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As despedidas de David Perlov

David Perlov’s farewells

Resumo

Este artigo analisa como o Diário 1973- 1983, de David Perlov, tece-se em um duplo movimento de recusa e libertação. Com base na análise de alguns signos opacos que se repetem ao longo do filme — fotos sem legendas, nomes sem corpo — e ressaltando as hesitações e oscilações do cineasta na narração, no modo de filmar ou enquadrar, propomos pensar o Diário como um processo de aprendizado e de desapego de dois territórios de origem: a tradição do cinema moderno e o país natal, o Brasil.

Palavras chave
David Perlov; filme-diário; cotidiano; passado

Abstract

This paper examines how David Perlov’s Diary 1973-1983 articulates itself in a double movement of refusal and liberation. Based on the analysis of some opaque signs that repeat themselves through the film — such as photos without captions and names without bodies — and emphasizing the hesitations and oscillations of the filmmaker in the voice-over and in the way of filming and framing, the essay proposes thinking the Diary as a process of learning and detachment of two territories of origin: the tradition of modern cinema and the native country, Brazil.

Keywords
David Perlov; diary-film; everyday life; past

Muito já se falou sobre o desejo de David Perlov de se aproximar do cotidiano; encontramos isso em seus diários e também em filmes como Em Jerusalém, Biba, Tel Katzir 1993. É nos diários, todavia, que esse desejo aparece como um programa estético. Em 1973, o cineasta brasileiro-israelense começa a filmar de modo diarístico seu cotidiano. Por dez anos, ele registrará seu dia a dia no apartamento onde vive com a família em Tel Aviv, os acontecimentos políticos de Israel e seus retornos ao Brasil, o que resultará em um monumental filme de seis horas, dividido em seis capítulos: Diário 1973-1983 (doravante apenas: Diário). No início do primeiro capítulo, em um movimento comum aos diaristas de anunciar as motivações que os levaram ao gênero, o cineasta faz sua profissão de fé: “O cinema comercial não me interessa mais. Quero me aproximar do cotidiano. Leva tempo para aprender a fazê-lo”.

Aproximar-se do cotidiano — gostaria de voltar a esse predicado e então deslocar para o verbo a ênfase que normalmente se dá ao substantivo: de cotidiano para aproximar, para iniciar este texto. Nesse deslocamento, proponho pensar o cinema de Perlov como mais reflexivo do que cotidiano, como a fortuna crítica devotada ao cineasta tende a ressaltar. Atenta às hesitações e oscilações do cineasta na narração, no modo de filmar ou enquadrar, bem como à reincidência de alguns signos opacos — fotos sem legenda, ou nomes sem corpos —, demonstrarei que o Diário é tecido como um lento processo de desapego de dois territórios de origem: a tradição do cinema moderno e o país natal, o Brasil.

Aproximar-se do cotidiano

Há no Diário de Perlov uma distância irremediável entre o cinema e o cotidiano do qual é preciso aprender a se aproximar. Essa aproximação terá sempre seu limite: o cinema pode aproximar-se do dia a dia, por vezes tocá-lo, acariciá-lo, mas nunca se integrar ou diluir nele. Pois há o cinema e há a vida, e as tentativas de chegar a um por via do outro inevitavelmente repõem a distância entre os dois — é este, por exemplo, o dilema do cineasta quando, sobre o registro de sua filha diante de um prato de sopa, pergunta se deve tomar ou filmar a sopa. Ao que responde: “a partir de agora precisarei decidir”.

Chama a atenção a recorrência com que a narração em voz over enfatiza os gestos de filmar e observar. No lugar de apontar ou celebrar o mundo que nos é mostrado, como o faz, por exemplo, um diarista como Jonas Mekas, ou simplesmente calar-se diante da imagem, deixando que ela, em seu movimento próprio, envolva e convoque o espectador, como se o convidasse a roçar e sentir aquilo que outrora mobilizou o fotógrafo, a narração de Perlov convoca-nos ao lugar do observador: “minha primeira imagem”, “filmo a televisão”, “quero filmar frontalmente”, “decido mudar minha maneira de filmar”. A recorrência com que o verbo to shoot (filmar, mirar, atirar) aparece em seus comentários ao longo dos seis capítulos do Diário sugere que o cineasta parte mais do lugar da observação e da reflexão, e menos da experiência direta e fenomenológica, para abordar o cotidiano. Não se trata, é claro, de uma falsa oposição na qual o ver e o refletir estariam excluídos do campo da experiência, mas de uma oposição na qual uma modalidade de experiência (o ver/refletir) prevalece sobre todas as outras. Observar não é uma entre as várias ações de Perlov, é a ação por excelência: “observar tornou-se a essência do meu ser”, diz ele em determinado momento.

A ênfase na observação não escapa aos intérpretes de Perlov. Gregório Martins Gutiérrez (2011, p. 98-131)GUTIÉRREZ, G. M. David Perlov e a vigília do cotidiano. In: FELDMAN, I.; MOURÃO, P. (orgs.) David Perlov: epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura Judaica, 2011. p. 98-131. fala em “esperar a vida em emboscada” ao descrever o modo de estar no mundo de Perlov. Gutiérrez primeiro identifica esse estado na forma como o cineasta enquadra (frequentemente da janela de sua casa), para então estendê-lo a uma série de exemplos nos quais a câmera (cujo visor constitui outra forma de janela ou mediação) permite salvaguardar uma distância desejada entre o cineasta e aquilo que filma, especialmente nos momentos de demasiada presença e domesticidade. Talvez a melhor imagem para essa ideia de emboscada seja a do cineasta filmando da janela de casa como se estivesse em um tanque de guerra, retirada da resolução de Perlov, apresentada no segundo capítulo do Diário, logo depois de uma longa passagem dedicada à Guerra de Yom Kippur.

O que quer dizer filmar como quem está em um tanque de guerra? O soldado marchando, ao lado ou rodeado por seu batalhão, não tem visão em perspectiva do campo de batalha, não pode visualizar sua extensão, nem mensurar o tamanho das forças oponentes ou da ameaça. Com o campo e a batalha, tem uma relação imersiva: pode ouvir os gritos da linha de frente, os tiros, o som das botas, a respiração ofegante; pode sentir o cheiro da pólvora, do suor, do medo. Isso é tudo. O soldado no tanque, por outro lado, relaciona-se visualmente e em relativa segurança com o entorno. Dispositivos de visão permitem-lhe mirar, calcular, atacar, mantendo a ameaça do outro lado.

Colocado nesses termos, o desejo de Perlov de filmar como quem olha da janela de um tanque de guerra pode parecer condenável do ponto de vista de uma ética cinematográfica. Todavia, o cinema não é, ao menos a rigor, uma guerra, e mesmo nesta está claro que a imoralidade não está nos corpos que, isolados ou coletivamente, correm maior ou menor risco. Se convoco a imagem do tanque aqui é para enfatizar o caráter observador e reflexivo do cinema de Perlov. É possível imaginar cineastas (e cineastas diaristas) que filmam como um soldado em um campo de batalha, suas câmeras reagindo intuitivamente aos estímulos imediatos, engajando-se no presente da experiência, seja ela limite ou cotidiana. São cineastas da intuição e do improviso: Jonas Mekas, John Cassavetes. E há os cineastas do tanque, que de determinada distância observam, visualizam — e visualizar é um termo militar — e processam a informação. São cineastas meditativos, que refletem sobre a natureza da imagem: Harun Farocki, Chris Marker, David Perlov.

Talvez tenha escapado a mim e a Ilana Feldman (FELDMAN; MOURÃO, 2011FELDMAN, I.; MOURÃO, P. (orgs.) David Perlov: Epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultural Judaica, 2011. p. 21-49.) essa inclinação do diário de Perlov para a observação e a reflexividade quando, em 2011, escolhemos Epifanias do cotidiano como subtítulo para uma publicação que dedicamos ao cineasta. Tomávamos de empréstimo o título do texto de Feldman que introduzia a coletânea. Ela defendia que o caráter epifânico do cinema de Perlov estaria na sua vocação revelatória, na sua capacidade de descortinar “algum segredo na superfície da imagem: entre o efêmero visível e o sagrado a ser revelado, entre o que é explícito e o que — de tão íntimo — precisa ser ocultado” (FELDMAN, 2011FELDMAN, I.; MOURÃO, P. (orgs.) David Perlov: Epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultural Judaica, 2011. p. 21-49., p. 48). A epifania era a pequena iluminação que escapa ao sentido, à sintaxe, à linguagem, ao dito e explicado. Recorrendo a Alberto Caieiro (“as cousas não têm significação: têm existência / As cousas são o único sentido oculto das cousas”1 1 Retirado do poema “O Guardador de Rebanhos” (XXXIX - O Mistério das Cousas), de 1914. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000001.pdf>. Acesso: em 20/07/2022. ), Feldman defendia a epifania em Perlov como esses momentos de apreensão súbita, maravilhada de presenças e existências no tecido do cotidiano.

Mas há outro diarista para quem a noção de epifania seria muito mais adequada: Jonas Mekas. Permito-me um breve desvio por ele para ressaltar a inadequação deste termo à obra de Perlov. Na obra do cineasta lituano, a epifania está associada ao lampejo, glimpse, e tem ao menos duas acepções: uma fenomenológica, e outra, formal. O glimpse é a experiência fulgurante e fugidia da beleza e da felicidade, o reencontro com paraíso perdido — no caso de Mekas, a infância em um vilarejo rural na Lituânia. Sem perder de vista o caráter religioso e sagrado intrínseco ao sentido original da epifania, o cineasta propõe um mito de origem para as manifestações epifânicas do glimpse.

Em Paradise Not Yet Lost (1980), Mekas conta que, depois de sua expulsão do paraíso, Eva volta-se para trás e vê o Éden explodido em milhares de pequenos fragmentos, os quais entram em seus sonhos e chovem sobre a terra. Esses fragmentos, ele então os reencontra ao longo da vida, em momentos de intensa beleza, no entanto, fadados, impreterivelmente, a passar. Em seus diários, ele encontra uma forma fílmica para glimpse: registros breves, muitas vezes em single frame, nos quais a imagem aparece como por salto, intermitência. Por limitações da câmera que escolheu usar, a Bolex manual, que funciona por corda e não com bateria, Mekas não pôde fazer planos de mais de 18 segundos. Radicalizando e explorando essa limitação, ele altera a velocidade do registro para menos de 24 quadros por segundo, quando não filma frame a frame, o que resulta, no filme projetado, em uma imagem que opera por saltos, intermitência e é emoldurada por vazios, momentos negros — o que faz que, na projeção, a imagem de fato apareça como uma iluminação.

Mekas não é apenas o cineasta da epifania, mas da epifania do cotidiano. Pois é exatamente ali, no dia a dia, que ele reencontra seu paraíso perdido. Sua obra é um grande monumento celebratório a festas de aniversário infantil, passeios no parque, refeições entre amigos e familiares, bebês aprendendo a andar, folhas e neve caindo, árvores florescendo, vento soprando. Seu cinema é repleto de presenças, nenhuma história, nenhum sentido por trás das aparências, apenas presenças súbitas e fugidias.

Ora, Perlov deseja o cotidiano, quer ir em direção a ele, quer se aproximar dele, mas, no geral, não consegue mais do que observá-lo com alguma distância: da janela de casa, por trás do visor da câmera. “Observar virou a essência do meu ser” e “quero me aproximar do cotidiano” são as frases que aparecem e reaparecem nas seis horas de seu Diário. A epifania, no entanto, não é um movimento da volição, não é uma decisão, mas uma aparição. Para Perlov há sempre uma distinção entre ver e viver: “filmar a sopa ou tomar a sopa” é sua versão do dilema hamletiano. Ao fim e ao cabo, o cinema é um lugar de solidão, de apartamento e ensimesmamento do mundo.

Justiça seja feita, não há nada no texto de Feldman sugerindo que ela subestime o papel da reflexividade e da observação na obra de Perlov; o que se vê, no entanto, é uma espécie de supervalorização da epifania e do cotidiano, sustentada, acredito, em uma associação do cotidiano com o sentido de realismo defendido por André Bazin — inerente à ontologia fotográfica, à dimensão indicial da fotografia, que permite que o real se inscreva na imagem, sem intervenções nem artifícios. O cotidiano seria, nessa perspectiva, a salvaguarda contra o artificial, a mentira e o engodo do cinema de ilusão. Aqui Feldman também segue Perlov, o qual, no Diário, a todo instante opõe o cotidiano ao cinema de ilusão do qual quer se afastar.

Em sua narração, as menções ao cotidiano e ao desejo de se aproximar dele vêm frequentemente próximas e em oposição ao cinema de ilusão ou de mensagem — duas modalidades principais na sua experiência de realização até aquele momento. Com uma trajetória de 25 anos realizando (ou tentando realizar) filmes produzidos dentro de sistemas de produção e financiamento cinematográficos convencionais, é do ponto de vista do cinema, de sua história e indústria, que Perlov se posiciona. Em sua trajetória pessoal, isso quer dizer: de um lado, a relação com a história oficial do cinema tal como estabelecida principalmente na Europa durante o pós-guerra; de outro, a relação com o estado de Israel, naquela altura, o único financiador possível no país. A crítica ao cinema de ilusão e as indagações sobre sua dimensão ética e moral deram o tom do pensamento erigido em torno do cinema moderno ocidental. Foi nesse contexto e bastante próximo a esses debates que se deu a formação cinéfila de Perlov. Do ponto de vista de sua vivência pessoal, desde seu primeiro filme em Israel, In Jerusalem, o cineasta lidou com a dependência (e ingerência) do estado, o qual, como único financiador, estimulava a produção de narrativas unificadoras da identidade cultural e ideológica do povo judeu na terra prometida; filmes de mensagens, como ele viria a chamá-los mais tarde.

O Diário é o grito de independência de Perlov contra essas duas formas de cinema: o cinema de ilusão e o tutelado pelo estado. Independência, no entanto, forçada; gesto de desespero que talvez seja mais profundo do que o de Jonas Mekas, outro diarista que também começa a fazer um diário em filme por desespero (BLUHER, 2011BLUHER, D. Perlov, Mekas, Morder, Lehman e outros: à procura das imprevisíveis agitações do cotidiano. In: FELDMAN, I.; MOURÃO, P. (orgs.) David Perlov: Epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura Judaica, 2011. p. 89-97., p 92).2 2 Há vários fios conectando Mekas e Perlov. Além de partilharem o desespero que os leva a fazer diários, Mekas e Perlov têm em comum a experiência do exílio e fazem da casa parte da busca de seus filmes. Mas também aqui as semelhanças vão só até um ponto, Perlov escolhe ir para Israel em busca de um sonho, de começar um país; Mekas é obrigado a deixar a Lituânia, a qual permanecerá, para sempre, como seu paraíso perdido. O tropo do exílio na obra dos dois cineastas já foi abordado com primor por outras pesquisadoras, entre as quais destaco Dominique Bluher (2011) e, aqui no Brasil, Carla Italiano (2017). No entanto, os estudos comparativos ainda poderiam se beneficiar com uma investigação mais pormenorizada sobre o substrato religioso no entendimento de cada um da imagem e da epifania, e também sobre a relação com a história do cinema — enquanto Perlov quer deixar um modelo que considera opressor, Mekas tenta reabilitar uma tradição que lhe parece libertadora: o home movie. O desespero do cineasta lituano, no entanto, decorre sobretudo da falta de tempo (ainda que o dinheiro também seja uma questão). Mekas dirigia uma revista, mantinha uma coluna em um jornal nova-iorquino, além de ter fundado uma cooperativa para distribuição de filmes experimentais e uma cinemateca e, em razão disso, estava sempre adiando o momento de fazer cinema de verdade, como ele o chamara. O desespero de Perlov, ao contrário, vem do tempo que lhe sobra, da ociosidade, já que, cada vez mais, vê seus projetos serem recusados pelo establishment israelense. As intrusões da melancolia e alguns dos momentos mais sombrios do Diário estão ligados à memória das privações, financeiras e criativas, consequência do ostracismo forçado: “Estou exausto de quantos anos? Vinte anos de energia desperdiçada, batalhas frustradas. Exausto, esgotado, incapaz de dormir”, diz ele no segundo capítulo, em uma passagem dedicada à sua insônia.

O cinema de ilusão, de mensagens (comercial ou com financiamento e dirigismo estatal) constitui o campo de forças contra o qual o Diário se ergue; ele está no seu horizonte de recusa, é em oposição a ele que Perlov busca uma nova poética, centrada na observação do cotidiano. Essa distinção entre o cinema de mensagens ou ilusão e a observação do cotidiano é de tal modo determinante para Perlov que é com ela que ele inicia o filme: “O cinema comercial não me interessa mais. Quero me aproximar do dia a dia”. Ao longo do Diário, a oposição será reiterada diversas vezes, ora tendo como oponente o cinema estatal, ora o cinema comercial, de ilusão. “Eles querem filmes sobre datas, ideias”, ele diz em um momento, referindo-se ao cinema patrocinado pelo estado de Israel, e completa: “eu quero filmes sobre pessoas”. Em outro momento, sobre imagens da universidade onde leciona, ouvimo-lo lendo um manifesto de Dziga Vertov: “Não queremos nada além de fatos, fotografia dos fatos, circulação de fatos, propaganda através de fatos [...]. Contra o cinema de ilusão, contra o cinema de mistificação”. Um dos primeiros cineastas a postular o compromisso do cinema com o real, e também a olhar e se ater aos acontecimentos cotidianos e prosaicos na vida de um citadino anônimo, Vertov talvez seja o patrono e a raiz da tradição na qual Perlov quer se inserir. A afinidade entre os dois projetos é evidente; pouco antes da cena na universidade, Yael e Naomi, suas filhas gêmeas, aparecem lendo e batendo à máquina um texto do pai, possivelmente para a narração do filme: “Documentar o cotidiano, o lugar comum. Nenhum enredo. Nada artificial, nem mesmo a manipulação artística de que tanto gosto”3 3 Não encontramos na narração do Diário esse texto tal qual lido e digitado pelas filhas, mas seu teor é muito semelhante a várias falas de Perlov. É possível que tenha sido alterado e adaptado durante a montagem e narração do filme. Essa passagem do Diário, com Naomi e Yael ajudando o pai, fornece algumas pistas do processo familiar e doméstico de feitura do filme; pouco antes, no mesmo capítulo, havíamos testemunhado a chegada da moviola na casa da família; lá, será mantida no quarto de Yael, quem, no futuro, viria a se tornar uma montadora e contribuir com a montagem dos diários. A partir daí, o processo de montagem passa a integrar o Diário, em especial nos capítulos 3 e 4. Ainda está por ser feito um estudo sobre a montagem dos diários que leve em conta as datas de registro e montagem. Alguns comentários de Perlov revelam que pelo menos a narração foi feita depois, e já diante das imagens, o que sugere que o filme tenha sido montado e finalizado apenas depois de 1983. Tomando como base apenas o que Perlov nos diz durante o Diário, sabe-se que uma versão de um capítulo foi montada a pedido da televisão israelense depois de 1978. Não é possível saber ao certo se essa versão permanece inalterada na estrutura final do filme, composta de seis capítulos. Segundo Mira Perlov, em relato a Ilana Feldman (2017, p. 11), apenas em 1982 Perlov consegue um financiamento para finalizar o projeto. Os capítulos 5 e 6 são filmados já nessas condições, e são montados entre 1981 e 1985. .

Todavia, seu cinema será menos sobre fatos, pessoas e documentação do que uma reflexão sobre como ver fatos e pessoas, ou sobre como documentar o lugar comum. No capítulo 5, Perlov assume a imagem como seu território por excelência: “Ver virou o centro do meu ser. É a imagem de um homem correndo que me fascina, não a razão pela qual corre, ou para onde” [grifos meus]. A imagem de um homem, não um homem, não um fato: a imagem de um homem.

Recusar uma forma, libertar-se do passado

É notável que muitas das declarações de Perlov sobre o cinema que deseja sustentem-se numa oposição ou negação. Para Perlov, não se trata apenas de afirmar uma postura, mas de fazê-lo em oposição a outra, que deve ser descartada: “não a razão pela qual corre, ou pra onde”; “nenhum enredo”, “nenhuma manipulação”. Contudo o que é rejeitado permanece presente na negação, como se essa negação fosse a estrutura para o novo, a imagem a ser desfeita e então reinventada.

O novo, o cinema do cotidiano, não existe em Perlov por si só, seu desejo é indissociável e totalmente dependente da negação de uma forma aprendida. Nesse aspecto, aqui também seu diário diverge do de Jonas Mekas, para quem o cinema do cotidiano é, antes de tudo, a reabilitação de uma tradição menosprezada, o home movie. Também aqui o desespero de Perlov é ainda maior que o de Mekas: ele não tem um modelo tal qual o home movie para seu cinema, ele precisa buscar sua forma, aprendê-la, e essa descoberta passa inevitavelmente pela libertação do passado. Especialmente nos dois primeiros capítulos, há diversas menções a sua errância, busca e aprendizado,: “leva tempo para aprender como [a aproximar-se do cotidiano]”, “eu testo um ângulo”, “aprendo a usar a câmera, descubro novas maneiras de ver”. O novo cinema do cotidiano ainda não existe para Perlov, ele está por ser descoberto, e nesse processo é preciso abrir mão do antigo.

O par busca e aprendizado/negação e libertação do passado talvez seja a chave para se ver o Diário de Perlov não só no que diz respeito a suas motivações artísticas, mas também íntimas e pessoais. Ele aplica-se de um lado ao cinema que precisa deixar para trás para aprender um novo; de outro, ao passado pessoal com o qual precisa se haver. O Diário montado, esse filme em seis capítulos, somando quase seis horas de duração, será o aprendizado formal desse desapego pessoal e cinéfilo.

É possível ver o Diário como uma jornada de libertação e despedida, processada e amadurecida ao longo de seus seis capítulos. Composto simetricamente com uma viagem ao Brasil no primeiro capítulo e outra no último, o Diário processa um lento retorno a lembranças dolorosas ligadas à sua infância no Brasil. Seu ápice será a última sequência do filme, em um ritual pessoal de luto e renovação, no qual os mortos são nomeados e então deixados. Como veremos, o teor dessas lembranças não é explicitado ou verbalizado, elas existem como setas desconectadas do alvo para o qual apontam, vestígios sem o real que os origina: nomes sem corpos, fotografias sem legendas; mas sua simples presença instaura e afirma uma ausência muda que assombra e projeta-se sobre todo o filme.

Epígrafes, nomes e fotos

O movimento de retorno e despedida de seu passado começa já no primeiro capítulo, quando, depois de vinte anos de ausência, Perlov retorna ao Brasil: “Eu venho a São Paulo para fazer as pazes com a cidade onde cresci e para me despedir. Parece que o meu país caminha para a destruição. Eu venho a São Paulo para deixar o meu passado”, diz ele sobre imagens de uma grande avenida, registradas do interior de um carro em movimento. Mas não será daquela vez ainda, será preciso esperar mais seis anos e seis capítulos para que esse retorno e essa despedida sejam concluídos.

Naquele momento, São Paulo ainda era uma cidade do passado — “a cidade de minha adolescência” — e quase todos os movimentos por ela parecem preservar essa distância e evitar a continuidade com o presente. Pela primeira vez no filme, Perlov recorre ao pretérito (aqui escutei, aqui roubei), sugerindo nessa flexão verbal que algo estava finalizado, encerrado. No plano visual, a ideia de encerramento permanece: quase não há interiores, e, nas tomadas externas, há uma preponderância de fachadas e imagens feitas de dentro de carros em movimento, como se ainda não fosse possível parar ou entrar nas lembranças de outrora. Além do mais, ele evita filmar pessoas, parece não conseguir aproximar-se delas. Ainda que se permita visitar os lugares que outrora conheceu, esquiva-se de vínculos ou encontros diretos. Esse limite é explicitado: “Não consigo filmar meu irmão, apenas a menina negra, a empregada”, diz em sua primeira visita à cidade, e na única interna de toda a viagem. A mesma barreira ou impossibilidade surge em relação ao pai. Sobre imagens da fachada de um hospital, Perlov nos conta que o pai enfrenta problemas de saúde e está internado. Também ficamos sabendo que aquela era a quarta vez em sua vida que ele esteve com o pai, um mágico ilusionista — mas sua câmera permanece na fachada, não atravessa a soleira.

Há, pode-se argumentar com pertinência, uma recusa de Perlov em incluir no seu Diário o demasiado íntimo e privado, o que justificaria a ausência de imagens do reencontro com o pai ou com o irmão. Nesses dois casos, entretanto, a ausência é afirmada menos como uma questão de escolha pautada em uma ética do filmar, e mais como uma limitação ou dificuldade afetiva: “eu não consigo”, diz ele em relação ao irmão, e, ainda que no caso do pai nada seja dito, o limite é enfatizado pelo eco da imagem dessa fachada com todas as outras de sua passagem por São Paulo.

Mesmo com esse esforço para manter a distância segura, duas lembranças brutas, não elaboradas, anunciam-se nessa primeira viagem a São Paulo. Uma, na casa de seu irmão, vem com a imagem de um quintal enquadrado em plongée. Um quintal: lugar associado na memória de Perlov à experiência da pobreza extrema na sua infância em Belo Horizonte, como ficaremos sabendo alguns anos depois no Diário Revisitado. O plano vem sem qualquer narração ou explicação, apenas uma presença misteriosa, bruta. Todavia, o espectador do Diário Revisitado, vendo o primeiro Diário, não pode deixar de se perguntar se Perlov não estaria, naquele plano misterioso do quintal de seu irmão, encontrando e separando-se de um fantasma, certificando-se de que ele e o irmão haviam deixado aquele primeiro quintal dividido com ratos e associado à pobreza? A segunda lembrança vem destituída de imagem ou contexto, apenas dois nomes enunciados sobre fachadas de casarões: “velhas lembranças”, diz ele, e completa: “Ana, Carmem”.

Ana, Carmem, também Sofia, Maria e Rosa são nomes de mulheres que em três ocasiões do Diário serão evocados de modo semelhante, fazendo referência a figuras femininas, mas sem qualquer informação contextual que permita adivinhar quem seriam elas. São mulheres sem rosto, corpo, história ou passado. Uma delas, nem mesmo nome tem: a muda. As duas outras menções a esses nomes serão feitas no último capítulo: uma delas durante o segundo retorno de Perlov a São Paulo, quando passa pelo que havia sido a zona de prostituição do Bom Retiro, antigo bairro judeu onde viveu na juventude: “Sofia, Maria, a muda, onde estão vocês?”, ele pergunta; a outra, em Lisboa, na sequência que encerra o filme — sobre imagens de passageiros descendo de um bonde, sua narração encadeia-se no som da Ave Maria tocado no interior do carro e passa a rogar por aquelas que perdeu: “Ave Maria Miguel; Ave Maria Sofia, Ana, Dona Guiomar, a muda”.

Tomo como base para este texto a narração em inglês do filme, cuja tradução do português foi feita por Mira Perlov com a supervisão de David (FELDMAN, 2011FELDMAN, I.; MOURÃO, P. (orgs.) David Perlov: Epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultural Judaica, 2011. p. 21-49., p. 27). Contudo, comparando-a com a narração em hebraico, nota-se que os nomes variam. Na primeira vinda a São Paulo, no lugar de Carmem, Perlov usa Sofia; na segunda, apenas a muda permanece igual, e todos os outros nomes são trocados; em Lisboa, Carmem novamente substitui Sofia. A intercambialidade entre alguns desses nomes sugere que eles estão menos ligados a lembranças e pessoas singulares do que à ideia de uma comunidade de mulheres sem nome que talvez habite sua memória. Considerando que boa parte dos nomes é citada em referência a uma rua de prostituição, possivelmente tratam-se de mulheres sozinhas mal tratadas pela vida, em alguma situação de vulnerabilidade. Verdade que nada nos permite inferir que alguma delas seja realmente uma prostituta. Todavia, prostitutas ou não, pouco importa, talvez a prostituição seja apenas um dos lugares e termos a designar uma comunidade de mulheres sem rosto, não nomeadas ou reconhecidas pela sociedade. Mulheres esquecidas, vulneráveis, que, como pretendo mostrar, o consternam e estão ligadas a memórias e afetos de dor e pesar.

Voltarei a esses nomes mais à frente, e a um deles em especial, Ana, o único que ganhará espessura e materialidade no final do filme. Por ora, gostaria de chamar a atenção para o modo como isso que chamei de lembranças brutas aparece na primeira metade do Diário como anúncio ou sinal de um caminho de volta e libertação ainda em andamento. Ora sob a forma de nomes sem rosto, ora em imagens e fotografias desprovidas de legendas ou contextos, essas lembranças vêm carregadas de intensidade. São como retornos do passado que, no entanto, nós, como espectadores, não conseguimos acessar.

Dois momentos de crise no Diário, dos mais intensos em termos formais e carga psíquica, estão associados a fotografias. No primeiro, Perlov passa por uma crise de depressão agravada por insônias, sente-se “encolhendo ao tamanho de um pássaro” e reclama que nem as fotos de família o comovem. Por uma gaveta semiaberta, entrevê-se então uma foto em preto e branco de uma adolescente, talvez uma criança. A propósito da imagem, Perlov diz: “A foto fatal. Duas cruzes: nome e sobrenome, significando uma única e mesma coisa”.

Não sabemos quem é a jovem, apenas que ela habita outro tempo da vida de Perlov. Um tempo que o cineasta escolhe deixar guardado, longe da vista, em uma gaveta. A casa de Perlov, já sabemos a esta altura do filme, é povoada por imagens e fotografias. Esta, todavia, ocupa um lugar distinto, separada das outras; lugar protegido, mas não inacessível: a gaveta pode ser aberta. Semiaberta ela é como um limbo, lugar de passagem entre a memória distante e o cotidiano presente.

O mistério rodeando a foto mais a gravidade e fatalidade da descrição fazem que ela se projete como um fantasma sobre o restante do filme. A fala também reaviva e talvez ressignifique, no âmbito de uma experiência pessoal, a epígrafe com que o cineasta escolhe iniciar o filme: Nas terras de pobreza e analfabetismo, aqueles que não podiam assinar seus nomes tinham duas cruzes marcadas nas suas fotografias: nome e sobrenome”. Até este momento, a epígrafe soava vaga demais para que se pudesse saber qual era a terra da pobreza e mesmo qual era o papel do analfabetismo para um cineasta intelectual, que vive em Tel Aviv. Agora, o retorno do passado com a fotografia fatal sugere que lembranças doloridas ligadas ao país de sua infância agem subterraneamente por todo o filme como uma espécie de centro ordenador invisível.4 4 Feldman, em texto de 2017, propõe uma bela análise da função dessa fotografia na economia do filme, situando-a entre a epígrafe inicial e a sequência final, quando Perlov visita o túmulo da mãe. Aproximando a foto fatal da foto do jardim de inverno, imagem que mobiliza, sem jamais ser mostrada, a grande obra de Roland Barthes sobre a fotografia, A câmara clara (1980), a pesquisadora defende que, tal como para o filósofo francês com seu livro, fazer o luto constituiria “o sentido mais amplo da jornada de Perlov ao longo de todos esses anos” (2017a, p. 16).

O segundo momento de crise acontece no terceiro capítulo e tem seu clímax em um mural de fotos. Júlio e Fela, amigos do Brasil, visitam Tel Aviv; levam de presente um disco de música brasileira. Mira e os convidados, alegres com o reencontro, dançam na sala de jantar, por entre mesa, cadeiras e aparador — um espaço claramente inadequado para uma dança. Perlov não dança, registra-os, também emocionado. Sobre as imagens diz: “Quantos carnavais perdidos essa dança não esconde? Quantos momentos do passado? Sinto o começo de uma longa jornada para casa, em Belo Horizonte, feijões pretos sem arroz”. Iniciando essa jornada, a câmera que, mesmo não tendo tomado parte na dança, chegou bem perto de cada um dos dançarinos, recua, afastando-se do grupo. Um corte introduz imagens de Mira, dançando para a câmera de David, diante de um espelho em cujo reflexo vemos, além dela, o próprio David. Aqui paramos de ouvir a música; em voz over, Perlov lê uma carta que enviara à esposa em 1952, no dia de seu aniversário, quando ainda a esperava chegar do Brasil em Paris — uma passagem que é a um só tempo uma viagem de volta e um elogio à Mira e aos tempos que já viveram juntos.5 5 Do núcleo familiar de Perlov, Mira é quem menos interage com o Diário. Dela, por exemplo, jamais escutamos a voz, ao contrário de Yael e Naomi, que se mostram mais abertas à câmera do pai, interagindo com ela e eventualmente se deixando entrevistar. Em geral, Mira aceita ser filmada, passa pela câmera, mas jamais naturaliza a relação com ela, como se fosse necessário preservar um espaço fora de campo para a relação do casal. Apenas em dois momentos do filme essa dinâmica muda, nesta sequência: quando ela dança para a câmera de David; e no segundo capítulo, quando, enrolada em uma toalha, mostra a Perlov e sua câmera alguns cartões postais. Esses dois momentos, são seguidos por declarações de afeto na narração em voz over. Uma batucada forte (diferente da música trazida por Júlio e Fela), anunciada por apitos, acelera essa viagem de retorno.

Depois de alguns planos de Tel Aviv, vistos da janela do apartamento (um tropo do Diário), e de algumas imagens do apartamento vazio, somos conduzidos a uma parede repleta de fotografias, espécie de mural warburguiano do cineasta. A câmera escaneia de perto, de modo enérgico e convulsivo, em movimentos quase sempre circulares, fotos de família, reproduções de quadros, recortes de jornal, stills de filmes. Três núcleos se destacam no conjunto: o primeiro familiar, composto de fotos de Mira, Yael e Naomi; o segundo centrado na figura de um mágico ilusionista; e o terceiro com imagens de mulheres retiradas da história da arte e do cinema. Os dois últimos ocupam a maior parte da sequência.

Começamos por polaroides de Naomi, Yael, do dorso de uma mulher nua, possivelmente Mira; entre elas, há a reprodução de um crucifixo de Van Eyck e um postal da adaptação de Don Giovanni por Joseph Losey. Esse núcleo é logo abandonado e então a câmera ziguezagueia por fotos, recortes de jornal, uma colagem — todos eles ligados à imagem de mágicos. Um movimento de câmera vertical, que liga a foto de um mágico segurando uma caixa azul a uma fotografia do próprio David — ao lado da qual está um recorte de jornal em que se lê, em português, “meu filho, meu filho” — sugere um parentesco entre as duas figuras masculinas, o que é reforçado pelo conhecimento que temos desde o primeiro capítulo da profissão do pai de David. O plano seguinte traz um still de A paixão de Joana D’arc, de Carl T. Dreyer, em que Joana D’arc aparece já em um momento de desespero: mãos sobre a boca, rosto inclinado para o céu, em suplício. Seguindo a direção de seu olhar, a câmera continua a subir para mais uma vez introduzir outra imagem de David, como se fosse também por esse filho carente de pai o desespero de Joana D’Arc.

A figura do mágico reaparece então, agora em reproduções retiradas da história da arte: O ilusionista, de Bosch, no qual se vê um homem atrás de uma mesa fazendo truques com três copos, e o O impostor, de Georges de La Tour, que retrata um jogo de cartas em que um dos jogadores parece ser enganado pelos outros. Associada ao engodo e à desonestidade, a magia está aqui bem distante do encantamento e maravilhamento que, na infância, costumam envolver a figura do mágico; parece antes mais próxima do cinema de ilusão tão condenado por Perlov. Pouco depois da imagem de De La Tour, vemos duas fotos do pai de David.

Não há qualquer narração nessa passagem, o que não impede que ela seja uma das que têm maior carga dramática de todo o Diário. A figura do pai, do mágico, o lamento contido em “meu filho, meu filho” e o tremor da câmera inscrevem uma carga dramática nessa passagem facialmente associada a sentimentos como perda, dor e desilusão. Será, pois, sob o impacto desse pathos que olharemos para as imagens de mulheres que começam a aparecer na sequência.

São imagens vindas da história da arte, do cinema e de páginas de revista. Entre essas, duas figuras se destacam: Joana D’arc, em diferentes stills do filme de Dreyer, e a silhueta de uma mulher sentada, rosto escondido nos braços apoiados sobre os joelhos dobrados. Trata-se da reprodução de um desenho de Van Gogh, Dor (Sorrow), um dos vários desenhos que o artista fez de Sien, uma jovem prostituta a quem acolheu em casa, grávida. Entretanto, assim como o pintor não conseguirá escapar de seu destino trágico, tampouco consegue impedir Sien de seguir o dela — em pouco tempo, a jovem voltaria para a rua e o alcoolismo. No canto esquerdo do desenho, em destaque, está grafado o título: Sorrow — embora não seja possível ver isso no filme, pouco abaixo do título, o pintor escreveu: “Comment se fait-il qu'il y ait sur la terre une femme seule, délaissée?” (Como pode haver sobre a terra uma mulher só, abandonada?). O mergulho nesse altar pessoal de figuras femininas termina com um zoom em Sien e na palavra Sorrow.

Se a imagem masculina do ilusionista é uma referência inequívoca à figura paterna, bem menos evidentes são as referências ao universo feminino. Tirando as fotos de seu núcleo familiar direto (Mira, Yael e Naomi) e de uma amiga escultora, as outras fotos são difíceis de serem identificadas e permitem poucas especulações ou associações com eventos da vida de Perlov. Uma delas, no entanto, prende nossa atenção: uma foto em preto e branco de uma menina de camisola branca. Vista apenas rapidamente e lateralmente durante o zoom final, ela traz à mente aquela outra, fatal, protegida na gaveta. À diferença do que acontece com todas as outras fotografias, essa só aparece uma vez, de modo muito ligeiro, como se a câmera não conseguisse ou não quisesse enfrentá-la, como se aqui também houvesse uma dúvida sobre abrir ou fechar a gaveta, sobre ficar e olhar ou passar. Não é possível saber se é a mesma jovem da foto fatal, todavia, o modo de olhá-la e temê-la assemelha-se.

Penso aqui na relação entre essa jovem sem nome, sem história, evocação de uma fatalidade, e Sien, sua vizinha neste mural warburguiano pessoal. Marcada no desenho de Van Gogh pelos significantes dor, abandonada, só, Sien só teve seu nome conhecido posteriormente, pelo trabalho de historiadores. Sien, Carmem, Sofia, Rosa, a muda. Talvez habitem todas o mesmo universo, as mesmas lembranças, e evoquem os mesmos afetos; mulheres abandonadas, sós, enlouquecidas e por cuja morte ninguém chorou nem irá chorar. Joana D’Arc também estava lá.

Terminada essa sequência tremida6 6 Aqui, permito-me discordar de um ponto da análise de Ilana Feldman sobre essa mesma sequência. Para Feldman, o tremor da câmera, em especial no entreato entre a dança na sala e a filmagem do painel, quando volta-se para a paisagem vista do apartamento, tem um sentido de presságio associado ao futuro de Israel. Relembrando que, no capítulo seguinte, o cineasta vai abordar a Guerra do Líbano, a pesquisadora sustenta que o horizonte convulsionado de Tel Aviv, visto pela janela, seria a expressão da angústia e desesperança do cineasta com relação aos desdobramentos políticos do país que escolheu como seu — “traço de uma tragédia iminente” (2017b, p. 39). Sem menosprezar a centralidade das turbulências políticas de Israel no mal-estar do cineasta em todos os capítulos (todas amplamente abordadas por Feldman), é difícil encontrar qualquer tipo de aceno, ainda que fúnebre, ao futuro de Israel em uma passagem que começa anunciando o início de “uma longa jornada para casa” e que se desenvolve com outras duas paragens no passado: a carta para Mira e o painel com fotos e recortes de jornal. Se a paisagem do país onde vive entra, convulsionada, neste momento de uma aceleração vertiginosa rumo ao passado, é, parece-me, como um ponto inicial de uma viagem de retorno (que já se sabe turbulenta), com paradas em vários lugares por onde o cineasta passou até chegar ali — nesse sentido, é significativa a presença, no meio dessa sequência, da carta enviada à Mira em 1952, quando a aguardava em Paris, antes de se mudarem para Israel. , uma madeleine proustiana na visita de Júlio e Fela, Perlov retorna aos amigos. Eles estão partindo para o Brasil. Ainda ouvimos o samba, enquanto eles, da porta, acenam para David e sua câmera: “Tchau David, venha para São Paulo, venha”. E David, narrando já de outro tempo, dono do passado e do futuro das histórias (como o são os montadores), responde: “Tchau Júlio, tchau Fela. Sim, eu irei. Eu irei. Semana que vem, mês que vem. Certamente ano que vem”.

A sequência no mural divide simetricamente o filme em duas partes. Na primeira, o passado insinua-se em signos falhos, incompletos, mas tudo relativo a ele encontra resistência. O Brasil é o país que ele quer deixar para trás, como diz na viagem a São Paulo no primeiro capítulo; Israel é o presente, o lugar de seu investimento afetivo e financeiro. É em Israel que compra uma casa, filma a mudança, a adaptação ao novo espaço. É ali que estão seus ancestrais, os pioneiros cujo túmulo ele procura em um momento do filme. Lá longe, o Brasil vive uma ditadura, mas são os acontecimentos políticos de Israel que o invadem e que ele acompanha com desgosto pela janela e pela televisão: a guerra de Yom Kippur, a invasão do Líbano. Indagado por um amigo sobre o porquê de não deixar Israel diante de todas as dificuldades, responde: “Não posso, plantei duas árvores aqui, essa terra também é minha casa”. Israel o ocupa, o mobiliza, o habita, o angustia, assim como ele habita Israel. Mas há sempre essa outra casa, a casa da qual não pode fugir, mesmo à distância, a casa da qual quer ou precisa se despedir, como diz em sua primeira visita ao Brasil. Nessa mesma viagem, ele cita uma canção de Odetta: “Estrangeiro aqui, estrangeiro lá. Estrangeiro em todo lugar. Eu iria para casa, querida, mas eu também sou um estrangeiro lá”.

A casa é um lugar de desejo, mas também um lugar ambíguo, indefinido, instável — e aqui afasto-me da leitura de Carla Italiano quando, abordando o pathos do exílio em Mekas e Perlov, afirma que Perlov, não tendo sido forçado ao exílio, pode “atribuir estatuto de lar a diversos momentos e lugares” (2017, p. 21). Também tomo distância da interpretação de Paola LabbéLABBÉ, P. L. Diários Nómades. Poéticas del invervalo para representar el desarraigo em el cine de David Perlov. Archivos de la Filmoteca, n. 75, p. 57-84, out. 2018. Disponível em: <http://davidperlov.com/text/ARCHIVOS_DE_LA_FILMOTECA_PERLOV_2018.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2022.
http://davidperlov.com/text/ARCHIVOS_DE_...
, segundo a qual Perlov encarnaria a subjetividade nômade, desenraizada — em um sentido de nomadismo tomado de empréstimo de Rose Braidotti, como subjetividade múltipla, desenraizada, que se constitui numa rede de conexões (2018, p. 75). Penso antes em Perlov como uma figura da solidão, ou como bem descreveu Ilana Feldman, em uma síntese que me parece bem mais adequada ao cineasta, como “figura da angústia e do mal estar.” (2017b, p. 35)

Na sequência da visita de Fela e Júlio, no entanto, há uma inflexão no sentido de casa. “Sinto o começo de uma longa jornada para casa, feijão sem arroz”, diz Perlov logo antes desse passeio pelo seu mural mnemônico. De um lugar distante no passado e na memória, o Brasil passa a ser um lugar para onde precisa retornar.

Grande parte da segunda metade do Diário, cujo arco temporal coberto (1981 a 1983) é bem mais curto do que o da primeira metade (1973-1980), será tomada por essa jornada de retorno — ainda que interrompida por uma longa e grave passagem dedicada à guerra do Líbano, em 1982. Como a de Ulisses, essa também terá imprevistos e atrasos. No percurso, Perlov precisa passar uma demorada temporada em Paris recuperando-se de um problema de saúde inesperado. Quando finalmente pode retomar sua viagem, a caminho do aeroporto Charles de Gaulle, ele fala de São Paulo como sua casa. O sexto e último capítulo é todo dedicado à sua estada no Brasil.

Mas o retorno de Perlov não é como o de Ulisses (nem de Mekas, cineasta que se identifica com o herói grego): não há Penélope nem idílio, e sua casa não é um paraíso perdido. Perlov volta para reencontrar e aceitar sua partida, para finalmente deixar para trás aquilo que deixara anos antes, quando escolhera sair do Brasil rumo a Israel. Eu me “despeço de Gabi”, “eu me despeço de Fauzi”, diz em voz over, em uma escolha pouco usual de palavras, ao final de alguns reencontros com amigos a quem não via desde sua saída do país7 7 Frequentemente o reencontro com amigos no Brasil é acompanhado por comentários descontentes, ácidos. Por exemplo, ao introduzir Gabi, seu amigo sociólogo, Perlov diz: “Gabi tem um estranho modo de resolver o problema de classes no Brasil” — a reprovação mordaz, com toques de ironia, vem sobre imagens da casa de Gabi, uma construção modernista, elegante, típica da intelectualidade abastada paulistana, e, mais especificamente, em uma sequência na qual passa de uma reprodução dos Operários, de Anita Malfatti, que o amigo tem na parede, para um plano de uma mulher negra lustrando copos. Em outro momento, hospedado na casa de uma amiga a quem nunca filma, ele volta sua câmera para a funcionária doméstica da anfitriã, enquanto comenta que as flores nunca pertencem a quem cuida delas, assim como o carro não pertence ao motorista que o conduziu (e a quem filmou). Ao longo do último capítulo, vai ficando cada vez mais evidente como a empatia e o afeto de Perlov pendem para os empregados domésticos dos amigos muito mais do que para os próprios amigos. Tal como na visita a seu irmão, no primeiro capítulo, quando filma apenas a faxineira, é em geral aos empregados domésticos, cozinheiras, arrumadeiras, passadeiras, motoristas, que ele dirige seu olhar. A figura da empregada doméstica, assim como a das mulheres negras com a qual eventualmente cruza, também servirá ao longo do Diário como a imagem agregadora, ponto de identificação na qual projeta e reencontra Dona Guiomar, a senhora que cuidava dele e seu irmão quando crianças e a quem Perlov se referia como sua “mãe negra”. Dona Guiomar é a única lembrança da infância que o cineasta evoca com candor. Para uma abordagem mais extensa sobre a função crítica de D. Guiomar no Diário 1973-1983, cf. GUIMARÃES, 2017, p. 47-55. — em inglês a expressão utilizada é: “I take leave of”, expressão cerimoniosa pouco utilizada e que, mais que até logo, quer dizer adeus.

Essas pequenas despedidas dos amigos parecem apenas um exercício para outra ainda maior, que vinha se anunciando sorrateiramente desde o início dos diários, nos nomes sem corpo e nas imagens sem nome. Já quase no final do filme, Perlov chega a Belo Horizonte, cidade de sua infância desprotegida, onde deixara sua mãe aos 10 anos, quando o avô levou o irmão e ele para viver em São Paulo. Belo Horizonte foi um destino adiado. Para chegar à capital mineira, o cineasta escolhe o caminho mais longo: passa por Ouro Preto, Congonhas e Tiradentes, um itinerário estranho e cheio de voltas — o mais lógico para quem sai de São Paulo rumo às cidades históricas mineiras seria começar por Tiradentes, depois Belo Horizonte, Congonhas e só então Ouro Preto.

Apenas em Belo Horizonte ouvimos falar em sua mãe pela primeira vez e aprendemos que o período que viveram juntos foi marcado pela “tragédia, doença mental, e ratos multiplicando-se dia após dia”.

Partindo de Belo Horizonte, a caminho do aeroporto, ele visita o túmulo da mãe. Foi um encontro adiado, empurrado para os últimos minutos do filme e últimos dias de sua viagem. No cemitério, não fala de sua mãe nem do que sente ali, apenas do motivo de sua ida: seu irmão, “rigoroso com as formalidades”, o havia pedido que fosse. Não ir significaria, para o irmão, que ninguém se importa, que ela foi deixada sem cuidados. Mas em meio ao pathos refreado dessa passagem, uma frase destaca-se, a única que não tem o irmão como objeto, mas a mãe, ou o que restou dela: “Seu nome foi grafado errado, no lugar de [perl]ov, ‘of’, como uma cruz”.

Diante do túmulo da mãe, pela primeira e única vez no filme, um dos nomes outrora evocados ganha singularidade e identidade: Ana. A referência à cruz invariavelmente liga-a à foto fatal sobre a qual há duas cruzes, “uma para o nome e outra para o sobrenome”. Assim, perto de seu fim, o filme retoma simetricamente a epígrafe de seu início, revelando, neste gesto, o nome, o rosto e a tragédia da mãe.

Mas o filme não termina na identificação e no encontro com a mãe. Há ainda uma passagem por Lisboa, a caminho de Israel, onde esse nome é reinserido e atualizado em uma comunidade de outros mortos de quem não pôde se despedir, cujo luto não pôde elaborar, seja porque estava longe, seja porque os perdeu de vista com o passar dos anos. Em Lisboa, interessam-lhe os bondes; eles o lembram aqueles de sua infância em São Paulo, “importados de São Francisco”. Como se não houvesse nenhum outro atrativo na cidade, Perlov os filma aos montes, indo, vindo, voltando; filma-os por dentro e de fora. Em dado momento, no interior de um bonde em movimento, ouve a “Ave Maria” tocando no rádio, e, então, já do lado de fora, sobre imagens dos passageiros a descer, a narração em voz over continua a oração, invocando e rogando por aqueles que deixou ou perdeu no Brasil: “Ave Maria Miguel; Ave Maria Sofia, Ana, D. Guiomar, a muda”. Enquanto invoca os mortos, vemos apenas os pés dos passageiros anônimos descendo do bonde, partindo e seguindo o próprio caminho, enquanto a câmera permanece parada. Dali em diante, outra vida pode continuar, para além do filme, para além do trauma e da trama.

  • 1
    Retirado do poema “O Guardador de Rebanhos” (XXXIX - O Mistério das Cousas), de 1914. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/pe000001.pdf>. Acesso: em 20/07/2022.
  • 2
    Há vários fios conectando Mekas e Perlov. Além de partilharem o desespero que os leva a fazer diários, Mekas e Perlov têm em comum a experiência do exílio e fazem da casa parte da busca de seus filmes. Mas também aqui as semelhanças vão só até um ponto, Perlov escolhe ir para Israel em busca de um sonho, de começar um país; Mekas é obrigado a deixar a Lituânia, a qual permanecerá, para sempre, como seu paraíso perdido. O tropo do exílio na obra dos dois cineastas já foi abordado com primor por outras pesquisadoras, entre as quais destaco Dominique Bluher (2011)BLUHER, D. Perlov, Mekas, Morder, Lehman e outros: à procura das imprevisíveis agitações do cotidiano. In: FELDMAN, I.; MOURÃO, P. (orgs.) David Perlov: Epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura Judaica, 2011. p. 89-97. e, aqui no Brasil, Carla Italiano (2017)ITALIANO, C. Filmo, logo vivo – modulações do filme diário em Jonas Mekas e David Perlov. Devires - Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 104-123, jul./dez. 2017. Disponível em: <https://www.devires.org/produto/revista-devires-v-14-n-2-dossie-cinema-e-escritas-de-si/>. Acesso em: 27 nov. 2022.
    https://www.devires.org/produto/revista-...
    . No entanto, os estudos comparativos ainda poderiam se beneficiar com uma investigação mais pormenorizada sobre o substrato religioso no entendimento de cada um da imagem e da epifania, e também sobre a relação com a história do cinema — enquanto Perlov quer deixar um modelo que considera opressor, Mekas tenta reabilitar uma tradição que lhe parece libertadora: o home movie.
  • 3
    Não encontramos na narração do Diário esse texto tal qual lido e digitado pelas filhas, mas seu teor é muito semelhante a várias falas de Perlov. É possível que tenha sido alterado e adaptado durante a montagem e narração do filme. Essa passagem do Diário, com Naomi e Yael ajudando o pai, fornece algumas pistas do processo familiar e doméstico de feitura do filme; pouco antes, no mesmo capítulo, havíamos testemunhado a chegada da moviola na casa da família; lá, será mantida no quarto de Yael, quem, no futuro, viria a se tornar uma montadora e contribuir com a montagem dos diários. A partir daí, o processo de montagem passa a integrar o Diário, em especial nos capítulos 3 e 4. Ainda está por ser feito um estudo sobre a montagem dos diários que leve em conta as datas de registro e montagem. Alguns comentários de Perlov revelam que pelo menos a narração foi feita depois, e já diante das imagens, o que sugere que o filme tenha sido montado e finalizado apenas depois de 1983. Tomando como base apenas o que Perlov nos diz durante o Diário, sabe-se que uma versão de um capítulo foi montada a pedido da televisão israelense depois de 1978. Não é possível saber ao certo se essa versão permanece inalterada na estrutura final do filme, composta de seis capítulos. Segundo Mira Perlov, em relato a Ilana Feldman (2017, p. 11), apenas em 1982 Perlov consegue um financiamento para finalizar o projeto. Os capítulos 5 e 6 são filmados já nessas condições, e são montados entre 1981 e 1985.
  • 4
    Feldman, em texto de 2017, propõe uma bela análise da função dessa fotografia na economia do filme, situando-a entre a epígrafe inicial e a sequência final, quando Perlov visita o túmulo da mãe. Aproximando a foto fatal da foto do jardim de inverno, imagem que mobiliza, sem jamais ser mostrada, a grande obra de Roland Barthes sobre a fotografia, A câmara clara (1980), a pesquisadora defende que, tal como para o filósofo francês com seu livro, fazer o luto constituiria “o sentido mais amplo da jornada de Perlov ao longo de todos esses anos” (2017a______. As janelas de David Perlov: autobiografia, luto e política. Arquivo Maaravi, Belo Horizonte, v. 11, n. 20, p. 2-21, maio 2017a. Disponível em: <https://periodicos.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/14372>. Acesso em: 27 nov. 2022.
    https://periodicos.ufmg.br/index.php/maa...
    , p. 16).
  • 5
    Do núcleo familiar de Perlov, Mira é quem menos interage com o Diário. Dela, por exemplo, jamais escutamos a voz, ao contrário de Yael e Naomi, que se mostram mais abertas à câmera do pai, interagindo com ela e eventualmente se deixando entrevistar. Em geral, Mira aceita ser filmada, passa pela câmera, mas jamais naturaliza a relação com ela, como se fosse necessário preservar um espaço fora de campo para a relação do casal. Apenas em dois momentos do filme essa dinâmica muda, nesta sequência: quando ela dança para a câmera de David; e no segundo capítulo, quando, enrolada em uma toalha, mostra a Perlov e sua câmera alguns cartões postais. Esses dois momentos, são seguidos por declarações de afeto na narração em voz over.
  • 6
    Aqui, permito-me discordar de um ponto da análise de Ilana Feldman sobre essa mesma sequência. Para Feldman, o tremor da câmera, em especial no entreato entre a dança na sala e a filmagem do painel, quando volta-se para a paisagem vista do apartamento, tem um sentido de presságio associado ao futuro de Israel. Relembrando que, no capítulo seguinte, o cineasta vai abordar a Guerra do Líbano, a pesquisadora sustenta que o horizonte convulsionado de Tel Aviv, visto pela janela, seria a expressão da angústia e desesperança do cineasta com relação aos desdobramentos políticos do país que escolheu como seu — “traço de uma tragédia iminente” (2017bFELDMAN, I. Autobiografia, exílio e alteridade: o cinema de David Perlov, Avi Mograbi e Elia Suleiman. Devires - Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 30-57, jul./dez. 2017b. Disponível em: <https://www.devires.org/produto/revista-devires-v-14-n-2-dossie-cinema-e-escritas-de-si/>. Acesso em: 27 nov. 2022.
    https://www.devires.org/produto/revista-...
    , p. 39). Sem menosprezar a centralidade das turbulências políticas de Israel no mal-estar do cineasta em todos os capítulos (todas amplamente abordadas por Feldman), é difícil encontrar qualquer tipo de aceno, ainda que fúnebre, ao futuro de Israel em uma passagem que começa anunciando o início de “uma longa jornada para casa” e que se desenvolve com outras duas paragens no passado: a carta para Mira e o painel com fotos e recortes de jornal. Se a paisagem do país onde vive entra, convulsionada, neste momento de uma aceleração vertiginosa rumo ao passado, é, parece-me, como um ponto inicial de uma viagem de retorno (que já se sabe turbulenta), com paradas em vários lugares por onde o cineasta passou até chegar ali — nesse sentido, é significativa a presença, no meio dessa sequência, da carta enviada à Mira em 1952, quando a aguardava em Paris, antes de se mudarem para Israel.
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    Frequentemente o reencontro com amigos no Brasil é acompanhado por comentários descontentes, ácidos. Por exemplo, ao introduzir Gabi, seu amigo sociólogo, Perlov diz: “Gabi tem um estranho modo de resolver o problema de classes no Brasil” — a reprovação mordaz, com toques de ironia, vem sobre imagens da casa de Gabi, uma construção modernista, elegante, típica da intelectualidade abastada paulistana, e, mais especificamente, em uma sequência na qual passa de uma reprodução dos Operários, de Anita Malfatti, que o amigo tem na parede, para um plano de uma mulher negra lustrando copos. Em outro momento, hospedado na casa de uma amiga a quem nunca filma, ele volta sua câmera para a funcionária doméstica da anfitriã, enquanto comenta que as flores nunca pertencem a quem cuida delas, assim como o carro não pertence ao motorista que o conduziu (e a quem filmou). Ao longo do último capítulo, vai ficando cada vez mais evidente como a empatia e o afeto de Perlov pendem para os empregados domésticos dos amigos muito mais do que para os próprios amigos. Tal como na visita a seu irmão, no primeiro capítulo, quando filma apenas a faxineira, é em geral aos empregados domésticos, cozinheiras, arrumadeiras, passadeiras, motoristas, que ele dirige seu olhar. A figura da empregada doméstica, assim como a das mulheres negras com a qual eventualmente cruza, também servirá ao longo do Diário como a imagem agregadora, ponto de identificação na qual projeta e reencontra Dona Guiomar, a senhora que cuidava dele e seu irmão quando crianças e a quem Perlov se referia como sua “mãe negra”. Dona Guiomar é a única lembrança da infância que o cineasta evoca com candor. Para uma abordagem mais extensa sobre a função crítica de D. Guiomar no Diário 1973-1983, cf. GUIMARÃES, 2017GUIMARÃES, C. G. Experiência subjetiva e experiência histórica nos diários de David Perlov. Galáxia, São Paulo, n. 35, p. 45-55, maio-ago. 2017. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/30502>. Acesso em: 27 nov. 2022.
    https://revistas.pucsp.br/index.php/gala...
    , p. 47-55.

Referências

  • BLUHER, D. Perlov, Mekas, Morder, Lehman e outros: à procura das imprevisíveis agitações do cotidiano. In: FELDMAN, I.; MOURÃO, P. (orgs.) David Perlov: Epifanias do cotidiano. São Paulo: Centro da Cultura Judaica, 2011. p. 89-97.
  • FELDMAN, I. Autobiografia, exílio e alteridade: o cinema de David Perlov, Avi Mograbi e Elia Suleiman. Devires - Cinema e Humanidades, Belo Horizonte, v. 14, n. 2, p. 30-57, jul./dez. 2017b. Disponível em: <https://www.devires.org/produto/revista-devires-v-14-n-2-dossie-cinema-e-escritas-de-si/>. Acesso em: 27 nov. 2022.
    » https://www.devires.org/produto/revista-devires-v-14-n-2-dossie-cinema-e-escritas-de-si/
  • ______. As janelas de David Perlov: autobiografia, luto e política. Arquivo Maaravi, Belo Horizonte, v. 11, n. 20, p. 2-21, maio 2017a. Disponível em: <https://periodicos.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/14372>. Acesso em: 27 nov. 2022.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2022
  • Aceito
    22 Nov 2022
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