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Cor para além das tintas: colorismo e embates raciais no desenho animado Clube da Anittinha

Collor beyond the ink: colorism and racial disputes in the cartoon Clube da Anittinha

Resumo

O artigo propõe discutir a complexidade dos debates raciais em produtos infantis, sua materialização na animação Clube da Anittinha (2018) e sua relação com o colorismo. Esta discussão se constrói com base na ideia de identidade nacional brasileira instituída pela noção de democracia racial na obra de Gilberto Freyre (2006), mas segue uma trajetória crítica em relação ao conceito, tendo em vista preconceitos pacificados socialmente por meio de fatores estéticos e sociais no contexto brasileiro (SOUZA, 1983). Existe a tendência nas animações infantis de incluir debates raciais somente por meio dos tons de pele utilizados na composição das personagens. Somado ao discurso da diferença, esses fatores são estratégias narrativas que neutralizam e perpetuam os estigmas em relação à raça. Com base nessas provocações, o texto apresenta uma análise voltada para a composição da cor, do cabelo e das relações que surgem na animação e aponta para uma série de apagamentos e para a prática de uma representatividade superficial.

Palavras-chave
colorismo; debates raciais; desenho animado; Clube da Anittinha

Abstract

This paper aims at reflecting on the complexity of racial debates in Clube da Anittinha (2018), a Brazilian children’s cartoon, and its relation to the idea of colorism. For this discussion, we focus on Brazilian national identity, constructed by the notion of racial democracy (Freyre, 2006). So, we propose a critical trajectory around this concept, based on socially pacified prejudices through aesthetic and social factors in the Brazilian context (SOUZA, 1983). There is a tendency within children's animations to include racial debates only through the skin tones used in the characters' composition. In addition to the idea of difference, these factors are narrative strategies that neutralize discussions and perpetuate stigm regarding race. Based on that, the text presents an analysis focused on the composition of color, hair, and the relationships that emerge in the animation and points to a series of erasures and the practice of superficial representativeness in animated cartoons.

Keywords
colorism; cartoon; racial disputes; Clube da Anittinha

Introdução

Posso dizer com absoluta certeza que, tanto para Anitta, quanto para Juliana, ser mestiça, de família interracial, não as levou a serem consideradas negras - pelo menos não no Brasil. Ambas ocupam um espaço de sucesso e visibilidade, então, provável que não queiram “regredir”.

(Stephanie Ribeiro em coluna para a revista Marie Claire, 12/2017).

O trecho em destaque faz parte de uma crítica escrita por Stephanie Ribeiro para a revista Marie Claire, em dezembro de 2017. No texto, a colunista apresentou um debate sobre identidade e conveniência racial associado à cantora Anitta com base no clipe Vai malandra (2017)1 1 De acordo com as críticas, no videoclipe Vai, malandra!, Anitta teria cometido apropriação cultural, além de apresentar o corpo das mulheres negras de forma erotizada e preconceituosa. Nele, a cantora aparece de tranças, num penteado típico de mulheres negras, e apresenta um bronzeado bastante acentuado, quando comparado a outros videoclipes e a aparições variadas que a cantora havia feito até então na mídia. . Com projeção internacional e uma trajetória de sucesso em diferentes mercados, a cantora também esteve no centro das discussões raciais, sendo tópico de vários embates dispersos em fóruns, colunas de revista e nas redes sociais, devido a sua identidade racial. Mesmo sem comentar explicitamente o assunto, é notório que várias produções de Anitta flutuam por diferentes fenotipias e influências culturais. Sua origem em Honório Gurgel, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, a trajetória pelo mundo do funk até a consolidação como popstar da Warner Music Global serviram como insumo para toda sorte de produtos.

Um deles, que serve de corpus para a investigação proposta neste artigo, é o desenho animado Clube da Anittinha (2018-atual). Nele, temos uma versão infantilizada da cantora, que se distancia do símbolo sexual, mas mantém diálogos com uma gama de elementos narrativos que remetem à própria imagem. No desenho, todas as personagens são inspiradas em pessoas que fazem parte da vida da cantora. Anittinha tem uma rotina de shows, ensaios e estudos, ou seja, existe uma dinâmica que preserva os signos que a cantora produz2 2 Essa é uma fórmula frequente nos desenhos animados brasileiros. Outras celebridades também já tiveram sua versão mini, como Xuxinha (que se refere à apresentadora Xuxa Meneghel), Senninha (que se refere ao piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna) e Pelezinho (que se refere ao jogador de futebol Pelé). . Exibido pelo canal de televisão por assinatura Gloob e Gloobinho e com episódios disponíveis no YouTube e Globoplay, O Clube da Anittinha foi criado pelo Birdo Studio e narra aventuras e cotidianidades da protagonista e seus amigos.

A animação tem um teor educativo, é voltada para o público infantil e apresenta personagens de vários tons de pele inseridos num universo fantástico. Ao assistir ao desenho animado, um ponto se sobressai: Anittinha é uma personagem de traços fenotípicos brancos, mas com o tom de pele deliberadamente escurecido em relação à imagem pública da cantora. Com base nesse ponto, buscamos compreender de que forma a animação aciona a realidade miscigenada brasileira, considerando algumas características visuais do desenho e possibilidades narrativas de produtos voltados para crianças pequenas. Daremos especial ênfase à cor e ao cabelo das personagens e argumentamos, para isso, que elas são fundamentais para rememoração da composição racial brasileira, tendo como chave o conceito de democracia racial de Gilberto Freyre (2006)FREYRE, G. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. rev. São Paulo: Global Editora, 2006..

Como hipótese central, observamos que, se de um lado o Clube da Anittinha apresenta alguma diversidade nas cores de suas personagens, por outro, há uma série de estratégias visuais que neutralizam esse debate, trazendo problemáticas urgentes para serem pensadas nas produções infantis que intentam instituir uma maior pluralidade. Esta proposta tem em vista duas questões urgentes: considerando um país miscigenado como o Brasil, como se define midiaticamente a pessoa negra tendo como base o colorismo e a distinção entre pretos e pardos? E como essa definição pode ser percebida nos desenhos animados infantis? Para balizar o debate, discutiremos o colorismo (DEVULSKY, 2021DEVULSKY, A. Colorismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.) e as novas possibilidades de olhar em torno desse fenômeno por meio de uma análise crítica de dois episódios: Marshmelle e o celular e Salada de frutas. Ao final, faremos também uma breve análise de um terceiro episódio, Mão na cabeça, de forma a arrematar pontos importantes levantados pelos dois episódios anteriores3 3 Convém ter em vista que, no contexto do debate proposto, que envolve infância e raça no Brasil, o artigo traz muitos pontos originais por ser uma área de extrema complexidade, mas ainda pouco pesquisada. Infelizmente, isso deixa algumas brechas conceituais e analíticas, as quais devem ser trabalhadas por nós em argumentos futuros, além de incentivar outros pesquisadores a fazer isso também. Este artigo é, com efeito, um ponto de partida para pensarmos no papel fundamental do audiovisual direcionado a crianças pequenas na constituição, manutenção e no zelo da identidade racial dos sujeitos. .

“Prepara, poderosa!”

Com direção de Fernando Finamore e Michele Massagli, e assinado pelo estúdio de animação brasileiro Birdo, o Clube da Anittinha tem três temporadas até o momento da escrita deste texto, 81 vídeos disponíveis no YouTube4 4 Disponível em: <https://www.youtube.com/c/clubedaanittinha/playlists>. Acesso em: 18 jan. 2022. e 58 episódios no Globoplay5 5 Disponível em: <https://globoplay.globo.com/clube-da-anittinha/t/hnR8SZXvBT/temporadas/2/>. Acesso em: 18 jan. 2022. . A série foi finalista do Festival com Kids, em 2019, e, nos canais de assinatura em que é exibida, foi o primeiro e o segundo programa mais assistido entre meninas, de outubro de 2018 a janeiro de 20196 6 Birdo, Clube da Anittinha. Disponível em: <https://www.birdo.com.br/anittinha>. Acesso em: 25 nov. 2021. (Figura 1).

Figura 1
Anitta e Anittinha.

Seu público principal é a primeira infância8 8 O ECA (LEI Nº 13.257/2016) define a primeira infância como “o período que abrange os primeiros 6 anos completos de vida da criança”. Os desenhos animados para essa faixa etária carregam funções de aprendizados simples, como aprender as cores, os animais, as letras e os números. A tendência é que vários profissionais relacionados à saúde e ao desenvolvimento da criança estejam envolvidos no processo de criação, como pedagogos, pediatras e psicólogos. . As narrativas se desenvolvem em episódios curtos, com duração de cerca de 5 minutos, e seguem uma trajetória de teor educativo, bem aos moldes de boa parte dos desenhos orientados para a primeira infância. Ao final de cada episódio, as personagens aprendem lições morais, como o valor da amizade e da honestidade, além de habilidades escolares simples, como contar até dez, os nomes das frutas e a importância de ter uma alimentação saudável.

Apesar de abordar uma ideia central sobre diversidade, representada pela cor, pelas características físicas, pelos diálogos e outros elementos narrativos, a produção não surge em um ambiente diversificado em termos raciais. Entre diretores, roteiristas e elenco, a animação é majoritariamente feita por pessoas brancas e pardas. Na ficha técnica disponibilizada por uma das principais plataformas de exibição9 9 Globoplay, 2023. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/clube-da-anittinha/t/hnR8SZXvBT/detalhes/>. Acesso em: 10 mar. 2023. , o roteiro é de Janaina Tokitaka e Victor Sarro; e o elenco conta com Anitta, Caio Guarnieri e Lia Mello10 10 Uma análise racial completa do corpo técnico da animação consiste na realização de um levantamento consistente de toda a equipe envolvida e uma colaboração com os criadores da série. Sabemos que esses dados acrescentariam muito à discussão, mas nos atemos a discutir as questões narrativas, reservando esse tema para trabalhos futuros. .

Até o dia 25/01/2023, a primeira temporada da atração, composta de 10 vídeos, apresentava 58,8 milhões de visualizações no YouTube, no canal oficial da animação, que ostentava 721 mil inscritos. Abaixo apresentamos a relação de episódios, o número de visualizações e a data de lançamento.

Tabela 1
Dados da primeira temporada. Fonte: Dados coletados diretamente da página da animação no YouTube no dia 25/01/2023.

A segunda e a terceira temporadas do seriado apresentam 26 episódios cada uma, mas mantêm a lógica de exibição diária e sequencial a partir da data de lançamento. Tendo em vista o debate proposto como objeto deste artigo, vamos focar a análise em dois episódios específicos: Marshmelle e o celular e Salada de frutas. Ambos dão destaque a personagens negros na narrativa e permitem uma investigação das dinâmicas relacionada ao colorismo nos episódios. Antes de destrinchar o seriado, é pertinente observar o grupo de personagens apresentados. Na Figura 2, da esquerda para a direita, estão as personagens Mauro Mar (seu pai, Mauro Machado), Rositcha ou Mamitcha (sua mãe, Miriam Macedo), Anittinha, Estreller (seu maquiador, Renner Souza), Marshmelle (sua coreógrafa, Arielle Macedo), Juju Coral (sua produtora, Juliana de Paiva) e Gatrick (seu bailarino, Patrick Owondo).

Figura 2
Personagens do Clube da Anittinha.

Em um primeiro momento, notamos que as personagens demonstram uma variação entre as cores que foram utilizadas para representar os tons de pele, diferentemente de muitas produções que utilizam a mesma cor para todos os personagens da trama, ou narrativas que acionam cores como azul e verde para representar a tonalidade de pele. Uma hipótese pertinente seria a busca pela construção de traços de brasilidade na atração, já que, ao observarmos a composição da família da própria Anittinha na animação, há um homem negro e uma mulher branca. Isso demonstra o interesse em se apresentar como um desenho animado que tem, de fato, uma representatividade negra que não se restringe à quantidade, com um ou dois personagens negros, mas há uma proporcionalidade entre as cores das personagens (RIBEIRO, 2019RIBEIRO, D. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).

Além disso, a estética do Clube da Anittinha (2018) reproduz o que é socialmente construído como o universo feminino infantil dos desenhos animados no contexto hegemônico dos desenhos estadunidenses, que servem de referência para a construção do padrão visual do desenho em questão. As cores rosas e roxo, além da silhueta e dos olhos da personagem, permitem realizar uma associação estética de desenhos animados conhecidos, como As meninas superpoderosas (1997), exibido pelo Cartoon Network, entre outras animações (Figura 3).

Figura 3
À esquerda, frame do Clube da Anittinha. À direita, frame de As meninas superpoderosas.

Fenotipias adaptadas: cor de pele e cabelo em Clube da Anittinha

Por ser definida consciente e deliberadamente pelos criadores da produção, a paleta de cores e a adaptação de traços fenotípicos para as versões animadas atuam como importantes componentes que carregam não apenas a estética, mas também o político/simbólico. A apresentação do cabelo crespo, dos traços grossos e de diferentes estruturas físicas no audiovisual, além de assegurar a existência das diferenças, garante a humanidade de corpos historicamente postos à margem (DORNELLES, 2019DORNELLES, W. S. O que se cala: panorama da representação negra nas animações mainstream. 2019. 118f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2019. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/handle/1/15768>. Acesso em: 31 jan. 2022.
https://app.uff.br/riuff/handle/1/15768...
). Se nas décadas de 1990 e 2000, personagens negros eram frequentemente representados por tonalidades de pele com cores fantásticas, como roxo e verde, em animações como Doug (1993), Hércules (1997) e Hora de aventura (2010), é notório o avanço da quantidade de personagens negros nas animações mais recentes, como é o caso do Clube da Anittinha.

As cores e formas são elementos dos mais importantes para crianças em processo de aprendizado cognitivo e formação de repertório cultural. No caso dos traços fenotípicos das personagens, as cores desenvolvem funções complexas e podem, por exemplo, atenuar questões raciais por meio do uso de elementos fantásticos, acentuar traços físicos que representem imagens de ameaça ou de segurança, entre várias outras afetividades. É o que acontece na transposição dos cabelos das personagens no Clube da Anittinha. Isso é particularmente presente na personagem Marshmelle, inspirada na coreógrafa da cantora Anitta, Arielle Macedo. Em vez de cabelos crespos, Marshmelle tem na cabeça um sorvete cor-de-rosa derretido. Na mesma linha, os meninos Painitto e Gatrick, personagens que representam o pai e o dançarino de Anitta, têm os cabelos cobertos por chapéus durante toda a narrativa (Figura 4).

Figura 4
À esquerda, frames de Marshmelle, Painitto e Gatrick. À direita, fotografias de Arielle Macedo, Mauro Machado (pai de Anitta) e Patrick Owondo (coreógrafo).

É possível alegar que todos os personagens têm adereços na cabeça, no entanto, curiosamente, somente os personagens negros têm todo o cabelo coberto. A ocultação de traços fenotípicos negros enfatiza o fato de que a representatividade nos desenhos animados é limitada quando feita somente pelo viés da cor. Para além da existência de personagens negros retintos, é preciso se atentar aos traços físicos e a questões mais subjetivas, como historicidade, motivações e agência. Quando a representação é realizada de forma esvaziada, ocorre a transformação da causa identitária em nicho puramente mercadológico (COSTA, 2022COSTA, J. A representatividade negra para crianças: o caso do desenho animado Clube da Anittinha. 2022. 103 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.).

O gerenciamento de exposição e ocultamento de traços fenotípicos remete às hierarquias raciais e, consequentemente, ao colorismo. De acordo com Devulsky (2021)DEVULSKY, A. Colorismo. São Paulo: Jandaíra, 2021., o colorismo é uma ferramenta do racismo que utiliza uma série de atributos de hierarquização racial, físicos ou culturais, que supervalorizam o sujeito branco. As características utilizadas para expressar a identidade racial, segundo a autora, podem ser: lábios, olhos, nariz, formato dos quadris, seios e genitais, mas o fator predominante é a cor. Quanto às características culturais, entendemos que a localidade e a classe social são fatores que influenciam a leitura racial.

A psiquiatra e psicanalista brasileira Neusa Souza (1983)SOUZA, N. S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. expõe que a identificação racial é forjada por uma norma branca, e, portanto, as formações identitárias das pessoas negras são repletas de contradições, porque elas sempre vão buscar, inconscientemente ou não, maneiras de adentrar à norma branca, e esse passe é negociado nos espaços e nas relações sociais. Na tentativa de se identificar com a norma, a pessoa negra busca ascender economicamente e frequentar espaços de privilégios, a fim de se distanciar dos códigos associados à negritude. Mas, de todo modo, entendemos que - pela configuração social brasileira, que se dá pela miscigenação - os sujeitos pardos estão mais próximos desse fenômeno do que os retintos. Dessa forma, até nas condições culturais, a cor é central e vai nortear a condição de identificação racial.

Assim sendo, notamos que há uma tendência nos produtos audiovisuais, principalmente naqueles direcionados às crianças, de gerar acionamentos raciais por meio do viés da diferença. Segundo Kilomba (2008)KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., uma das características do racismo é que ele se atualiza, ele abandona o caráter biológico para ser regido por uma política da diferença. Nesse cenário, os acionamentos sobre a diferença são constantemente resgatados para falar sobre raça, mas o problema de adotar esse viés é que, para a existência dos diferentes, é preciso que haja uma norma. Portanto, apesar de carregar uma ideia de diversidade, o sentido da diferença acaba por reforçar ainda mais as problemáticas raciais no audiovisual.

Devido ao mito da democracia racial (FREYRE, 2006FREYRE, G. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. rev. São Paulo: Global Editora, 2006.), que ainda é muito forte na instituição das hierarquias raciais no Brasil, as ferramentas pelas quais o racismo opera são costumeiramente minimizadas, ao passo que instrumentos coloniais são acionados, trazendo como efeito colateral o aprofundamento dos problemas que assolam quem está abaixo dessas hierarquias, como é o caso das pessoas negras. Ao colocar no centro da discussão o audiovisual infantil e sua decorrente exploração comercial, duas estratégias visuais/narrativas emergem a cegueira à cor conhecida e a passabilidade. Apesar de origens distintas, quando transpostas ao debate de cor e raça, apresentam uma referência à centralidade branca.

A cegueira à cor ou colorblinding (BONILLA-SILVA, 2006BONILLA-SILVA, E. Racism Without Racists: Colorblind Racism and the Persistence of Racial Inequality in the United Stated. Maryland: Rowman & Littlefield, 2006.) é uma leitura crítica à apresentação de personagens negros esvaziados de substância e historicidade, algo comum em produções ficcionais. A raça do personagem não afeta em nenhum nível a narrativa proposta. Já a passabilidade se caracteriza pela possibilidade de um membro de um grupo minoritário se passar como parte de um grupo majoritário representativamente. O termo teve origem no movimento trans (DUQUE, 2017DUQUE, T. Gêneros Incríveis: um estudo sócio-antropológico sobre as experiências de (não) passar por homem e/ou mulher. Campo Grande: EDUFMS, 2017.), mas também é corriqueiramente utilizado para a discussão de questões raciais (ARRUDA 2020ARRUDA, J. Nos versos me seguro: uma etnografia documental da trajetória de meninas na medida socioeducativa de internação. 2020. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) — Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020.; CARNEIRO, 2004CARNEIRO, S. 2004. Negros de pele clara. Portal Geledés, São Paulo, 29 maio 2004. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/negros-de-pele-clara-por-sueli-carneiro/>. Acesso em: 27 jan. 2023.
https://www.geledes.org.br/negros-de-pel...
; MUNANGA, 2004MUNANGA, K. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. Estudos Avançados [online], v. 18, n. 50, p. 51-66, 2004. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000100005>. Acesso em: 20 ago. 2022.
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), principalmente envolvendo pessoas negras de pele clara. Na vida prática, ser passável significa estar menos suscetível às estruturas de preconceito. Na animação, podem-se localizar com facilidade os dois aspectos. Para isso, um componente fundamental ao debate é a estética das personagens em dois tópicos particularmente sensíveis no desenho: a cor da pele e o cabelo.

Cor da pele

Utilizada como princípio basilar dentro dos processos de heteroidentificação, a cor é a principal característica de identificação racial no Brasil. Mas, no contexto de miscigenação brasileira e da diversidade étnica da diáspora negra, sabemos que existem diversas tonalidades de cores de pele que nem mesmo paletas de cores conseguem dar conta, pois a tonalidade sofre alterações devido à exposição solar, alimentação, saúde etc. Logo, entendemos que as tonalidades de cores humanas não são estáticas, diferentemente das cores utilizadas nos personagens.

No Clube da Anittinha foram utilizadas variações do marrom para representar a pele das personagens que estão humanamente associadas ao moreno, que, segundo o dicionário Oxford, significa: “1. que ou quem tem a pele azeitonada ou amarronzada”12 12 Google. 2023. Disponível em: <https://www.google.com/search?q=moreno&oq=moreno+&aqs=chrome..69i57j46i10i433i512j46i131i433j46i10i433i512j0i10i433i512j46i10i512l2j0i10i512l2.3185j0j9&sourceid=chrome&ie=UTF-8>. Acesso em: 02 fev. 2023. . Pensando em uma sociedade plurirracial e pluricultural, entendemos que as identidades mestiças/pardas/morenas (no sentindo de amarronzado) fazem parte de uma identidade que está sempre negociando com as relações de poder (MUNANGA, 2004MUNANGA, K. A difícil tarefa de definir quem é negro no Brasil. Estudos Avançados [online], v. 18, n. 50, p. 51-66, 2004. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000100005>. Acesso em: 20 ago. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0103-4014200400...
). Se nosso critério de identificação racial da animação considerasse a proximidade da cor preta, cairíamos no dilema de uma representação nula. Isso aponta para uma contradição dentro das análises realizadas somente pela cor, pois a representação dos negros de pele clara tem sido mais normalizada nas animações infantis brasileiras, como em SOS fada Manu (2015), e na recente personagem Milena, da Turma da Mônica (2019).

Cabelo

O cabelo é outra categoria complexa quando nos referimos às identidades negras brasileiras. Sodré (2015, p. 289)SODRÉ, M. Claros e escuros: identidade, povo, mídia e cotas no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015. lembra que: “a obsessão contemporânea com o cabelo explica-se igualmente pelo fato de que o atual discurso midiático sobre o negro é mais estético do que político, doutrinário ou ético”. E assim como a cor da pele, o cabelo é uma categoria relativa que pode apresentar diversas texturas, formatos e cores. A representação de cabelos crespos, especialmente em personagens femininas, tem sido reivindicada nas animações infantis da seguinte maneira:

O que os desenhos animados fazem, nos parece, é tanto não se empenharem em representar uma das possíveis identidades das meninas negras, ainda que de maneira limitada, quanto ignorar a pluralidade disponível nas experiências dessas meninas que certamente poderiam inspirar representações infantis mais condizentes com o processo constante de resistência e opressão a que mulheres e meninas negras estão sujeitas no ambiente social.

(BARBOSA e DE SOUZA, 2018BARBOSA, K. G.; DE SOUZA, F. A solidão das meninas negras: apagamento do racismo e negação de experiências nas representações de animações infantis. Revista ECO-Pós, [S. l.], v. 21, n. 3, p. 75–96, 2018. Disponível em: <https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/20239>. Acesso em: 20 jan. 2022.
https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_po...
, p. 90)

A forma como o cabelo das personagens negras foi representada na animação aponta para um caso de eufemismo imagético no qual o lúdico é utilizado para retratar assuntos considerados tabus na sociedade (CARAVINA, CARRERA, 2020CARAVINA, H.; CARRERA, F. A. S. O eufemismo imagético e a publicidade da área da saúde: uma análise do discurso de “A Hora de Lembrar”. Temática – Revista eletrônica de publicação mensal, v. 5, p. 274-290, 2020.). Isso escancara uma falsa dificuldade equiparada ao pouco esforço em retratar com sensibilidade outras características físicas negras além da cor.

Entre a presença e o protagonismo: uma análise dos episódios Marshmelle e o celular e Salada de frutas

Indo ao encontro dos ambientes ocupados pelas personagens, outros vários fatores precisam ser analisados. A centralidade na trama, agência, direito à humanidade e tempo de tela são determinantes e devem ser considerados de modo articulado. Propomos, assim, um estudo narrativo de dois episódios centrados em personagens negras do desenho: Marshmelle e o celular e Salada de frutas. Prestaremos especial atenção ao lugar ocupado pelas personagens em relação à protagonista, à forma de representação em tela e às soluções propostas pela trama como possibilidades de uma atração voltada para crianças em idade pré-escolar.

Diferentemente da análise de um filme isolado, o recorte de um episódio de ficção seriada apresenta algumas questões a serem consideradas, principalmente ao nos referirmos a animações para crianças pequenas. Muitas vezes, personagens que não são protagonistas podem assumir papéis de destaque em episódios específicos. Em Clube da Anittinha, dado o pouco tempo de introdução e desenvolvimento das tramas, que normalmente gira em torno de 1 a 2 minutos, há o revezamento de personagens como responsáveis pelo mote do episódio. Em ambos os casos analisados, a estrutura básica se repete: introdução focada na personagem secundária, apresentação do problema e um número musical com a solução.

Em Marshmelle e o celular, primeiro exemplo a ser detalhado, a animação apresenta uma discussão sobre o uso excessivo das novas tecnologias. A personagem-título do episódio ostenta olhos cor-de-rosa, cabelo de sorvete derretido e pele morena, que aparece em destaque no centro do primeiro frame da trama. Marshmelle é o centro do quadro, mas as ações se desenvolvem ao redor da personagem. É notório, nesse sentido, que, desde o quadro inicial da animação, os pontos convergem para ela (Figura 5).

Figura 5
Prints das cenas iniciais do episódio Marshmelle e o celular.

A cena evolui com a chegada de Anittinha, que, ao verificar a agenda de shows, percebe que estaria livre durante o dia. A partir dessa disponibilidade, a protagonista propõe várias atividades para as personagens presentes na sala, incluindo Gatrick, Juju Coral e Marshmelle, que não ouve os planos por estar viciada num jogo de celular. Mesmo estando na tela por todo o tempo, a primeira fala da personagem ocorre após 50 segundos do episódio, cortada por uma repreensão de Anittinha. Neste primeiro trecho, nota-se que mesmo tendo destaque no episódio, Marshmelle não tem o domínio da ação, já que deixa o celular de lado apenas depois de uma demanda apresentada por Anittinha. Há uma possível leitura de subordinação entre as personagens na trama que parte das necessidades e vontades da protagonista, mas que não se impõe pela chave racial, ao menos numa primeira camada de leitura. Todas as personagens se submetem a Anittinha em algum nível, sejam eles negros, brancos ou estrelas. Esta dinâmica é muito comum em animações voltadas para crianças pequenas13 13 Outros exemplos seriam os seriados Patrulha canina (2013), Pocoyo (2005) e Marsha e o urso (2009), que mantêm crianças como protagonistas, mas subordinam os seres fantásticos do universo apresentado às suas vontades. . Um ponto similar que pode ser complexificado, no entanto, é a compreensão de que as hierarquias nesses seriados são apresentadas com base no grau de humanidade das personagens, ou seja, quanto mais fantásticos, menor agência. Ao menos na primeira temporada de Clube da Anittinha, a dinâmica parece a mesma. A composição imagética fantástica de Marshmelle a coloca numa posição de sujeição ao humano. Mas, de modo simultâneo, a personagem também apresenta um atributo reconhecível e compartilhado por crianças e adultos no mundo prático, a tonalidade de pele.

A segunda parte do episódio apresenta o número musical cujo nome é a repetição do título do episódio, Marshmelle e o celular. Anittinha canta a letra da música enquanto um videoclipe animado é exibido com as atividades das crianças durante o dia, em contraste com a imagem de Marshmelle mexendo no celular. Como conclusão, a menina deixa o aparelho de lado e brinca com as outras crianças (Figura 6).

Figura 6
Prints das cenas finais do episódio Marshmelle e o celular.

Ao observar criticamente o episódio, nota-se que a pele escura de Marshmelle não é um item determinante na narrativa, remetendo-nos à cegueira de cor mencionada anteriormente, mas sim um recurso imagético que ratifica o discurso preponderante na primeira temporada do seriado em torno das diferenças. Outro fator é que o vício no celular se sobrepõe à personagem, já que esse é um traço de personalidade apresentado desde o primeiro episódio da série. Pode-se afirmar que Marshmelle é uma figura importante e se mantém diante da tela durante todas as ações deste episódio, mas, no fim, a personagem atende a uma função narrativa e educativa muito específica de exemplificação dos maus hábitos de uso exagerado de aparelhos eletrônicos.

Já em Salada de frutas, episódio focado no personagem Gatrick, a estrutura se repete. Na cozinha da Poderosa, trailer mágico de Anittinha, Mamitcha prepara um suco de mel, limão e gengibre para a cantora. A protagonista começa então a falar do seu amor por frutas e questiona Gatrick sobre quais seriam as preferidas dele. Durante o primeiro minuto do episódio, o menino se mantém no quadro dividindo espaço com uma das outras personagens em cena, Anittinha e Mamitcha. A centralidade surge depois das respostas erradas de Gatrick. Equivocadamente, o dançarino classifica hambúrguer e batata frita como frutas e vegetais. Assim como no caso de Marshmelle, o primeiro minuto da atração se concentra nas falas e opiniões de Anittinha, algo que serve como introdução ao episódio. Segue então com a apresentação de uma ideia de equívoco por parte do personagem-problema e, a partir de 1min40s, o número musical que soluciona a trama é iniciado. A música se desenha de forma lúdica como uma brincadeira de adivinhação com as frutas. De certo modo, talvez o caráter recreativo do episódio seja a justificativa para o grande número de visualizações no YouTube, 17 milhões até o dia 25/01/2023, o maior registrado em toda a série.

Tendo esses episódios em perspectiva, mas destacando uma análise global da primeira temporada, é possível observar que há um lugar de autoridade, mesmo que não verbalizada expressamente, centrada em Anittinha e sua família, a qual é visualmente composta de uma mulher branca, um homem negro e uma criança miscigenada. Esse núcleo não se pretende aleatório, já que um traço de identidade brasileira reiterada é a miscigenação, como versa o já citado conceito de democracia racial de Gilberto Freyre (2006)FREYRE, G. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 51. ed. rev. São Paulo: Global Editora, 2006.. Em sua obra, Freyre remonta de modo saudoso à composição do Brasil colonial, detalhando uma espécie de harmonia entre as raças. Apesar da guinada teórica proposta pelo autor, que representou o desuso de teorias higienistas e deterministas para explicar a paisagem social brasileira (SCHWARCZ, 2017SCHWARCZ, L. M. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociedade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2017.), Freyre foi profundamente criticado pela visão saudosista do período escravocrata e pela consequente relativização das violências sofridas por grupos racialmente vulneráveis, como negros e indígenas. Em Clube da Anittinha, temos o uso desse conceito como mecanismo para imprimir brasilidade à animação. Um ponto, porém, é que as personagens que mantêm a humanidade de modo integral são Painitto, Mamitcha e a própria Anittinha. As demais se mesclam com elementos fantásticos, como doces, peixes e gatos, seja na estética, seja no comportamento. Curiosamente, reproduzindo uma lógica narrativa que antes era atribuída aos brancos, percebe-se um lugar de liderança e autoridade assumido por uma família inter-racial na narrativa.

Um mapa racial para crianças em idade pré-escolar

O censo divide a cor da pele dos brasileiros em cinco grupos: preto, branco, amarelo, vermelho e pardo. Em 1976, todavia, a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílio (PNAD) resolveu abrir esta pergunta e, ao coletar informações sobre a população, deixou que cada pessoa proclamasse a cor da sua pele. Como resultado, apareceram nada menos que 136 cores diferentes, desde “cor de cuia”, passando por “baiano”, “queimada de praia”, “puxada pra branca”, “quase negra”, “laranja”, “azul” e “jambo”, entre muitas outras>14. Embora até hoje o fato seja tratado com certo ar de anedota por jornais e sites, ele evidencia o grau de complexidade e de importância que a cor da pele significa no contexto brasileiro. Mais do que uma simples característica física, a cor da pele no Brasil é um elemento fundamental de identidade instituído por profundas hierarquias sociais: quanto mais a pele se aproxima de um suposto ideal branco, maior é o seu valor simbólico.

Embora esse “branco” não seja objetivamente definido, como destaca Muniz Sodré (2015) ao debater as hierarquias raciais brasileiras, ele se fundamenta em raízes eurocêntricas, que posicionam o branco europeu ocidental burguês no ápice dessa pirâmide social. Esse fenômeno está no cerne dos preconceitos de raça e se apresenta nos mais variados graus. Isso acontece, por exemplo, no orientalismo, que associa os tons de pele de boa parte dos asiáticos ao “perigo amarelo” (LYMAN, 2000LYMAN, S. M. “The ‘Yellow Peril’ Mystique: Origins and Vicissitudes of a Racist Discourse.” International Journal of Politics, Culture, and Society. v. 13, n. 4, p. 683–747, 2000. JSTOR. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/20020056>. Acesso em: 12 ago. 2022.
http://www.jstor.org/stable/20020056...
), ou no caso dos “polacos”, forma pejorativa de designar, no sul do Brasil, os descendentes de poloneses, os quais apresentam a pele clara, mas historicamente não se encaixaram no tipo ideal de europeu burguês que o eurocentrismo erigiu15 15 No final do século 19 e início do 20, um grupo mafioso traficou mulheres para trabalharem forçadamente na América do Sul como prostitutas. Elas vinham da Europa e, como eram loiras e tinham olhos claros, passaram a ser chamadas de polacas, mesmo não sendo polonesas. .

Um ponto a ser problematizado surge na tradução das tensões raciais em produtos midiáticos infantis. Em Clube da Anittinha, observa-se a busca narrativa pela construção de uma paisagem racial diversa. Os personagens apresentam cores e formas distintas: há humanos, seres híbridos e até mesmo uma estrela. A questão, porém, é que o ponto de entrada neste universo fantástico parte de uma menina, Anittinha, que é fruto de uma relação interracial. Diferentemente de animações como Guilhermina e Candelário (2015), Greg do riacho (2018) ou Super Choque (2000), o passado não é importante a ponto de ser investigado, mas, ao mesmo tempo, há uma autoridade legitimada pela combinação de raças materializada por Anittinha. O episódio Mão na cabeça permite um comparativo entre as fenotipias de uma pessoa branca e outra parda no universo da série. Na narrativa, Anittinha é deixada para trás quando sua família e amigos partem acidentalmente para uma apresentação sem ela. Pela necessidade de encontrar uma substituta para um show, Estreller maquia Juju Coral para que ela se passe pela cantora. É interessante, no entanto, que, apesar da estética idêntica em termos de forma, há três pontos que a diferenciam de Anittinha: a concha utilizada no cabelo por Juju, a tonalidade da pele e a cor dos olhos (Figura 7).

Figura 7
Print do episódio Mão na cabeça.

Nota-se, ainda, que Marshmelle também estava presente na cena, mas a opção de construção de uma sósia foi dirigida à personagem branca. Isso permite inferir dois efeitos de sentido distintos: o primeiro deles se dá pela proximidade de Anittinha a uma estética embranquecida, ou seja, cabelos lisos e traços finos, mesmo com o tom de pele um pouco mais escurecido, como pode ser resgatado no debate já feito sobre passabilidade. Outro fator se dá, justamente, pela dinâmica do próprio seriado, que elenca uma personagem por episódio para ancorar a ação.

Ao resgatarmos a imagem da cantora Anitta e recuperarmos a epígrafe do texto, notamos uma crítica comum relacionada a pessoas pardas: o uso oportuno das raças originárias. Ou seja, a possibilidade de ser branco ou negro de acordo com a conveniência. Na animação, parte da discussão se perde, já que há a escolha estética de uma pele enegrecida combinada com traços finos.

Considerações Finais

“Visibilidade negra não é poder negro”16 16 JAPPE, 2013, p. 30 apud ALMEIDA, 2019, p. 110.

As imagens transgressoras nos desenhos animados ainda são muito pontuais (COSTA, 2022COSTA, J. A representatividade negra para crianças: o caso do desenho animado Clube da Anittinha. 2022. 103 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.). Apenas alguns desenhos conseguem exercer, de fato, uma “visão rebelde fora da lei”. Existem títulos com representatividade negra que nem sequer incluem pessoas negras na sua produção técnica, utilizando a questão racial apenas como uma característica para se enquadrar no nicho da diversidade. Isso escancara a ambiguidade que a representatividade carrega, pois ao mesmo tempo que produz resultados positivos, ela pode estar reforçando mitos e outros estereótipos acerca da negritude.

Considerando que “democracia política e ascensão econômica em si mesmas nada podem contra a discriminação racial” (SODRÉ, 2015SODRÉ, M. Claros e escuros: identidade, povo, mídia e cotas no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015., p. 300), a melhor forma de combater essas as narrativas que insistem em reforçar o diferente é por meio da “paixão da experiência” (HOOKS, 2017HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017., p. 124). A experiência tende a conduzir a narrativa de uma forma mais natural e consciente, pois se espera que a pessoa que está inserida em determinado grupo social e que vive as relações de forma interseccional tenha uma expertise afetiva para falar sobre seus valores, costumes, moral etc., gerando com isso narrativas mais plurais, com estruturas sociais mais horizontalizadas, realizando o que denominamos de desenhos animados afrocentrados.

O Clube da Anittinha utiliza personagens negras e contribui para a representatividade na tela, mas, em contraponto, não toca na questão da beleza negra nem na importância política dessa representação. O desenho animado evidencia que a representatividade pode ser realizada em especial de duas formas: a mercadológica e a afrocentrada. E em alguns casos elas são esvaziadas do seu sentido político por meio da mercantilização e da apropriação cultural. Quando um desenho animado (ou qualquer outro produto audiovisual) retrata pessoas negras sem o seu sentido político, ele tem menos chance de abalar as estruturas pelas quais o racismo opera. É urgente a consulta de pessoas que estão inseridas nos contextos retratados para dar um fim às expedições exploratórias que tratam o diferente (lê-se qualquer sujeito não branco) como exótico.

No que concerne ao debate sobre desenhos animados afrocentrados, estes já têm em sua premissa inicial utilizar, além das cores e das imagens de forma política, outras características, como a ambientação e a narrativa, ou seja, trabalham com mais signos que remetem à negritude pela ancestralidade. Assim, ao invés de criar para as crianças narrativas que utilizam apenas o recurso da cor, por que não contar histórias sobre a experiência negra no mundo?

Para quem teve uma representação negada durante muitos anos, a representatividade negra se torna uma conquista importante, mas ainda é um passo para as infinitas possibilidades que as novas imagens transgressoras podem criar. Apontar os erros e os caminhos possíveis acionam uma faísca de esperança de que estamos caminhando para um futuro mais democrático e justo para as crianças negras.

  • 1
    De acordo com as críticas, no videoclipe Vai, malandra!, Anitta teria cometido apropriação cultural, além de apresentar o corpo das mulheres negras de forma erotizada e preconceituosa. Nele, a cantora aparece de tranças, num penteado típico de mulheres negras, e apresenta um bronzeado bastante acentuado, quando comparado a outros videoclipes e a aparições variadas que a cantora havia feito até então na mídia.
  • 2
    Essa é uma fórmula frequente nos desenhos animados brasileiros. Outras celebridades também já tiveram sua versão mini, como Xuxinha (que se refere à apresentadora Xuxa Meneghel), Senninha (que se refere ao piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna) e Pelezinho (que se refere ao jogador de futebol Pelé).
  • 3
    Convém ter em vista que, no contexto do debate proposto, que envolve infância e raça no Brasil, o artigo traz muitos pontos originais por ser uma área de extrema complexidade, mas ainda pouco pesquisada. Infelizmente, isso deixa algumas brechas conceituais e analíticas, as quais devem ser trabalhadas por nós em argumentos futuros, além de incentivar outros pesquisadores a fazer isso também. Este artigo é, com efeito, um ponto de partida para pensarmos no papel fundamental do audiovisual direcionado a crianças pequenas na constituição, manutenção e no zelo da identidade racial dos sujeitos.
  • 4
    Disponível em: <https://www.youtube.com/c/clubedaanittinha/playlists>. Acesso em: 18 jan. 2022.
  • 5
  • 6
    Birdo, Clube da Anittinha. Disponível em: <https://www.birdo.com.br/anittinha>. Acesso em: 25 nov. 2021.
  • 7
  • 8
    O ECA (LEI Nº 13.257/2016) define a primeira infância como “o período que abrange os primeiros 6 anos completos de vida da criança”. Os desenhos animados para essa faixa etária carregam funções de aprendizados simples, como aprender as cores, os animais, as letras e os números. A tendência é que vários profissionais relacionados à saúde e ao desenvolvimento da criança estejam envolvidos no processo de criação, como pedagogos, pediatras e psicólogos.
  • 9
    Globoplay, 2023. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/clube-da-anittinha/t/hnR8SZXvBT/detalhes/>. Acesso em: 10 mar. 2023.
  • 10
    Uma análise racial completa do corpo técnico da animação consiste na realização de um levantamento consistente de toda a equipe envolvida e uma colaboração com os criadores da série. Sabemos que esses dados acrescentariam muito à discussão, mas nos atemos a discutir as questões narrativas, reservando esse tema para trabalhos futuros.
  • 11
    Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AHagSu3mmpo>. Acesso em: 16 jan. 2022.
  • 12
  • 13
    Outros exemplos seriam os seriados Patrulha canina (2013), Pocoyo (2005) e Marsha e o urso (2009), que mantêm crianças como protagonistas, mas subordinam os seres fantásticos do universo apresentado às suas vontades.
  • 14
    Folha de S. Paulo, 25 jun. 1995. Disponível em: <http://almanaque.folha.uol.com.br/racismo05.pdf>. Acesso em> 02 ago. 2022.
  • 15
    No final do século 19 e início do 20, um grupo mafioso traficou mulheres para trabalharem forçadamente na América do Sul como prostitutas. Elas vinham da Europa e, como eram loiras e tinham olhos claros, passaram a ser chamadas de polacas, mesmo não sendo polonesas.
  • 16
    JAPPE, 2013, p. 30 apud ALMEIDA, 2019ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., p. 110.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2022
  • Aceito
    12 Mar 2023
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