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“Que Deus é esse?”: Os sentidos de divindade em telenovelas espíritas

“What God is that?”: The senses of divinity in spiritist soap operas

Resumo

Este artigo discute os sentidos de divindade em três telenovelas espíritas da TV Globo: A viagem, Alma gêmea e Além do tempo. Após apontar a relevância da telenovela no continente e propor uma definição para o subgênero telenovela espírita, tomo três eventos narrativos de cada uma das tramas como objeto de estudo, selecionando situações em que a temática Deus ancora interações entre personagens. Para a análise, adoto o método da visualidade combinado ao estilo televisivo, denominado televisualidade, de maneira que os aspectos estilísticos são estudados na relação com elementos socioculturais. A comparação entre os eventos permite notar uma evocação do divino em dualismos que posicionam personagens em lados antagônicos, protagonizando encenações melodramáticas entre crentes e não crentes. Por fim, Deus é apresentado nessas telenovelas espíritas como agente mobilizador e divisor de opiniões, seja em termos narrativos, estilísticos e socioculturais.

Palavras-chave
telenovela; televisualidade; Deus; religião; espiritismo

Abstract

This article discusses the meanings of divinity in three spiritist soap operas on TV Globo: A Viagem, Alma Gêmea and Além do Tempo. After pointing out the relevance of soap operas in the continent and proposing a definition for the subgenre "Spiritist soap opera", I take three narrative events from each of the plots as an object of study, selecting situations in which the theme "God" anchors interactions amongst characters. For the analysis, I adopt the method of visuality combined with television style, called televisuality, so that stylistic aspects are studied in relation to sociocultural elements. The comparison between the events allows us to notice an evocation of the divine in dualisms that position characters on antagonistic sides, leading melodramatic staging between believers and non-believers. Finally, God is presented in these Spiritist soap operas as a mobilizing agent and divider of opinions, whether in narrative, stylistic and sociocultural terms.

Keywords
soap opera; televisuality; God; religion; spiritism

Introdução a uma epistemologia regional melodramática: telenovela e modernidade latina

Este artigo investiga as formas estilísticas de figuração dos sentidos de divindade pela telenovela brasileira, com base em um segmento específico dentro da ficcionalidade nacional: as chamadas telenovelas espíritas. Desde o surgimento e a expansão do meio televisivo, países latinos se encontraram com a televisão e nela se materializou a existência do popular por meio do massivo (MARTÍN-BARBERO, 2013MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. 5. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.). O melodrama televisivo se consagrou como um dos expoentes da modernidade heterogênea latina, remetendo a sua história originária europeia, em que apela para uma “retórica do excesso, na qual tudo tendia ao esbanjamento, desde a encenação de efeitos visuais e sonoros até a estrutura dramática de sentimentos exacerbados” (BRAGANÇA, 2007BRAGANÇA, M. Melodrama: notas sobre a tradição/tradução de uma linguagem revisitada. Eco-pós, v. 10, n. 2, p. 29-47, jul.-dez. 2007., p. 34).

Com a capacidade de agregar os descompassos da identidade latina, as telenovelas, “muito além de apenas entreter, elas trabalham tanto no imaginário coletivo quanto nas memórias históricas e afetivas” (LOPES, 2014LOPES, M. I. V. Memória e identidade na telenovela brasileira. In: Encontro da Compós, 23. 2014, Pará. XXIII COMPÓS: Belém: UFPA, 2014. p. 1-16., p. 8). Já como aparato de mercado, a telenovela se tornou um produto rentável para a realidade financeira do audiovisual latino (ORTIZ; RAMOS, 1991ORTIZ, R.; RAMOS, J. M. O. A produção industrial e cultural da telenovela. In: ORTIZ, R.; RAMOS, J. M. O; BORELLI, S. H. S. Telenovela: história e produção. 2. ed. Brasiliense: São Paulo, 1991.). Amparada na serialização, a telenovela estrutura-se num formato que distribui a carga dramática em porções fragmentadas com apelo à cultura da oralidade e marcas populares, entremeada pela surpresa e repetição, na tessitura entre o tempo do cotidiano vivido e o tempo do progresso linear — que remete a origens folhetinescas (MARTÍN-BARBERO, 2013MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. 5. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.). Além disso, o caso brasileiro se tornou um particular objeto de análise pela longa, notória e lucrativa especificidade do gênero.

De um início assentado no sentimentalismo, a telenovela brasileira modificou aspectos de linguagem, o que lhe permitiu abordagens realistas e naturalistas, com a problematização da crítica social e da tessitura cultural do país nas ficções (LOPES, 2009______. Telenovela como recurso comunicativo. Matrizes, v. 3, n. 1, p. 21-47, ago.-dez. 2009.). O modelo brasileiro de telenovela, consagrado ao longo de décadas, traz a mescla dos estratos melodramático e realista como matizes constitutivos do gênero (MOTTER, 2004MOTTER, M. L. Mecanismos de renovação do gênero telenovela: empréstimos e doações. In: LOPES, M. I. V. de (org.). Telenovela: internacionalização e interculturalidade. São Paulo: Edições Loyola, 2004. p. 251-292.), em que o sentimentalismo romântico divide espaço com traços de um cotidiano verossímil, desenhado nas tramas em abordagens de cunho social e crítico.

Enquanto narrativa ficcional seriada de frequência diária, a telenovela brasileira se caracteriza por uma estética da repetição amparada em índices de reconhecimento (bordões, por exemplo), além de mecanismos próprios do gênero, tais como a recorrência a ganchos, suspensões programadas (intervalos comerciais, fim de capítulo) e redundâncias, tomadas como instâncias que interferem nos modos de fruição das narrativas. Na história da televisão nacional, a TV Globo ocupa um lugar de centralidade na produção de telenovela, e as expectativas em torno do gênero também podem ser pensadas com base em outros fatores, tais como horário na grade de programação (a telenovela das 18 horas evoca uma espectatorialidade distinta daquela das 21 horas), casting (a seleção de determinado elenco pode evocar sentidos de comicidade, dado o histórico profissional de atuação) e autoria.

Assentada no melodrama, a TV Globo replicou em suas produções arquétipos consagrados sem abrir mão de construções ousadas em diferentes fases. Com traços específicos de elaboração narrativa, a telenovela da TV Globo encontrou espaço de inovação tanto nos enredos quanto nas abordagens estilísticas (inclusive as vinhetas de abertura, uma marca da emissora). Outro ponto forte é a demarcação do lugar de autoria na telenovela, que Souza (2003)SOUZA, M. C. J. Reconhecimento e consagração: premissas para análise da autoria das telenovelas In: SOUZA, M. C.; GOMES, I. M. (orgs.). Media e Cultura. Salvador: Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, p. 55-76, 2003. discute com base na função autor advinda de Michel Foucault para destacar o trabalho coletivo que congrega distintos profissionais na produção de uma telenovela, mas que as demandas mercadológicas e o reconhecimento público apontam para a figura de um nome que ganha relevância na cadeia produtiva audiovisual. É assim que nomes como Benedito Rui Barbosa, Glória Perez, Manoel Carlos aparecem destacados nas produções e evocam sentidos singulares para suas tramas (Benedito Rui Barbosa reproduz um universo rural; Manoel Carlos evoca tramas urbanas da classe média do Rio de Janeiro). Marcas como a própria autoria, mas também composição estética, organização narrativa e projeção comercial fizeram a telenovela brasileira se adaptar ao longo dos anos e dar abertura a segmentações no gênero — como a emergência das telenovelas espíritas.

Telenovela espírita: definições de um subgênero ficcional

As telenovelas espíritas vêm sendo alvo de minhas investigações e, para estabelecer diretrizes científicas quanto ao subgênero, adoto parâmetros que remetem ao gênero televisivo como categoria cultural (MARTÍN-BARBERO, 2013MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. Tradução de Ronald Polito e Sérgio Alcides. 5. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.; MITTELL, 2001______. A cultural approach to television genre theory. Cinema Journal, 40(3), 3-24, 2001.; GOMES, 2011GOMES, I. M. M. Gênero televisivo como categoria cultural: um lugar no centro do mapa das mediações de Jesús Martín-Barbero. Famecos, v. 18, n. 1, p. 111-130, jan.-abr. 2011.), entendendo estratégias de comunicabilidade que envolvem o processo comunicativo de uma peça televisiva e apontando para vinculações entre comunicação e cultura. Assim, textos televisivos são categorizados por gêneros em razão dos próprios produtos, mas também da circulação discursiva que se mantém sobre eles (MITTELL, 2001______. A cultural approach to television genre theory. Cinema Journal, 40(3), 3-24, 2001.).

Os gêneros convocam noções do imaginário popular e ganham concretude por meio do reconhecimento empírico em uma comunidade, de modo que suas lógicas de composição envolvem não só estratégias de comercialização e competitividade industrial do produto televisivo, mas também traços das competências culturais habilitadas pelos usos. É nessa categorização que extrapola o texto para entender o gênero, na circularidade que aponta para o reconhecimento das competências culturais como fundamento para leitura dos gêneros, que busco em Jason Mittell contribuições para uma grade de investigação. Para ele,

[...] nós podemos olhar na direção dos modos nos quais as definições, interpretações e avaliações de gênero são parte de uma operação genérica culturalmente mais ampla. Ao invés de questões tais como “o que é uma série policial?” ou “como nós definimos o quiz show?”, nós devemos olhar para as práticas culturais de interpretação e definição de gêneros difundidas que nos levem a questões tais como “o que os talk shows significam para uma comunidade específica?” ou “como a definição de animação é articulada por grupos situados socialmente?”

(MITTELL, 2004MITTELL, J. Genre and television: from cop shows to cartoons in American culture. New York: Routledge, 2004., p. 14).

Essa genealogia genérica proposta pelo autor convoca práticas discursivas para análise do gênero, a saber: (1) definição: como o gênero é definido por produtores e consumidores; (2) interpretação: como os valores postos em cena pelos gêneros são lidos pelos sujeitos; e (3) avaliação: critérios que fazem emergir sentidos e valorações sociais para um gênero, julgando-o por meio de sua conformação.

A nomenclatura telenovela espírita é tomada como premissa com base em trabalhos anteriores (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.), nos quais identifiquei a consagração dessa alcunha para um conjunto de produções ficcionais seriadas brasileiras. Percorri sites de críticos especializados em telenovela, além do site Memória Globo e de redes sociais oficiais da emissora, e, adotando a proposta de Mittell (2004)MITTELL, J. Genre and television: from cop shows to cartoons in American culture. New York: Routledge, 2004. quanto a definição, interpretação e avaliação de um gênero, identifiquei que, ao tratar de um grupo de telenovelas, as nomenclaturas a elas associadas traziam expressões como espiritualismo, vida após a morte, crença em vidas passadas, missão espiritual em suas definições e avaliações comentadas tanto pela crítica quanto pela audiência e sintetizadas na alcunha telenovela espírita. Algumas obras televisivas, inclusive, recebem definidores associados ao espiritismo desde o nascimento de suas divulgações pela emissora, dando início aos sentidos circulantes sobre o tema:

“A Viagem abordava o tema da vida após a morte de acordo com a doutrina espírita kardecista.”

“Com uma abordagem lúdica do espiritismo, a novela narrava uma história de amor marcada pela tragédia.” (Alma Gêmea)

“Em Anjo de Mim, Walther Negrão desenvolveu o tema do espiritismo.”

“O desejo do reencontro e a crença em vidas passadas são os temas principais de Amor Eterno Amor.

(MEMÓRIA GLOBO, s.d.MEMÓRIA GLOBO. Site, [s.d.]. Disponível em: Memória Globo. Acesso em: 23 maio 2023.)

Críticos de telenovela e sites especializados também adotam abordagens que nominam um conjunto de tramas ficcionais como telenovela espírita. Produzindo listas que identificam a presença da temática na ficção nacional, tais conteúdos priorizam tramas cujas descrições de seus arcos narrativos envolvem elementos como reencarnação, vida após a morte, presença de espíritos, amor de outras vidas, regressão, dom/mediunidade. Os termos, também comentados em sites e redes sociais pela audiência, permitem constatar uma movente manifestação sociocultural em torno do tema. Com base em tais conjecturas, entendo telenovela espírita como o conjunto de produções ficcionais seriadas brasileiras cujos arcos narrativos centrais exploram explicitamente noções de espiritualidade, mediunidade, manifestação de vida após a morte, aplicação do preceito reencarnatório, comunicabilidade entre seres vivos e espirituais, associados a aspectos-chave do melodrama enquanto matriz cultural que sustenta narrativas clássicas, além de se valerem de recursos estilísticos que figuram elementos associados a espiritualidade (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.).

As telenovelas espíritas são produções ficcionais da teledramaturgia brasileira com traços específicos em termos narrativos, estilísticos e culturais. Podemos citar, em suas narrativas, a tematização da vida após a morte, reencarnação, comunicabilidade entre seres vivos e espíritos como norteadores dos arcos centrais; no estilo, efeitos visuais e sonoros, a fim de figurar sentidos de espiritualização, utilização de tons e coloração suavizados, esboçando o transcendental e demarcando distinções visuais entre o mundo terreno e o espiritual; em termos socioculturais, trazem um imaginário espiritualista mesclando crendices da fé popular a preceitos doutrinários do espiritismo, numa proposta de cotidianização didatista do espiritualismo nas ficções brasileiras (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.).

A emergência dessas telenovelas remonta aos anos 1960, ainda nos primórdios da telenovela brasileira, em diálogo com a ascensão do espiritismo enquanto religiosidade popular no país (SILVA, 2021______. A história de um subgênero ficcional: uma proposta de mapeamento das telenovelas espíritas. Revista de Estudos Universitários – REU, v. 47, n. 2, p. 319-339, 2021.). O espiritismo é uma religião de origens francesas, codificada pelo pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail (conhecido pelo pseudônimo Allan Kardec), que sistematizou um modelo de análise para as manifestações espirituais observadas por ele na França dos idos de 1850. O livro dos espíritos, publicado em 18 de abril de 1857, sistematizou o espiritismo como uma doutrina tríplice (ciência, filosofia e religião), com um surgimento vinculado a elites europeias e refletindo o iluminismo racionalizante da época. De forma sintética, a religião defende a crença em Deus, imortalidade da alma, reencarnação, comunicabilidade com espíritos, pluralidade de mundos habitados (KARDEC, 2007KARDEC, A. O que é o espiritismo. 70. ed. Araras, SP: IDE, 2007.), além da prática caritativa cristã.

Vale frisar que não pretendo validar preceitos religiosos nas narrativas ficcionais, verificando dogmas e crenças doutrinárias. Depois de ter identificado a emergência de um conceito socialmente compartilhado (o de telenovela espírita), sistematizei o subgênero em razão dos usos sociais e das materialidades televisivas. O movimento não vai à religião para obter amparo teórico, mas às telenovelas para situar o tema com base em arranjos de imagem e som na televisualidade.

Estrutura metodológica: televisualidade de eventos narrativos

Análise da televisualidade é a combinação de elementos da visualidade (MITCHELL, 2005______. No existen medios visuales. In: BREA, J. L. (ed.). Estudios visuales. La epistemología de la visualidad en la era de la globalización. Madrid: Akal, 2005. p. 17-25., 2009MITCHELL, W. J. T. Teoría de la imagen: ensayos sobre representación. Madri: Ediciones Akal, 2009.) aos procedimentos metodológicos do estilo televisivo (BUTLER, 2010BUTLER, J. Television style. New York: Routledge, 2010.). O movimento resulta num percurso que não só privilegia especificidades do meio televisivo (WILLIAMS, 2016WILLIAMS, R. Televisão: tecnologia e forma cultural. São Paulo: Boitempo; Belo Horizonte: Editora da PUC MG, 2016.), como também posiciona a televisão numa historicidade sociocultural revelada pela materialidade.

“A televisualidade nos conduz a ver o que está fora do texto a partir da análise do que está dentro dele” (ROCHA, 2016______.; ALVES, M. L. C.; OLIVEIRA, L. F. de. A história através do estilo I: a Revolta da Vacina na telenovela Lado a Lado. In: ROCHA, S. M. (org.). Estilo televisivo e sua pertinência para a TV como prática cultural. Florianópolis: Insular, 2016., p. 186). A televisão se materializa no estilo televisivo, aqui entendido à luz de Jeremy Butler (2010)BUTLER, J. Television style. New York: Routledge, 2010., para quem o estilo é algo estruturante de todo e qualquer produto de TV, combinando imagem e som que se prestam a funcionalidades dentro do texto televisivo. Butler (2010)BUTLER, J. Television style. New York: Routledge, 2010. atenta-se à “superfície de percepção” do meio com base em quatro passos:

  1. Descrição: decomposição estilística da peça, numa engenharia invertida.

  2. Análise estilística: funções comunicativas do estilo, que podem ser: denotar, expressar, simbolizar, decorar, persuadir, saudar, diferenciar e significar ao vivo (BUTLER, 2010BUTLER, J. Television style. New York: Routledge, 2010.).

  3. Dimensão avaliativa: análise da pertinência estética. Butler considerou problemática tal dimensão pela falta de parâmetros, reduzida a opiniões subjetivas.

  4. Avaliação histórica: como os recursos se alteram ao longo do tempo num gênero. Por recuo cronológico, capta nuances do estilo, além de padrões, inovações e rupturas nos usos.

Este trabalho percorre três das quatro dimensões de Butler (2010)BUTLER, J. Television style. New York: Routledge, 2010., não incorrendo na porção avaliativa, pelas limitações dadas pelo autor. Procedo a recuo histórico nas telenovelas espíritas para identificar, com base nas descrições e análises estilísticas, como a televisualidade revela aportes sobre os sentidos do divino.

Das telenovelas espíritas, investigo A viagem, Alma gêmea e Além do tempo, da TV Globo. Em textos anteriores (SILVA, 2021______. A história de um subgênero ficcional: uma proposta de mapeamento das telenovelas espíritas. Revista de Estudos Universitários – REU, v. 47, n. 2, p. 319-339, 2021., 2022), sistematizei essas mesmas telenovelas, e A viagem (1994, Ivani Ribeiro) e Alma gêmea (2005, Walcyr Carrasco) são as mais referenciadas. Tomando-as como ponto de partida, identifiquei dois aspectos: eram de décadas e autorias distintas. Com base nisso, avancei uma década sobre a trama de 2005 e localizei a telenovela Além do tempo, levada ao ar em 2015 e de autoria de Elizabeth Jhin — o que mantinha os critérios temporais e de autorias variadas e encerrava a tríade com uma produção por década de produções década a década.

A viagem é um remake de novela homônima desenvolvida em torno do arco dramático de Alexandre (Guilherme Fontes), o personagem central que comete suicídio após ser condenado pelo crime de assassinato. Depois de morto, o espírito de Alexandre busca se vingar dos que julga responsáveis por seu mal, entre os quais Otávio Jordão (Antônio Fagundes), par romântico de Diná (Christiane Torloni), que é uma das irmãs do personagem Alexandre. A trama se desenrola abordando interações entre seres vivos e espirituais e as implicações de tal fenômeno. No ar de 11 de abril a 22 de outubro de 1994, a trama contou com 160 capítulos veiculados na faixa de programação das 19 horas.

Alma gêmea conta em seu arco dramático central a relação romântica tecida por Luna (Liliana Castro) e Rafael (Eduardo Moscovis), interrompido com o assassinato da moça. Reencarnada como Serena (Priscila Fantin), ela decide seguir para São Paulo atrás de um sentimento desconhecido — o amor por Rafael, que ainda lhe era um estranho. Enfrentam a vilania de Cristina (Flávia Alessandra), que sonha se casar com Rafael. Foi ao ar pela primeira vez de 20 de junho de 2005 a 10 de março de 2006, às 18 horas.

Além do tempo, de Elizabeth Jhin, foi ao ar às 18 horas, de 13 de julho de 2015 a 16 de janeiro de 2016. No arco principal, tem-se o envolvimento entre Lívia (Alinne Moraes) e Felipe (Rafael Cardoso), que não conseguem consagrar o amor em vida no século XIX e, 150 mais tarde, renascem para lutar pelo amor um do outro. A transição entre séculosfoi uma inovação elogiada pela crítica e uma nova maneira de abordar a temática da reencarnação dentro da ficcionalidade nacional.

Para análise, coleto eventos narrativos — pequenas subtramas alinhadas ao enredo central — em que o tema Deus se fazia presente. Evento narrativo diz da construção de micro-histórias articuladas ao enredo central de uma trama, enquanto ocupam poucos capítulos numa narrativa. “Acompanhá-lo [o evento narrativo] permite ao analista visualizar o entrelaçamento das tramas, o uso de indicadores temporais claros, e a inserção de causas pendentes para a devida articulação de sequências separadas temporalmente” (ROCHA, ALVES; OLIVEIRA, 2016ROCHA, S. M. Os visual studies e uma proposta de análise para as (tele)visualidades. In: Significação: Revista de cultura audiovisual, v. 44, p. 179-200, 2016., p. 53). A decisão de investigar pequenos eventos de tramas longas se deve ao intento de captar sentidos das obras sem se deter a resumos textuais genéricos ou reduzir a análise a elementos trazidos no primeiro e último capítulos. A proposta permite se ater a detalhes de uma extensa telenovela com base no foco em um tópico direcionado — neste caso, o tema Deus. Assim, ao trabalhar com esses eventos, primeiramente delineei o item pretendido (Deus, por ser um dos itens definidores do espiritismo, como explicitado em seção anterior) e, tendo-o em vista, identifiquei pontos em que a temática emergia atrelada aos arcos centrais de cada telenovela (com personagens centrais da trama espiritualista).

Como subtramas, elas ocupam porções reduzidas nas obras: em A viagem, o evento ocorre apenas no capítulo 91; em Alma gêmea, se desdobra inteiro no segundo capítulo; e em Além do tempo, está no capítulo 72. Como a proposta do evento narrativo é garantir o desenvolvimento da história com base em arcos menores (ROCHA, ALVES; OLIVEIRA, 2016ROCHA, S. M. Os visual studies e uma proposta de análise para as (tele)visualidades. In: Significação: Revista de cultura audiovisual, v. 44, p. 179-200, 2016.), a localização dentro da trama não interfere em sua aplicabilidade, e a eleição dos eventos reforça a premissa de que, ao adentrar na obra, independentemente do ponto na narrativa, é possível captar problematizações relacionadas ao assunto destacado. Por isso, os eventos interessam pela prudência temática e a possibilidade de investigação da materialidade televisual.

Na inviabilidade de adentrar materialidades que, juntas, somariam em torno de 600 capítulos, o evento narrativo se caracteriza como um instrumental que revela traços da narrativa central e permite investigar aspectos estilísticos das tramas. Sem generalizações, os eventos dão a tonalidade estilística das produções ficcionais com base em fragmentos ligados ao eixo central, o que é pertinente para a proposta de investigação da televisualidade. Aqui, o tema Deus está relacionado a espiritualidade e, dessa forma, examinar microssituações vinculantes ao plot central revela como a trama desenrolou a temática por meio do estilo em diálogo com marcas socioculturais. Trago de A viagem Diná, quando descobre a doença de Otávio; de Alma gêmea, Agnes (Elizabeth Savala) ao ser notificada do falecimento de Luna; e em Além do tempo, uma conversa entre Lívia e Felipe diante do filho adoecido do rapaz.

Análises da materialidade televisual

A viagem

Em A viagem, o evento narrativo ocorre na sala da casa de Otávio. Em planos e contraplanos sucessivos, regidos por trilha tensa, Diná afirma que esteve no consultório do médico Alberto (Cláudio Cavalcanti) e ele revelou o problema de Otávio. “Então é essa viagem que você vai fazer?”, afirma Diná, ao que Otávio responde: “É uma viagem sem volta. Eu não queria que você soubesse”.

Quando ouve a declaração de Otávio, Diná curva-se a chorar (Figura 1) e abraça-o. Otávio percebe que a mulher o enganou, que não sabia da real condição de saúde e lançou informações para obter respostas. No transcorrer da cena, Otávio se assenta no sofá e Diná permanece de pé, nervosa. Depois, Diná se ajoelha e suplica a Otávio um tratamento. A trilha é melodiosa e os primeiros planos apresentam as carícias de Otávio no rosto da mulher.

Figura 1
Diná chorando diante de Otávio.

Otávio: Quando eu soube da doença, eu não acreditava em nada. Aí eu pedi ao Deus do Alberto, que hoje é meu também, que me desse um pouco mais de vida até eu ter você nos meus braços e ele me atendeu e hoje você tá aqui comigo. Não deixa de ser um milagre. Fonte: Trecho de A viagem.

Atuações, fisionomias, expressões corporais, gestos e vozes coadunam para conformar a disparidade entre os personagens: de um lado, Otávio sorri ao falar da própria saúde, com gestos brandos, cariciosos, demonstra conversão e aceitação em Deus, que revitalizou nele as crenças na vida e mexeu com suas crenças no amor; do outro lado, Diná tem feições arredias, demonstra desequilíbrio e revolta, mantém-se desesperada porque não compactua com as ideias do poder divino que o amado fala. O problema de saúde de Otávio assume, para a composição narrativa, o mote de expressão do embate entre espiritualismo e materialismo, instados com a emergência do tema Deus. Trata-se de dois polos divergentes em conflito dialógico, e cada instância argumenta para convencer o outro de suas afirmativas, em vão. Otávio, ao fim, acaricia os cabelos de Diná, tentando acalmar a mulher. No trecho seguinte, Diná está de pé e demonstra ainda mais irritação (Figura 2), enquanto Otávio permanece sentado. Um rápido movimento de câmera traz Diná ao primeiro plano, e ela, que estava de costas para Otávio (e para a câmera), se vira e começa a reclamar em tom exasperado:

Figura 2
Diná, de pé, revoltada com Otávio.

Diná: Que Deus é esse que deixa que uma coisa como essa aconteça? Já que você acredita tanto nele, fala, protesta!

Otávio: Protestar por quê, amor? Ele me deu o que eu mais queria. Ele me deu você.

Diná: E agora você vai ficar aí, assim, parado, de braços cruzados, esperando a…

Otávio: A morte não existe, Diná. Eu vou continuar vivendo do outro lado. A morte é apenas uma viagem.

Diná: E eu? E eu? Eu vou ficar aqui sozinha, sem você? Fonte: Trecho de A viagem.

Na interação, os enquadramentos mostram o olhar de Otávio ao alto, e enquadres de Diná a apontam para baixo. Esse desenho cênico indica o posicionamento dos personagens na equação de poderes assumidos na conversa. Diná, de pé, tomou para si o protagonismo espacial, transita pela sala, levanta-se e abaixa-se, altera o tom de voz entre gritos e momentos de mansidão, mantendo-se indignada com Deus. Já Otávio se conserva calmo, assentado, com pouca oscilação nas expressões, que demonstram equilíbrio e estabilidade emocional. O movimento de Diná pelo espaço conduziu o evento em distintas fases: “da descoberta da doença do companheiro, da revolta incontrolável (contra o amado e contra Deus), da tentativa de negociação, da súplica por tratamento e da rendição nos braços e beijo de Otávio” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 188). Num calvário particular perante a incredulidade no Deus que Otávio diz agora crer, Diná se vê envolvida em desespero e os movimentos e rompantes demonstram que sua luta contra a morte demarca crenças materialistas e impossibilidade de comunhão com as crenças do parceiro.

Diná se senta de frente para Otávio (Figura 3) e lança sugestões, refutadas por ele com mansidão. Sob trilha suave, a cena é encerrada com uma vitória de Diná na arena do conflito. A mulher pede que ele lute pela vida e usa de sua sensibilização, choro e voz embargada como artifícios. Otávio encerra a sequência afirmando: “Eu prometo, prometo o que você quiser, mas não vamos mais falar disso agora”. Otávio sinaliza, assim, uma forma de desvio às investidas de Diná e, para abrandar a mulher, prefere entregar-se provisoriamente a ela a seguir contrapondo argumentos. Diná e Otávio se abraçam (Figura 4) e se beijam, num gestual que encerra o conflito, por tempo indeterminado. Ao calar-se e reduzir sua atuação a um sorriso, Otávio constrói na encenação a intencionalidade do protagonista em amparar a mulher e amenizar o debate, pois momentaneamente saem de seus polos antagônicos e convergem para o sentimento mútuo de confraternidade em nome da vida.

Figura 3
Diná se assenta diante de Otávio.
Figura 4
Otávio acaricia Diná.

Alma gêmea

Em Alma gêmea, Luna foi baleada durante um assalto e não resistiu. A mãe da jovem, Agnes, está nos jardins do hospital acompanhada de familiares e amigos, quando ouve do médico Eduardo a trágica notícia. A mulher arregala os olhos e permanece em silêncio (Figura 5). Cristina, sobrinha de Agnes, chega correndo para consolar a tia, ajoelhando-se diante dela:

Figura 5
Agnes em choque com a notícia que recebe.

Cristina: Vim assim que soube. Eu lamento, lamento muito. Sei que é difícil, mas a gente deve aceitar a vontade de Deus.

Agnes: O que está dizendo, Cristina? Deus? Deus? Mas que Deus é esse? Que Deus é esse que arrebata a minha única filha? Uma moça bonita, no auge da vida. Mas que Deus, que Deus é esse? Me diga, que Deus é esse que tira a vida da minha filha? Fonte: Trecho de Alma gêmea.

A afirmação de Cristina sobre “aceitar a vontade de Deus” foi o gatilho narrativo para Agnes despertar da letargia e se levantar furiosa. A trilha instrumental acompanhou o movimento e se tornou mais grave, enquanto os planos que apresentavam Agnes eram intercalados com enquadres dos outros personagens. Agnes esbraveja contra o céu (Figura 6), reordenando o interlocutor de suas interações. Deixava de lado a sobrinha e os presentes para dirigir-se diretamente a Deus, revoltada. O plongée em zoom out destaca a centralidade da mulher no quadro visual e a inércia dos demais. Na televisualidade, atuações, fisionomias, expressões corporais, gestuais, modalizações da voz são recursos estilísticos para a fúria de Agnes no diálogo com Deus.

Figura 6
Agnes esbraveja contra o céu (Deus).

Agnes grita, chora, olha para o céu e põe o dedo em riste, ouve tentativas de familiares para acalmá-la, mas soam inúteis. Ela oscila entre gritos exasperados e tons brandos, tentando obter respostas concretas do interlocutor Deus, e questiona: “Se existe Deus, você vai me responder: por que, por que você tirou minha filha. Por quê?”. Há dois direcionamentos do diálogo de Agnes: primeiro questionando os presentes quanto à figura divina e, segundo, erguendo as dúvidas diretamente a Deus, num diálogo sem respostas: “Ouçam, ouçam o silêncio, pois não há mais nada pra ouvir, só o silêncio”, ela afirma.

A trilha sonora acompanha o ritmo tenso e lamurioso da situação enquanto Agnes prossegue declarando sua revolta e inconformidade (Figura 7): “Se existe um Deus e ele é bom, por que, por que ele provoca tanta dor? Por quê, Deus? Por quê?”. “Sentada à grama e escorada no banco, o movimento de câmera faz o sentido contrário e se distancia da personagem, com zoom out abrindo-se a plongée e realçando a inércia dos outros perante a fragilidade da mulher ao chão” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 193) (Figura 8). A atuação da personagem constrói o sentimento da mãe diante da dor: do começo inerte, incrédula, avançando para a revolta intempestiva, rompantes contra Deus, a fúria solitária contra o divino que sofre tentativas de contenção por parte dos presentes, até a redenção silenciosa ao chão. Os movimentos de câmera acompanharam as diferentes fases de Agnes, intercalando zoom in e zoom out a plongée para destacar a personagem na busca por aproximação com o céu.

Figura 7
Agnes grita desesperada olhando o céu.
Figura 8
Agnes sentada ao chão sendo consolada.

A peregrinação de Agnes pelo ambiente destaca na televisualidade os apuros da mãe inconformada, numa referência à condição melodramática do sofrimento humano enquanto matriz que orquestra o gênero, visto que os dramas humanos são tomados como categorias capazes de revelar o melodramático das sociedades latinas (SUNKEL, 2016SUNKEL, G. Razón y Pasión en la prensa popular. 2. ed. Santiago: El Buen Aire S.A, 2016.). Neste caso, o drama humano da perda da filha confere a Agnes a autorização simbólica para abandonar o silêncio e avançar ao enfrentamento a tudo e todos, inclusive a Deus. No final, a personagem se depara com o paradoxo: ao indagar Deus, espera uma resposta, caso ele exista; ao não receber respostas, precisa lidar com a concretude da tragédia pela morte de Luna.

“Em Alma gêmea, Deus é uma figura estilisticamente convocada pelos silêncios e gritos, pela voz estridente da mãe sozinha em desespero, mas também pelos olhares tristes dos outros personagens” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 195). Na esfera melodramática, Deus é uma instância capaz promover confrontações entre personagens posicionados antagonicamente. Em termos socioculturais, a televisualidade revela que em torno de Deus gravitam sentidos de uma imaginação social que leva a ele questionamentos sobre o irreversível, sobre tragédias graves, e espera dele respostas confortadoras.

Além do tempo

Em Além do tempo, o evento narrativo é o estado de saúde de Alex (Kadu Schons), filho do conde Felipe, após cair de um cavalo. Felipe sente-se culpado pela situação, pois trouxe o animal que causou a queda. No entanto, Lívia busca convencê-lo a se afastar de tais pensamentos. Lívia e Felipe velam o sono de Alex, e um plano aberto mostra a moça sentada na cama próxima ao garoto (Figura 9), e Felipe mantém-se estático em outro canto do cômodo. A caracterização cenográfica evidencia a temporalidade da trama (século XIX). O jogo de planos e contraplanos seguinte posiciona Felipe em conversa com Lívia, que se levantou e foi até o conde. Além da trilha instrumental tensa para compor a paisagem sonora, o ambiente escuro coaduna para a construção simbólica do clima de apreensão entre os personagens.

Figura 9
Lívia e Felipe no quarto de Alex.

A conversa traz Lívia apaziguando as dores do conde, enquanto ele permanece reticente. Lívia está de pé e Felipe recostado em um móvel, alternando- se entre erguer e abaixar a cabeça, como se a fugir do olhar complacente da mulher. “ Na televisualidade, a altivez de Lívia perante o cabisbaixo Felipe expressa a segurança, confiança e determinação da moça (uma ex-noviça), ao passo que o rapaz se curva para dentro de si, na própria dor e incerteza misturadas à culpa” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 196). Lívia recomenda que o homem tenha fé, mantém o semblante sereno, realçando empatia pela situação (Figura 10), mas ele é arredio:

Figura 10
Lívia diante de Felipe consolando-o.

Lívia: Você sabe rezar? Reza comigo. Pede a Deus pelo Alex.

Felipe: Eu não acredito num Deus que parece se divertir com o sofrimento humano, ou que permite que um filho vá antes dos pais.

Lívia: Eu sei o quanto está sofrendo, eu… eu sinto muito. Me dói muito vê-lo assim. Eu queria tanto que fosse diferente, que tudo fosse diferente.

Felipe: Que Deus é esse, Lívia, que parece se divertir, que permite que os que se amam se separem, que permite que você, que eu amava, que eu nunca deixei de amar…

Fonte: Trecho de Além do tempo.

Felipe está insatisfeito e Lívia se vê rendida à ausência de argumentos firmes para combater a incerteza do amado: de um lado, a impotência da fé de uma mulher e, de outro, um pai angustiado. “Nos planos e contraplanos, há castiçais com velas compondo a ambientação cênica e um deles em especial acompanha toda a conversa entre o casal. É um castiçal grande, que oferece luminosidade para a cena, estando posicionado atrás de Felipe” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 197) (Figura 11). Como Lívia e Felipe estão um de frente para o outro, o castiçal ilumina o rosto da mulher, mas não o de Felipe. É Lívia quem se põe na televisualidade propensa às luzes, ao passo que Felipe permanece na obscuridade, ainda que com a luz tão perto.

Figura 11
Felipe cabisbaixo, com velas ao fundo.

Com um beijo e um abraço (Figura 12) Lívia e Felipe encerram o evento narrativo. Enquanto o rapaz conservou-se inerte, Lívia iniciou o evento sentada à cama, depois caminhou em direção ao conde até, enfim, se aproximar para o beijo. Lívia direcionou e conduziu o foco narrativo, partindo do papel de enfermeira e mãe zelosa ao lado da criança, atingindo o papel de conselheira e, por fim, o de parceira romântica. Sem argumentos para rebater o parceiro, o beijo encerra a discussão e proclama o afeto do casal como elo acima das distinções de fé entre eles, numa alusão à ideia de que somente o amor consagrado seria capaz de apaziguar as divergências de crenças.

Figura 12
Lívia e Felipe se beijam.

Na condição de ex-noviça, Lívia carrega consigo um arsenal de instrumentais religiosos que lhe marcaram a formação desde a infância. Sua crença em Deus é demonstrada como algo forte e vívido, direcionando a Deus a capacidade de resolução de problemas humanos quando se professa com intensidade a fé. Felipe, por sua vez, é reticente a tais manifestos, recusa crenças religiosas e não compactua com a noção de Deus. Na televisualidade, a composição cenográfica, a iluminação, a atuação dos atores dentro no quadro e os diálogos foram aspectos preponderantes para a construção desses sentidos atrelados à divindade. “Em termos melodramáticos, a figuração de Deus esteve atrelada ao ideal de solucionador de problemas humanos, sendo Deus um elemento, na narrativa, que adensa conflitos e evidencia disparidades de crenças e pensamentos — tal como nas duas telenovelas anteriores” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 199).

Sofrer é divino: a saga perante Deus nas telenovelas espíritas

Nessas telenovelas espíritas, o tema Deus teve abordagem televisual convergente, regida pelo posicionamento de dois grupos distintos: de um lado, aqueles para quem a figuração do divino simboliza um poderio inconteste celestial que demanda respeitabilidade (Otávio, Adelaide e Lívia), enquanto para outros, Deus é uma entidade-identidade ausente de suas perspectivas, atacado por não lhes ofertar respostas concretas para problemas de ordem pessoal (Diná, Agnes e Felipe). Em todas as situações, o conflito com Deus emergia da desaprovação individual de cada personagem com relação à morte ou sua iminência. Diná, Agnes e Felipe estão abalados, e a construção televisual demarca seus sofreres quando lidam com o trauma da morte concretizada (Agnes) ou da possibilidade de morte (Diná, de Otávio; e Felipe, do filho). Portanto, fatores narrativos que atuam como uma espécie de situação-limite e descortinam nos eventos a convocatória de Deus são o acometimento de algum mal físico ou a iminência da morte.

Dessa maneira, “as noções de peregrinação, calvário e via crucis são possíveis associações metafóricas televisuais a se fazer com o percurso traçado pelas personagens que enfrentam Deus” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 200). Desde a televisualidade, há o percurso televisual do sofrer perante Deus nas telenovelas espíritas: atuações externando dores profundas, angústias, instabilidade emocional e enfrentamento com outros personagens. No percurso, personagens começavam serenos ou abatidos, mas a notícia-impacto servia como motor de tensão para a narrativa, alterando ações e feições em rompantes de fúria e desequilíbrio. “O percurso é encerrado com a acomodação dos personagens conflitantes, que retomavam um estágio de silenciamento após a irrupção da raiva” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 200). No entanto, o retorno ao silêncio se dava por profunda modificação nos caracteres dos sujeitos, pois se tratava de um silenciamento resultante dos conflitos com Deus e outros personagens, o silêncio do irreversível, já que não viam suas situações modificadas na origem dos danos vividos. No caminho do sofrimento, a televisualidade aponta para uma parábola crescente de enfrentamento ao divino: de um início em situação de apatia, os personagens são expostos a extrema carga dramática (doença ou morte de ente querido) e, por isso, rompem em fúria, até que são vencidos pelo irreversível. Tem-se uma carga de sofrimento maximizada pelo enfrentamento ao divino, que culmina nas explosões nervosas dos descrentes que se veem rendidos sozinhos (Agnes) ou cercados pelos pares românticos (Diná e Felipe). “O caminho do sofrer diante do divino nas telenovelas espíritas ressalta o modo como a televisualidade promove o encontro do melodramático com a matriz religiosa, numa simbiose que evidencia aspectos do formato telenovela” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 200). Nora Mazziotti (2006)MAZZIOTTI, N. Telenovela: Industria y Prácticas Sociales. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2006. propõe pensar a telenovela, em sua versão mexicana, a partir dos seguintes aspectos: (1) amparo na moral católica, que permite evocar sentidos de religiosidade relacionados à dor como necessária à redenção; (2) submissão a valores postos pela moralidade que, quando descumpridos, geram punição; (3) tramas com obviedades, trabalhadas para o humor ou o drama; (4) ausência de exploração do erotismo, que é apontado como aspecto da vilania e passível de condenação; (5) personagens assentados em pilares arquetípicos. As aplicações da autora são cabíveis ao contexto das telenovelas espíritas, pois trazem uma moralidade cristã com referenciais explícitos, principalmente com a alusão a Deus e a convocação do sofrimento como percurso do existir humano. A punição, típica dos melodramas, não é algo que acomete ou intimida os personagens em sofrimento nessas tramas, pelo contrário, pois, quanto mais são convidados pelos outros a respeitarem Deus, mais se sentem autorizados ao enfrentamento por já se sentirem fortemente punidos em suas dores.

A televisualidade nestas obras aponta para Deus como supremacia adorada por certo grupo de personagens, enquanto outros são contestadores do divino e, assim, instaura-se o conflito narrativo com base no divino. Da lógica melodramática das telenovelas, tem-se em torno de Deus o dualismo entre bem e mal, entre crer e não crer, tal qual preconizado pelo gênero clássico. Os antagonismos a Deus se dão nas atuações, diálogos, trilhas e encenações que fazem emergir a engrenagem melodramática das tramas.

Vale destacar que a convocatória a Deus nessas telenovelas é feita em razão dos laços afetivos que envolvem os personagens: a mulher pelo parceiro (A viagem), a mãe pela filha (Alma gêmea) e o pai pelo filho (Além do tempo). Em todos os casos, são as fidelidades primordiais (MARTÍN-BARBERO, 1992______.; MUÑOZ, S. (coords.). Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la telenovela en Colombia. Bogotá: Tercer Mundo Editores, 1992.) que regem as motivações dos suplicantes, metaforizadas nas encenações exageradas. Os sentidos do divino nessas telenovelas ainda remetem a um último dualismo: de um lado, os personagens que proclamam um “Deus-acatamento um Deus-acatamento, a abertura ao diálogo com o divino por meio das orações e a reverência incontestável; e, de outro, os descrentes questionadores da supremacia divina , que julgam suas ações e bondade” (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 203). Nas telenovelas espíritas, a televisualidade revela que ambos os grupos — crentes e descrentes em Deus — carregam traços de resignação perante o divino: para os crentes, resignação significa não se exaltar ou blasfemar contra as vontades divinas, o que se materializa nas falas, nos olhares e nas ações serenas. Já para os descrentes, a resignação não vem pela compreensão de tais desígnios (SILVA, 2022SILVA, M. V. M. Televisualidades da matriz religiosa espiritualista brasileira: uma análise estilística das telenovelas espíritas. 2022. 263f. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022., p. 203).

Considerações finais

Uma reportagem recente da BBCBBC News Brasil. Por que Brasil está no topo de ranking de países onde mais se acredita em Deus? Maio, 2023. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c29r21r69j8o>. Acesso em: 23 maio 2023.
https://www.bbc.com/portuguese/articles/...
apresentou a pesquisa Global Religion 2023, que apontou o Brasil como o líder entre os países com o maior número de crentes em Deus. Segundo a matéria, 89% dos brasileiros assumem crer em Deus, enquanto 76% afirmam ter alguma religião. Nas telenovelas aqui estudadas, Deus foi mote de discussões que, pensadas com base na televisualidade, mostram como a ficção brasileira, por meio do subgênero das telenovelas espíritas, problematiza a espiritualidade pelo viés melodramático. Situações-limite envolvendo laços de parentesco mobilizam os personagens para enfrentamentos entre si com base em diferentes cosmovisões que adotam quanto à figura de Deus. De um lado, defensores que esboçam serenidade, mansidão na voz, equilíbrio nas ações; de outro, personagens irritadiços, em fúria contra a divindade, aos gritos.

Nas telenovelas espíritas, Deus é uma figura catalizadora de divergências, força motriz de desarticulação narrativa e promotor do posicionamento antagônico entre personagens. Em termos narrativos, Deus centraliza o eixo de ação e promove as interações conflitantes nos universos diegéticos. Em termos estilísticos, Deus é uma figura que compõe o discurso dos personagens, mobiliza expressões corporais e demanda quadros de figuração condizentes com cada agente do enredo. Em termos socioculturais, Deus é uma entidade suprema posicionada como instância sublime e intocada por uns, enquanto é propulsora de revoltas por parte de outros. Os eventos narrativos aqui mostrados destacam a figura de um Deus em debate, alçado ao centro narrativo, tal qual o é nas discursividades religiosas cristãs que dominam o quadro de sentidos no panorama brasileiro contemporâneo.

Referências

  • BBC News Brasil. Por que Brasil está no topo de ranking de países onde mais se acredita em Deus? Maio, 2023. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c29r21r69j8o>. Acesso em: 23 maio 2023.
    » https://www.bbc.com/portuguese/articles/c29r21r69j8o
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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