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Fricções entre o arquivo e a prática artística em Natureza Morta/Stilleben

Frictions between the archive and artistic practice in Still Life/ Stilleben

Resumo

Este artigo trata do processo de realização da obra fílmica instalada Natureza Morta/Stilleben (2010), da realizadora portuguesa Susana de Sousa Dias. Tem por método a explicitação dos procedimentos artísticos adotados em relação aos documentos, fotografias e filmes de propaganda do Estado Novo, produzidos durante os 48 anos da ditadura em Portugal e depositados nos arquivos da Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direção-Geral de Segurança (PIDE/DGS), a polícia política portuguesa. Ao analisar os procedimentos de composição da obra, apontamos para o lugar do arquivo como ativador de um presente, autoritário, que se faz sob um plano de tempos heterogêneos.

Palavras-chave
Natureza Morta/Stilleben; arquivo; processo de criação; formas fílmicas; Susana de Sousa Dias

Abstract

This essay discusses the process of creation of the filmic installation Still Life/Stilleben (2010), by Portuguese director Susana de Sousa Dias. Our approach is to make explicit the artistic procedures adopted in relation to documents, photographs, and propaganda films of the Estado Novo, produced during the 48 years of dictatorship in Portugal, and deposited in the archives of the Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direção-Geral de Segurança (PIDE/DGS), the Portuguese political police. Through the analysis of the compositional procedures of the work, we point to the place of the archive as an activator of an authoritarian present, which occurs in the midst of heterogeneous times.

Keywords
Natureza Morta/Stilleben; archives; creation process; filmic forms; Susana de Sousa Dias

Introdução

Natureza Morta/Stilleben, de Susana de Sousa Dias (2010)DIAS, S. S. Natureza Morta/Stilleben. Lisboa: MNAC, 2010. Instalação., é uma obra realizada de forma instalativa para o espaço expositivo, baseada em seu filme anterior, Natureza Morta – Visages d´une Dictadure (2005)NATUREZA morta: visages d’une dictature. Realização e argumento: Susana de Sousa Dias. [S. l.]: [s. n.], 2005. (72 min).. A obra é um trabalho de reposicionamento das imagens, que traz para o campo das visibilidades o que se encontrava destituído de valor dentro das cenas construídas pelo polícia política portuguesa durante o período do Estado Novo em Portugal. Susana de Sousa Dias já havia trabalhado antes com esse arquivo quando realizou os filmes: 48 (2011), feito com base em conversas com ex-prisioneiros e ex-prisioneiras, utilizando os retratos de identificação como disparador de memórias do cárcere; e Processo-Crime 141/53: Enfermeiras no Estado Novo (2000)PROCESSO-CRIME 141/53: enfermeiras no Estado Novo. Realização: Susana de Sousa Dias. Lisboa: Cinequanon, 2000. (52 min)., compondo o que Anita Leandro (2011)LEANDRO, A. A voz inaudível dos arquivos. Montagem e escrita da história. Encontro internacional da SOCINE, 15., 2011. Anais digitais [...]. Disponível em: <https://associado.socine.org.br/anais/2011/11037/anita_leandro/a_voz_inaudivel_dos_arquivos_montagem_e_escrita_da_historia>. Acesso em: 15 abr. 2023.
https://associado.socine.org.br/anais/20...
designa como trilogia sobre a ditadura de Salazar.

A questão central em nossa análise é o trabalho das imagens, tendo por referência metodológica a abordagem de Jacques Rancière (2021)RANCIÈRE, J. O trabalho das imagens. Conversações com Andrea Soto Calderón. Belo Horizonte: Chão da feira, 2021., quando situa seus estudos das imagens nas operações sobre o visível e os modos pelos quais a realização de obras com imagens constroem novas visibilidades. “Trata-se de ver as imagens em ação, em configurações singulares” (RANCIÈRE, 2021RANCIÈRE, J. O trabalho das imagens. Conversações com Andrea Soto Calderón. Belo Horizonte: Chão da feira, 2021., p. 7). Natureza Morta/Stilleben dispõe fotografias de prisioneiros políticos, reportagens de guerra e documentários de propaganda, material produzido durante os 48 anos (1926/1974) da ditadura em Portugal, e depositados nos arquivos da Polícia Internacional e de Defesa do Estado/Direção-Geral de Segurança (PIDE/DGS).

O que acontece nas imagens

Em Natureza Morta/Stilleben, a retomada do arquivo se deu com o propósito de trabalhar a própria natureza dessas imagens e reposicioná-las, reconfigurando seu regime. A instalação dispõe de fotografias de prisioneiros políticos, reportagens de guerra e documentários de propaganda. A obra usa três telas como dispositivo de visionamento; por vezes, essas telas são ocupadas de forma simultânea, em outros momentos, estão dispostas na totalidade do espaço e/ou nas suas lateralidades. O filme é resultado de um pensamento de montagem, em que as imagens projetadas nas telas podem não apenas estabelecer relações entre si, como também, no sentido contrário, criar sentidos espaciais e temporais diversos.

Nessa operação com as imagens em telas diversas, que as espacializa, cria-se um tipo de experiência com a obra que é marcada pelo movimento dos corpos de seus fruidores: pelo tempo que dedicam ao seu visionamento, pela forma como percorrem a imagem com o olhar. A espacialização e multiplicação das telas não é apenas outro modo de expor as imagens, mas uma oposição ao modo cinema de sala: operam com uma estrutura de visionamento de tela única, centralizada, na sala escura, sob condições sonoras que impedem vazamentos de fontes de informações exteriores. Trata-se de fazer com que as imagens instaladas no espaço ganhem uma dinâmica de visionamento que seja tomado por todo o corpo, porque é o próprio movimento corporal que define o tempo em razão do deslocamento no espaço.

Essa consciência do trabalho das imagens, do lugar dos arquivos como uma matéria viva operando no tempo, sempre fez parte das preocupações não apenas de Susana de Sousa Dias. Anita Leandro, em Retratos de Identificação (2014)RETRATOS de identificação. Realização: Anita Leandro. Rio de Janeiro: [s. n.], 2014. (72 min)., filme realizado com o arquivo da ditadura militar brasileira, expressa a consciência do desvendamento das imagens, a busca pelas suas inúmeras camadas de poder e de violência e, finalmente, evidencia legibilidade histórica às imagens realizadas, em que o filme se constitui como um novo documento. O que vemos, tanto em Susana de Sousa Dias quanto em Anita Leandro, é um árduo trabalho com as imagens, cujas estratégias cinematográficas dão a ver a força dos arquivos, sobretudo por se tratar de arquivos que guardam imagens, filmes e documentos que estão submetidos a um regime de controle, de vigilância, de identificação, de punição.

O que torna Natureza Morta/Stilleben uma obra que apresenta especificidades em relação aos seus outros trabalhos e ao filme de Anita Leandro é o fato de ser uma obra instalada que evidencia as forças que operam nas imagens. O que faz surgir das imagens do arquivo é muito menos a elaboração de uma narrativa de rememoração da violência do regime ditatorial do que uma operação de decomposição das imagens desse mesmo regime, fazendo-nos ver como as imagens, elas próprias, são um regime de violência. Ou seja, não o que elas representam, mas o que acontece com elas quando são reposicionadas. É nesse sentido que a montagem e todo o procedimento de recorte de planos, de decomposição das imagens, de ocupação das telas e a ausência de qualquer tipo de sonoridade são princípios constitutivos da obra.

O que é feito com as imagens

Em nossa análise, o procedimento metodológico expressa também como nosso o desejo de decompor o filme, ele mesmo também resultado de decomposições, de fragmentações de esgarçamentos. Trata-se de um método de análise dos gestos e procedimentos de remontagens, cujas raízes se encontram nas práticas de decupagem, de desfazimentos de tramas que operam nas imagens. O movimento que fazemos aqui é o de abrir a montagem, explicitando suas operações. É assim que entendemos que o trabalho com o arquivo em Natureza Morta/Stilleben é de uma montagem e opera em pelo menos duas frentes: a primeira ocorre entre as telas e a segunda se faz espaço de cada uma das telas. Dá-se que as imagens sejam formadas por planos abertos que agrupam inúmeras pessoas e situações, dividindo o espaço das telas com outras imagens em primeiríssimos planos. Em determinados momentos, as imagens estão agrupadas em planos distintos, em telas paralelas, que convocam atenções diversas, ao mesmo tempo que produzem diálogos entre elas, quase sempre sem que estejam em fluxos de contiguidades. Em certo instante, uma série de retratos de presos políticos aparece em grande escala. No plano seguinte, esses retratos surgem em formato de contato de fotografia, em movimento de abertura do plano, ocupando os três quadros que compõem as projeções.

Em uma das telas, uma mulher negra encara a câmera, a expressão de seu rosto contesta o uso de sua imagem. Seu olhar se faz uma arma de contra- ataque a esse outro que lhe aponta a câmera, que se encontra na mesma posição dos que fruímos a obra, os que olhamos sua imagem pelo olhar de quem a filmou. Nas outras telas, em paralelo, as imagens multiplicam-se em movimentos que não se deixam apreender facilmente. São os olhares, os corpos militarizados, o disciplinamento dos desfiles, o enfileiramento de homens fardados a examinar o tamanho do poderio armado, a sisudez que enrijece semblantes, gestos rígidos. Somos todas todos testemunhas de imagens que se embaralham, que não permitem se deixar apreender. Agora é o movimento, são as multiplicidades que se negam ao nosso olhar. Quem são essas pessoas? Quais acontecimentos estão sendo presenciados? Quando ocorreram? Não há narrativas; o som original é suprimido; não há legendas.

Os recortes, os diferentes tipos de enquadramentos e os paralelismos entre as imagens são algumas das formas que indicam uma espécie de escaneamento dos rostos nas imagens. Um retrato frontal, outro de perfil, um terceiro que se posiciona entre a frontalidade e a figura de perfil. São imagens posicionadas e claramente forçadas, cujo propósito de identificação, de revelar detalhes, de flagrar cada traço dos rostos, implica na elaboração de retratos condenatórios. Os artifícios de sua composição — tipo de luz, relação do rosto com o fundo, posicionamentos dos retratados, distância em relação à câmera, posição das cabeças etc. — são procedimentos recorrentes em fotografias produzidas pelos regimes ditatoriais. Se compararmos esses retratos com os que se encontram em arquivos de outros países, poderemos constatar quanto as ditaduras reproduziram modelos de retratos, como os que podem ser vistos no documentário Retratos de identificação (2014), encontrados nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social do Rio de Janeiro (DOPS/RJ), no Brasil, feitos durante a ditadura civil-militar brasileira.

Nesse mesmo plano, toda a tela vai se abrindo, e já não é mais um preso, uma presa, os 3x4 em três imagens ganham movimento; na tela surgem muitos outros na mesma dimensão, não apenas nas três telas ocupadas, mas são os três modelos de retratos de identificação que vão se multiplicando, o que faz com que todos estejam aprisionados à imagem. A imagem como prisão, imagem afetada pela sua origem. As imagens são documentos criados e coletados pelo regime ditatorial e, nesse sentido, são a voz da polícia, um arquivo do poder, da repressão. Mais que uma fonte aberta ao esclarecimento, o arquivo se constitui como um programa de ausências. Como lidar com essas ausências?

Figura 1
Frame da obra Natureza Morta/Stilleben.

A operação de montagem, os enquadramentos, os movimentos dentro da imagem, as pessoas que nela habitam, os diferentes estatutos, os recortes, a imobilização do movimento, o arranhar do tempo na redução da velocidade, entre outros aspectos, explicitam um método de investigação, mas não só. É sobre a máquina de produção de imagens que se vê o que escapa, apesar de todo o jugo à sua opacidade. O que se vê quando o olhar interpela por modificações de ritmos, de velocidades, de planos? O que se vê quando o retrato 3x4, frontal, preto e branco, posto numa escala de grande plano, movimentado apenas pela gravidade dos encadeamentos, desfaz seu caráter puramente identificatório e policialesco através dos olhos arregalados/estufados do fotografado?

Essa montagem não é apenas um jogo de espacialização da obra. Natureza Morta/Stilleben tem duração de 30 minutos, após os quais o filme se repete em loop, forma de projeção à qual muitos realizadores recorrem para criar o contínuo expositivo, que por sua vez acumula densidades. A repetição cria uma ideia de retorno; no entanto, essa possibilidade de voltas não condiciona a narrativa num mesmo sentido: a obra não retorna sua história, o que fica está sempre no presente, na sua multiplicidade, nos apagamentos. Stilleben, palavra de origem alemã que diz sobre a existência móvel e que aqui tensiona com Natureza Morta, traz para o título a dialética entre a vida e a morte. O que está imobilizado em Natureza Morta/Stilleben? As imagens? A memória? A revolta? A história da arte? Diante dela, a passividade? Como abrir essas imagens? Como elas dizem sobre tantas outras, de outros regimes fascistas, do terror sobre as colônias, sobre os corpos escravizados?

O que se passa no corpo da imagem está sempre evocando o presente (do racismo, dos fascismos, dos corpos mortos no Mediterrâneo, do horror que arrasta a vida de imigrantes), a um só tempo em que são imagens preenchidas por muitas outras. O que se vê diante das imagens são, nos termos de Didi-Huberman, sempre uma multiplicidade temporal, “[...] a história das imagens é uma história de objetos temporalmente impuros, complexos, sobredeterminados” (DIDI-HUBERMAN, 2009DIDI-HUBERMAN, G. Quand les images prennent positions. Paris: Minuit, 2009., p. 24), e é nesse sentido que também a matéria imagética não diz apenas do passado morto; não é apenas sobre o passado salazarista, sobre o período longo do Estado Novo, mas também sobre como os gestos, as corporeidades, as expressões faciais, os movimentos que se encontram infiltrados e articulados nos múltiplos presentes são imagens do totalitarismo que não se desfazem, que ressurgem das forças repressivas e rasgam as resistências. Quando a obra coloca em relação imagens de presos políticos e de populações das ex-colônias portuguesas massacradas pelo Estado Novo, não é apenas o passado que vem à tona, é o presente das ruas, o cotidiano violento vivido pelos imigrantes negros do agora.

As imagens das guerras coloniais fazem parte desse arquivo sobre o qual Susana de Sousa Dias trabalhou desde o ano 2000, e cujas obras da artista estão completamente tomadas por essas imagens, suas inúmeras possibilidades, suas aberturas ante os tempos, suas dores, as relações que vão sendo estabelecidas no processo da pesquisa. Se, de um lado, a realizadora se via tomada pelo arquivo, de outro, era o arquivo também que se recusava a deixar de proliferar suas forças vivas. Do gesto de abrir as fotografias, de olhar os processos, nasce a recusa aos silenciamentos, a negação à sujeição do tempo no passado. É com outro gesto, o da montagem, que os caminhos vão sendo abertos, momento em que as imagens ganham outras vidas, um arquivo testemunhal, carregado de constrangimentos e irredutível ao seu caráter meramente documental. Das imagens emergem histórias que cobram o encontro com as pessoas envolvidas: as presas e os presos políticos. Um arquivo que, ao ser manipulado, muda de estatuto, mostrando-se sempre insuficiente, pois nenhuma imagem é capaz de dimensionar os atos terríveis da ditadura. Os filmes de Susana de Sousa Dias operam por escavações na própria imagem para encontrar o que não queria ser mostrado, o que escapou do controle.

Portugal, bem se sabe, teve a ditadura mais longa de toda a história da Europa Ocidental. Os meandros desse trajeto infindável encontravam os meios pelos quais manter-se por tanto tempo pelo apoio da Igreja Católica e por tudo que arrastava em termos morais (tradição, família etc.). Os laços apertados do salazarismo com o nazifascismo o fizeram criar, no ano de 1936, a Mocidade Portuguesa, organização da juventude, aos moldes das associações fascistas italianas e inspirado na Juventude Hitleriana, na qual era obrigatória a participação daqueles que tinham entre 7 e quatorze 14. Os membros de tais organizações deviam trajar uniforme verde tipo militar, com um cinto de lona com a inicial “S”, de Salazar, e fazer a saudação nazi de braço estendido. Para os adultos, havia a Legião Portuguesa, uma milícia complementar.

Vale ressaltar o grande silêncio que ainda hoje paira em torno dessa ditadura, — que matou muitos portugueses, mas, sobretudo, aqueles considerados não contáveis, ou seja, as pessoas negras de países colonizados pelos portugueses. No entanto, apesar de tudo, apesar das imagens, é, no mais das vezes, uma história relatada como uma das mais brandas ditaduras, a que matou menos. Uma conta de uma matemática cruel, dado que reverbera no apagamento da sua história. Havia morte, havia tortura, como se encontra descrito em 48. Faltam as imagens, falta contabilização dos negros mortos. As marcas que ficaram nos sobreviventes, os mortos das colônias, que não foram contabilizados com os mortos portugueses. O arquivo é, sobretudo, feito por faltas, pelo que é negado, negações por si mesmas racistas.

Natureza Morta/Stilleben coloca em cena imagens contaminadas no presente, nas práticas racistas diárias de um país que não assume seus crimes patrimoniais de assalto às colônias, assim como não o faz em relação às mortes dos povos indígenas e negros, seja por meio da sua escravização, seja pela dizimação de suas culturas. Essa marca de negação da fúria colonial portuguesa está inscrita na paisagem urbana, nos seus monumentos, nos debates sobre a falta de representatividade negra nas artes, nos confrontos migratórios, no processo de gentrificação de áreas ocupadas por imigrantes. As grandes embarcações, tecnologia de navegação responsável pelo avanço nos continentes, chamados de Além-Mar, estão presentes no espaço urbano como símbolo do que os portugueses entendem como um período áureo da sua história. O monumento Padrão dos Descobrimentos, à beira do Rio Tejo, louva a chamada Era das Descobertas. Não são invasões que esses monumentos relatam, são descobertas de terras que só então passam a aparecer nos mapas que instituem os poderes sobre esse outro, de quem foram retiradas as falas, as culturas e que estão excluídos da paisagem e desalojados de suas dignidades.

Figura 2
Detalhe do Monumento Padrão dos Descobrimentos.

O Padrão dos Descobrimentos foi construído quando Portugal vivia a ditadura, como um símbolo do regime que ao relembrar os anos gloriosos das Descobertas procurava justificar o colonialismo.

Segundo o site oficial1 1 Disponível em: <https://padraodosdescobrimentos.pt/padrao-dos-descobrimentos/>. Acesso em: 20 maio 2023. , as imagens representam “alguns dos protagonistas da gesta ultramarina e da cultura da época, navegadores, cartógrafos, guerreiros, colonizadores, evangelizadores, cronistas e artistas [...]”. Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Fernão de Magalhães e Luís de Camões estão entre os representados. O Padrão dos Descobrimentos foi construído em 1940, inicialmente como um projeto temporário. A obra era parte da chamada exposição do Mundo Português, considerada por historiadores um dos marcos da propaganda nacionalista do ditador António Salazar

(MIRANDA, 2021MIRANDA, G. Monumento em homenagem às navegações, Padrão dos Descobrimentos, é vandalizado em Lisboa. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 ago. 2021. Seção Mundo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/08/monumento-em-homenagem-as-navegacoes-padrao-do-descobrimento-e-vandalizado-em-lisboa.shtml>. Acesso em: 10 maio 2023.
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021...
).

Em agosto de 2021, uma das laterais do monumento foi pichada com inscrições em inglês, com erros ortográficos que dizem: “Velejando cegamente por dinheiro, a humanidade está se afogando em um mar escarlate”.

Figura 3
Pichação no Monumento Padrão dos Descobrimentos.

Um arquivo do presente

A obra de Susana de Sousa Dias reverbera como força do presente. Não sem propósito, faz com que outras obras de artistas e cineastas corroborem com uma memória que se faz no corpo, sobretudo dos povos negros, migrantes. No prefácio à edição brasileira do livro Memórias da plantação, a artista Grada Kilomba (2019)KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. afirma ter deixado Lisboa, onde nasceu e cresceu, com um imenso alívio. Seus relatos dão conta de quanto o racismo institui as relações no presente português; quanto a figura do povo negro não é apenas um problema do racismo no passado colonial, mas uma doença ativa. Única estudante negra do departamento de psicologia clínica e psicanálise em uma universidade portuguesa, foi muitas vezes confundida com a senhora da limpeza. Já no trabalho, pacientes se recusaram a serem vistos e até mesmo a entrarem numa sala e ficarem a sós com ela. Grada Kilomba, que hoje vive em Berlim, diz haver na Alemanha, onde também há trágica história colonial, além de ter sido um dos piores centros dos fascismos, algumas diferenças no modo como trata sua história:

[…] pareceu-me haver uma pequena diferença: enquanto eu vinha de um lugar de negação, ou até mesmo de glorificação da história colonial, estava agora num outro lugar onde a história provocava culpa, ou até mesmo vergonha. Esse percurso de conscientização coletiva, que começa com negação-culpa-vergonha-reconhecimento-reparação, não é de forma alguma um percurso moral, mas um percurso de responsabilização

(KILOMBA, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 11).2 2 Disponível em: <https://www.bocabienal.org/evento/o-barco-the-boat/>. Acesso em: 10 maio 2023.
Figura 4
Instalação e performance O Barco, de Grada Kilomba.2 2 Disponível em: <https://www.bocabienal.org/evento/o-barco-the-boat/>. Acesso em: 10 maio 2023.

Mesmo assim, as pessoas com as quais Grada Kilomba conversou para escrever este livro, que é sua tese de doutorado, dão a prova do quão essas diferenças são mínimas e passam mais pelo discurso do que pelas ações. Há muita coisa que fica nas entranhas, que se estabelece na força da história drástica dos povos colonizados, negros e indígenas, e se encontra em subjetividades apodrecidas. Algo que aparece em perguntas tais como: “Você é de onde? Não és africana, não é mesmo? Sua cor, seu cabelo, seu modo de ser...”. Não há culpa, vergonha, reconhecimento, reparação — esse trajeto que Grada Kilomba entende ser necessário que não se processe sem dor e repulsas. O brutal colonialismo português, envolto em uma mansuetude, diz José Gil, grande pensador português nascido em Moçambique, é um mito interiorizado pelos próprios colonos que os impede de reconhecer sua violência.

O Projeto A Ferida, de Grada Kilomba, foi rejeitado pelo júri que definiu a representação portuguesa na 59ª Bienal de Veneza (2022). Entre os argumentos mobilizados por Nuno Crespo, membro da banca, está o que afirma que

[…] a ideia de racismo como ferida aberta foi já objeto de inúmeras outras abordagens; de modo que a proposta apresentada não deixa perceber como numa exposição poderá rever, criticar ou prolongar, essa ideia tão já discutida e mesmo exibida de múltiplas formas […] e […] não está comprometido com a dinamização e internacionalização da “cena” artística e cultural portuguesa.

(PINTO, 2021PINTO, A. T. O boicote à Grada Kilomba na representação oficial portuguesa da Bienal de Veneza 2022. Arte!Brasileiros, São Paulo, 14 dez. 2021. Seção Arte/Artigo. Disponível em: <https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/grada-kilomba-bienal-veneza/>. Acesso em: 10 maio 2023.
https://artebrasileiros.com.br/arte/arti...
).

Para desenterrar a verdade da violência escamoteada pela boa consciência, José Gil (2015)______. Sobre Caderno de memórias coloniais. In: FIGUEREDO, I. Cadernos de memórias coloniais. São Paulo: Todavia, 2015. p. 20-23. afirma, em prefácio ao Caderno de Memórias Coloniais, da também moçambicana Isabela Figueredo, que “era preciso procurá-la nas sensações infinitamente vibráteis e virgens de uma menina, filha de colonos, que vivia à flor da pele o sentido mais profundo de tudo o que acontecia” (GIL, 2015______. Sobre Caderno de memórias coloniais. In: FIGUEREDO, I. Cadernos de memórias coloniais. São Paulo: Todavia, 2015. p. 20-23., p. 21). A menina Isabela Figueredo faz um ajuste de contas com o pai, colono português em Moçambique, às vésperas da independência nacional. O relato traduz o racismo e o desprezo do pai ao povo colonizado, algo que nem mesmo o 25 de Abril lhe fez silenciar. “O meu pai revoltava-se quando encontrava uma branca com um negro [...]. Fitava os pares como se visse o Diabo” (2015, p. 35). A família branca, católica e racista é vista no relato de Isabela Figueredo quando cita uma fala de seu pai sobre a diferença entre o trabalho do branco e do negro, experimentado no corpo dos serviçais:

[...] um branco não se podia dar porrada [...] não tinha a mesma força de besta, resistência e mansidão; um branco servia para chefe, servia para ordenar, vigiar, mandar trabalhar os preguiçosos [...]. O negro estava abaixo de tudo. Não tinham direitos. Teria os da caridade, e se a merecesse. Se fosse humilde. Se sorrisse, falasse baixo, com a coluna vertebral ligeiramente inclinada para a frente e as mãos fechadas uma na outra, como se rezasse

(FIGUEREDO, 2015, p. 43).

Susana de Sousa Dias faz sua obra fílmica não sem entender como a face do totalitarismo português tem na Igreja, na família e nos moralismos um dado de adesão ao passado fascista, de presença no presente. Se a questão central da opacidade das imagens é um fato, maior ainda é o problema político sobre o que a imagem deixa ver e, no mais das vezes, esconde. É esse o trabalho da realizadora: interrogar, fazer do arquivo um lugar de disputas éticas. A inexistência de uma voz over que conduza ao esclarecimento das imagens é estratégia recorrente da montagem nas obras de Susana de Sousa Dias. Não ter uma voz que conduza à leitura, que aponte, que analise, que relacione os fatos, que date os acontecimentos, tudo isso expõe as opacidades inscritas em um arquivo. Os significados ali transbordam em muitas direções, e é na falta da voz condutora que as imagens encontram seus caminhos. Trata-se de um vazio interpretativo no qual o abismo das imagens aparece, uma estratégia que deixa vazios de informação. Susana de Sousa Dias recusa, nessa obra instalada, o uso das palavras, substituindo-as por reenquadramentos, recortes, aproximações, distanciamentos, fusões, interpolações.

Com esses procedimentos fílmicos sobre o arquivo — de filmes de atualidades, reportagens de guerra, documentos de propaganda, fotografias de prisioneiros políticos — a realizadora produz deslocamentos que resultam em uma obra de fissuras narrativas, com demandas por preenchimentos em sua fruição. Mas se a voz, essa que determina a presença humana no corpo fílmico, se ausenta, não faz parte do trabalho de montagem, é no desenho sonoro que as gravidades do arquivo aparecem. Retirados os sons originais, Natureza Morta/Stilleben fere a própria natureza do arquivo como documento da repressão. O que se vê na obra é um trabalho árduo de escavação das imagens na busca de traços, de testemunhos e de relações que corrompem sua função repressiva, dando a ver o que escapa aos interesses da polícia política do Estado Novo, em seu papel de vigilância e controle contra opositores do regime.

O que se vê com a obra é um documento vivo inscrito em um desfile sombrio, sórdido, aterrorizador e vertiginoso. Não há centralidade narrativa nem operação de continuidade, mas movimentos entre planos de dimensões diversas. Um trabalho de montagem entre grandes planos abertos, enquadramentos mais próximos de partes de uma cena que sucede ou que lhe é precedente. Variações de planos que se conjugam, por vezes, com a detenção de um movimento ou por desaceleração. As três telas não apenas fragmentam-se em blocos, mas convocam o olhar a transitar entre imagens, operando uma segunda montagem. As telas são modos de exibição que dividem cenas, que são a um só tempo o que reúnem. Uma, duas ou três telas operam na descontinuidade de planos, criando uma dramaticidade de aproximações e distanciamentos. São modos de convocação do olhar que ressaltam, assim como reduzem, partes de imagens. O que quer a realizadora com essa montagem, o que articula fragmentos de filmes, de fotografias? Arrisco responder essa questão com perguntas: Seria o arquivo uma fonte de muitos encontros possíveis? Seria o arquivo, muito mais que um lugar de documentos, algo da ordem do impalpável? Seria sobre o que a montagem guarda e um só tempo que escapa?

Walter Benjamin tinha um método sobre o qual lançou luz na montagem literária:

Eu não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiei coisas valiosas, nem me apropriei de formulações espirituosas. Porém os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: usando-os

(BENJAMIN, 2007BENJAMIN, W. Livro das passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2007., p. 502).

Susana de Sousa Dias monta e multiplica telas, cria uma profusão de planos, imobiliza imagens, reduz o tempo de duração, recorta, justapõe, fusiona. Tudo muito preciso, articulado, dimensionado. Não deixa que a cronologia inscrita no arquivo domine a narrativa. Muda a lógica dos acontecimentos. Transforma-os numa teia de sentidos outros, abertos aos tempos que penetram e desalojam a história construída pelo regime: essa história de dados, de informações, em cujos retratos se encontram a criminalização; em cujos filmes de desfiles militares se desfazem em uma avenida de tanques de guerra. Desse modo, fazendo justiça aos moldes benjaminianos — usando-os, sem inventariá-los –, opera o arquivo com as armas da história do presente, dando apenas pistas e dialogando, desde o seu título, com a história da arte. Também como Benjamin, a contrapelo do arquivo e da história da arte.

A referência à natureza morta aponta imediatamente para o gênero artístico, na pintura, de representações de objetos estáticos e inanimados, de um universo do cotidiano, como frutas, flores, louças e utensílios domésticos. Nas naturezas mortas são frequentes as técnicas do óleo e da aquarela e, em geral, têm pequenas dimensões. Esse gênero de pintura existe desde pelo menos o séc. XV a.C., com a descoberta na Tumba de Menna, no Egito, cuja cena é composta por pinturas de oferendas da câmara funerária. É comum associar as naturezas mortas aos estilos barroco e acadêmico, embora sua importância possa ser vista em toda a história da arte ocidental.

Figura 5
Obra de Peter Claesz, Vanitas Still Life, 1625.3 3 Disponível em: <https://www.mauritshuis.nl/en/our-collection/artworks/943-vanitas-still-life/>. Acesso em: 10 maio 2023.

É interessante observar que no século XVI, na Holanda, a Igreja Protestante censurou a arte que explorasse qualquer relação religiosa, de modo que há, na história da arte holandesa, um número significativo de obras do gênero natureza morta, em que pássaros, frutas e objetos davam conta de certa comunhão. Algo que, tempos depois, acabou por expressar uma fragilidade da vida, sua fugacidade, por meio de pinturas de crânios e outros elementos conectados ao fim da vida, à morte.

Figura 6
Detalhe de uma cena de oferenda da câmara funerária de Menna (c. 1422-1411 a.C.).4 4 Maler der Grabkammer des Menna, Domínio público, via Wikimedia Commons. Disponível em: <https://arteref.com/pintura/natureza-morta-a-arte-que-perdurou-milenios/>. Acesso em: 10 maio 2023.

O título dado à obra de Susana de Sousa Dias pode ser entendido como parte dessa tradição. Ao nomeá-la de Natureza Morta/Stilleben, não o faz sem que para isso opere um conhecimento da história da arte ocidental, eurocêntrica. Há aqui um desejo claro de inclusão do que não tem mais vida. Há uma ideia de reanimação das forças das imagens desse arquivo que urge ser acessado, para que os métodos, os hábitos e as normas ditatoriais sejam objeto da consciência histórica. Há um vetor nessa operação de escavação de um arquivo que configura uma máquina mortífera do fascismo e que está sempre por se atualizar no presente. São as forças da morte, da tortura, do desaparecimento e do horror que o salazarismo produziu sobre os corpos daqueles que lutaram para que o 25 de Abril português pudesse acontecer em 1975, após 48 longos anos de ditadura. A obra fílmica traz ainda toda uma história das representações do horror para dentro do âmbito familiar. São filhos e filhas, mulheres e maridos, irmãos e irmãs, e outros parentes próximos que retornam, presentificando, em documentos, os piores momentos da história portuguesa e das coloniais. Cada imagem traz para o presente o que se constitui como fantasmas da memória.

É preciso, ensina Susana de Sousa Dias, problematizar o lugar do arquivo como lugar de acesso ao passado no presente; entender a substância do arquivo no que ele tem de precariedade, incompletude; tomar um arquivo, operar com ele nas suas dimensões de vestígios, o delineamento de seus limites, o invisível que nele faz morada e a recusa a qualquer totalidade. O trabalho com o arquivo está sempre em estado de suspeita e suspensão. Em Natureza Morta o lugar do arquivo não é o das verdades, uma busca que nos termos nietzschianos não é propriamente o lugar da arte. Não é, no entanto, de amortecimento da experiência do martírio sobre os corpos daqueles que foram vítimas da violência de um regime fascista, espelho exemplar da força repressiva dos modelos nazifascistas. O lugar da obra frente ao arquivo não é o de matar nem de amenizar possíveis verdades nele incrustadas.

Não se trata de fazer aceitável o que é terrível: o terrível jamais será aceitável. Mas há nesse movimento das artes em direção aos arquivos um estatuto bem distinto de outras áreas tomadas pelo desejo de verdades. O material da obra de Susana de Sousa Dias é o arquivo da polícia política. O que fazer, como fazer vibrar esse arquivo, como deixar que ele atue no presente, como mobilizar as dores dessa natureza morta, como retirá-lo desse estado de suspensão é o trabalho da realizadora: sua ação frente ao insuportável. Fabular sobre o arquivo, não para romper com o que nele se apresenta como dado, mas para tornar perceptível o que se configurava como insignificante e vulnerabilizado. O trabalho da realizadora com o arquivo é um processo, em cujo curso muitos são os acasos que nele interferem. Não há em Natureza Mota/Stilleben um caminho antes definido, há uma proliferação de caminhos, de ensaios, de dúvidas que vão surgindo do processo. O arquivo não se entrega, ele vai se enraizando, criando vínculos, traçando possibilidades. De tal sorte que não devém uma única obra, mas seguidas incursões que se desdobram em outras mais.

José Gil (2016)GIL, J. O nexo da crítica. In: CRESPO, N. (org.). Arte crítica política. Lisboa: Tinta da China, 2016. p. 147-155., ao falar sobre os nexos da crítica, é levado a pensar nos nexos artísticos, ou seja, sobre o que faz com que um objeto se torne artístico. Essa questão é importante para mobilizar a relação arquivo-arte e tentar encontrar o lugar da obra de Susana de Sousa Dias ante um arquivo da repressão. Diz José Gil:

[...] para que uma sequência de sons se transforme em música, é preciso passar do plano da sensação trivial ao da sensação trabalhada, mascarada, fabulada. Esta passagem de um plano a outro chama-se gênese. É nela e por ela que se dá o primeiro passo para a construção do nexo da obra artística

(GIL, 2016GIL, J. O nexo da crítica. In: CRESPO, N. (org.). Arte crítica política. Lisboa: Tinta da China, 2016. p. 147-155., p. 151).

José Gil segue então sua concepção de nexo artístico, definindo passos. O primeiro, diz, não obedece a um plano preestabelecido, “vai-se descobrindo a ele próprio através do processo criativo, através das intenções prévias, mas também de encontro com o acaso, através de intenções prévias” (2016, p. 151). Diante de um arquivo há uma série de intuições, mas não há um plano. Intenções. São os encontros, as solicitações e demandas que o arquivo impulsiona que fazem com que ele vá ganhando outro estatuto, passando de um estado “morto”, com propósitos e programas definidos pelo regime do controle policial, a um estado de arte. Deve-se ressaltar é que o trabalho com o arquivo em Natureza Morta partiu do espanto, da indignação com tudo que ali estava inscrito, material pouco acessado, praticamente desconhecido, e sobre o qual se fez necessário ver o que havia de documentos, ver filmes de propagandas do Estado Novo, ler os processos de criminalização.

O segundo passo é compreender o que estava programado nesse material. E, nesse sentido, as formas das imagens passam a ser centrais. Qual lugar ocupa no espaço da imagem aquele que fotografa? Como são expostos os fotografados? Como são iluminados? Como são definidas as posições dos seus rostos? Como são enquadrados?

Figuras 7, 8, 9, 10, 11 e 12
Frames da obra Natureza Morta/Stilleben.

Questões que definem um padrão, uma norma, mas que, sobretudo, dão as pistas de um modelo seguido em todas as ditaduras. As imagens de presas e presos políticos são pautadas pela forma retrato, definem o rosto como o padrão de reconhecimento, mas o semblante, as marcas impressas em cada rosto, a forma de olhar em direção aquele que fotografa — a mesma direção de quem olha essas fotografias, seja na manipulação do arquivo, seja ao ver o filme — são expressões de horror, de ódio, de tristeza, de medo, de repúdio: é, seguramente, o que escapa ao controle. É no olhar, seja dos presos e presas, seja de cada negra e negro reduzido à condição de escravizados pelos colonos portugueses, que a imagem fala do obsceno em sua apreensão. As expressões faciais são o centro da resistência da imagem. Em uma entrevista, em 2020, realizada, pelo Laboratório de Estudos e Experimentações em Cinema e Audiovisual (Leea), vinculado à Universidade Federal do Ceará (UFC), Susana de Sousa Dias afirma a expressão como um fato que rompe e é “definitivamente o último bastião de liberdade e, de fato, tem esse romper de todo o sistema”5 5 Em 2020, no seminário Ações de Erodir (uma parceria LEEA-IMAGO-PPGCOM-Curso de Cinema e Audiovisual/UFC), foram realizadas rodas de conversas online com artistas, ambientalistas, indígenas; com os movimentos de negritude, dos trabalhadores rurais, de mulheres e das múltiplas sexualidades. O primeiro seminário foi com a realizadora/artista/cineasta/professora da Faculdade de Belas Artes/Universidade de Lisboa, Susana de Sousa Dias, e a curadora do Museu de Arte Contemporânea de Lisboa, Emília Tavares, dia 11 ago. de 2020. .

Há muitos riscos ao trabalhar com um arquivo da ditadura. Talvez o pior deles seja o de reproduzi-lo, o de assumir uma posição que não seja aquela em que é necessário um extremo rigor para não ser capturado pelas suas próprias malhas, nos termos do seu programa. O que é Natureza Morta? Um documentário? Não exatamente, visto que todo tratamento dado às imagens aponta, sobretudo, para seu esfacelamento. Recortar, desordenar, conjugar imagens de situações distintas (desfiles militares, retratos de identificação, filmes produzidos em situações diversas etc.) é um gesto da realizadora cuja questão central é a formação do olhar.

Trata-se de uma obra em que o arquivo é posto em movimento e põe suas forças em marcha. O trabalho com o arquivo está dirigido a desmontar os métodos da ditadura na composição das imagens. Todas as operações de reenquadramento, de composição dos planos, de recortes de telas etc., são de decomposição da lógica das imagens forjadas pelo regime militar. Diferentemente do trabalho realizado no filme 48, em que as imagens fotográficas estavam ali para fazer o trabalho de rememoração, em Natureza Morta/Stilleben, o gesto é contra as imagens da repressão. O que está em jogo não é mais sobre o que é restituível. O arquivo tem posição definida, é a voz da polícia política. Portanto, há em Natureza Morta/Stilleben uma consciência e um objetivo muito explícitos de transformação do arquivo em um contra-arquivo. O trabalho é de fissura do arquivo para dele fazer surgir o que lá não estava pautado.

Apontamentos finais - sobre os inícios

A questão central, aquela que motivou este texto, é a relação entre um arquivo que tem um programa claro de exercício de identificação e repressão, e o trabalho do campo artístico. Muitos são os pensadores e inúmeros são os textos que tratam dessa problemática. Alguns deles estão citados aqui, outros, ainda que não citados, estão presentes transversalmente. As escolhas por convocá-los se devem a alguns critérios que limitam a escrita. Grada Kilomba é portuguesa, escritora, filósofa e artista negra. José Gil é português moçambicano, filósofo ligado às artes. Walter Benjamin é uma referência nos estudos das artes, da história, das narrativas. Um judeu que foi levado ao suicídio pela perseguição nazista. Ele não poderia faltar na companhia desta escrita, que traz a ideia do uso das imagens como processo de montagem. Didi-Huberman entra como um historiador das artes que enfatizou em suas pesquisas a dimensão do anacronismo dos tempos que se inscrevem na imagem. Nietzsche, que surge muito rapidamente, é alemão e muitas vezes teve seus pensamentos apropriados pelo nazifascismo pelas mãos de sua irmã. Foi um pensador radical ao fazer a forma da expressão artística criar sua temática trágica. Isabela Figueredo é filha de um colono português de Moçambique, e os cadernos dela revelam a imensa crueza do colonialismo português, cujo mito da boa consciência colonial ainda hoje é extremamente interiorizado.

São esses pensadores que acompanharam de perto o processo que se abriu com a obra de Susana de Sousa Dias, especialmente pela forma como Natureza Morta/Stilleben se fez a contrapelo da história, como contra-arquivo e, de forma muito especial, criou estratégias e zonas sensíveis no modo de uma obra de imagem-movimento ser vista em espaços de museus e galerias. É no campo das artes visuais, nas incursões de artistas com as imagens em movimento, que a obra procura mobilizar as forças do arquivo. O embate com o arquivo produz dúvidas sobre qual caminho seguir e quais forças devem ser extraídas. É importante apontar as formas como uma imagem é um regime de forças.

O que Susana de Sousa Dias traz para a Natureza Morta/Stilleben é um trabalho exaustivo com as imagens, os movimentos, a redução do movimento, os espaços das telas, as implicações com as formas fílmicas e sua intrínseca relação com as formas de dar a ver, a perceber. A obra abriga um grande problema estético: o que as formas dizem, o que elas sublinham ou fazem desaparecer. O que entra no trabalho, o que fica de fora, como entram, quanto tempo permanecem, com que planos, com que tipo de movimento, o que paralisar. Todas essas questões de políticas da imagem, para as quais não há uma regra, mas somente exceções. O trabalho da arte ocorre de forma recorrente por renovar suas formas e, assim, escapar de modelos, a uma só vez que não se faz sem a sua própria história. O que permanece nessa operação é sempre a busca pelo deslocamento do visível ao invisível, convocando a imaginação a empreender seus movimentos, a produzir certo engajamento na textura do mundo na fluidez das formas.

É preciso ainda dizer do lugar da montagem com Natureza Morta/Stilleben, assim como das obras instaladas no espaço ou diante da tela bidimensional, que ocupam o lugar nas artes desde pelo menos os anos 1920. O trabalho de Susana de Sousa Dias é informado, em relação à montagem, pelos modos com os quais a arte e o pensamento a constituem. Nos termos de Vancheri, as montagens têm fórmulas: “A montagem alternada, em Georges Bataille; a montagem dialética, em Walter Benjamin; a montagem crítica, em Bertold Brecht; a montagem pathétique, em Aby Warburg” (VANCHERI, 2009VANCHERI, L. Montage: penseé et passion d´une siècle d´imagens. In: VANCHERI, L. (org.). Images contemporaines: arts, formes, dispositifs. Lion: Aleas, 2009. p. 7-14., p. 136). No entanto e, ao mesmo tempo, essas fórmulas não subjugam as imagens, que não se deixam apreender inteiramente. E, nesse sentido, a montagem, no trabalho de Susana de Sousa Dias, faz saltar os acordos imprevistos na imagem, e as forças que produzem na memória uma lógica em que está envolvido todo o extraordinário do tempo, o que Didi-Huberman explica como sendo a maneira pela qual se instalam as forças inconscientes do tempo.

Referências

  • 48. Realização, argumento e montagem: Susana de Sousa Dias. Portugal: Kintop; Ansgar Schäfer, 2009. (92 min).
  • BENJAMIN, W. Livro das passagens Belo Horizonte: UFMG, 2007.
  • DIAS, S. S. Natureza Morta/Stilleben Lisboa: MNAC, 2010. Instalação.
  • DIDI-HUBERMAN, G. Quand les images prennent positions Paris: Minuit, 2009.
  • GIL, J. O nexo da crítica. In: CRESPO, N. (org.). Arte crítica política Lisboa: Tinta da China, 2016. p. 147-155.
  • ______. Sobre Caderno de memórias coloniais. In: FIGUEREDO, I. Cadernos de memórias coloniais São Paulo: Todavia, 2015. p. 20-23.
  • LEANDRO, A. A voz inaudível dos arquivos. Montagem e escrita da história. Encontro internacional da SOCINE, 15., 2011. Anais digitais [...]. Disponível em: <https://associado.socine.org.br/anais/2011/11037/anita_leandro/a_voz_inaudivel_dos_arquivos_montagem_e_escrita_da_historia>. Acesso em: 15 abr. 2023.
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  • KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
  • MIRANDA, G. Monumento em homenagem às navegações, Padrão dos Descobrimentos, é vandalizado em Lisboa. Folha de São Paulo, São Paulo, 9 ago. 2021. Seção Mundo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/08/monumento-em-homenagem-as-navegacoes-padrao-do-descobrimento-e-vandalizado-em-lisboa.shtml>. Acesso em: 10 maio 2023.
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  • NATUREZA morta: visages d’une dictature. Realização e argumento: Susana de Sousa Dias. [S. l]: [s. n], 2005. (72 min).
  • PINTO, A. T. O boicote à Grada Kilomba na representação oficial portuguesa da Bienal de Veneza 2022. Arte!Brasileiros, São Paulo, 14 dez. 2021. Seção Arte/Artigo. Disponível em: <https://artebrasileiros.com.br/arte/artigo/grada-kilomba-bienal-veneza/>. Acesso em: 10 maio 2023.
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  • PROCESSO-CRIME 141/53: enfermeiras no Estado Novo. Realização: Susana de Sousa Dias. Lisboa: Cinequanon, 2000. (52 min).
  • RANCIÈRE, J. O trabalho das imagens Conversações com Andrea Soto Calderón. Belo Horizonte: Chão da feira, 2021.
  • RETRATOS de identificação. Realização: Anita Leandro. Rio de Janeiro: [s. n.], 2014. (72 min).
  • VANCHERI, L. Montage: penseé et passion d´une siècle d´imagens. In: VANCHERI, L. (org.). Images contemporaines: arts, formes, dispositifs. Lion: Aleas, 2009. p. 7-14.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2023
  • Aceito
    19 Set 2023
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