Acessibilidade / Reportar erro

Rebeldia e mística como possibilidades para a construção da democracia em Bergson

Rebelliousness and mystique as possibilities to the construction of democracy in Bergson

RESUMO

Em sua última obra, As Duas Fontes da Moral e da Religião, Henri Bergson investiga as origens, o desenvolvimento e a manutenção da sociedade humana por meio da distinção entre a sociedade fechada, baseada nos instintos primitivos de conservação da vida, e a sociedade aberta, fundada sobre a aspiração que impulsiona o homem à construção de uma vida em sociedade mais harmoniosa. Segundo o autor, os ideais democráticos são frutos da abertura de que as sociedades necessitam para seu progresso, o qual, aos poucos, abrandaria a pressão das exigências impostas pela natureza para a conservação da vida em sociedade e possibilitaria aos homens conviverem mais livremente e mais afetuosamente com vistas a uma sociedade mais justa e sem tantos conflitos e mortes. Contudo, como escapar às determinações que a natureza impôs para que a vida em sociedade se mantivesse e conseguir que os homens se abram a outro tipo de vivência em conjunto? É esta a questão que o presente artigo procura investigar.

Palavras-chave
Bergson; moral; política; mística

ABSTRACT

In his latest work, The Two Sources of Morality and Religion, Henri Bergson investigates the origins, the development and the maintenance of human society through the distinction between the closed society, based on the primitive life-preserving instincts, and the open society, founded on the aspiration that impels the man to build a more harmonious life in society. According to the author, the democratic ideals are the result of the openness that the societies needs for their progress, which, little by little, would soften the pressure of the demands imposed by the nature for the conservation of life in society and would allow men to live more freely and more affectionately towards a more just society and without so many conflicts and deaths. However, how can we escape the determinations that nature has imposed in order to maintain life in society and get men to open themselves to another kind of living together? This is the question that this article seeks to investigate.

Key-words
Bergson; morality; politics; mystique

A reflexão política bergsoniana presente em As Duas Fontes da Moral e da Religião se constitui fundamentalmente diante da distinção operada por Bergson entre o fechado e o aberto, distinção esta que levará ao questionamento sobre a aplicação prática desses conceitos na vida cotidiana do homem moderno. A sociedade fechada fundada sobre a hierarquia, o espírito de guerra e os interesses de grupo é vista pelo autor como saída das mãos da natureza, tendo em vista a sobrevivência da espécie humana; nas palavras de Bergson (2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 223), a sociedade fechada “é aquela cujos membros se mantêm entre si, indiferentes ao resto dos homens, sempre prontos a atacar ou a defenderem-se, em obediência a uma atitude de combate”. Outra conformação social é, contudo, possível: a sociedade aberta que, de acordo com Bergson (2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 224), não restringe a atividade humana aos interesses de conservação e à lógica do grupo, mas coloca o homem em contato com o impulso gerador da vida, impelindo as sociedades a um sentido jamais alcançado pelas determinações naturais: “a sociedade aberta é a que compreenderia em princípio a humanidade inteira [...] por meio de uma transformação mais ou menos profunda do homem, permite superar dificuldades até então inultrapassáveis”. A filosofia política bergsoniana problematiza, assim, a transformação da ordem social das organizações humanas, pensando tal mudança por meio de duas tendências opostas, a saber, uma tendência ao fechamento, que irmana negativamente os homens sob a pressão exercida pelas obrigações sociais em vista da coesão do grupo e, no limite, da sobrevivência da espécie querida pela natureza; e uma tendência à abertura, que recoloca o homem na direção de sua destinação metafísica, isto é, no sentido da ultrapassagem das determinações colocadas nele pela natureza, realizando este salto no âmbito social por meio da criação de uma sociedade fraterna, mais justa e livre, emancipada das tendências à dominação e ao aniquilamento do outro.1 1 De acordo com Yala Kisukidi (2012, p. 246), esta transformação social objetivada pela abertura se configura em dois momentos: “num primeiro tempo, moral e metafísico, Bergson opera a refundação do universalismo moral, colocando de antemão a possibilidade para o homem de ultrapassar sua própria natureza, prisioneira do fechamento da espécie [...] num segundo tempo, Bergson desenvolve as consequências político-jurídicas de uma tal refundação do universalismo por meio de uma reflexão sobre as formas de organização institucionais do político e sua ‘regulamentação’”.

Para Bergson, entretanto, as tendências naturais que configuram uma sociedade fechada são insuperáveis, de modo que a aspiração a ideais mais humanos propiciados por uma possível abertura moral recairá irremediavelmente sob o jugo da pressão exercida pelas obrigações sociais em vistas da coesão e sobrevivência do grupo.2 2 Segundo Ghislain Waterlot (2012, p. 180), “o fechamento é a força constitutiva primeira das sociedades humanas. E nada a fará verdadeiramente desaparecer. Cada sociedade está de fato voltada para sua própria conservação, e ela disciplina seus membros a fim de que eles não percam jamais de vista, em primeiro lugar, que o grupo vale mais do que tudo o que está fora, em segundo lugar que não se deve hesitar em subjugar o que é estrangeiro, até mesmo o destruir se necessário. Apenas é considerado verdadeiramente nobre e humano o que vem do grupo do qual se faz parte”. Dessa forma, as tendências geradas pela abertura deverão inscrever-se nas leis e instituições próprias à sociedade fechada para que possam favorecer o progresso social que direcionará os homens rumo a uma existência pautada mais pela empatia, pelo amor e pelo respeito do que pela desconfiança, a mentira, a fraude, a perfídia e a subjugação entre eles. A mudança para essa nova ordem é, de acordo com Bergson, imprevisível e qualitativa: não terá, portanto, sua realização deflagrada por qualquer intenção racional de progresso em direção a um ideal, como se, ao estabelecermos uma ideia absoluta de liberdade e igualdade humanas sobre a Terra, pudéssemos progressivamente, com o passar dos anos, avançar até a ela aproximando-nos cada vez mais de sua perfeição. Para o autor, não há direção preexistente ao longo da qual poderíamos avançar para garantir o progresso moral e político dos homens, pois, se assim fosse, as renovações morais seriam previsíveis e não haveria necessidade de que para as conquistarmos tivéssemos de nos engajar no esforço de criá-las.3 3 Como assinala Kisukidi (2012, p. 256, grifos da autora) “o progresso [...] não deve de maneira alguma ser pensado como a realização de um ideal, que seria pensado teoricamente e dado previamente [...], as criações sucessivas que abrem a sociedade não têm modelo. O progresso se explica, de facto, pela capacidade que possui o homem de combater uma tendência com a ajuda da outra, ou fazendo triunfar a tendência à abertura sobre a tendência ao fechamento. O caminho deste combate cria uma nova organização social”. Destarte, mesmo que as sociedades humanas apresentem uma tendência natural e insuperável ao fechamento, os homens são capazes de suplantar tal condição: a abertura moral trazida ao mundo por personalidades extraordinárias é o que pode, de acordo com Bergson, impulsionar a aspiração a uma sociedade na qual os homens se dirijam, antes, à humanidade como um todo para fundamentar as leis e as instituições que regerão as suas relações, configurando, com isso, uma nova moralidade.

Diferentemente da moral da sociedade fechada, amparada nos deveres sociais a que estão submetidos os homens para que a ordem e a coesão sociais sejam asseguradas, essa nova moral não pressiona.4 4 Como nota Florence Caeymaex (2012, p. 326), a respeito dessa nova moral ou moral aberta: “porque ela corresponde a um movimento que precisamente nos chama a romper os limites definidos pela moral da sociedade fechada, ela é da ordem da propulsão ou da aspiração: dinâmica inversa àquela da pressão, e de uma natureza totalmente outra. Longe de se anunciar a nós sob a forma de uma obrigação ou de um dever estritamente determinado, ela se caracteriza por um movimento da alma, uma atitude de abertura”. Trata-se de um apelo dirigido à subjetividade e que pela comoção nos faz seguir os valores expressos por um homem excepcional, nas palavras de Bergson, um místico.5 5 Bergson afirma que em todos os tempos apareceram estes homens excepcionais encarnando esta nova moral. Por místico ele entende os santos do cristianismo, os sábios da Grécia, os profetas de Israel, os ascetas do budismo, entre outros. Mas será no Cristo dos evangelhos que o autor verá a referência completa que melhor caracteriza, segundo ele, a moral aberta ou absoluta Justamente porque nos chama à realização de uma nova forma de vida, à criação de valores mais humanos, a moral pregada pelo místico não se dirige apenas ao âmbito social, mas impele nosso eu mais profundo a estabelecer um vínculo com o todo da humanidade num sentimento de amor, saindo da postura totalitária encerrada nos limites da moral fechada.6 6 Como observa Kisukidi (2012, p. 258), a condição da possibilidade de uma nova configuração ética e política, se articula, em Bergson, em torno de uma teoria da divisão do sujeito. Para o autor, todo indivíduo é composto por uma duplicidade fundamental, pois ao mesmo tempo pertence tanto à sociedade quanto a si mesmo. Tal pertencimento a si mesmo significa, para Bergson, a consciência das regiões profundas e absolutamente originais da personalidade, o contato com a duração interna ou o fluxo criativo e incessante dos próprios sentimentos. Já o pertencimento à sociedade se dá num nível mais superficial da consciência visando atender às demandas práticas e urgentes para nossa sobrevivência, definindo, assim, a maneira pela qual nos submetemos como que instintivamente à pressão das obrigações sociais e internalizamos a vida em sociedade. O apelo do místico vem mobilizar justamente as profundezas do espírito, possibilitando um encontro do sujeito consigo mesmo, de modo a deslocar sua atenção das demandas utilitárias da vida social e agir conforme a emoção pela qual foi vivificada a sua subjetividade. Segundo o autor (2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 93), os verdadeiros místicos são aqueles que se abrem à emoção que os toma por completo, que “[...] sentem necessidade de difundir à sua volta aquilo que receberam, como um impulso de amor [...] amor que é então em cada um deles uma emoção inteiramente nova capaz de transpor a vida humana num outro tom”. O amor místico não é, portanto, amor a algum objeto definido, mas um arrebatamento da alma que leva à criação de ações humanas exemplares que ultrapassam o círculo fechado dos valores do grupo e os interesses de sobrevivência, conduzindo os homens a agirem por meio de um sentimento fraterno que reconhece em qualquer ser humano a humanidade inteira. Diante disso, Bergson parece assinalar que a possibilidade, ainda que ideal, de um universalismo moral, só poderia realizar-se com a democracia, pois esta, segundo o autor, constituiria o único sistema ou regime político no qual haveria, ao menos teoricamente, a intenção de subversão da dicotomia entre dominantes e dominados, entre os que comandam e aqueles que são comandados, permitindo o advento de uma sociedade amparada em uma pretensa fraternidade entre os seres.

A dicotomia que a democracia intencionaria superar é entendida pelo autor nos termos de um “dimorfismo psíquico” inerente ao humano, ou seja, uma tendência natural à dominação e/ou à subserviência que, dependendo das condições culturais, dos hábitos, da educação, é atualizada em formas de ser e agir que podem, contudo, serem reconfiguradas dependendo da situação. Para Bergson, todos os homens nascem aptos a mandar e a obedecer, mas geralmente apenas uma dentre as tendências se mostra atuante de acordo com os acontecimentos que se dão dentro e fora de nós. Assim, tal dimorfismo não distingue os homens em duas castas irredutíveis, nascendo uns chefes e outros súditos, “a verdade é que o dimorfismo faz, as mais das vezes, de cada um de nós, ao mesmo tempo, um chefe que tem o instinto de comandar e um súdito que está pronto a obedecer, ainda que a segunda tendência prevaleça a ponto de se tornar a única aparente entre a maioria dos homens” (Bergson, 2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 233). Podendo subverter a dualidade entre chefes e súditos, a democracia se constitui então como o regime político mais afastado das determinações naturais, que poderia transcender, como não o fazem outros sistemas de governo, as condições que configuram uma sociedade fechada. Não obstante, segundo o autor, o regime democrático estabelece inevitavelmente uma relação com a mística, uma vez que ela tem por princípio o amor à humanidade e a emancipação das condições naturais pelo homem, tais como exemplificaram algumas personalidades extraordinárias em sua existência histórica. Logo, para Bergson, o progresso político das sociedades adviria de uma renovação moral que só poderia realizar-se com a ajuda do místico e seu “divino amor” pela humanidade, à qual apontaria o caminho metafísico que impulsionaria a vida humana em sua evolução criadora.

A metafísica a que está destinada a humanidade seria uma metafísica da criação pela qual a realidade é pensada como movimento contínuo e de imprevisível novidade. Para Bergson, tal movimento criador consiste no próprio ato do élan vital, impulso que se atualiza em formas, materializando-se em uma multiplicidade de elementos criados. Porém, a matéria na qual o élan atualiza suas possibilidades de criação tende a mostrar-se mais e mais resistente, de modo que o impulso ali já não consegue continuar a marcha em frente da vida. O embate com a matéria, assim, termina por esgotar as possibilidades de criação do élan, impedindo-o de prosseguir criando naquela determinada forma que, dali em diante, viverá até o seu fim atualizando repetidamente a vida que o impulso ali colocara. Uma sociedade de formigas, por exemplo, dá continuidade ao élan que a originou: cada formiga trabalha para que a coesão e a sobrevivência da espécie estejam asseguradas e, por mais que trabalhem e façam perseverar a vida, elas jamais serão capazes de construir algo que não o próprio formigueiro, o que significa que ali a vida já não consegue penetrar a materialidade estanque e bruta da forma criada nem a insuflar com seu movimento criador. A conservação da espécie torna-se o fim último para aquela forma de vida e, uma vez esgotadas possibilidades de criação, o que resta é manter ali a vida girando em círculos, impedida de avançar. Nesse registro, Bergson pensará a sociedade fechada como uma organização de indivíduos motivados pelos imperativos de manutenção da vida da espécie, consistindo a sociedade fechada uma das formas materiais em que o élan se esgotou e na qual a espécie humana se vê refém de suas próprias determinações naturais para prosseguir vivendo.

Outra, contudo, é a sociedade aberta: nela o élan encontra-se desimpedido para prosseguir sua exigência de criação, pois os homens são convidados a ultrapassarem as imposições naturais e se abrirem a outro tipo de existência. Ao serem tocados pela emoção de que lhes fala o místico e engajados na imitação de seu exemplo, eles teriam a chance de irmanarem-se no amor indefinível e único que constitui, para Bergson, o fundamento efetivo da fraternidade universal. O místico, portanto, realiza por si mesmo uma ultrapassagem da estagnação do élan, constituindo individualmente como que outra espécie que superara as determinações impostas pela natureza, inserindo-se novamente no fluxo evolutivo e criador da vida. Para ele:

[...] dando ao homem a conformação moral que lhe era necessária para viver em grupo, a natureza fez provavelmente pela espécie tudo o que podia. Mas do mesmo modo que apareceram homens de gênio que fizeram recuar os limites da inteligência, e que assim foi concedido a indivíduos, de longe em longe, muito mais do que fora possível dar de uma vez só ao conjunto da espécie, surgiram também almas privilegiadas que se sentiam aparentadas a todas as almas e que, em vez de permanecerem nos limites do grupo e de se aterem à solidariedade estabelecida pela natureza, visavam a humanidade em geral num impulso de amor. O aparecimento de cada uma delas era como que a criação de uma espécie nova composta de um indivíduo único, desembocando o ímpeto vital, de longe em longe, num homem determinado, num resultado que não poderia ter sido obtido de uma vez só para o conjunto da humanidade. Cada uma delas assinalava assim um certo ponto atingido pela evolução da vida; e cada uma delas manifestava sob uma forma original um amor que parece ser a própria essência do esforço criador ( Bergson, 2005 BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p. , p. 90).

Para Bergson, o místico exemplifica como seria uma humanidade divina, em contato com o élan criador e dissociada do fechamento imposto pela natureza ao mobilizar a alma de outros homens a agir com base no amor pela humanidade, indicando-lhes como horizonte para sua ação o ideal de uma fraternidade possível. Nas palavras do autor (2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 92), “os verdadeiros místicos abrem-se simplesmente à vaga que os invade. Seguros de si mesmos, porque sentem neles qualquer coisa de melhor do que eles, revelam-se grandes homens de ação [...]. O que deixaram correr dentro de si mesmos é um fluxo descendente que quereria, através deles, conquistar os outros homens”. A ação moral é assim renovada: antes ligada à pressão imposta pelos interesses de sobrevivência da espécie e pela lógica do grupo, agora ela se dá como propulsão e abertura para o advento de uma sociedade universal, com valores baseados no amor constituído pelo próprio élan que dá origem a todas as coisas e que só na abertura moral encontra passagem para seguir adiante, criando e fazendo evoluir a vida.7 7 Como nota Waterlot (2013, p. 237), “a vida não é mais apreendida como uma luta, mas como um dom criador. A primeira preocupação do místico é então se liberar de tudo o que o ocupava enquanto homem natural (homem da sociedade fechada). A vida toma então outro sabor, e a sensação de estar leve e liberado se impõe. E este sentimento vem de uma relação contínua com o princípio da vida, que torna manifestamente irrisório o horizonte da preocupação cotidiana que caracteriza a vida da espécie”. O místico é então aquele que por meio de suas ações consegue mudar o olhar humano sobre a moral e a política, afrouxando aí o que fora colocado pela natureza. Com isso, o autor indicia que o devir histórico não se restringe às explicações sociológicas e etnológicas, ao enquadramento intelectual da realidade que estanca o movimento que a constitui. A criação histórica aparece na filosofia bergsoniana como uma exigência de ação daqueles que experimentam o contato com a transitividade criadora do todo, sentindo seu movimento propagar-se por sua interioridade em verdadeira emoção, impelindo à criação para além do óbvio e conclamando os outros a engajarem-se também nesse movimento que constitui o próprio real e a subjetividade mais profunda de cada um. Na filosofia bergsoniana, a força criadora e afetiva da vida é o que impulsiona os homens ao esforço para livrarem-se da conformidade à ordem natural; vivificados emocionalmente pelo exemplo das ações do místico, eles são conclamados a agir em vista da abertura, da criação de valores que se pretendem universais. Sendo assim, a ação histórica efetivamente transformadora, para Bergson, só seria possível por meio do contato com essa emoção originária que, mãe das formas, geradora da intuição na inteligência, colocaria em movimento as aspirações mais profundas da alma humana, impulsionando à criação de novas possibilidades para a vida.8 8 A intuição propicia, para Bergson, um conhecimento preciso ou imediato do real, o contato com a duração, o que permitiria a compreensão da vida como movimento temporal de criação, instaurador de diferenças ou novidades radicais. Ou seja, a intuição, como observa Deleuze (1999, p. 22), “supõe a duração; ela consiste em pensar em termos de duração”, o que não significa que a intuição seja a própria duração: “a intuição é sobretudo o movimento pelo qual saímos de nossa própria duração, o movimento pelo qual nós nos servimos de nossa duração para afirmar e reconhecer imediatamente a existência de outras durações acima ou abaixo de nós”. Desse modo, se o homem vivificado pela emoção mística acede à força criadora da vida, é por que esse movimento afetivo lhe suscita a intuição, isto é, o rompimento com os constrangimentos da vida social e os hábitos da inteligência e a sua inserção, em ato, no seio mesmo da abertura, o que lhe permite agir e criar em consonância com o próprio movimento criador da vida. “O pequeno intervalo ‘pressão da sociedade-resistência da inteligência’ definia uma variabilidade própria das sociedades humanas. Ora, acontece que, graças a esse intervalo, algo de extraordinário se produz ou se encarna: a emoção criadora. Esta nada tem a ver com as pressões da sociedade, nem com as contestações do indivíduo. [...] Ela somente se serve desse jogo circular para romper o círculo [...]. E o que seria essa emoção criadora senão, precisamente, uma Memória cósmica, que atualiza ao mesmo tempo todos os níveis, que libera o homem do plano ou do nível que lhe é próprio para fazer dele um criador, um ente adequado a todo o movimento de criação?” (Deleuze, 1999, pp. 90-91).

Nesse contexto, uma relação entre mística e política é assinalada na medida em que, para Bergson, a aspiração à liberdade e à igualdade que caracterizam o regime democrático tem sua origem no estado de alma inebriado pela emoção que impulsiona a criação de valores mais humanos que viabilizariam, no limite, a constituição de uma real fraternidade entre os homens. Ou seja, as instituições e leis que se dedicam a universalizar os anseios democráticos foram criadas porque seus idealizadores eram homens cujo sopro da emoção sentida e propagada pelo místico, emoção própria de seu contato com a força criadora da vida, chegou até seus corações. A idéia de amor universal trazida por esses homens de gênio, segundo o autor, principalmente pelo Cristo dos evangelhos, foi, assim, o que motivou as concepções modernas da democracia, a qual, “proclama a liberdade, reclama a igualdade, e reconcilia estas duas irmãs inimigas lembrando-lhes que são irmãs, pondo acima de tudo a fraternidade. [...] o que permitiria dizer que a democracia é de essência evangélica, e que terá o amor por motor” (Bergson, 2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 235). Nesse sentido, é a força criadora e afetiva da vida mesma que impulsiona o homem em seu esforço para se livrar da conformidade à ordem natural: vivificados pelo exemplo das ações do místico, os homens comuns são impulsionados a agir em vistas da abertura, da criação de valores que se pretendem universais, viabilizando, além disso, uma ação política efetivamente transformadora.

O apelo do místico ou seu chamado à abertura, segundo Bergson, é inevitável: há a exigência de fazer jus a um dever, mas sem o constrangimento que este implica, pois é um movimento afetivo que toma o ser, atravessando a interioridade que espontaneamente se abre a esse movimento. A nova atitude moral configura-se, assim, como uma expressão da vida que agora não mais encontra-se determinada aos estreitos limites do indivíduo, mas o coloca em movimento, conclamando-o a exercer sua liberdade possível por meio de um impulso encorajador, oriundo de uma emoção suscitada: a emoção de que fala Bergson corresponderia a um reencontro com a totalidade do eu em sua mais absoluta originalidade e não algo que lhe vem de fora, mobilizando a alma e se confundindo com ela. Não se trata de um sentimento consecutivo a uma ideia ou a uma imagem representada que resultaria num estado intelectual igual a outros, trata-se, antes, de um anseio gerador de pensamentos, prenhe de representações ainda não formadas e que podem vir a ser. A exigência de ação originada com o arrebatamento afetivo da alma conta, assim, com o apoio da atividade inteligente que se encarregará de criar a forma material pela qual o amor místico será comunicado, assim, a própria inteligência servirá ao combate contra seus próprios limites esforçando-se por reformular suas representações costumeiras na intenção de poder dizer o indizível, isto é, a emoção criadora que não pode ser puramente contemplada e só se realiza existindo: “é ela sobretudo que vivifica, ou antes vitaliza, os elementos intelectuais com os quais fará corpo, recolhe a todo momento o que virá a poder organizar-se com eles e obtém, por fim, do enunciado do problema o seu desabrochar em solução” (Bergson, 2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 52). A inteligência, portanto, antes restrita ao direcionamento das ações para a atenção à vida e garantia da sobrevivência do indivíduo no ambiente, agora auxilia, não sem esforço e sofrimento, a transmitir compreensivelmente a todos os homens o entusiasmo místico da alma e seu amor pela humanidade como um todo, “o esforço é na circunstância doloroso, e o resultado aleatório. Mas é somente então que o espírito se sente ou se crê criador” (Bergson, 2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 52).

Se Bergson pensa a vida psicológica humana como constituída por uma cisão entre o eu profundo e o eu superficial, o eco místico incidirá justamente na dimensão profunda dos sentimentos e não na superfície da personalidade direcionada às demandas rotineiras de atenção à vida e suas relações com as obrigações oriundas do meio social. O apelo dessas grandes almas, assim, tem a força capaz de desviar-nos da cotidianidade da existência, do cumprimento cego dos imperativos que visam à ordem e a coesão da sociedade, de modo que “sentimos que nos comunicam parte do seu ardor e que nos arrastam no seu movimento: já não se trata de uma coerção mais ou menos atenuada, é uma atração mais ou menos irresistível” (Bergson, 2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 90). Seguir o chamado de um místico, deixar-se mobilizar pela emoção por ele transmitida inclinando-se ao esforço pela abertura configura, então, uma resistência do indivíduo à pressão da obrigação social. Diante disso, caberia perguntar: a abertura para uma existência mais livre e igualitária requereria então uma desobediência, um ato de rebeldia da inteligência humana contra a continuação da negação da humanidade de seu semelhante?9 9 Pode-se aqui fazer referência a algumas ideias de Albert Camus expressas em sua obra O Homem Revoltado. Guardadas as devidas diferenças que marcam o pensamento filosófico de Camus e de Bergson, é possível enxergar uma aproximação entre eles na medida em que, de acordo com Camus, o homem revoltado é aquele que contrapõe à ordem existente e que o oprime um direito, a saber, o de não ser mais oprimido além daquilo que pode consentir. A revolta, busca, portanto, criar um valor que seja, assim como em Bergson, reconhecido em si mesmo por todos os homens; nota-se aqui que a solidariedade humana, para Camus, ou a fraternidade entre os homens, como quer Bergson, configura-se como um fundamento a partir do qual um universalismo moral nos dois autores pode ser pensado, uma vez que para eles o homem procura e se esforça por criar um valor que transcenda as particularidades da condição histórica e aspire a unidade no mundo ou a retomada do impulso criador da vida.

Seguindo tal raciocínio, poderíamos pensar que a natureza previra uma certa extensão da vida social através da inteligência, mas não poderia querer, contudo, que essa extensão chegasse ao ponto de colocar em risco a própria sobrevivência da espécie humana. Sabemos que a inteligência, segundo Bergson, traz consigo uma tendência rebelde, a de se opor ao cumprimento das obrigações sociais e ceder aos egoísmos do indivíduo, uma vez que, justamente por ser inteligente e raciocinar sobre o que a leva a realizar tal ou tal ação, ela consegue deliberar pela não realização das tarefas sociais, colocando em risco, assim, a coesão do todo. Mas eis que mal o seu desejo individualista se formulou, uma força age sobre ela: uma pressão que funciona quase como um instinto, diz o autor, faz com que a inteligência mesma apresente razões suficientes para resistir à resistência às obrigações impostas pelo meio, assegurando com isso o equilíbrio social e a sobrevivência dos homens. Dessa forma, sem o trabalho intelectual nossa tendência natural à obediência passaria despercebida como acontece com as abelhas e as formigas que cumprem o seu dever trabalhando instintivamente para a garantia do equilíbrio de suas sociedades. No entanto, é a própria inteligência que, mesmo hesitando, coloca para si a necessidade de obedecer, de resistir ao desejo que perturbaria a ordem, garantindo assim a continuidade da espécie por meio da estabilidade coletiva. Daí que deixar-se levar pela emoção mística ou passar a seguir o exemplo de uma pessoa extraordinária, como o Cristo ou o Buda, sugeriria uma postura de não conformidade com o fechamento social, isto é, com o cumprimento cego dos deveres sociais em vista da garantia da ordem e da estabilidade da sociedade. Ao desviar-se dos constrangimentos impostos pela natureza e colocar-se a serviço da construção de relações mais fraternais entre os homens, a inteligência, sugestionada pela intuição, seria então novamente impulsionada a resistir? Poderíamos pensar que desta vez ela resistiria à resistência que a leva a resistir a suas próprias elucubrações perigosas, uma vez que estas já não consistiriam em objetivos imediatos e egoístas como outrora, mas sim em uma aspiração solidária e generosa mobilizada pela emoção criadora, intencionando uma melhora efetiva das condições de vida de toda a humanidade?

De acordo com o raciocínio esboçado, a inteligência, mobilizada por uma intuição suscitada em conformidade com a emoção profunda e arrebatadora da subjetividade, recusaria o fechamento estruturante da vida social, esforçando-se por criar valores e formas concretas de vida que fomentassem algum tipo de alternativa, supostamente melhor, a esse estado de coisas. Isso significa que o próprio homem teria de engajar-se no esforço de fazer com que as leis e instituições da sociedade viessem a abrir-se e efetivassem leis que promoveriam a dignidade humana sem quaisquer distinções. O desejo pelo qual estaria impulsionada a inteligência não garantiria de imediato a manutenção da ordem social, ao contrário, ela seria perturbada inevitavelmente com mobilizações e protestos de todo tipo, ainda que tais mobilizações se dessem no sentido da instauração de uma outra ordem na qual tais protestos não teriam mais sua razão de ser. Nesse ínterim, uma inteligência incitadada pela emoção mística, se colocaria em ato, isto é, intuitivamente, contra tudo aquilo que rebaixa a dignidade humana e tende ao esgotamento da vida, oposição consoante ao próprio ímpeto vital em sua exigência de criação e evolução, uma vez que a concessão de direitos ou o reconhecimento da dignidade do outro resultaria, mesmo que apenas em intenção e sob o aspecto teórico ou jurídico, no reconhecimento da humanidade de qualquer homem, visando excluir a exploração, a opressão, e, no limite, o assassinato consentido entre eles. Com tal abertura, o élan perpassaria a atividade social humana mais facilmente, liberando-a, ainda que pouco e sempre incompletamente, do peso das determinações naturais que inclina os homens a viverem uma vida sem sentido último além de sua pura conservação. O movimento em direção à abertura inclinaria à criação daquilo que possibilitaria uma existência melhor porque mais eticamente vivida em seu sentido humano, de modo que não seria descabido supor que a revolta social, na reflexão moral bergsoniana, pode adquirir o significado de um combate contra tudo aquilo que esmaga ou impede no homem a continuidade de sua destinação metafísica criadora, isto é, a marcha em frente da vida.

Se, como visto anteriormente, os sujeitos obedientes são também suscetíveis de se tornarem senhores caso a oportunidade se apresente, como em tempos de revolução, nos quais revelam-se grandes homens de ação que ignoravam, eles mesmos, que o eram, do mesmo modo que podem eles revelarem-se com o pulso firme, igualmente podem, contudo, mostrarem-se como verdadeiros carrascos, de modo que o resultado é em geral perturbador: “em seres honestos e mansos surge de súbito uma personalidade inferior, feroz, que é a de um chefe falhado. E aqui aparece um traço característico do ‘animal político’ que é o homem” (Bergson, 2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p 233). O poder de comandar se torna, com isso, o poder de matar, de modo que a atividade política pode ser compreendida, ao menos inicialmente, na reflexão bergsoniana, como o campo das relações de dominação e morte entre os homens: “o assassínio continua com demasiada frequência a ser a ratio ultima, quando não a prima, da política. Monstruosidade, sem dúvida, mas pela qual a natureza é tão responsável como o homem” (Bergson, 2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 233). O dimorfismo psíquico terminaria, assim, por fixar uma combinação entre monarquia e oligarquia como o regime político natural da sociedade fechada, na qual um pequeno grupo de tiranos organiza o todo social em vista da guerra para a garantia de sua coesão e manutenção.10 10 Como nota Jae-Hyung Joo (2016, p. 449), “o poder absoluto aparece como poder de fazer morrer, da morte. Com efeito, o poder, que tinha começado por ser a força organizadora das forças vitais dos indivíduos, que era então poder de vida, se converte em poder da morte. O assassinato exprime bem o absolutismo do poder político do chefe; reciprocamente, para melhor manifestar seu absolutismo, o chefe deve exercer regularmente seu poder de matar. A morte é efetivamente a prova mais certeira do absolutismo do poder do chefe. No entanto, a incerteza e a contingência propriamente humanas intervêm de novo. [...] Muitos homens não hesitarão matar ainda mais os outros para poder conquistar esse poder absoluto, o poder de matar. Matamos para poder matar. Isso mina ironicamente o absolutismo do poder. [...] Como o pertencimento mesmo desse poder é por natureza fundamentalmente e essencialmente contingente e sem garantia, a hierarquia, ou a organização instituída por esse poder, muito naturalmente e muito necessariamente balança, cedo ou tarde. Daí esta política que Bergson despreza, a política como luta pelo poder”.

Contudo, se a política pode ser entendida na reflexão bergsoniana como uma luta pelo poder, isso não impede que ela seja compreendida também, num segundo momento, como o campo das atividades incessantes de reconstrução, de melhorias ou da criação de uma forma de organização social que colocaria fim, ainda que provisoriamente, no estado de guerra característico das sociedades fechadas. Nessas condições, a própria luta pelo poder é o que abre a possibilidade, ainda que teórica, da democracia como regime político mais afastado das determinações naturais e que, ao menos em intenção, pode transcender as condições que configuram uma sociedade fechada, subvertendo as relações de dominação não para fazer dos escravos os novos senhores de outros escravos, mas para orientar os homens a algo além da relação de domínio e escravidão na história. Isso significa que no regime democrático o indivíduo, compreendido como cidadão, tornar-se-ia legislador e súdito ao mesmo tempo, como queria Kant, o que implicaria numa realização simultânea das duas tendências do dimorfismo psíquico, outrora alternantes, transformando efetivamente as relações de desigualdade entre os homens.11 11 “A democracia estaria essencialmente ligada a esta realização completa do dimorfismo psíquico em cada um. [...] Assim, a possibilidade da dominação e a possibilidade de sua anulação ou de sua transformação profunda têm a mesma origem, o dimorfismo psíquico. Este explica tanto a dominação de muitos por alguns quanto a instabilidade e a falta de fundamento de uma tal dominação [...] O dimorfismo individual implica que nenhuma dominação entre os homens poderia ser absoluta e definitiva porque esse dimorfismo conserva sempre a possibilidade de sua anulação” (Joo, 2016, p. 458). A possibilidade de subversão do dimorfismo ou de sua realização completa, isto é, simultânea, por meio da qual se seguiria uma suposta anulação das tendências às relações de dominação, seria justamente o que Bergson constata nas revoluções, pois, ainda que seus resultados não tenham sido de todo benéficos, por meio delas os ideais democráticos foram introduzidos no seio das sociedades: “foi sobretudo como protesto que [a democracia] se introduziu no mundo. Cada uma das frases da Declaração dos Direitos do Homem é um desafio lançado a um abuso. Tratava-se de pôr fim a sofrimentos intoleráveis” (Bergson, 2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 236). O dimorfismo antropológico tende, assim, tanto à dominação e à opressão quanto à revolta que busca acabar com elas, tratando-se de uma ambivalência psíquica por meio da qual o humano opõe ao fechamento natural estruturante da espécie uma resistência que visa a superação das desigualdades daí decorrentes, ainda que essa oposição se dê igualmente nos termos de uma luta pelo poder político.

Diante disso, a possibilidade de abertura ou de saída “das mãos da natureza” se mostra coextensiva ao fechamento social, de modo que a inserção dos ideais democráticos e a materialização das conquistas históricas a que eles impulsionaram só pode se dar por meio do esforço humano obstinado em conduzir-se no sentido contrário ao da natureza, na luta diária pela própria humanização. Daí a democracia ser caracterizada por Bergson como o regime político que se opõe à autoridade, à hierarquia e à fixidez da sociedade fechada, ainda que só nela ou a partir dela possa realmente vir a ser, já que as tendências naturais estruturantes da espécie não desaparecem por completo, sendo a sua força apenas atenuada com o progresso espiritual humano.12 12 De acordo com Ghislain Waterlot (2012, p. 180), “a distinção do fechado e do aberto permite afirmar, com efeito, que o fechado tem sua estrutura própria, que perdura, e, se o aberto traz a perspectiva da abertura e a realidade de um tipo de entreabertura às sociedades concretas, ele não substitui a estrutura fechada que permanece irredutível e que continua a resistir ao apelo da abertura. O fechado é a força constitutiva primeira das sociedades humanas. E nada o fará verdadeiramente desaparecer”. A democracia consistirá, portanto, num esforço constante de uma abertura à abertura, na criação de condições propícias para a materialização das formas, mesmo impensáveis ainda, da liberdade e da igualdade com que sonham os homens, consistindo mais em uma direção segundo a qual a humanidade pode e deve orientar-se do que a concretização de um regime ou sistema político estrito e normativo. Toda sociedade humana seria, nesse sentido, composta por um misto de fechamento e abertura: uma vez que as sociedades reais são formadas por indivíduos aos quais a inteligência possibilita uma margem de escolha e liberdade no agir, também a sua vida social seria orientada em função dessa indeterminação característica que coloca o aberto e o fechado como tendências por meio das quais os humanos podem orientar sua vida em comum.

A tendência à abertura seria a direção a ser perseguida como possibilidade para melhoria das condições da vida, porém a forma pela qual se dará tal abertura permanece como mistério e responsabilidade para os humanos, uma vez que eles constituem uma forma fixada biologicamente, mas à qual é dada a possibilidade de levar adiante o movimento criador da vida.13 13 “Neste sentido, a metafísica não é um vão ornamento da teoria política de Bergson, ao contrário, ela lhe é essencial pois lhe revela toda a sua importância prática: a metafísica bergsoniana, ao definir o estofo da realidade como criação, inscreve na textura mesma do mundo a possibilidade para o homem mudá-lo” (Kisukidi, 2012, p. 265). Assim, se se pode falar em um progressismo político bergsoniano, ele traduz, antes, o próprio movimento criador pelo qual a vida acontece, de modo que a política aqui se constitui e só poderia se constituir efetivamente enquanto tal ao levar em consideração a condição do homem enquanto ser vivo, como espécie natural.14 14 Por isso é que Bergson, “várias vezes, sublinha até que ponto a aspiração dos místicos em engajar todos os homens em seu rastro não pode se realizar (‘o esforço nos quebraria’ significa que ele implicaria uma metamorfose de si que nós não saberíamos suportar) e que as sociedades humanas conservam sempre a estrutura basilar que tem sido a sua desde quando saíram da natureza viva. Apenas as individualidades privilegiadas, espécies de um único individuo, se movem no aberto em estado puro - e são mobilidade na individualidade; a espécie, ao contrário, é uma ‘paragem local’ e se as sociedades são por vezes mais ou menos profundamente transformadas com o surgimento do aberto pela mediação de individualidades excepcionais, no entanto elas não mudaram de natureza: o assassinato, por exemplo, permanece a ratio ultima, senão prima, da política (Waterlot, 2012, pp.180-181). A persecução de ideais democráticos como condutores das práticas e normas sociais é pensada pelo autor como objeto de uma escolha, ou seja, como esforço necessário a ser realizado para que, ao reabrir a cada vez as fronteiras determinadas pela natureza em sua tendência ao fechamento para a manutenção da vida, o homem possa colocar o movimento criador do élan novamente em curso, fazendo de algum modo evoluir a vida. Trata-se, portanto, de um esforço de origem mística: o estado de alma democrático é aquele do homem inebriado pela aspiração ao universal e à fraternidade, ideal este por meio do qual a emoção mística manifesta-se nas relações humanas. O ideal ético fraterno se oporia radicalmente, segundo o autor, às limitações infligidas à espécie pela natureza, pois, mesmo que tais constrangimentos naturais visem de início a sobrevivência dos homens, coloca-os como inimigos e favorece a guerra, o assassinato gratuito e consentido que coloca em risco a própria manutenção da vida humana.15 15 “A natureza terá querido a guerra? Repitamos, uma vez mais, que a natureza nada quis, se por vontade entendermos uma faculdade de tomar decisões particulares. Mas não pode estabelecer uma espécie animal sem desenhar implicitamente as atitudes e os movimentos que resultam da sua estrutura e que são seus prolongamentos. Foi neste sentido que os quis. [...] Ora o homem tem necessariamente a propriedade dos seus instrumentos, pelo menos enquanto deles se serve. Mas porque são desligados dele, podem ser-lhe tomados; tomados já feitos é mais fácil que fazê-los. [...] A partir desse momento será necessário combater. Estamos a falar de uma floresta onde se caça, de um lago onde se pesca: poderão ser também terras a cultivar, mulheres a tomar, escravos a obter. [...] Mas pouco importa a coisa que se toma e o motivo que de tal se dá: a origem da guerra é a propriedade, individual ou coletiva, e como a humanidade está predestinada à propriedade pela sua estrutura, a guerra é natural” (Bergson, 2005, p. 236). Para se insurgir contra a tendência arraigada em nós pela natureza, o esforço criador, sugere Bergson, precisa ser persistente e contínuo.16 16 Como assinala Kisukidi (2012, p. 264), “ao fundar sua teoria política sob a noção de criação, Bergson propõe ferramentas conceituais para combater, concretamente, toda forma de lógica identitária e comunitária, que porta nela mesma um consentimento ao assassinato”. Nesse sentido, não seria o místico também um rebelde ou um revoltado a lutar, a seu modo, contra tudo aquilo que impede a vida humana de alcançar sua plena humanidade ou a sua possibilidade mais completa de criação?

Bergson parece sugerir que os interesses de ordem e manutenção da espécie não devem ser subvalorizados, mas devem também ganhar a aspiração que os eleva a valores humanos efetivamente humanizados, que se pretendem universais, que se dirijam a um sentido maior que o da mera conservação para que o homem reencontre em si mesmo o caminho no qual a vida possa prosseguir rumo a uma melhoria das condições de existência no planeta. Em última instância, aí se encontraria o progresso que a mística traz: escolher rebelar-se contra a ordem que justifica a opressão, que legitima o assassinato e a perda da dignidade humana, que estratifica os seres em dominantes e dominados, exploradores e explorados, seria justamente dar voz ao apelo que ressoa nas profundezas da subjetividade humana, seria permitir-se inebriar pela emoção criadora, manifestação própria da vida, que reverbera no coração dos homens.17 17 “O universal é um efeito de criação; ele não pode estar na origem de uma lógica de exclusão estipulando que a morte do outro não seja a morte de um homem e que ela não possa, por isso, suscitar a indignação (Kisukidi, 2012, p. 264)”. Necessário se torna, portanto, pensar a diferença particular colocada pelo outro sem deixar que ela se torne absoluta: partindo do amor místico que até hoje nos chega pelo exemplo e pelas palavras inspiradoras de personalidades extraordinárias que viveram em algum tempo histórico, as diferenças humanas podem e devem ser compreendidas em sua condição metafísica na qual cada homem iguala-se ao outro justamente por ser a diferença sua característica fundamental e construtora de uma possível fraternidade entre eles.

Referências

  • BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p.
  • CAEYMAEX, F. 2012. La société sortie des mains de la nature. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui Paris, PUF, 2012, pp. 311-333.
  • CAMUS, A. 2013. O Homem Revoltado Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro, Record, 351p.
  • DELEUZE, G. 1999. Bergsonismo Trad. Luis B. L. Orlandi. São Paulo, Ed. 34,142 p.
  • JOO, J-H. 2016. De la Durée à la Vie: une dialectique entre métaphysique et politique chez Bergson Paris. Tese de Doutorado. Université de recherche Paris Sciences et Lettres, 497 p. Disponível em: https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01365947/document
    » https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01365947/document
  • KISUKIDI, Y. 2012. Création, universalisme et démocratie: la philosophie politique de Bergson dans Les deux sources de la morale et la religion In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui Paris, PUF, pp. 245-265.
  • WATERLOT, G. 2012. Luxe et simplicité dans la pensée politique de Bergson - Politique et Mystique face à la guerre. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui Paris, PUF, pp.175- 195.
  • WATERLOT, G. 2013. Seule la mystique pourrait encore nous sauver? Réflexions sur le rapport entre puissance technologique et vie mystique chez Bergson. In: A. FRANÇOIS (org.), Annales Bergsoniennes VI - Bergson, le Japon, la catastrophe Paris, PUF, pp. 227-240.

NOTAS

  • 1
    De acordo com Yala Kisukidi (2012KISUKIDI, Y. 2012. Création, universalisme et démocratie: la philosophie politique de Bergson dans Les deux sources de la morale et la religion. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, pp. 245-265., p. 246), esta transformação social objetivada pela abertura se configura em dois momentos: “num primeiro tempo, moral e metafísico, Bergson opera a refundação do universalismo moral, colocando de antemão a possibilidade para o homem de ultrapassar sua própria natureza, prisioneira do fechamento da espécie [...] num segundo tempo, Bergson desenvolve as consequências político-jurídicas de uma tal refundação do universalismo por meio de uma reflexão sobre as formas de organização institucionais do político e sua ‘regulamentação’”.
  • 2
    Segundo Ghislain Waterlot (2012WATERLOT, G. 2012. Luxe et simplicité dans la pensée politique de Bergson - Politique et Mystique face à la guerre. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, pp.175- 195., p. 180), “o fechamento é a força constitutiva primeira das sociedades humanas. E nada a fará verdadeiramente desaparecer. Cada sociedade está de fato voltada para sua própria conservação, e ela disciplina seus membros a fim de que eles não percam jamais de vista, em primeiro lugar, que o grupo vale mais do que tudo o que está fora, em segundo lugar que não se deve hesitar em subjugar o que é estrangeiro, até mesmo o destruir se necessário. Apenas é considerado verdadeiramente nobre e humano o que vem do grupo do qual se faz parte”.
  • 3
    Como assinala Kisukidi (2012KISUKIDI, Y. 2012. Création, universalisme et démocratie: la philosophie politique de Bergson dans Les deux sources de la morale et la religion. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, pp. 245-265., p. 256, grifos da autora) “o progresso [...] não deve de maneira alguma ser pensado como a realização de um ideal, que seria pensado teoricamente e dado previamente [...], as criações sucessivas que abrem a sociedade não têm modelo. O progresso se explica, de facto, pela capacidade que possui o homem de combater uma tendência com a ajuda da outra, ou fazendo triunfar a tendência à abertura sobre a tendência ao fechamento. O caminho deste combate cria uma nova organização social”.
  • 4
    Como nota Florence Caeymaex (2012CAEYMAEX, F. 2012. La société sortie des mains de la nature. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, 2012, pp. 311-333., p. 326), a respeito dessa nova moral ou moral aberta: “porque ela corresponde a um movimento que precisamente nos chama a romper os limites definidos pela moral da sociedade fechada, ela é da ordem da propulsão ou da aspiração: dinâmica inversa àquela da pressão, e de uma natureza totalmente outra. Longe de se anunciar a nós sob a forma de uma obrigação ou de um dever estritamente determinado, ela se caracteriza por um movimento da alma, uma atitude de abertura”.
  • 5
    Bergson afirma que em todos os tempos apareceram estes homens excepcionais encarnando esta nova moral. Por místico ele entende os santos do cristianismo, os sábios da Grécia, os profetas de Israel, os ascetas do budismo, entre outros. Mas será no Cristo dos evangelhos que o autor verá a referência completa que melhor caracteriza, segundo ele, a moral aberta ou absoluta
  • 6
    Como observa Kisukidi (2012KISUKIDI, Y. 2012. Création, universalisme et démocratie: la philosophie politique de Bergson dans Les deux sources de la morale et la religion. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, pp. 245-265., p. 258), a condição da possibilidade de uma nova configuração ética e política, se articula, em Bergson, em torno de uma teoria da divisão do sujeito. Para o autor, todo indivíduo é composto por uma duplicidade fundamental, pois ao mesmo tempo pertence tanto à sociedade quanto a si mesmo. Tal pertencimento a si mesmo significa, para Bergson, a consciência das regiões profundas e absolutamente originais da personalidade, o contato com a duração interna ou o fluxo criativo e incessante dos próprios sentimentos. Já o pertencimento à sociedade se dá num nível mais superficial da consciência visando atender às demandas práticas e urgentes para nossa sobrevivência, definindo, assim, a maneira pela qual nos submetemos como que instintivamente à pressão das obrigações sociais e internalizamos a vida em sociedade. O apelo do místico vem mobilizar justamente as profundezas do espírito, possibilitando um encontro do sujeito consigo mesmo, de modo a deslocar sua atenção das demandas utilitárias da vida social e agir conforme a emoção pela qual foi vivificada a sua subjetividade.
  • 7
    Como nota Waterlot (2013WATERLOT, G. 2013. Seule la mystique pourrait encore nous sauver? Réflexions sur le rapport entre puissance technologique et vie mystique chez Bergson. In: A. FRANÇOIS (org.), Annales Bergsoniennes VI - Bergson, le Japon, la catastrophe. Paris, PUF, pp. 227-240., p. 237), “a vida não é mais apreendida como uma luta, mas como um dom criador. A primeira preocupação do místico é então se liberar de tudo o que o ocupava enquanto homem natural (homem da sociedade fechada). A vida toma então outro sabor, e a sensação de estar leve e liberado se impõe. E este sentimento vem de uma relação contínua com o princípio da vida, que torna manifestamente irrisório o horizonte da preocupação cotidiana que caracteriza a vida da espécie”.
  • 8
    A intuição propicia, para Bergson, um conhecimento preciso ou imediato do real, o contato com a duração, o que permitiria a compreensão da vida como movimento temporal de criação, instaurador de diferenças ou novidades radicais. Ou seja, a intuição, como observa Deleuze (1999DELEUZE, G. 1999. Bergsonismo. Trad. Luis B. L. Orlandi. São Paulo, Ed. 34,142 p., p. 22), “supõe a duração; ela consiste em pensar em termos de duração”, o que não significa que a intuição seja a própria duração: “a intuição é sobretudo o movimento pelo qual saímos de nossa própria duração, o movimento pelo qual nós nos servimos de nossa duração para afirmar e reconhecer imediatamente a existência de outras durações acima ou abaixo de nós”. Desse modo, se o homem vivificado pela emoção mística acede à força criadora da vida, é por que esse movimento afetivo lhe suscita a intuição, isto é, o rompimento com os constrangimentos da vida social e os hábitos da inteligência e a sua inserção, em ato, no seio mesmo da abertura, o que lhe permite agir e criar em consonância com o próprio movimento criador da vida. “O pequeno intervalo ‘pressão da sociedade-resistência da inteligência’ definia uma variabilidade própria das sociedades humanas. Ora, acontece que, graças a esse intervalo, algo de extraordinário se produz ou se encarna: a emoção criadora. Esta nada tem a ver com as pressões da sociedade, nem com as contestações do indivíduo. [...] Ela somente se serve desse jogo circular para romper o círculo [...]. E o que seria essa emoção criadora senão, precisamente, uma Memória cósmica, que atualiza ao mesmo tempo todos os níveis, que libera o homem do plano ou do nível que lhe é próprio para fazer dele um criador, um ente adequado a todo o movimento de criação?” (Deleuze, 1999DELEUZE, G. 1999. Bergsonismo. Trad. Luis B. L. Orlandi. São Paulo, Ed. 34,142 p., pp. 90-91).
  • 9
    Pode-se aqui fazer referência a algumas ideias de Albert CamusCAMUS, A. 2013. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro, Record, 351p. expressas em sua obra O Homem Revoltado. Guardadas as devidas diferenças que marcam o pensamento filosófico de Camus e de Bergson, é possível enxergar uma aproximação entre eles na medida em que, de acordo com Camus, o homem revoltado é aquele que contrapõe à ordem existente e que o oprime um direito, a saber, o de não ser mais oprimido além daquilo que pode consentir. A revolta, busca, portanto, criar um valor que seja, assim como em Bergson, reconhecido em si mesmo por todos os homens; nota-se aqui que a solidariedade humana, para Camus, ou a fraternidade entre os homens, como quer Bergson, configura-se como um fundamento a partir do qual um universalismo moral nos dois autores pode ser pensado, uma vez que para eles o homem procura e se esforça por criar um valor que transcenda as particularidades da condição histórica e aspire a unidade no mundo ou a retomada do impulso criador da vida.
  • 10
    Como nota Jae-Hyung Joo (2016JOO, J-H. 2016. De la Durée à la Vie: une dialectique entre métaphysique et politique chez Bergson. Paris. Tese de Doutorado. Université de recherche Paris Sciences et Lettres, 497 p. Disponível em: https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01365947/document.
    https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-013...
    , p. 449), “o poder absoluto aparece como poder de fazer morrer, da morte. Com efeito, o poder, que tinha começado por ser a força organizadora das forças vitais dos indivíduos, que era então poder de vida, se converte em poder da morte. O assassinato exprime bem o absolutismo do poder político do chefe; reciprocamente, para melhor manifestar seu absolutismo, o chefe deve exercer regularmente seu poder de matar. A morte é efetivamente a prova mais certeira do absolutismo do poder do chefe. No entanto, a incerteza e a contingência propriamente humanas intervêm de novo. [...] Muitos homens não hesitarão matar ainda mais os outros para poder conquistar esse poder absoluto, o poder de matar. Matamos para poder matar. Isso mina ironicamente o absolutismo do poder. [...] Como o pertencimento mesmo desse poder é por natureza fundamentalmente e essencialmente contingente e sem garantia, a hierarquia, ou a organização instituída por esse poder, muito naturalmente e muito necessariamente balança, cedo ou tarde. Daí esta política que Bergson despreza, a política como luta pelo poder”.
  • 11
    “A democracia estaria essencialmente ligada a esta realização completa do dimorfismo psíquico em cada um. [...] Assim, a possibilidade da dominação e a possibilidade de sua anulação ou de sua transformação profunda têm a mesma origem, o dimorfismo psíquico. Este explica tanto a dominação de muitos por alguns quanto a instabilidade e a falta de fundamento de uma tal dominação [...] O dimorfismo individual implica que nenhuma dominação entre os homens poderia ser absoluta e definitiva porque esse dimorfismo conserva sempre a possibilidade de sua anulação” (Joo, 2016JOO, J-H. 2016. De la Durée à la Vie: une dialectique entre métaphysique et politique chez Bergson. Paris. Tese de Doutorado. Université de recherche Paris Sciences et Lettres, 497 p. Disponível em: https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-01365947/document.
    https://tel.archives-ouvertes.fr/tel-013...
    , p. 458).
  • 12
    De acordo com Ghislain Waterlot (2012WATERLOT, G. 2012. Luxe et simplicité dans la pensée politique de Bergson - Politique et Mystique face à la guerre. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, pp.175- 195., p. 180), “a distinção do fechado e do aberto permite afirmar, com efeito, que o fechado tem sua estrutura própria, que perdura, e, se o aberto traz a perspectiva da abertura e a realidade de um tipo de entreabertura às sociedades concretas, ele não substitui a estrutura fechada que permanece irredutível e que continua a resistir ao apelo da abertura. O fechado é a força constitutiva primeira das sociedades humanas. E nada o fará verdadeiramente desaparecer”.
  • 13
    “Neste sentido, a metafísica não é um vão ornamento da teoria política de Bergson, ao contrário, ela lhe é essencial pois lhe revela toda a sua importância prática: a metafísica bergsoniana, ao definir o estofo da realidade como criação, inscreve na textura mesma do mundo a possibilidade para o homem mudá-lo” (Kisukidi, 2012KISUKIDI, Y. 2012. Création, universalisme et démocratie: la philosophie politique de Bergson dans Les deux sources de la morale et la religion. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, pp. 245-265., p. 265).
  • 14
    Por isso é que Bergson, “várias vezes, sublinha até que ponto a aspiração dos místicos em engajar todos os homens em seu rastro não pode se realizar (‘o esforço nos quebraria’ significa que ele implicaria uma metamorfose de si que nós não saberíamos suportar) e que as sociedades humanas conservam sempre a estrutura basilar que tem sido a sua desde quando saíram da natureza viva. Apenas as individualidades privilegiadas, espécies de um único individuo, se movem no aberto em estado puro - e são mobilidade na individualidade; a espécie, ao contrário, é uma ‘paragem local’ e se as sociedades são por vezes mais ou menos profundamente transformadas com o surgimento do aberto pela mediação de individualidades excepcionais, no entanto elas não mudaram de natureza: o assassinato, por exemplo, permanece a ratio ultima, senão prima, da política (Waterlot, 2012WATERLOT, G. 2012. Luxe et simplicité dans la pensée politique de Bergson - Politique et Mystique face à la guerre. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, pp.175- 195., pp.180-181).
  • 15
    “A natureza terá querido a guerra? Repitamos, uma vez mais, que a natureza nada quis, se por vontade entendermos uma faculdade de tomar decisões particulares. Mas não pode estabelecer uma espécie animal sem desenhar implicitamente as atitudes e os movimentos que resultam da sua estrutura e que são seus prolongamentos. Foi neste sentido que os quis. [...] Ora o homem tem necessariamente a propriedade dos seus instrumentos, pelo menos enquanto deles se serve. Mas porque são desligados dele, podem ser-lhe tomados; tomados já feitos é mais fácil que fazê-los. [...] A partir desse momento será necessário combater. Estamos a falar de uma floresta onde se caça, de um lago onde se pesca: poderão ser também terras a cultivar, mulheres a tomar, escravos a obter. [...] Mas pouco importa a coisa que se toma e o motivo que de tal se dá: a origem da guerra é a propriedade, individual ou coletiva, e como a humanidade está predestinada à propriedade pela sua estrutura, a guerra é natural” (Bergson, 2005BERGSON, H. 2005. As Duas Fontes da Moral e da Religião. Trad. Miguel Serras Pereira. Coimbra, Almedina, 264 p., p. 236).
  • 16
    Como assinala Kisukidi (2012KISUKIDI, Y. 2012. Création, universalisme et démocratie: la philosophie politique de Bergson dans Les deux sources de la morale et la religion. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, pp. 245-265., p. 264), “ao fundar sua teoria política sob a noção de criação, Bergson propõe ferramentas conceituais para combater, concretamente, toda forma de lógica identitária e comunitária, que porta nela mesma um consentimento ao assassinato”.
  • 17
    “O universal é um efeito de criação; ele não pode estar na origem de uma lógica de exclusão estipulando que a morte do outro não seja a morte de um homem e que ela não possa, por isso, suscitar a indignação (Kisukidi, 2012KISUKIDI, Y. 2012. Création, universalisme et démocratie: la philosophie politique de Bergson dans Les deux sources de la morale et la religion. In: F. WORMS (org.), Annales Bergsoniennes V - Bergson et la politique: de Jaurès à aujourd’hui. Paris, PUF, pp. 245-265., p. 264)”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2020
  • Aceito
    21 Nov 2020
Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS Av. Unisinos, 950 - São Leopoldo - Rio Grande do Sul / Brasil , cep: 93022-750 , +55 (51) 3591-1122 - São Leopoldo - RS - Brazil
E-mail: deniscs@unisinos.br