, especialmente em programas de pós-graduação em artes de países escandinavos.

Para aprofundar a discussão e facilitar uma compreensão com mais nuances da pesquisa artística, opta-se aqui por acompanhar as definições e os entendimentos desenvolvidos no contexto anglo-saxônico e internacional. A partir daí, houve uma atenção para o tema que transbordou para outras disciplinas, o que acaba por problematizar a ideia de Zamboni de que tais pesquisas devam ser conduzidas necessariamente por artistas e de que o resultado necessariamente é uma obra de arte. Esses entendimentos, entre outros presentes na sua abordagem, acabam soando restritivos em relação à diversidade de manifestações que esse fenômeno metodológico expôs e que se estabeleceu para além da área das artes.

Em um contexto anglo-saxônico, a pesquisa artística se desdobrou, por exemplo, em outras nomenclaturas, como art-based research, que se tornaram metodologias com alcance multidisciplinar. Nessa abordagem, não necessariamente o resultado da pesquisa é uma obra de arte, estando o foco sobre os processos e as metodologias de criação das artes como base para o desenvolvimento de questões, conceitos e modelos de pesquisa.

Costuma-se diferenciar pesquisa artística de art-based research restringindo- se a pesquisa artística ao âmbito das artes (por mais que transborde para outros campos e disciplinas), enquanto a art-based research seria um híbrido com um pé nas artes e outro na academia, visando a produção de conhecimento academicamente relevante. Como uma combinação de metodologias de diferentes disciplinas para produzir e comunicar conhecimento na universidade, a art-based research faz uso de experiências afetivas, sensoriais, emocionais, corporais e da imaginação, dando liberdade de interpretação ao pesquisador para atribuir sentido às suas experiências (FINLEY, 2008FINLEY, S. Arts-Based Research. In: Handbook of the arts in qualitative research. Edited by J.G. Knowles and A. Cole. London: Sage, 2008. p. 71-81, 72.). Essa diferenciação de nomenclatura entre pesquisa artística e pesquisa baseada em arte, porém, não será realçada na abordagem deste artigo, cujo foco é fortalecer a aproximação entre as artes e a comunicação de um ponto de vista metodológico e epistemológico, sendo o debate sobre a diversidade de nomenclaturas, os pormenores e detalhes que as diferenciam importante para outro artigo.

Dessa forma, Henrik Borgdorff (2012)BORGDORFF, H. A. H. The conflict of the faculties: Perspectives on artistic research and academia. [S.l.]: Leiden University Press, 2012. é um autor que oferece uma definição de pesquisa artística capaz de servir de abertura para se pensar a pesquisa baseada em arte. Ao longo do artigo, opto por usar a nomenclatura pesquisa artística sem restringir a sua possibilidade de uso à disciplina das artes ou à figura do artista.

Sendo assim, recorre-se a Borgdorff (2012, p. 53)BORGDORFF, H. A. H. The conflict of the faculties: Perspectives on artistic research and academia. [S.l.]: Leiden University Press, 2012. em sua definição de pesquisa artística:

A prática artística se qualifica como pesquisa se o seu propósito for expandir nosso conhecimento e compreensão ao conduzir uma investigação original por meio de objetos artísticos e processos criativos. A pesquisa artística começa ao se direcionar questões pertinentes ao contexto de pesquisa e ao mundo das artes. Os pesquisadores empregam métodos experimentais e hermenêuticos que revelam e articulam o conhecimento tácito que está situado e corporificado em obras e processos de arte específicos. Os processos de pesquisa e seus resultados são documentados e disseminados de modo apropriado para a comunidade de pesquisa e seu público mais amplo.

(BORGDORFF, 2012BORGDORFF, H. A. H. The conflict of the faculties: Perspectives on artistic research and academia. [S.l.]: Leiden University Press, 2012., p. 53; tradução nossa)

As práticas artísticas, assim, causam efeito na pesquisa em termos materiais, afetivos e discursivos (BOLT, 2016BOLT, B. Artistic research: a performative paradigm. Parse Journal, n. 3, p. 129-142. 2016.), de modo que a fricção entre as categorias de sujeito e objeto está como característica distintiva desse outro paradigma ― que discutirei abaixo como sendo um paradigma performativo ―, sendo as práticas artísticas objeto, meio e resultado da pesquisa.

A característica distintiva da pesquisa artística, contudo, deriva do lugar primordial que a prática artística ocupa como sujeito, método, contexto e resultado da pesquisa. O pluralismo metodológico ― a visão de que várias abordagens derivando das humanidades, ciências sociais ou da ciência e tecnologia podem ter um papel na pesquisa artística ― deve ser observado como complementar ao princípio de que a pesquisa toma lugar na criação de arte e por meio dela

(BORGDORFF, 2012BORGDORFF, H. A. H. The conflict of the faculties: Perspectives on artistic research and academia. [S.l.]: Leiden University Press, 2012., p. 54; tradução nossa).

As abordagens metodológicas relacionadas a essa compreensão compõem um deslocamento, emaranhado pelas artes e em alinhamentos com fios soltos de outros campos, "da pesquisa acadêmica de uma epistemologia logocêntrica de conhecimento para uma epistemologia logocêntrica para uma epistemologia que enseja o conhecimento corporificado, espacializado, ambiental, imagético" (FIGUEIREDO, 2019FIGUEIREDO, R. C. C. Nas Pegadas do Carvão: Performando uma Paisagem de Contaminação Ambiental. Arteriais - Revista do Programa de Pós-Gradução em Artes, [S.l.], p. 59-71, jun. 2019. ISSN 2446-5356. Disponível em: <https://periodicos.ufpa.br/index.php/ppgartes/article/view/8917>. Acesso em: 28 ago. 2023. doi:http://dx.doi.org/10.18542/arteriais.v5i8.8917.
https://periodicos.ufpa.br/index.php/ppg...
). A ênfase que se coloca aqui é no movimento retroalimentativo entre as práticas artísticas (marcadas pela multisensorialidade) e as práticas intelectuais tradicionais.

O pesquisador investiga, assim, sua própria prática conforme ela se desenvolve, e o método é pensado desde um contexto situado nessa prática como produção de conhecimento, em um caráter reflexivo, metalinguístico e que se entrelaça com a produção de obras de arte e artefatos enquanto fenômenos, objetos e eventos que, ao ser verbalizados, trazem à tona conhecimento corporificado em suas propriedades físicas, relacionais e configuracionais.

Complementa-se, aqui, tal definição, com o apontamento de sete estados em que a pesquisa artística pode se dar. Como elaborado e elencado por Godói (2021b)______. Os estados da pesquisa artística, da instituição à obra de arte. Revista Concinnitas, v. 22, n. 40 , p. 350-370, 2021b., trata-se de estados abertos, por mais que elementares: “não ocorrem como oposições, já que são considerados os cruzamentos criativos entre qualidades e frequências, assim como a passagem de um estado a outro, em livre trânsito combinatório” (GODÓI, 2021b______. Os estados da pesquisa artística, da instituição à obra de arte. Revista Concinnitas, v. 22, n. 40 , p. 350-370, 2021b., 352).

  1. Pesquisa do artista na universidade: refere-se ao estado em que a pesquisa artística pode se dar na universidade, seja em curso ou linha de pesquisa própria de pós-graduação stricto sensu.

  2. Pesquisa de produção artística: neste estado, a obra de arte ou processo de criação é o elemento principal da pesquisa, constituindo-se como seu resultado, ou parte dele, associado a relatórios, textos, artigos e publicações acadêmicas.

  3. Pesquisa em arte e tecnologia: relacionado a um interesse pelo conhecimento técnico gerado com uma produção, objetivando ”a criação de técnicas, procedimentos, artefatos e produtos, geralmente em laboratórios ou institutos de inovação ligados a empresas” (GODÓI, 2021b______. Os estados da pesquisa artística, da instituição à obra de arte. Revista Concinnitas, v. 22, n. 40 , p. 350-370, 2021b., p. 358).

  4. Pesquisa do artista sobre a própria arte: não necessariamente envolve a produção de novas obras e processos criativos, mas consiste em um empenho metalinguístico do artista em compreender seu campo e os fenômenos que o envolvem.

  5. Pesquisa teórica de artista: envolve o engajamento do artista com a materialidade da teoria e seu reflexo nos processos artísticos, pautada mais na leitura de textos e obras de arte, palestras-performance, vídeo-ensaios, escritos e teorias de artista, criação de conceitos e sistemas conceituais.

  6. Pesquisa do artista associada a outros campos: este é o estado mais significativo para o presente artigo, que discute a aproximação dessa abordagem com a área da comunicação. Para Godói (2021b)______. Os estados da pesquisa artística, da instituição à obra de arte. Revista Concinnitas, v. 22, n. 40 , p. 350-370, 2021b., neste estado, além de adotar metodologias e procedimentos de outras disciplinas para estudar um tema de outra área como base para futuros processos artísticos, o artista pode se ainda debruçar sobre determinado tema de forma muito próxima a uma disciplina que não seja a arte, colaborando com temas que são do interesse de outra área, mas perpassando o registro poético das artes visuais e as potências das suas linguagens artísticas.

  7. Pesquisa do artista em vários circuitos: neste estado, a pesquisa “não fica restrita necessariamente à universidade ou a uma única instituição somente, ela se desloca de forma independente através de circuitos variados, não se atém a uma única resposta” (GODÓI, 2021b______. Os estados da pesquisa artística, da instituição à obra de arte. Revista Concinnitas, v. 22, n. 40 , p. 350-370, 2021b., p. 365).

Aqui se propõe que a emergência de métodos no campo das artes deve ser friccionada no campo da comunicação, e o campo deve, na iteração e multiplicidade de experiências, encontrar protocolos e valorações para que esses métodos afetem a infraestrutura de suas instituições, pois há uma carência de abertura para um paradigma performativo de pesquisa se desenvolver na comunicação. Iteração e multiplicidade são justamente características que marcam o conceito de performatividade e as circunstâncias que tornam possível a emergência de métodos de pesquisa artística estão relacionadas a esse conceito.

Foi problematizando a representação entre o pensamento filosófico e a linguagem que o conceito de performatividade emergiu nas primeiras formulações da Teoria dos Atos de Fala, de Austin (1962)AUSTIN, J. How to do things with words. Oxford: Oxford University Press, 1962., que diferenciou enunciados constativos de performativos.

A descrição dos estados das coisas, sujeitando-as ao julgamento de verdadeiras ou falsas com base em uma correspondência com os fatos do mundo, é o que caracteriza os enunciados constativos. Problematizando a representação, Austin apontou que a linguagem, além de constativa, faz coisas, é um ato proferido pela ação em enunciados performativos. Enunciados constativos, portanto, estabelecem correspondência entre o que se declara e os fatos descritos ou modelados, enquanto os enunciados performativos não descrevem nada, mas fazem coisas no mundo.

Tal entendimento sobre o caráter performativo da linguagem produziu um efeito de se deslocar o foco da análise do texto para um foco sobre processos, participação, eventos, ações e experiências relacionadas ao texto. Performatividade, desde Austin, já se estabelece como não sendo principalmente sobre significado, mas sobre força e efeito. As teorizações que buscam definir a pesquisa artística trazem embutidas um entendimento que atribui valor destacado para as forças e os feitos das práticas artísticas na produção do conhecimento, mais do que seu significado em si, como se pode ver nas caracterizações da pesquisa artística elaboradas a seguir por Borgdorff (2012)BORGDORFF, H. A. H. The conflict of the faculties: Perspectives on artistic research and academia. [S.l.]: Leiden University Press, 2012.:

Talvez o mais importante seja que a pesquisa artística via de regra não começa com questões de pesquisa, hipóteses ou tópicos cuja relevância para o contexto da pesquisa e a prática artística tenha sido estabelecida de antemão. Muitas dessas pesquisas não são conduzidas por uma hipótese, mas por descobertas nas quais os artistas assumem uma busca baseada na intuição e no teste e erro, possivelmente se cruzando com resultados inesperados, insights surpreendentes ou percepções sagazes. Além disso, como os pesquisadores estão intimamente interligados com o que estão explorando — muita pesquisa artística serve ao próprio desenvolvimento artístico —, eles não têm distância ampla do tema da pesquisa, uma distância que é supostamente uma condição essencial para se adquirir um grau de objetividade

(BORGDORFF, 2012BORGDORFF, H. A. H. The conflict of the faculties: Perspectives on artistic research and academia. [S.l.]: Leiden University Press, 2012., p. 80; tradução nossa).

Posteriormente a Austin, Judith Butler toma o conceito de performatividade para o pensar como uma prática caracterizada pela citação e pela iteração, dissimulando convenções sobre o que é uma repetição. Butler esteve, na formulação de sua abordagem de ampla repercussão sobre o conceito, interessada em investigar a performatividade que materializa o gênero no cotidiano. Ela buscou entender a formação do sujeito baseada na ideia de que o sujeito não precede uma ação, mas é por meio de atos performativos que seu Eu vem a existir.

Para Bolt (2016)BOLT, B. Artistic research: a performative paradigm. Parse Journal, n. 3, p. 129-142. 2016., a discussão sobre performatividade após a reflexão de feministas sobre a iterabilidade afeta diretamente a lógica de experimentação científica, em que o rigor da pesquisa se estabelece na validade das suas alegações de verdade. Nessa abordagem, o conhecimento emerge materialmente também da mutabilidade das experiências. Essa mutabilidade é inerente à iterabilidade, a capacidade que uma coisa (como um signo) têm para ser outra coisa na sua própria repetição. Enquanto no trabalho de Butler se investiga a performatividade que materializa o gênero no cotidiano, Bolt (2016)BOLT, B. Artistic research: a performative paradigm. Parse Journal, n. 3, p. 129-142. 2016. se liga a essa noção de performatividade para pensar como a arte é materializada enquanto e como pesquisa. É, nesse raciocínio, na repetição e reiteração do comportamento epistemológico-artístico que se encontram as possibilidades de experiências disruptivas do hábito e da norma acadêmica.

Com base na performatividade, os métodos facilmente replicáveis e a interpretação de dados para se descrever ou modelar o mundo de um ponto de vista alegadamente neutro e distanciado podem ser melhor diferenciados dos métodos que fazem suas alegações de verdade com base em determinado evento performativo (como um processo e uma prática artística), suas forças e efeitos. Por um caminho, encontram-se métodos de pesquisa que se fazem na dimensão constativa, a qual estabelece correspondências entre a descrição e o modelo para observar um objeto purificado sob uma superfície plana, fazendo descrições e declarações discursivas proposicionais, estabelecendo alegações de verdade, correspondência e representação.

Por outro caminho (que pode ficar atravessando o anterior em múltiplos pontos), emergem métodos que se fazem evidenciando sua dimensão performativa, reconhecendo um potencial generativo na ambiguidade e indeterminação de um objeto estético e de um “dar-se conhecimento de que os instrumentos e sujeitos da pesquisa são coprodutores na empreitada que chamamos de pesquisa” (BOLT, 2016BOLT, B. Artistic research: a performative paradigm. Parse Journal, n. 3, p. 129-142. 2016., P. 140; tradução nossa).

Comumente os artistas são criticados nas tentativas de aplicar essas metodologias, em razão da qualidade subjetiva e emergente de suas pesquisas, que parecem nebulosas, não quantificáveis e não testáveis, com procedimentos que emergem em e por meio de obras de forma eventual. O que é replicável como método da pesquisa artística, se a replicabilidade é um princípio central da pesquisa científica? Pode-se pensar, com base na ênfase na relação entre iterabilidade e mutabilidade, que é a falta de correspondência o que precisamente pode ser a força originadora do paradigma performativo de pesquisa:

Entretanto, isso não vai ao encontro dos ‘padrões de verdade objetiva’ que permitem à ciência alegar a verdade. Como então estabelecemos nossa verdade contra as alegações de veracidade da ciência?

(BOLT, 2016BOLT, B. Artistic research: a performative paradigm. Parse Journal, n. 3, p. 129-142. 2016., p. 137; tradução nossa).

Para Bolt (2016, p. 141)BOLT, B. Artistic research: a performative paradigm. Parse Journal, n. 3, p. 129-142. 2016., os efeitos do performativo para a arte e a sua tomada como princípio para pesquisa artística são multidimensionais: podem ser discursivos, materiais ou afetivos. A tarefa, para ela, é encontrar caminhos para mapear o movimento do pensamento em conceitos, compreensões, metodologias, práticas materiais, afetos e experiências sensoriais que se colocam na experiência de pesquisa e por meio dela, o que acaba evocando uma série de questões que revelam que as pesquisas artísticas costumam ter como objetivo geral a articulação de uma metadiscussão sobre seus processos.

O objetivo metodológico desse modo de pesquisar, nesse sentido, é mostrar especificamente como a experiência artística e a teorização acadêmica interagem, guiam e influenciam uma a outra, criando uma pesquisa criticamente reflexiva, em um jogo transdisciplinar retroalimentativo entre processos criativos, eventos e conceitos. Assim, a prática artística — tanto seu objeto como seu processo criativo — corporifica conhecimento tácito que pode ser desdobrado por meio tanto da experimentação quanto da interpretação. A pesquisa ganha relevância não só pelo seu conteúdo em termos verbais, mas pelo seu processo e performatividade.

A pesquisa artística na comunicação

Tal discussão na comunicação é incipiente em um contexto nacional: isso não quer dizer que não ocorram pesquisas com essas abordagens, mas que há uma carência de discussão sobre metodologias e epistemologias experimentais. O maior estranhamento que essa ausência causa, no contexto brasileiro, se dá no fato de que a aproximação metodológica (e não a mera objetificação) entre comunicação e arte foi proposta por Vilém Flusser ainda na década de 1970. Com base em textos publicados na década de 1980 sobre a relação entre texto e imagem (FLUSSER, 1984FLUSSER, V. Texto Imagem.. Napoli: Instituto Cultural Francês, 1984. Disponível em: <www.flusserbrasil.com/art45.html>. Acesso em: nov. 2019.
www.flusserbrasil.com/art45.html...
, 1986______. Texto/imagem enquanto dinâmica do Ocidente. Cadernos Rioarte, ano II, n. 5, p. 64-68, 1986. Manuscrito Arquivo Flusser, Berlim.), de suas reflexões sobre suas colaborações com o artista Fred Forest nos anos 1970 (FLUSSER, 2009______. Fred Forest ou a destruição dos pontos de vista estabelecidos. Sandra Rey (trad.). ARS, São Paulo, v. 7, n. 13, 2009.) e especialmente em suas obras Gestos [Gestures] (2014)______. Gestures. ed. Nancy Ann Roth. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2014. e Comunicologia (2015)______. Comunicologia: reflexões sobre o futuro. São Paulo: Martins Fontes, 2015., Flusser ensejou repetidamente a possibilidade de as pesquisas em comunicação incorporarem processos e meios artísticos no seu fazer e na sua epistemologia. Em artigo publicado coetaneamente em outra revista acadêmica da área de comunicação, dedico atenção específica para a proposta de Vilém Flusser de pesquisa com artes na comunicação e para as suas próprias experiências nesse sentido.

Uma porta de entrada mais recente para a pesquisa artística nos estudos de mídia e comunicação tem se dado pelo que ficou conhecido como arqueologia das mídias, costumeiramente relacionada a teóricos alemães próximos de Flusser, como Friedrich Kittler. Nesse sentido, Gansing (2013)GANSING, K. Transversal media practices: Media archaeology, art and technological development. PhD diss. [S.l.]: Malmö University, Faculty of Culture and Society, 2013. aponta como a arqueologia das mídias se tornou um campo fértil para essa expansão metodológica dos estudos de mídia e comunicação para práticas artísticas.

Em 2013, em sua tese sobre práticas transversais com mídia, Gansing (2013)GANSING, K. Transversal media practices: Media archaeology, art and technological development. PhD diss. [S.l.]: Malmö University, Faculty of Culture and Society, 2013. buscou usar a arqueologia das mídias para fundamentar melhor uma metodologia de pesquisa baseada em processos artísticos para os estudos de mídia e comunicação, algo que posteriormente, enquanto diretor do festival Transmediale, pôs em ação por meio de laboratórios de colaboração entre pesquisadores e artistas, exposições e conferências. Inclusive, instituiu a Vilém Flusser residency for artistic research, oferecida pelo festival anualmente com financiamento a um artista-pesquisador. Na sua tese, Gansing (2013)GANSING, K. Transversal media practices: Media archaeology, art and technological development. PhD diss. [S.l.]: Malmö University, Faculty of Culture and Society, 2013. propôs um maior engajamento de pesquisadores de mídia e comunicação nas possibilidades de pesquisa baseada na prática e na experimentação com distintas abordagens metodológicas.

A arqueologia das mídias tem criticado os cânones da teoria e história das mídias ao repensar: 1) a materialidade das tecnologias de mídia e comunicação em diálogos intensos com práticas artísticas (FIGUEIREDO, 2020______. "Affordances geofísicas das mídias: arte e tempo profundo." Galáxia (São Paulo), no. 43 (April 2020): 154–67. http://dx.doi.org/10.1590/1982-25532020142687.
https://doi.org/10.1590/1982-25532020142...
); 2) a ruptura com uma concepção linear de história, o que enfatiza o potencial do presente e dos futuros possíveis (STRAUVEN, 2013STRAUVEN, W. Media archaeology: where film history, media art, and new media (can) meet. In: NOORDEGRAAF, J.; SABA, C. G.; LE MAÎTRE, B.; HEDIGER, V. (orgs.). Preserving and exhibiting media art: challenges and perspectives. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2013.; TELLES, 2021TELLES, M. Arqueologia das Mídias como Pós-História das Mídias. Questões Transversais, São Leopoldo, Brasil, v. 8, n. 16, 2021. Disponível em: <https://revistas.unisinos.br/index.php/questoes/article/view/19096>. Acesso em: 28 ago. 2023.
https://revistas.unisinos.br/index.php/q...
); 3) os efeitos epistemológicos e metodológicos das tecnologias que marcam a virada do século XXI (GANSING, 2021______. The cinema of extractions: film as infrastructure for (artistic?) research. International Journal of Film and Media Arts. Oct 3;7(1):94-114. 2022. Disponível em: <https://revistas.ulusofona.pt/index.php/ijfma/article/view/7998>. Acesso em: 28 ago. 2023
https://revistas.ulusofona.pt/index.php/...
; ERNST, 2018ERNST, W. “Radical Media Archaeology (its epistemology, aesthetics and case studies)”. Artnodes, n.21. 2018. Acesso em 28. ago. 2023. doi: <https://doi.org/10.7238/a.v0i21.3205>.
https://doi.org/10.7238/a.v0i21.3205...
).

Como apontado por Parikka (2021, p. 210)PARIKKA, J. O que é arqueologia das mídias? Coordenaçao Adalberto Müller, Erick Felinto, Coordenaçao de traduçao Maria Alic G. Antunes. - 1º ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2021, “muitos trabalhos mídio-arqueológicos são executados de maneiras artísticas”. Tais trabalhos são divididos por Parikka em 6 categorias gerais: 1) engajamento visual com temas históricos; 2) histórias alternativas que oferecem discernimento crítico sobre a digitalidade; 3) arte a partir da obsolescência tecnológica; 4) construção de mídias imaginárias – dispositivos imaginados no passado das mídias, mas que nunca funcionaram ou nunca foram construídos; 5) arte mídio-arqueológica com arquivos concretos e materiais históricos; 6) métodos que investigam hardwares, softwares, protocolos e circuitos.

Destaco, além dessas categorias, a aproximação entre os estudos de infraestrutura da comunicação e as práticas artísticas, tema que já discuti de modo mais específico em (FIGUEIREDO, 2021______. Estudos de infraestrutura e práticas artísticas: reconhecendo entrecruzamentos . Lumina, [S. l.], v. 16, n. 2, p. 5–22, 2022. DOI: 10.34019/1981-4070.2022.v16.34342. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/34342. Acesso em: 28 ago. 2023.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/lum...
). No geral, são pesquisas conduzidas por investigadores interessados em temas como cabos submarinos, data centers, torres de transmissão e satélites. Diversas pesquisas acabam por utilizar práticas artísticas para encontrar estratégias criativas de representação das complexas escalas de tempo e espaço que envolvem as infraestruturas, dando formas visíveis para o conhecimento sobre a distribuição das mídias.

Para além das arqueologias das mídias e dos estudos de infraestrutura, enfim, defende-se aqui que há uma gama de possibilidades para melhor articular a produção e a distribuição de formas de conhecimento multimodal na Comunicação, considerando que a área, em seus cursos, já estimula a produção audiovisual, gráfica, fotográfica e sonora. O que parece estar faltar, todavia, é a compreensão do potencial de articulação entre tal produção e as epistemologias e metodologias que definem a área.

Considerações finais

Espera-se, com esta contribuição, alcançar possíveis pares que encontram dificuldades para fazer compreensível em seus programas as abordagens metodológicas baseadas em práticas artísticas na comunicação. Possibilidades metodológicas experimentais ganham ainda mais força e atenção nos últimos anos, conforme se aproximam da virada decolonial que ocorre nas artes, nas ciências sociais e nas humanidades, com o batalhado reconhecimento de outras epistemes baseadas em referências pretas e de povos originários.

Um estudo mais aprofundado pode discutir a especulação de que as disciplinas de metodologia nos cursos de comunicação, seja na graduação ou na pós-graduação, não discutem ou oferecem estudo sobre metodologias experimentais não logocêntricas, o que indicaria uma possível necessidade de atualização de ementas e docentes. Em caráter preliminar, visualizei as ementas relacionadas à discussão sobre metodologia e epistemologia de 11 programas de pós-graduação em comunicação ? Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Universidade de São Paul (USP) e Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). Foram consultadas as ementas dos anos 2021, 2022 e 2023, em formato resumido ou completo, que se encontram públicas nas páginas dos programas.

Apenas o programa da Unisinos apresentou ementas com discussões metodológicas em caráter mais experimental, referenciando inclusive a arqueologia das mídias. A ementa do programa da Ufop também pode ser destacada por utilizar referências como Ailton Krenak para repensar a prática científica comunicacional com base em uma abordagem decolonial.

Em geral, os outros programas discutem a história das ciências e da comunicação, apresentam conceitos relacionados ao discurso sobre o método científico, conformam-se aos paradigmas qualitativos e quantitativos e operam como um laboratório de formatação dos projetos de pesquisa do programa a determinado padrão tradicional de entendimento do que é objeto, justificativa, hipótese, objetivo etc. Como discussão que escapa a essa conformidade histórica, alguns programas incorporam abordagens que situam o debate metodológico no contexto das transformações tecnológicas das últimas décadas, com abordagens como netnografia ou a visualização de dados.

A carência de outras abordagens parece evidente, ainda que se reforce que aqui se faz o apontamento de que estudos futuros reafirmariam ou refutariam os argumentos do presente artigo sobre a área da comunicação. Ao mesmo tempo, outros estudos também podem se dedicar a consultar os bancos de teses e dissertações dos cursos de pós-graduação em comunicação para reconhecer e mapear o conjunto de trabalhos que, de modo variado, já empregaram metodologias baseadas em práticas artísticas ou que incorporam outras metodologias experimentais e não logocêntricas.

O debate internacional sobre as vantagens e desvantagens, virtudes e problemas dessas proposições metodológicas já encontra diversas nuances e variações que apontam para a relevância das questões epistemológicas e metodológicas no atual contexto comunicacional e midiático marcado pelas tecnologias digitais.

Por fim, não se desconhece, aqui, que a relação entre arte contemporânea e conhecimento reflete mudanças no campo das relações econômicas. Para Holert (2020, p. 58)HOLERT, T. Knowledge beside itself: contemporary art’s epistemic politics. [S.l.]: MIT Press, 2020., a expectativa de uma função epistemológica e crítica da arte não deve ser confundida com uma alegação inocente de que ela detém um modo superior de produção, aquisição e distribuição de conhecimento. A arte contemporânea estaria profundamente emaranhada no projeto do capitalismo cognitivo de homogeneizar o conhecimento e a percepção, por vezes oferecendo uma noção vazia e espetacularizada do conhecimento.

A dita desmaterialização da obra de arte seria também uma assimilação da desmaterialização do trabalho e do poder que caracterizam as sociedades pós-industriais, crescentemente automatizadas, mediadas por algoritmos e controladas por inteligência artificial, visto que educação, criatividade, afeto e memória são o próprio enquadramento operacional do capitalismo. O presente artigo espera colaborar para a movimentação, experimentação e discussão do tema no contexto nacional.

  • 1
    Em Terra encantada retomado: processos de pesquisa e realização de experimentos audiovisuais com arquivo, as pesquisadoras Andréa França e Patrícia Machado compartilham com o grupo de trabalho (GT) Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual o trabalho de apropriação de imagens de arquivo para a criação de quatro curtas-metragens para uma galeria da web página Rio Cinético. As reflexões teóricas e conceituais se fundamentam no experimento, e o resultado da pesquisa tem caráter artístico. No mesmo GT, o artigo Dá uma umbigada na outra: matrizes sensíveis nas encruzilhadas do samba de roda, dos pesquisadores Angelita Bogado, Scheilla Franca de Souza e Jorge Cardoso Filho, propõe uma metodologia de apropriação criativa e epistemológica de diferentes filmes que abordam performance, videodança, território e corpo.
  • 2
    Especificamente, os periódicos Conexão – Comunicação e Cultura (Universidade de Caxias do Sul [UCS]), Pós-Limiar (Pontifícia Universidade Católica de Campinas [PUC-Campinas]), Rebeca (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual. [Socine]), Revista Alterjor (Universidade de São Paulo [USP]), Revista Comunicação, Cultura e Sociedade (Universidade do Estado de Mato Grosso [Unemat]), Esferas (UCS), Revista Internacional de Folkcomunicação (Universidade Estadual de Ponta Grossa [UEPG]), Revista Movimento (USP), Revista Observatório (Universidade Federal do Tocantins [UFT]) e Revista Passagens (Universidade Federal do Ceará [UFC]).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2023
  • Aceito
    31 Jul 2023
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