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Comunicação mediada pelos meios e construção da subjetividade: apontamentos teóricos1 1 Uma versão preliminar do artigo foi apresentada no GP Teorias da Comunicação, no XXII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Intercom.

Communication mediated by the media and construction of subjectivity: theoretical notes

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão teórica sobre as implicações dos usos e apropriações sociais dos meios de comunicação na construção da subjetividade. Partindo do pressuposto de que a subjetividade é uma tessitura histórica e engendrada nas interações, busca-se apontar dimensões nas quais a comunicação mediada por dispositivos técnicos pode constituir modos de subjetivação. Para tanto, o trabalho divide-se em três partes. Na primeira, delineamos o que entendemos por sujeito, subjetividade e modos de subjetivação. Na sequência, mostramos a influência, ao longo do tempo, da comunicação mediada na transformação do caráter simbólico da vida social e na construção do que partilhamos como realidade. Por fim, trazemos à cena o contexto da midiatização profunda e as mudanças na subjetividade. Sustentado em revisão de literatura e de natureza crítico-analítica, o trabalho articula estudos da comunicação, da teoria social e da filosofia para indicar que as condições de comunicação reverberam nas condições de produção dos modos de vida.

Palavras-chave
subjetividade; meios de comunicação; midiatização; modos de subjetivação

Abstract

This paper proposes a theoretical reflection on the implications of the social uses and appropriations of the media in the construction of subjectivity. Assuming that subjectivity is a historical and engendered in interactions concept, this paper seeks to point out dimensions in which communication mediated by technical devices can constitute modes of subjectivation. The work is divided into three parts. In the first, we outline what we understand by subject, subjectivity and modes of subjectivation. Next, we show the influence, over time, of mediated communication in the transformation of the symbolic character of social life and in the construction of what we share as reality. Finally, we bring to the scene the context of deep mediatization and the changes in subjectivity. Based on a review of literature and of critical-analytical nature, the work articulates studies of communication, social theory and philosophy to indicate that the conditions of communication reverberate in the conditions of production of ways of life.

Keywords
subjectivity; media; mediatization; modes of subjectivation

Introdução

Os estudos sobre a comunicação mediada pelos meios ou dispositivos sociotecnológicos apresentam, ao longo do tempo, perspectivas ora evolucionistas, ora reticulares e/ou conflituosas no que tange à questão da subjetividade. As pesquisas iniciais sobre a comunicação de massa, influenciadas pelo behaviorismo, consideravam um destinatário passivo, atomizado pela sociedade de massa e manipulado pelo conteúdo da mídia. A interlocução com a psicologia experimental provocou uma revisão teórica dessa abordagem, apontando a necessidade de atenção às características psicológicas da audiência e adequação da mensagem com vistas à persuasão de um coletivo específico. Estamos no âmbito das pesquisas administrativas ou pesquisas americanas que não tardaram a abraçar os estudos sociológicos e considerar que os meios têm efeitos limitados ante a contextualização das relações do ator social. Sob os auspícios da sociologia e, especialmente, do estruturalismo, a preocupação direcionou-se, então, a entender qual a função social da mídia mais do que a se debruçar sobre os seus efeitos. Nesse viés, a relação dos indivíduos com os meios começa a ser contemplada como passível de escolhas baseadas em usos e gratificações (DEFLEUR; BALL-ROKEACH, 1993DEFLEUR, M. L. et BALL-ROKEACH, S. Teorias da comunicação de massa. Rio de Janeiro. Ed. Jorge Zahar, 1993.; WOLF, 2003WOLF, M. Teorias da comunicação de massa. Trad. Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Leitura e crítica).; HOHLFELDT, FRANÇA; MARTINO, 2001HOHLFELDT, A.; FRANÇA, V; MARTINO, L. Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2001.; MATTELART; MATTELART, 2002MATTELART, A.; MATTELART, M. História das teorias da comunicação. 5. ed. São Paulo: Loyola: 2002.).

Se, de maneira geral, a pesquisa empírica americana era realizada com finalidades cognitivas internas ao sistema da mídia, a chamada teoria crítica, desenvolvida pela Escola de Frankfurt (EF), tratou das relações gerais entre a sociedade e os meios de comunicação. Cientistas da primeira geração da EF, Adorno e Horkheimer, articulando psicanálise e materialismo histórico, observaram que, numa sociedade na qual até a arte é alçada à condição de mercadoria, a individualidade é rejeitada e o sujeito é guiado à aceitação cega do enquadramento coletivo. Assim, tem-se um sujeito assujeitado pelo sistema econômico-social forjado na lógica do capital (ADORNO; HORKHEIMER, 2006ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas. In: ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p.99-138.; CORREIA, 2016CORREIA, F. C. Theodor W. Adorno e o problema da (semi)formação. Revista Kinesis, v. VIII, n. 16, p. 110-126, jul. 2016.).

Na segunda metade do século passado, os estudos de recepção direcionaram o foco à produção social do sentido, substituindo a ideia de transmissão de conteúdo por uma perspectiva de interação entre as instâncias de produção e recepção num determinado contexto sociocultural e sociotecnológico. Nessa conjuntura, a recepção não pode ser vista como ponto de chegada no processo comunicacional, mas como instância atravessadora.

As pesquisas de recepção, animadas pela abordagem antropológica da cultura, pelos estudos semióticos e pela compreensão da realidade como uma construção social, contemplam o receptor como produtor de sentidos inscrito no espaço-tempo, marcado de forma inexorável pela sua condição simbólica e histórica (JACKS, 1996JACKS, N. Tendências latino-americanas nos estudos de recepção. Revista Famecos, n. 5, p. 44- 45, nov. 1996.). Dessa forma, esse ator ativo do processo comunicacional, o receptor, tem suas experiências influenciadas pelos usos, práticas e apropriações dos meios (BOUTAUD; VERÓN, 2007BOUTAUD, J.; VERÓN, E. Sémiotique ouverte: itinéraires sémiotiques en communication. Paris: Lavoisier, 2007.). Na década de 1980, os pesquisadores Roger Silverstone e David Morley observaram como a apropriação social da TV se manifestava em instituições basilares, a exemplo da família, escola, lazer etc. Os cientistas enfatizavam a relação dialética entre mídia e vida social, que foi aprofundada por Martín-BarberoMARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003., por meio de um olhar atento às dinâmicas culturais em grupos subalternizados na América Latina e da percepção de que as investigações sobre os meios de comunicação precisam se converter em investigações sobre as mediações – o que constitui uma teoria da comunicação específica, segundo a estudiosa Maria Immacolata Vassallo de Lopes (2018)LOPES, M. I. V. de. A teoria barberiana da comunicação. Matrizes, v. 12, n. 1, p. 39-63, 2018. DOI: 10.11606/issn.1982-8160.v12i1p39-63. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/145750. Acesso em: 21 fev. 2023.
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Martín-Barbero problematizou a tríade produção-texto-recepção ao colocar em cena as mediações socioculturais, econômicas, políticas, vídeo-tecnológicas etc. Ao comentar sobre seu contato com a obra Dos meios às mediações (2003), em meados dos anos 1990, Nick Couldry diz ter encontrado a justificativa para seus investimentos acadêmicos na área da comunicação: a possibilidade que as pessoas têm de “utilizar as mídias como instrumentos para transformar suas vidas” (COULDRY, 2018COULDRY, N. Descobrindo a contínua realidade das mediações, ou redescobrindo a história de nosso campo de investigação. Matrizes, v. 12, n. 1, p. 35-38, 2018. DOI: 10.11606/issn.1982-8160.v12i1p35-38. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/145683>. Acesso em: 21 fev. 2023.
https://www.revistas.usp.br/matrizes/art...
, p. 36). Aqui, observa-se que as estratégias de elaboração dos sentidos são permeadas por lógicas e gramáticas da instância de reconhecimento (recepção). Além de ter propiciado um novo viés às investigações dos mass media e enriquecido os cultural studies, Martín-Barbero foi um dos precursores do quadro teórico traçado pelos estudos da midiatização.

Nas últimas décadas, a vertente cultural e construtivista da midiatização destaca o reposicionamento da instância de recepção no ciclo produtivo dos discursos mediáticos por causa da revolução do acesso, motivada, especialmente, pela digitalização, advento da internet e web, das redes de plataformas sociais e das tecnologias móveis. Para esse horizonte de estudos da midiatização, modos de ser e estar em sociedade dependem recursivamente dos meios de comunicação, instaurando um bios virtual ou mediático (SODRÉ, 2021SODRÉ, M. Sociedade incivil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2021.). Na conjuntura atual, a discussão sobre a subjetividade não passa ao largo das reflexões sobre dataficação — transformação da ação social em dados online quantificados (MAYER-SCHONBERGER; CUKIER, 2013MAYER-SCHONBERGER, V.; CUKIER, K. Big data: como extrair volume, variedade, velocidade e valor da avalanche de informação cotidiana. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. 164 p.) e mediação algorítmica.

Esse breve panorama anima a reflexão sobre a relação entre os estudos da comunicação mediada pelos meios sociotecnológicos e a abordagem da subjetividade. Entretanto, ao contemplar esse percurso, vê-se a emersão de uma questão central: quais as implicações dos meios de comunicação na construção da subjetividade? Com a finalidade de buscar pistas para responder a essa pergunta, este texto divide-se em três partes.

No primeiro momento, vamos delinear o que entendemos como subjetividade, enfatizando-a enquanto processo e construção, com base, especialmente, nos autores Foucault (2009______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., 2014aFOUCAULT, M. As técnicas de si. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos – IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a. p. 264-296., 2014b______. O sujeito e o poder. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos – IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014b. p. 118-140., 1985______. História da sexualidade. (v. III: O cuidado de si). Rio de Janeiro: Graal, 1985., 1982); Deleuze (1988, 2001)DELEUZE, G. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. (L. B. L. Orlandi, trad.). São Paulo: Editora 34, 2001. e Guattari e Rolnik (1996)GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996.. Na sequência, traçaremos a relação entre a comunicação mediada pelos meios e a construção da subjetividade, com base no quadro teórico desenhado por Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. Petrópolis: Vozes, 2008. 240 p. e ampliado por Thompson (1995)______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p. e Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017.. Assim, desenvolveremos uma reflexão pelo viés de que a realidade é uma construção social, tecida nas significações atribuídas às relações, práticas e discursos sociais e, nessa moldura, a subjetividade é intersubjetiva, ou seja, construída no embate, na relação com o outro, por meio da alteridade. Por fim, na terceira parte, traremos à cena o contexto da midiatização profunda e da construção da subjetividade. De natureza crítico-analítica, este texto realiza uma revisão de literatura, vincula estudos da comunicação, da teoria social e da filosofia para demarcar que as condições de comunicação reverberam nas condições de produção dos modos pelos quais nos tornamos sujeitos.

Subjetividade, sujeito e modos de subjetivação: processualidade histórica em foco

Para compreender a relação entre subjetividade e meios de comunicação, partimos do pressuposto de que a subjetividade precisa ser contemplada enquanto processo, construção que ocorre nas interações sociais e intersubjetivas, contextualizadas historicamente. Nessa visada, essa noção articula-se a outras duas - modos de subjetivação e sujeito - e será apresentada, neste texto, com base, especialmente, em escritos dos estudiosos franceses M. Foucault (2009______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, H. L.; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009., 1985______. História da sexualidade. (v. III: O cuidado de si). Rio de Janeiro: Graal, 1985., 1982)______. A hermenêutica do sujeito (Resumo dos Cursos do Collège de France/1970-1982). Rio de Janeiro: Zahar, 1982.; G. Deleuze (1988, 2001)DELEUZE, G. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. (L. B. L. Orlandi, trad.). São Paulo: Editora 34, 2001. e F. Guattari e S. Rolnik (1996)GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996., que oferecem “um campo conceitual a partir do qual a vida pode ser pensada em sua potência de variação” (MANSANO, 2009MANSANO, S. R. V. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade. Revista de Psicologia da Unesp, v. 8, n. 2, p. 110-117, 2009., p. 110). Atinente aos meios de comunicação, consideramo-nos como a institucionalização e estabilização social de usos, práticas e apropriações dos dispositivos técnicos de comunicação, ou seja, compreendemos as tecnologias pelas suas condições de produção, circulação e recepção na tessitura social (THOMPSON, 1995______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p.; VERÓN, 2014).

Em resposta ao legado da tradição filosófica ocidental que vislumbra uma espécie de essência do humano forjada em elementos fixos e permanentes, Guattari e Rolnik (1996)GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. explicam que a subjetividade é um processo que coaduna múltiplos componentes, os quais resultam da nossa interação mediada, portanto simbólica e sócio-histórica, com o mundo social. A subjetividade, assim sendo, não se trata de uma posse, mas de uma produção ininterrupta que ocorre nas interações com o outro — o outro social, a natureza, os acontecimentos etc. Engendrados nesse processo relacional, efeitos produzidos em nossos corpos e maneiras de viver circulam socialmente como componentes de subjetivação. A construção da subjetividade, dessa forma, é provisória e tem caráter coletivo e social, pois os processos de produção, recepção e acolhimento dos componentes de subjetivação são simultâneos e contínuos. Desse modo, a “subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social” e, portanto, “não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo” (GUATTARI; ROLNIK, 1996GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996., p. 31).

Vale salientar que a difusão e a circulação desses componentes ocorrem por meio de uma série de instituições, práticas e procedimentos vigentes em cada tempo histórico. Assim, é possível inferir “que os múltiplos componentes de subjetividade difundem-se como fluxos que percorrem o meio social, dando-lhe movimento” (MANSANO, 2009MANSANO, S. R. V. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade. Revista de Psicologia da Unesp, v. 8, n. 2, p. 110-117, 2009., p. 111). Guattari e Rolnik (1996)GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996. assinalam que, no mundo social, há muitas estratégias para tentar fixar a força subjetiva produtiva dando-lhe uma direção, consolidando referências a serem reproduzidas pela coletividade e comprometendo o “processo de singularização”2 2 Para Guattari e Rolnik (1996), o processo de singularização frustra os mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos, conduzindo à afirmação de valores num registro particular. . Diante dessa conjuntura, os autores destacam que produzimos subjetividade em meio a uma luta.

Por causa da dinâmica tensa e complexa inerente à construção da subjetividade, Gonçalves (2020)GONÇALVES, M. S. Para pensar comunicação, cultura e subjetividade: uma perspectiva de análise. Matrizes. v. 14, n. 1, p. 59-78, jan./abr. 2020. rechaça uma perspectiva classificatória3 3 No que tange à subjetividade, uma abordagem classificatória marca contraposição ao sujeito transcendental de Kant e ao sujeito descentrado de Freud, fazendo emergir os chamados sujeito moderno e sujeito pós-moderno, cujas características postas em contraste trazem à luz também o sujeito pré-moderno. “A oposição entre os tipos é clara, um sendo como que o negativo do outro. Assim, por exemplo, o sujeito moderno é racional, centrado, oposto a tudo o que não é humano, consciente, alienado, na medida em que a emoção perde para a razão etc. O pós-moderno é excêntrico, definido por processos mais afetivos do que racionais, híbrido, misturado, extrapola em muito a consciência, recupera uma forma de unidade entre razão, afeto etc. Como dito, o esquema pode operar com três termos, o que coloca então uma forma de sujeito pré-moderno, definido como holista, coletivo, emocional, oral, entre outros epítetos, em marcada oposição ao moderno. Pré-moderno, moderno e pós-moderno designariam assim três formações subjetivas diferentes, com a nuance de que o sujeito pós-moderno recupera e atualiza, como dissemos, em larga escala, traços do sujeito pré-moderno” (GONÇALVES, 2020, p. 61-62). que expressa juízo de valor e uma ordem lógica e cronológica. De acordo com o autor, trazer à cena uma tipificação de sujeito moderno, pós-moderno e pré-moderno, por exemplo, implica negar que, em cada momento histórico, há variadas formas de existência subjetiva. A crítica à classificação coaduna com a crítica à valoração deste ou daquele tipo de sujeito como melhor ou mais autêntico. Da mesma maneira, negar a classificação implica rejeitar uma ordenação cronológica. Corroboramos com Gonçalves (2020, p. 68)GONÇALVES, M. S. Para pensar comunicação, cultura e subjetividade: uma perspectiva de análise. Matrizes. v. 14, n. 1, p. 59-78, jan./abr. 2020. quando ele resume que: “Em cada momento, em cada grupo cultural, cada pessoa agencia, a seu modo, os elementos diversos que a cultura, entendida no sentido largo, oferta, para construir, singularmente, uma forma de existência”.

O sujeito é provisório e só pode ser examinado pelo viés da processualidade, “de um vir a ser que não se estabiliza de maneira definitiva. Ele é construído à medida que experiencia a ação das forças que circulam no fora, e que, por diferentes enfrentamentos, afetam o seu corpo e passam, em parte, a circular também do lado de dentro” (MANSANO, 2009MANSANO, S. R. V. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade. Revista de Psicologia da Unesp, v. 8, n. 2, p. 110-117, 2009., p. 115). A produção do sujeito incide em um movimento contínuo, uma aventura, cujo percurso não é sabido, porque não há previsão do que vai emergir, enquanto modo de vida, do encontro com os dados de cada experiência vivida. Deleuze (2001, p. 118)DELEUZE, G. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. (L. B. L. Orlandi, trad.). São Paulo: Editora 34, 2001. sublinha o caráter efêmero, inconstante do sujeito e afirma: “Se o sujeito se constitui no dado, somente há, com efeito, sujeito prático”.

O entendimento de que o sujeito se constitui historicamente foi visto como uma mudança de rumo na trajetória de Michel Foucault. No curso Hermenêutica do Sujeito, ministrado no Collége de France entre 1981 e 19824, o filósofo manifesta sua preocupação em torno de processos e práticas pelos quais nos tornamos sujeitos, afastando-se, à primeira vista, das reflexões acerca da arqueologia do saber e da genealogia do poder (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. (L. B. L. Orlandi, trad.). São Paulo: Editora 34, 2001.; CARDOSO JR, 2005).

Para Deleuze (1988)DELEUZE, G. Empirismo e subjetividade: ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. (L. B. L. Orlandi, trad.). São Paulo: Editora 34, 2001., no percurso foucaultiano, o interesse pelo sujeito não se limita a mero desvio temático, mas concerne à inauguração de um novo domínio - a ontologia histórica (relação entre subjetividade e história). Isso porque, para tratar das formas como é conformada historicamente a subjetividade, Foucault volta aos estudos na Grécia Antiga sobre o cuidado de si, descreve e analisa a sociedade disciplinar, observa a composição histórica do Estado e de sua intervenção biopolítica sobre o corpo do indivíduo e da sociedade (MANSANO, 2009MANSANO, S. R. V. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na contemporaneidade. Revista de Psicologia da Unesp, v. 8, n. 2, p. 110-117, 2009.; CARDOSO JR. 2005; GALO, 2011GALO, S. Do cuidado de si como resistência à biopolítica. In: CASTELO BRANCO, G.; VEIGA NETO, A. Foucault: filosofia e política. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.). Nessa retomada, o filósofo verifica que os modos pelos quais nos tornamos sujeitos, os modos de subjetivação, são engendrados historicamente nas práticas de si e vigoram dentro de práticas discursivas e práticas de poder descontinuadas em suas formas históricas. Em outras palavras, a construção da subjetividade pode ser entendida como uma apropriação singular de dinâmicas históricas, visto que “envolve modos historicamente peculiares de fazer a experiência de si (subjetivação)” (CARDOSO JR, 2005CARDOSO JR., H. C. Para que serve uma subjetividade? Foucault, Tempo e Corpo. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 18, n. 3, p. 343-349, 2005., p. 344).

A história da subjetivação, que compõe a fase foucaultiana de estudos da ética, pode ser interpretada como um ponto de interseção entre a arqueologia do saber e a genealogia do poder. Cardoso Jr. (2005)CARDOSO JR., H. C. Para que serve uma subjetividade? Foucault, Tempo e Corpo. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 18, n. 3, p. 343-349, 2005. reflete que os saberes e os poderes de todos os tempos (e de cada um, especificamente) buscam domar os processos de subjetivação que escapam numa espécie de resistência e ode à vida. Foucault, no entanto, parece ter feito o esforço de compreender a subjetividade para além de um lugar de resistência aos saberes e poderes instalados e buscou enxergá-la de maneira positivada, enfatizando sua mutabilidade que confere ao sujeito dimensão temporal e transformacional (CARDOSO JR., 2005CARDOSO JR., H. C. Para que serve uma subjetividade? Foucault, Tempo e Corpo. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 18, n. 3, p. 343-349, 2005.. p. 344).

Em resposta à alegação de um desvio de rota, o próprio Foucault declara na entrevista intitulada Sujeito e poder:

Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos 20 anos. Não foi analisar o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornam-se sujeitos.

(FOUCAULT, 2014aFOUCAULT, M. As técnicas de si. In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos – IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014a. p. 264-296., p. 118.)

O filósofo colocou em cena a questão de como são constituídos os modos de subjetivação, que agrupam e arranjam diferentes componentes de valor e duração históricos. Destacou, portanto, nossa inscrição simbólica no espaço- tempo e a influência das condições históricas na elaboração da subjetividade.

Tendo como referência a discussão de Foucault de que os modos de subjetivação equivalem às condições históricas de produção da subjetividade, trazemos ao palco a pergunta já elaborada por Thompson (1995)______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p. e Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. sobre as implicações da comunicação mediada pelos meios na construção do sujeito5 5 Vale mencionar que os autores, herdeiros da teoria social, usam o termo self, cuja tradução não é feita na língua portuguesa sob pena de não abarcar a complexidade da noção. Neste texto, quando estivermos nos referindo às ideias desses autores, prezaremos pelo uso da palavra self também. . Os autores ponderam que, enquanto ambiente, os meios de comunicação redefinem nossa relação social com as dimensões de espaço e tempo, mudam as interações, práticas e discursividades sociais. Ou seja, alteram nosso modo de ser, estar e agir no mundo.

Autores como J. Thompson (1995)______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p. e A. Briggs e P. Burke (2004)BRIGGS, A; BURKE, P. Uma história social da mídia: de Gutemberg à internet. Trad. Maria C. P. Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 346 p. (Interfaces). contribuem para a elaboração de uma história social pelo viés da mídia, apontando as influências dos meios de comunicação nas transformações da sociedade e da cultura. Sodré (2021) alerta para a consolidação de um bios virtual, concebido pelo atravessamento da mídia nos diferentes campos da vida social e da relação do indivíduo consigo mesmo e com o mundo. Eliseo Verón (2013VERÓN, E. La semiosis social, 2: ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013., 2014)______. Teoria da midiatização: uma perspectiva semiantropológica e algumas de suas consequências. Matrizes, v. 8, n. 1, p. 13-19, jan./jun. 2014., ao explorar a sequência histórica dos fenômenos midiáticos — registro de processos psíquicos em dispositivos técnicos de comunicação —, reconhece, ao longo do tempo, mudanças na semiose social. Nesse viés, os processos de significação, apesar de infinitos, são sociais e históricos, tecem o que entendemos por realidade e forjam, também, componentes de subjetivação, os quais, reunidos e organizados de formas várias, desenham os modos de subjetivação.

A comunicação mediada pelos meios compõe os modos históricos pelos quais nos tornamos sujeitos; constitui modos de subjetivação delineados por meio dos dispositivos6 6 Na abordagem foucaultiana, os modos de subjetivação requerem dispositivos. Para Muniz Sodré (2021, p. 112), a mídia é um dispositivo, pois diz respeito a “uma noção que ultrapassa a simples materialidade técnica dos diversos meios de comunicação”. Daí, o valor explicativo do termo dispositivo como uma resultante do cruzamento das relações de poder e de saber no quadro problemático do que Foucault chama de governamentalidade ou governo dos homens. Sodré recorre a G. Aganbem para definir dispositivo como um conjunto heterogêneo de elementos que inclui virtualmente discursos, instituições, leis, proposições filosóficas etc. Nesse ângulo, o dispositivo é uma rede que se estabelece entre esses elementos, tem função estratégica e se inscreve numa relação de poder. José Luís Braga também desenvolve estudos sobre a noção de dispositivo em Foucault para análise da comunicação mediada. Uma síntese do conceito nessa perspectiva pode ser acessada no livro Uma conversa sobre dispositivos, de José L. Braga, publicado pelo selo PPGCOM/ UFMG. técnicos de comunicação que alteram a escala de espaço-tempo e as interações entre indivíduos, instituições e os próprios meios. Seguindo essa linha de pensamento, rechaçamos qualquer pretensão de universalidade e somos convocados a olhar a mídia e a subjetividade como dinâmicas históricas. Nessa esteira, perguntamo-nos sobre a potência dos meios, institucionalizados e estabelecidos socialmente7 7 Gonçalves (2020) alerta para o fato de que a comunicação mediada pelos meios ocorre em condições de produção, circulação e recepção específicas. Em outros termos, ele justifica que os usos, práticas e apropriações que fazemos dos meios ocorrem em contextos culturais, políticos, econômicos e sociais e em circunstâncias comunicacionais específicas. No mais, relembra que já ultrapassamos as primeiras abordagens das teorias da comunicação que traçavam um caminho linear entre o meio e o indivíduo, desconsiderando sua condição sociológica e antropológica. “Os meios se originam em contextos que os condicionam e sua agência se conjuga necessariamente com a agência humana” (GONÇALVES, 2020, p.75). Nessa reflexão, o autor aponta argumentos contra o paradigma da onipotência dos meios e contra o paradigma do usuário solitário, chamando atenção para os grupos de pertencimento que modulam a estabilização social dos meios. , de colocar em circulação modos de vida8 8 A subjetividade para Foucault envolve um modo de vida, a diferenciação como trabalho próprio de uma existência, que se dá no tempo histórico. específicos.

Os meios de comunicação e a construção da subjetividade

Thompson (1995)______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p. contribui para endossar nossa perspectiva de que o dispositivo midiático enseja modos de subjetivação ao demonstrar que o desenvolvimento da mídia altera, de forma profunda e irreversível, a produção e o intercâmbio simbólicos. Se a construção da subjetividade é histórica e ocorre nas dinâmicas sociais de interação, trata-se, pois, de um processo atravessado pela reorganização promovida pelos meios tanto na produção e na circulação do conteúdo simbólico quanto na maneira como os indivíduos se relacionam entre si.

Para expor como os meios de comunicação reelaboram o caráter simbólico da vida social e os modos de interação, Thompson (1995)______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p. conduz nosso olhar para duas dimensões complementares e sobrepostas: 1) dos atributos dos meios técnicos, e 2) das características da comunicação mediada.

Atinente à primeira dimensão, o autor acentua que até mesmo a interação face a face requer meios técnicos9 9 J. Thompson (1995, p. 26) define meio técnico como “substrato material das formas simbólicas, isto é, o elemento material com que, ou por meio do qual, a informação ou o conteúdo simbólico é fixado e transmitido do produtor para o receptor”. para ser efetivada. No entanto, diferentes meios implicam distinções na produção, circulação e recepção simbólicas. Nesse cenário, é preciso contemplar se a mediação técnica permite fixar, armazenar e reproduzir a forma simbólica e se viabiliza o distanciamento espaço-temporal.

Se a mediação técnica abarca os atributos listados acima, a comunicação promoverá, entre outros aspectos, a autonomia das instâncias de produção e recepção em relação aos discursos; a persistência do conteúdo no tempo e no espaço; a institucionalização e mercantilização da produção simbólica (THOMPSON, 1995______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p.; VERÓN, 2013VERÓN, E. La semiosis social, 2: ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013., 2014______. Teoria da midiatização: uma perspectiva semiantropológica e algumas de suas consequências. Matrizes, v. 8, n. 1, p. 13-19, jan./jun. 2014.). Ao apontarem a importância da mídia para a reconfiguração simbólica da vida social, os estudos de Thompson ecoam nas ponderações de Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017., que consideram a mídia como detentora de um papel crescente na mediação da nossa experiência no mundo social, afetando a construção social da realidade.

Com base no construtivismo social, Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. releem Berger e Luckmann (2008)BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 28. Petrópolis: Vozes, 2008. 240 p. e anunciam uma brecha na obra A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Os autores reclamam a relevância da comunicação mediada, especificamente, para a construção do mundo social, definido como a esfera intersubjetiva das relações sociais ocorridas na vida cotidiana e prática, a qual é cada vez mais influenciada pela mídia.

Para preencher a lacuna citada, Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. sustentam que é preciso abordar o mundo social não apenas como mediado, mas midiatizado, isto é, alterado em sua dinâmica e estrutura pelo papel que a mídia desempenha continuamente e recursivamente na sua construção. Conforme os pesquisadores, vivemos a profunda midiatização, uma ambiência na qual “mais e mais aspectos da nossa prática diária são saturados por novas formas de comunicação mediada”; trata-se, pois, de um mundo social fundamentalmente entrelaçado com a mídia, “um mundo social midiatizado” (COULDRY; HEPP, 2017COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017., p. 54).

Seja abordando o vínculo entre mídia e reconfiguração do caráter simbólico do social, seja buscando compreender a conexão entre mídia e construção social da realidade, respectivamente, Thompson (1995______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p., 2018)THOMPSON, J. B. A interação mediada na era digital. Matrizes, v. 12, n. 3, p. 17-44, 2018. e Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017., por trajetos epistemológicos distintos, avançaram nas investigações e dirigiram suas preocupações à relação entre os meios de comunicação e os modos de construção de si, de subjetivação.

Diante do problema, Thompson (1995)______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p. elaborou duas perguntas: Como é viver em um mundo cada vez mais permeado de formas mediadas de informação e comunicação? O que acontece com o self num mundo onde a experiência mediada desempenha um papel crescente e substancial na vida cotidiana dos indivíduos?

Com base em um quadro teórico desenhado pela hermenêutica e pelo interacionismo simbólico, Thompson afirma que o self é construído nas interações sociais que ocorrem num espaço-tempo. O pesquisador acentua o caráter social, ativo e criativo do self, demarcando-o como “um projeto simbólico que o indivíduo constrói ativamente, mediante os materiais simbólicos que lhe são disponíveis” (THOMPSON, 1995______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p., p. 183).

Embora reconheça que as condições de formação do self foram alteradas com os meios de comunicação, Thompson descarta a ideia de um self fragmentado e descentrado, mas evidencia que, enquanto projeto simbólico, ele tornou-se cada vez mais desembaraçado dos locais e contextos da vida cotidiana e dependente das experiências mediadas10 10 Em 2018, foi publicado na revista Matrizes um artigo no qual J. Thompson acrescenta às suas reflexões a mediação proporcionada pelo ambiente da internet, especialmente pelas plataformas de redes sociais. .

Nesse contexto, o cientista distingue o surgimento de novos tipos de intimidade que não existiam na relação face a face, a exemplo da intimidade não recíproca (relação entre fã e ídolo na cultura de massa) ou da reciprocidade desenhada pelo modus operandi das plataformas de redes sociais (THOMPSON, 1995______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p., 2018THOMPSON, J. B. A interação mediada na era digital. Matrizes, v. 12, n. 3, p. 17-44, 2018.). O pesquisador alerta ainda para o fato de que a mídia nos coloca em contato com experiências que foram sequestradas pela organização social moderna, a qual ergueu edificações para abrigar os loucos, doentes terminais etc. Thompson relembra que, antes da modernidade, a punição ocorria em praça pública, e os doentes mentais conviviam com suas famílias nos espaços da comunidade. Se a constituição do sistema jurídico, da medicina e da psiquiatria sequestraram essas experiências do contexto diário dos indivíduos, o desenvolvimento das tecnologias da comunicação, sua estabilização e apropriação social promoveram a dessequestração dessas experiências e, mais que isso, tornaram disponíveis novas formas de experiências, impensáveis para gerações anteriores (THOMPSON, 1995______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p., p. 196-197). A mídia traz a possibilidade de viver em um mundo em “que a capacidade de experimentar se desligou da capacidade de encontrar” (THOMPSON, 1995______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p., p. 182).

Olhando, particularmente, pelo prisma das transformações ocorridas com a digitalização, com o surgimento da internet e da web, da tecnologia móvel e das plataformas de redes sociais, Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. trazem à cena a dataficação11 e suas implicações no processo social de elaboração do conhecimento, que vêm afetando a formação social da subjetividade. Para os autores, os novos meios transformam a produção de conhecimento em duas vertentes: 1) a automação garante produção ostensiva e exterior às dinâmicas cotidianas de construção humana de sentido; e 2) a lógica que rege essa construção é a lógica econômica das plataformas, distinta dos objetivos dos atores corporificados (VAN DIJCK, POELL; DE WAAL, 2018VAN DIJCK, J.; POELL, T.; DE WAAL, M. C. 2018. The platform society: public values in a connected world. New York: Oxford University Press, 2018. 240 p.). Nessa paisagem, afloram novos tipos de sociabilidade, de negociações e estratégias de adequação a um contexto que estimula o self branding. Ou seja, o gerenciamento do self como marca12 no ambiente digital.

Um dos exemplos do self como marca é a gestão estratégica de postagens para a construção de uma imagem, tendo em vista a possibilidade de as redes sociais digitais constituírem, direta ou indiretamente, uma vitrine profissional. Em situações dessa natureza, observa-se, segundo Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017., uma mudança no lugar do self, abstraído do fluxo da ação habitual cotidiana para tornar-se um projeto gerenciado continuamente. Constata-se uma espécie de externalização ou, no mínimo, um reposicionamento do self em relação ao mundo social.

A construção da subjetividade em tempos de midiatização profunda

Para tratar da construção da subjetividade numa sociedade e cultura profundamente midiatizadas, Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. têm como chão epistemológico a teoria social e partem da noção de figurações desenvolvida por Norbert Elias. Por esse prisma, abordam o self por três aspectos: 1) a socialização; 2) os recursos necessários à sua elaboração; e 3) os traços digitais do eu (self).

Os autores assentam que o self não é estático, está constantemente em movimento. Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. invocam ainda os processos materiais de formação e manutenção do self. Nesse segundo quesito, apontam para a comunicação mediada por dispositivos técnicos, especialmente em tempos de dataficação ou “plataformização da sociedade” (VAN DIJCK, POELL e DE WAAL, 2018VAN DIJCK, J.; POELL, T.; DE WAAL, M. C. 2018. The platform society: public values in a connected world. New York: Oxford University Press, 2018. 240 p.), quando os traços digitais do self tornam-se dados para agregação de valor e lucro por parte das grandes corporações (COULDRY; MEJIAS, 2019COULDRY, N.; MEJIAS, U. A. The Costs of Connection: How Data is Colonizing Human Life and Appropriating it for Capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019.). Por essa perspectiva, na contemporaneidade, o debate sobre a subjetividade não pode se desprender das lógicas econômicas do neoliberalismo, nem ficar limitado a elas (SAFATLE, SILVA JR.; DUNKER, 2020SAFATLE, V., SILVA JR., N., DUNKER, C. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte, Autêntica, 2020. 286 p.).

Na ambiência das plataformas, especialmente das redes sociais, solicita-se do self um estado de constante conectividade, uma disposição incessante à interação. No que tange ao desempenho do self, Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. vislumbram riscos na contínua negociação entre o que deve e o que não deve ser publicado, nas consequências da visibilidade e na diluição de fronteiras entre o público e o privado. Os autores também sinalizam oportunidades na mudança da escala espaço-tempo, gerando um campo maior de atuação para conquistar desejos e saciar necessidades13. Sodré (2021)SODRÉ, M. Sociedade incivil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2021., relendo Dardot e Laval (2000), expõe que a grande inovação da tecnologia neoliberal é o homem como empresa de si mesmo. Essa transformação incide nos processos de constituição da subjetividade, engendrando o self branding, uma espécie de gestão online da imagem do eu para vender-se no mundo do trabalho e dos negócios, particularmente. Nesse cenário, o indivíduo modula o seu valor único para o mundo exterior, sua relevância e diferenciação em relação aos outros. Não basta, portanto, identificar a diferença, é preciso comunicar e deixar traços digitais em espaços relevantes, como o LinkedIn no âmbito profissional.

Na atual paisagem midiática, o self branding torna-se possível em decorrência de:

  1. pegadas digitais deixadas pela ação do ator social na rede;

  2. modulação de um valor único do indivíduo para o mundo exterior, destacando sua relevância e diferenciação;

  3. necessidade de comunicar-se como diferente e relevante;

  4. e associação entre marca profissional e marca pessoal (COULDRY; HEPP, 2017COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017.).

Essa ordem de negociações e transformações, patrocinada pela ambiência digital e pela ecologia das plataformas, interfere nos processos de constituição da subjetividade. De acordo com Bruno (2013)BRUNO, F. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013, os processos de subjetivação estão atravessados pelos dispositivos de visibilidade contemporâneos, possibilitados pela ambiência digital. Assim, a subjetividade também é forjada nos espaços de visibilidade, ou na exterioridade da exibição ao olhar do outro.

No âmbito profissional, além do LinkedIn, Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. não descartam a gestão de postagens feitas pelo cidadão comum em plataformas como Facebook, Instagram e Twitter, cujas páginas pessoais podem ser vistoriadas, por exemplo, por colegas de trabalho ou potenciais empregadores, a fim de traçarem um currículo paralelo. No mais, a construção dos chamados influenciadores digitais, além de tensionar a necessidade de especialização nos mais distintos campos sociais, passa por um conjunto de estratégias que engloba monitoramento e mensuração constantes de receptividade e engajamento dos públicos, com vistas à adequação dos discursos.

Retomando o fio de Ariadne da nossa discussão - a perspectiva de que a comunicação mediada por dispositivos técnicos compõe modos de subjetivação —, encontramos nas reflexões de Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. zonas de interseção com o nosso olhar. No que concerne à socialização e à construção da subjetividade, podemos destacar as ponderações dos cientistas que mostram a mudança na textura da vida cotidiana acarretada pela inserção dos materiais simbólicos mediados tecnicamente, desde a infância. Já, na adolescência, percebe-se que a cultura digital engendra relações fluidas, e até a conversa face a face, mesmo sendo necessária, é atravessada pelos relatos nas plataformas que instituem o eu algoritmo - a inserção e influência do processamento de dados na reflexividade do self.

O jovem adulto, por sua vez, constrói sua rede de amigos e trabalho sob o peso do julgamento do que é publicado nas redes sociais e fica armazenado e disponível ao acesso. Para Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017., nessa situação, o medo torna-se uma força fundamental nos processos de socialização e, assim, crianças, adolescentes e adultos não gerenciam apenas seu corpo físico, mas também seu “corpo de dados”14 14 Os autores defendem uma fenomenologia materialista e explicam que uma fenomenologia do mundo social deve registrar a mudança morfológica social que está em curso. . Isso porque a mídia não constrói recursivamente apenas o mundo social e os processos de socialização, mas também a subjetividade. Para os autores, recursos são estruturas materiais que aprimoram a capacidade do self de agir de várias maneiras. Segundo eles, podemos localizar três tipos distintos de recursos: primeiro, recursos para autonarração (manutenção da identidade por meio da narrativa em blogs, sites e perfis nas plataformas sociais); segundo, recursos para autorrepresentação (ou apresentação); e terceiro, recursos para automanutenção, isto é, para manter o self como ator social funcional na ambiência digital. Neste último aspecto, a prática de selfie é indicada como uma estratégia que pode sustentar uma narrativa contínua do eu.

A pedra angular dessa discussão, entretanto, é que, no contexto da plataformização da sociedade, o indivíduo é pressionado a estar conectado (online), a fim de funcionar como um ser social. Dessa maneira, as condições operacionais das infraestruturas digitais tornam-se parte das condições de construção e de desempenho do sujeito social (COULDRY; HEPP, 2017COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017.). Associado a isso, sobressai o fato de que, na rede social digital, qualquer ação consiste numa espécie de pegada, de traços e vestígios do sujeito que são transformados em dados para alimentar o Big Data e gerar valor e lucro por meio de análises preditivas.

Vale realçar que os traços digitais consistem numa sequência de pegadas digitais relacionada a determinado ator ou ação, embora também possa abarcar uma coletividade ou organização. É a conexão dos dados a um indivíduo único que permite a sustentabilidade das plataformas enquanto negócio, uma vez que a publicidade é pautada na personalização. Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. evidenciam que os traços digitais não oferecem acesso ao mundo social “como ele é”, mas sim aos procedimentos pelos quais organizações poderosas tentam construir um mundo no qual possam agir.

Nessa direção, os cientistas convocam uma reflexão sobre a exteriorização desse self numa sociedade profundamente midiatizada, que provoca uma espécie de “quantificação do self”. Eles inferem que é preciso considerar um novo tipo de autoconhecimento que está emergindo por meio da coleta automatizada de dados. Os autores exemplificam essa observação com a crescente onda de quantificação dos dados de saúde por aparelhos que monitoram o corpo, disponibilizando informações que permitem uma interferência preventiva e um autoconhecimento de comportamentos e hábitos mapeados pelos números. Esse monitoramento, além de instaurar uma lógica de vigilância e mensuração do indivíduo sobre si mesmo, também alimenta os bancos de dados de hospitais, planos de saúde e indústrias farmacêuticas, amplificando o grau e o espectro do controle da vigilância socialmente. Essas linguagens que medem e controlam o self não são inocentes, mas colocam em processo uma transformação dos poderes social e político (COULDRY; HEPP, 2017COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017.; COULDRY; MEJIAS, 2019COULDRY, N.; MEJIAS, U. A. The Costs of Connection: How Data is Colonizing Human Life and Appropriating it for Capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019.)

Para Couldry e Mejias (2019)COULDRY, N.; MEJIAS, U. A. The Costs of Connection: How Data is Colonizing Human Life and Appropriating it for Capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019., essa dinâmica integra um processo mais amplo denominado de colonialismo de dados, o qual guarda similaridades com o colonialismo histórico. Na modalidade contemporânea, todavia, os dados é que são considerados “terra de ninguém” e podem ser extraídos e explorados por grandes corporações para ancorar estratégias de marketing e sustentabilidade do negócio das plataformas. Couldry e Mejias (2019)COULDRY, N.; MEJIAS, U. A. The Costs of Connection: How Data is Colonizing Human Life and Appropriating it for Capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019. advertem que, ao invadir o espaço do self, a prática de dados coloca em risco a integridade da vida humana, que precisa ser protegida. Os autores alertam que a vigilância automatizada no campo do self ameaça o espaço aberto em que nos transformamos continuamente. Nessa visada, alegam que a preocupação em voga não diz respeito à defesa da regra individualista, mas é direcionada à integridade mínima e socialmente fundamentada do self, sem a qual não nos reconhecemos nem aos outros como nós mesmos.

Considerações finais

Com o objetivo de abordar as implicações da comunicação mediada por dispositivos técnicos na construção da subjetividade, este texto compreende a subjetividade como um processo intersubjetivo tecido, continuamente, nas significações dadas às relações, práticas e discursividades sociais. Essa problemática se insere num quadro teórico que apreende a realidade como uma elaboração social, tensionando perspectivas essencialistas e universalistas sobre o sujeito. Por essa abordagem, constata-se que a subjetividade é forjada no espaço-tempo, logo, construída historicamente em determinados contextos culturais, econômicos, políticos, sociais, tecnológicos etc., nos quais são travadas lutas entre as possíveis determinações e o cuidar de si, o elaborar-se.

Se assumimos o pressuposto de que, ao longo do tempo, diferentes conjunturas engendram distintos modos de subjetivação, temos que os meios de comunicação, institucionalizados e estabelecidos socialmente, interferem no caráter simbólico da vida social e nas estratégias de socialização conformadoras da realidade social. Nessa direção, alteram as modalidades de interação social e os modos de ser, estar e agir no mundo, intervindo no delineamento das subjetividades.

Seguindo a trilha da sequência história da midiatização, já traçada por autores como Eliseo Verón (2013VERÓN, E. La semiosis social, 2: ideas, momentos, interpretantes. Buenos Aires: Paidós, 2013., 2014)______. Teoria da midiatização: uma perspectiva semiantropológica e algumas de suas consequências. Matrizes, v. 8, n. 1, p. 13-19, jan./jun. 2014., Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017., Briggs e Burke (2004)BRIGGS, A; BURKE, P. Uma história social da mídia: de Gutemberg à internet. Trad. Maria C. P. Dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 346 p. (Interfaces)., Thompson (1995______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p., 2018)THOMPSON, J. B. A interação mediada na era digital. Matrizes, v. 12, n. 3, p. 17-44, 2018., entre outros, buscando mapear as transformações provocadas pelos meios nas interações, na relação social com o espaço-tempo e na produção, circulação e recepção dos discursos, supomos que é possível esboçar um desenho histórico dos modos de subjetivação pelo viés da comunicação mediada.

Esforços nessa direção foram realizados, em certa medida, por Thompson (1995______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p., 2018)THOMPSON, J. B. A interação mediada na era digital. Matrizes, v. 12, n. 3, p. 17-44, 2018., Couldry e Hepp (2017)COULDRY, N.; HEPP, A. The Mediated Construction of Reality. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. e Couldry e Mejias (2019)COULDRY, N.; MEJIAS, U. A. The Costs of Connection: How Data is Colonizing Human Life and Appropriating it for Capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019. e apresentados, de forma breve, neste texto. Porém, intentamos deixar algumas portas entreabertas no sentido de acentuar a importância e o desafio da continuidade de tal empreitada, especialmente ante o colonialismo de dados.

Uma vida continuamente rastreada e vigiada é uma vida desapropriada. Rejeitar o colonialismo de dados não significa rejeitar a coleta e o uso de todas as suas formas, mas desprezar a apropriação indevida e escusa de nossa vida como recurso para uma ordem social calcada na lógica neoliberal do valor e do lucro. Um primeiro passo nessa direção é conhecer o fenômeno pelo nome, alertam Couldry e Mejias (2019)COULDRY, N.; MEJIAS, U. A. The Costs of Connection: How Data is Colonizing Human Life and Appropriating it for Capitalism. Stanford: Stanford University Press, 2019.. Ou seja, reconhecer a situação como uma modalidade de colonialismo, cuja dinâmica, ao longo da história moderna, deixa marcas profundas na constituição das subjetividades (KILOMBA, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação. Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.). Se Grada Kilomba olha para a colonização histórica mapeando aspectos que, especialmente pelos discursos midiatizados, ainda compõem os modos de subjetivação na contemporaneidade, Tarcízio Silva (2022)SILVA, T. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Edições Sesc, 2022. (Democracia Digital). preocupa-se com o racismo algorítmico, indicando a complexidade do problema quando entra em cena o machine learning, pois, como lembra Sodré (2021, p. 13)SODRÉ, M. Sociedade incivil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2021., “a internet é uma forma radical de conexão entre sujeito, coisa e sistema”. Para Sodré está em curso uma reconfiguração antropológica da vida humana, do que ele chama de “sujeito real”, isto é: “o resultante de processos variados de subjetivação - o elemento histórico - constantes de uma relação, raramente dialética, entre o ser vivo e a coisa” (SODRÉ, 2021SODRÉ, M. Sociedade incivil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2021., p. 13). Vislumbramos, nessa conjuntura, que a midiatização profunda engendra modos de subjetivação nos quais estratégias de visibilidade e de gerenciamento do corpo de dados ganham relevância inédita na sequência histórica do cuidar de si.

  • 1
    Uma versão preliminar do artigo foi apresentada no GP Teorias da Comunicação, no XXII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Intercom.
  • 2
    Para Guattari e Rolnik (1996)GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1996., o processo de singularização frustra os mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos, conduzindo à afirmação de valores num registro particular.
  • 3
    No que tange à subjetividade, uma abordagem classificatória marca contraposição ao sujeito transcendental de Kant e ao sujeito descentrado de Freud, fazendo emergir os chamados sujeito moderno e sujeito pós-moderno, cujas características postas em contraste trazem à luz também o sujeito pré-moderno. “A oposição entre os tipos é clara, um sendo como que o negativo do outro. Assim, por exemplo, o sujeito moderno é racional, centrado, oposto a tudo o que não é humano, consciente, alienado, na medida em que a emoção perde para a razão etc. O pós-moderno é excêntrico, definido por processos mais afetivos do que racionais, híbrido, misturado, extrapola em muito a consciência, recupera uma forma de unidade entre razão, afeto etc. Como dito, o esquema pode operar com três termos, o que coloca então uma forma de sujeito pré-moderno, definido como holista, coletivo, emocional, oral, entre outros epítetos, em marcada oposição ao moderno. Pré-moderno, moderno e pós-moderno designariam assim três formações subjetivas diferentes, com a nuance de que o sujeito pós-moderno recupera e atualiza, como dissemos, em larga escala, traços do sujeito pré-moderno” (GONÇALVES, 2020GONÇALVES, M. S. Para pensar comunicação, cultura e subjetividade: uma perspectiva de análise. Matrizes. v. 14, n. 1, p. 59-78, jan./abr. 2020., p. 61-62).
  • 4
    Este curso foi a base para a escrita dos livros História da sexualidade II – O uso dos prazeres e História da sexualidade III – O cuidado de si. Se, no primeiro volume de História da sexualidade – A vontade de saber, o foco estava na identificação dos pontos de resistência à rede de poder, nos dois volumes seguintes, a busca foi por entender como se constituem as resistências difusas. Na trajetória de Foucault, o estudo histórico da governamentalidade indicou os pontos de resistência, os desvios, a recusa a ser governado. Em outros termos, indicou as técnicas do cuidar de si como um espaço para a subjetivação. Ao estudar a relação com os prazeres sexuais na história ocidental, Foucault localiza a historicidade da subjetividade e deixa pistas para abordar os modos de subjetivação por diferentes ângulos dos campos de ação e atuação do ator social.
  • 5
    Vale mencionar que os autores, herdeiros da teoria social, usam o termo self, cuja tradução não é feita na língua portuguesa sob pena de não abarcar a complexidade da noção. Neste texto, quando estivermos nos referindo às ideias desses autores, prezaremos pelo uso da palavra self também.
  • 6
    Na abordagem foucaultiana, os modos de subjetivação requerem dispositivos. Para Muniz Sodré (2021, p. 112)SODRÉ, M. Sociedade incivil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2021., a mídia é um dispositivo, pois diz respeito a “uma noção que ultrapassa a simples materialidade técnica dos diversos meios de comunicação”. Daí, o valor explicativo do termo dispositivo como uma resultante do cruzamento das relações de poder e de saber no quadro problemático do que Foucault chama de governamentalidade ou governo dos homens. Sodré recorre a G. Aganbem para definir dispositivo como um conjunto heterogêneo de elementos que inclui virtualmente discursos, instituições, leis, proposições filosóficas etc. Nesse ângulo, o dispositivo é uma rede que se estabelece entre esses elementos, tem função estratégica e se inscreve numa relação de poder. José Luís Braga também desenvolve estudos sobre a noção de dispositivo em Foucault para análise da comunicação mediada. Uma síntese do conceito nessa perspectiva pode ser acessada no livro Uma conversa sobre dispositivos, de José L. Braga, publicado pelo selo PPGCOM/ UFMG.
  • 7
    Gonçalves (2020)GONÇALVES, M. S. Para pensar comunicação, cultura e subjetividade: uma perspectiva de análise. Matrizes. v. 14, n. 1, p. 59-78, jan./abr. 2020. alerta para o fato de que a comunicação mediada pelos meios ocorre em condições de produção, circulação e recepção específicas. Em outros termos, ele justifica que os usos, práticas e apropriações que fazemos dos meios ocorrem em contextos culturais, políticos, econômicos e sociais e em circunstâncias comunicacionais específicas. No mais, relembra que já ultrapassamos as primeiras abordagens das teorias da comunicação que traçavam um caminho linear entre o meio e o indivíduo, desconsiderando sua condição sociológica e antropológica. “Os meios se originam em contextos que os condicionam e sua agência se conjuga necessariamente com a agência humana” (GONÇALVES, 2020GONÇALVES, M. S. Para pensar comunicação, cultura e subjetividade: uma perspectiva de análise. Matrizes. v. 14, n. 1, p. 59-78, jan./abr. 2020., p.75). Nessa reflexão, o autor aponta argumentos contra o paradigma da onipotência dos meios e contra o paradigma do usuário solitário, chamando atenção para os grupos de pertencimento que modulam a estabilização social dos meios.
  • 8
    A subjetividade para Foucault envolve um modo de vida, a diferenciação como trabalho próprio de uma existência, que se dá no tempo histórico.
  • 9
    J. Thompson (1995, p. 26)______. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Trad. Wagner de Oliveira Brandão. Petrópolis: Vozes, 1995. 360 p. define meio técnico como “substrato material das formas simbólicas, isto é, o elemento material com que, ou por meio do qual, a informação ou o conteúdo simbólico é fixado e transmitido do produtor para o receptor”.
  • 10
    Em 2018, foi publicado na revista Matrizes um artigo no qual J. Thompson acrescenta às suas reflexões a mediação proporcionada pelo ambiente da internet, especialmente pelas plataformas de redes sociais.
  • 11
    Na sequência histórica da midiatização, a onda da dataficação diz respeito ao cenário no qual toda ação na rede é transformada em dados, capturados e analisados online para traçar predições e alimentar o negócio das grandes corporações, que gira em torno da publicidade. Nesse cenário, a mediação algorítmica e a automação, por exemplo, trazem elementos novos ao desempenho do sujeito social na rede.
  • 12
    Para Semprini, a marca é uma construção discursiva que envolve a produção social de sentido. Ver mais em: SEMPRINI, 2006SEMPRINI, A. A marca pós-moderna: poder e fragilidade da marca na sociedade contemporânea. São Paulo: Estação das Letras Editora, 2006..
  • 13
    Na visão dos autores, a ambiência digital não produz um self estendido, mas altera a nossa relação com a dimensão social do espaço-tempo, na qual estamos expostos, somos gerenciados, governados e fazemos o governo de nós mesmos.
  • 14
    Os autores defendem uma fenomenologia materialista e explicam que uma fenomenologia do mundo social deve registrar a mudança morfológica social que está em curso.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Out 2022
  • Aceito
    23 Fev 2023
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