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O lugar da palavra para a psicanálise

The place of the word for psychoanalysis

El lugar de la palabra para el psicoanálisis

Resumo

O presente trabalho tem como tema o lugar da palavra no contexto da emergência das ciências humanas e sua inter-relação com as ciências como a psicologia, as ciências da linguagem como a filologia e linguística e seu contraponto com a psicanálise. Com o objetivo de traçar o surgimento do homem enquanto objeto da ciência a partir do século XIX, o trabalho explicita como a psicologia, ao buscar um lugar junto às ciências empíricas, e utilizando de um discurso fundado em termos positivistas, acabou por negligenciar o fato de se constituir essencialmente por objetos discursivos constituídos em um contexto histórico e cultural, destituindo-se de um campo da palavra. O constructo da palavra é, portanto, tratado como eixo principal do texto, valendo-se especialmente das contribuições de Foucault, Thomas Teo, Danziger, Freud e Lacan. Como conclusão, a relação entre linguagem, palavra e psicanálise foi traçada, culminando no entendimento de que é na impossibilidade da língua, demonstrada em sua vertente de lalíngua, que é possível ao humano advir e existir, ainda que de forma incompleta.

Palavras-chave:
psicanálise; epistemologia; linguagem

Abstract

The present work has as its theme the place of the word in the context of the emergence of the humanities and its interrelationship with the sciences such as psychology, the language sciences as philology and linguistics and its counterpoint with psychoanalysis. In order to trace the emergence of man as an object of science from the 19th century, the work explains how psychology, in seeking a place with the empirical sciences, and using a discourse based on positivist terms, eventually neglected to be constituted essentially by discursive objects constituted in a historical and cultural context, destituting itself from a word field. The word construct is therefore treated as the main axis of the text, drawing especially on the contributions of Foucault, Thomas Teo, Danziger, Freud and Lacan. As a conclusion, the relationship between language, word and psychoanalysis was drawn, culminating in the understanding that it is the impossibility of language, demonstrated in its lalangue aspect, that it is possible for the human to come and exist, although not in a way of completeness.

Keywords:
psychoanalysis; epistemology; language

Resumen

El presente trabajo tiene como tema el lugar de la palabra en el contexto del surgimiento de las ciencias humanas y su interrelación con ciencias como la psicología, las ciencias del lenguaje como la filología y la lingüística y su contrapunto con el psicoanálisis. Con el objetivo de rastrear el surgimiento del hombre como objeto de la ciencia a partir del siglo XIX, el trabajo explica cómo la psicología, al buscar un lugar junto a las ciencias empíricas, y utilizando un discurso basado en términos positivistas, terminó por descuidar el hecho de constituyéndose esencialmente por objetos discursivos constituidos en un contexto histórico y cultural, despojándose de un campo de la palabra. El constructo de la palabra es, por tanto, tratado como eje principal del texto, apoyándose especialmente en las aportaciones de Foucault, Thomas Teo, Danziger, Freud y Lacan. Como conclusión, se trazó la relación entre lenguaje, palabra y psicoanálisis, culminando en la comprensión de que está en la imposibilidad del lenguaje, demostrada en su aspecto de lalangue, que es posible que lo humano venga y exista, aunque sea de manera incompleta.

Palabras clave:
psicoanálisis; epistemología; lenguaje

Um começo de conversa...

Os humanos falam. Falam e, em geral, não se entendem. Considerando que o uso de uma linguagem articulada em palavras é o que nos diferencia essencialmente de outros animais, é minimamente curioso perceber como nosso sistema de comunicação é tão falho e impreciso. Ao longo dos anos, e em especial com o advento do pensamento científico, diversas foram e ainda são as tentativas de domar a linguagem, com a sempre presente fantasia de que algum dia cheguemos a dizer tudo o que desejamos dizer.

Apesar de uma constante atitude científica em busca de uma certa compreensão do funcionamento da linguagem humana e suas vicissitudes, o puro estudo da letra não pode fornecer respostas ao grande questionamento sobre o que é o homem. Se a pergunta filosófica permanece e não demonstra sinais de esgotamento, é exatamente porque, embora esteja na linguagem a pista para o encontro de nossa humanidade, é também nela que os rastros se dissipam. Além da filologia e da linguística, é do lugar da psicanálise que se torna possível articular que é exatamente no que a linguagem “manca”, no que ela não comunica, que vemos surgir o sujeito, falho e impreciso em sua essência. Discorrer sobre o que é o “humano” para a psicanálise, em especial após a leitura de Jacques Lacan, implica uma cisão radical da teoria psicanalítica com outras vertentes da ciência. Segundo Terezinha Costa (2008COSTA, Terezinha. Psicanálise com crianças. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008., p. 62), a teorização de Lacan aponta para o fato de que:

O sujeito não nasce pronto como os animais. Ele deve ser constituído, e sua constituição acontece na relação com a fala que passa pela linguagem. E essa fala não significa aprender a articular palavras e formar frases para comunicar-se com os demais, mas significa ir além da necessidade e ter acesso ao desejo. Portanto, se o sujeito é efeito de linguagem, representado de um significante para outro, é necessário submeter-se ao significante para que possa falar.

Seguindo essa trilha, este trabalho visa refletir primeiramente sobre o surgimento do homem como objeto de estudo e interesse da ciência e como as ciências humanas se inseriram no campo epistemológico. Sobre esse ponto, será problematizado o surgimento da psicologia enquanto uma ciência privilegiada para o estudo desse objeto-homem, herdando o discurso das ciências positivas (em especial a física e a biologia). Contudo, a psicologia não pode fugir de sua essência discursiva, uma vez que seu objeto central se insere em um contexto social e histórico. É então que a psicanálise estabelece seu lugar como um campo que privilegia a palavra em sua viabilização do sujeito. O discurso psicanalítico permite que o sujeito emerja em meio à cadeia significante que desliza sob os significados com a possibilidade de articulação via linguagem. Enquanto o discurso científico e psicológico parece desconhecer ou incessantemente elidir esse contínuo “desentendimento” necessário e inevitável oriundo da impossibilidade de apreensão de um objeto total, da coisa em si (das Ding), a psicanálise, com seu método de simples troca de palavras entre analista e analisando, aponta para o vazio deixado pela inexistência desse objeto, e é então que a palavra, a linguagem, ocupa seu lugar na fundação do inconsciente e acesso ao desejo, mesmo que a condição eterna do humano seja a de desejar o desejo, e não a de satisfazê-lo.

O surgimento das ciências humanas e o lugar da linguagem

Embora seja objeto de controversa filosófica a afirmação que o homem exista, não se pode negligenciar que o século XIX marca o início de uma preocupação com um novo campo epistemológico, que é o das ciências humanas. Nesse sentido, esse grupo de discursos ditos humanos surgiram quando o homem se constituiu na cultura ocidental e, com ele, a necessidade de questionamento sobre sua subjetividade, o que pensa e o que deve saber. De fato, segundo Foucault (1985FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985.), foi no advento da sociedade industrial do século XIX que a psicologia emergiu como ciência, dentro de um movimento maior na ordem do saber que passa a considerar o pensamento sobre a vida, a linguagem e o trabalho dignos de uma reflexão filosófica.

Seguindo a elaboração desse autor, a filologia emerge, em companhia de outras ciências humanas, como uma reviravolta e um entrave na epistemologia então vigente. Até então, o campo do saber pode ser compreendido como homogêneo: todo conhecimento poderia ser ordenado e classificado por meio do estabelecimento de diferenças que poderiam estabelecer uma determinada ordenação. Isso se aplicava às ciências biológicas, matemáticas, física e química, além de se estender para todo o pensamento filosófico de então, como é possível perceber com Descartes e seu fundamento na razão. Entretanto, a partir do século XIX, o campo epistemológico sofre o cisma trazido pela inclusão do homem como centro de uma matéria científica, o que tornou mais difícil a manutenção de um pensamento lógico linear para a compreensão do mundo. Com o homem inserido no pensamento científico, imerso em suas questões subjetivas, tudo se desordena, e uma episteme moderna se faz necessária. Também segundo Foucault (1985FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985.), o conhecimento então se realinha em três dimensões: o campo das ciências matemáticas e físicas, para as quais é sempre possível verificar ou evidenciar proposições por meio da lógica dedutiva ou indutiva; o campo das ciências que buscam o estabelecimento de relações causais e constantes no funcionamento de seus objetos, considerados descontínuos, porém análogos, como a linguagem, as ciências da vida, da produção e da distribuição de riquezas; e o campo da reflexão filosófica. As duas primeiras guardam entre si a possibilidade do empirismo, conforme o sentido em que se proceda o estudo. A terceira se debruça sobre a própria essência do pensamento sobre essas duas empiricidades anteriores, como a linguística, a biologia e a economia, delimitando, assim, um plano da formalização do pensamento sobre o conhecimento.

Ainda conforme esse autor, as ciências humanas não pertencem especificamente a nenhuma dessas três dimensões, mas, paradoxalmente, encontram seu lugar exatamente no interstício desses saberes. Ele nos diz:

Essa situação (menor num sentido, privilegiada noutro) coloca-as em relação com todas as outras formas de saber: têm um projeto, mais ou menos protelado, porém constante, de se conferirem ou, em todo o caso, de utilizarem, num nível ou noutro, uma formalização matemática; procedem segundo modelos ou conceitos tomados à biologia, à economia e às ciências da linguagem; endereçam-se, enfim, a esse modo de ser do homem que a filosofia busca pensar ao nível da finitude radical, enquanto elas pretendem percorrê-lo em suas manifestação empíricas. É talvez essa repartição nebulosa num espaço de três dimensões que torna as ciências humanas tão difíceis de situar, que confere sua irredutível precariedade à localização desse domínio epistemológico, que as faz aparecer ao mesmo tempo como perigosas e em perigo” (FOUCAULT, 1985FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985., p. 365).

De todo modo, ao pinçarmos especialmente as ciências da linguagem, a filologia e, em sua forma mais pura, a linguística, voltamo-nos para um objeto não tão novo: a palavra. Contudo, o estudo puro da linguagem enquanto objeto de questionamento humano tem ocupado o pensamento ocidental desde os tempos mais antigos, o que atestam a dialética, a poética, a métrica e a retórica clássicas. Porém, na modernidade aqui descrita, a palavra passa a ser veículo para a emergência de um novo objeto: o homem, mesmo que este se mostre de maneira evanescente e turva. O homem existe porque fala, e a palavra possibilita que o sujeito se desvele, mesmo sem saber. Em um contraponto não tão evidente, trilharão caminhos distintos a psicologia, que busca a apreensão desse humano, em uma crença básica de sua existência positiva; e a psicanálise, que aponta exatamente para o fato de que o sujeito só pode advir de onde fala sem saber, ou seja, do inconsciente.

A psicologia e sua disputa com a linguagem

Somente após a tomada do homem como um objeto de estudo científico, foi possível pensar em um campo do conhecimento que se ocupasse dele. Nesse sentido, a palavra “psicologia” passa a se referir a todo um campo de tópicos, assuntos e práticas relacionadas ao estudo da alma, da consciência, da vida mental, do comportamento, da experiência humana, a mente ou o cérebro, dependendo da era ou do contexto cultural (TEO, 2009TEO, Thomas. Philosophical concerns in critical psychology. In: FOX, Dennis; PRILLELTENSKY, Isaac; AUSTIN, Stephanie (Eds.). Critical psychology: An introduction. 2nd. ed. London: Sage, 2009. p. 36-53.).

Apesar de um enorme esforço para aproximar as questões dos modelos de estudo e de linguagem utilizados pelas ciências matemáticas e biológicas, à psicologia sempre “mancou” uma essencial questão: seus conceitos não podem ser estudados de forma unicamente objetiva e quantitativa. Eles são construídos em contextos culturais específicos e com propósitos delineados no tempo e no espaço em que emergem, o que pode ser o equivalente a dizer que nascem em um determinado contexto discursivo. Sendo assim, são também formas de discurso e, como tais, não podem prescindir da palavra e suas significâncias.

Conforme Danziger (2003DANZIGER, Kurt. Where theory, history and philosophy meet: The biography of psychological objects. In: HILL, Darryl B.; KRAL, Michael J. (Eds.). About psychology: Essays at the crossroads of history, theory and philosophy. New York University Press, 2003. p. 19-33.), levar em conta que os objetos da ciência psicologia são objetos discursivos implica a forma como esses objetos se apresentam para o estudo, ou, se preferirmos, uma forma hegeliana de abordar a matéria, a forma como esses objetos se apresentam para a consciência. Assim, o entendimento em relação a um determinado conceito tem uma relação profunda e íntima com as práticas sociais vigentes da época e com a modo como a palavra que sustenta esse discurso é contextualizada. Isso aponta radicalmente para o fato de que, especialmente em psicologia, não existem objetos a-históricos, existentes em um espaço abstrato e atemporal, desconectado da atividade humana. Essa falha eterna em tentar se igualar às ciências experimentais tem gerado uma espécie de ressentimento por parte dos psicólogos que almejam incessantemente o status de ciência para psicologia. Também acaba por gerar perplexidade quando podemos identificar que culturas ocidentais tenham vocabulários para os objetos ditos psicológicos completamente distintos daqueles utilizado no Ocidente. De forma bastante enfática, a própria linguagem psicológica buscou, ao longo de sua história, uma aproximação com os termos típicos dos discursos empíricos, gerando todo um vocabulário que visa disfarçar ou mesmo mascarar o caráter essencialmente discursivo dos objetos de estudo da psicologia. Na verdade, segundo Danziger (1997)DANZIGER, Kurt. Naming the mind: How psychology found its language. London: Thousand Oaks: New Delhi. Sage Publications, 1997., uma linguagem não é somente um sistema de representações. Assim que é utilizada, ela se torna a própria prática, uma vez que as pessoas de fato agem e fazem todo tipo de coisas com palavras. Nesse sentido, a busca implacável pelo vocabulário empírico deu à psicologia toda uma prática voltada também para o empiricismo e positivismo, regulando a ação psicológica para a negação do caráter essencialmente discursivo dos objetos de seu interesse.

Com a chave de leitura da psicanálise é possível compreender que essa transmutação dos objetos relativos à ciência psicológica se dá em virtude de que o significado de uma palavra nem sempre corresponde ao significante que ela porta. Embora um dicionário possa definir o significado da palavra inconsciente, o significante encadeado que corre sob o nome é de maior potência, e só pode ser explicitado com mais discurso, com um encadeamento de outros significantes que têm seu lugar em um determinado momento histórico e contexto cultural. O exemplo mais evidente de como o contexto histórico pode impactar os significantes de uma palavra está no fato de que, se nos referíssemos ao inconsciente em 1888, quando no máximo os filósofos o consideravam um mero antônimo da consciência, provavelmente não levantaríamos um terço de polêmica ou questionamentos que a palavra portava em 1900, após o lançamento de A interpretação dos sonhos de Freud, momento em que se inicia o marco de uma significância da palavra inconsciente como conceito-mestre da psicanálise. Nas décadas de 1950-1960, Lacan também instituiu um novo encadeamento discursivo para o inconsciente.

Herdeiro do pensamento hegeliano e do estruturalismo francês, foi Lacan que instaurou o marco fronteiriço de apontar a psicanálise como uma contra-ciência, uma via de contramão de detalhamento da linguagem, de forma a fazer emergir o sujeito em uma cadeia de significantes.

A psicanálise e seu namoro com a letra

Para a psicanálise a palavra é objeto em si. Para a ciência a linguagem é um instrumento de transmissão de conhecimentos, é um meio para se comunicar fins. Deve ser prática, asséptica e impessoal. Para a psicanálise ela é o próprio âmago do trabalho. Longe de ser tomada por um sentido único, literal ou denotativo, a palavra no setting psicanalítico é um furo, é o vazio aberto entre as errâncias do analisando e que lhe permite a tentativa de saber que é ele quem diz mais do que sabe, e é nesse espaço que o significante corre por outra via que não a do sentido.

Também podemos aprender, como Freud o fez, com Goethe em seu Fausto (2003GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. São Paulo: Martin Claret, 2003. Coleção a Obra-Prima de Cada Autor.). Em um momento magistral, após firmar o pacto com Fausto, Mefistófeles encontra-se com um estudante que busca aconselhamento do grande doutor. Disfarçado de dr. Fausto, o demônio tenta dissuadir o jovem rapaz da vida de estudos e abnegação exigidos pelas ciências e trata de versar sobre como as palavras podem servir tanto ao engano quanto ao acerto, e como a ciência, seja ela qual for, pode esvaziar a linguagem de sua essência, de seu papel subversivo de portar o gozo. Nas letras do poeta: “Serve a palavra onde as ideias faltam. Disputa-se mui bem só com palavras, com palavras sistemas se constroem, na palavra se crê com fé profunda, da palavra um iota se não tira” (GOETHE, 2003GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. São Paulo: Martin Claret, 2003. Coleção a Obra-Prima de Cada Autor., p. 91).

A psicanálise também traz a linguagem como seu mundo. Aliás, faz pior, mostra à humanidade que a linguagem constitui o humano, uma vez que é a própria matéria do inconsciente. Segundo LoBianco e Costa-Moura (2017)LO BIANCO, Anna Carolina; COSTA-MOURA, Fernanda. Inovação na ciência, inovação na psicanálise. Ágora, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 491-508, ago. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/1809-44142017002010
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, ancoradas no ensino de Jacques Lacan, a ciência, com sua ilusão de controlar, ou pelo menos restringir a vida própria da linguagem, busca elidir exatamente sua dimensão significante. Porém, é essa dimensão que sustenta um lugar para o sujeito, tal como tomado pela psicanálise, ao possibilitar a incidência da diferença, do vazio e do estranhamento do outro. Como o significante só se mostra na cadeia deslizante, advém como efeito o incessante retroagir a um significante anterior sem que ele seja mais o mesmo. Essa é a própria estrutura da linguagem. As autoras nos dizem: “O simples aparecimento de um significante qualquer numa frase, seja ele qual for, necessariamente produz essa retroação. E essa incidência cria, em toda frase, uma diferença inassimilável, um ‘lugar vazio’ para ‘interpretação’ do sujeito” (LOBIANCO; COSTA-MOURA, 2017LO BIANCO, Anna Carolina; COSTA-MOURA, Fernanda. Inovação na ciência, inovação na psicanálise. Ágora, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, p. 491-508, ago. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/1809-44142017002010
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, p. 500).

Como tentativa de corresponder a um patamar científico, a psicanálise nos aponta o óbvio em sua simples atitude de não arredar o pé da essência do discurso. Afinal, com nos diz Freud (1926/1996), nada mais acontece em uma sessão psicanalítica além de que analista e analisando conversam entre si. Nada mais, nada menos. Simples assim. Não há instrumentos, nem um aparato tecnológico, biológico ou químico. Puro discurso. Mas então o autor nos mostra como não há nada de simples com esse uso das palavras:

Não desprezemos a palavra. Afinal de contas, ela é um instrumento poderoso; é o meio pelo qual transmitimos nossos sentimentos a outros, nosso método de influenciar outras pessoas. As palavras podem fazer um bem indizível e causar terríveis feridas. Sem dúvida ‘no começo foi a ação’ e a palavra veio depois; em certas circunstâncias ela significou um progresso da civilização quando os atos foram amaciados em palavras. Mas originalmente a palavra foi magia - um ato mágico; e conservou muito de seu antigo poder (FREUD, 1926/1996FREUD, Sigmund. A questão da análise leiga: conversações com uma pessoa imparcial (1926). In: SALOMÃO, Jayme (Org.). Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 20, p. 175-250. Edição Standard Brasileira., p. 183).

Precisamente por conservar seu caráter mágico, é na teia do discurso do sujeito que este advém e reconstrói seu corpo, sua história e seu destino. Ao claudicar nas próprias palavras no contexto psicanalítico, com o compromisso ético do analista em apontar para o desejo que sempre é incompleto, o humano passa a se escrever, se delinear, e inclusive a perder a completude ilusória fornecida pelo discurso hegemônico de empiria da psicologia em nossa cultura.

Para a psicanálise, esse compromisso é radical por tomar o sujeito como efeito de linguagem, como aquilo que resulta do fato de que só somos porque falamos (BURGARELLI, 2017BURGARELLI, Cristóvão Giovanni. De que sujeito trata a psicanálise? In: ______. (Org.), Padecer do Significante: a questão do sujeito. Campinas: Mercado das Letras, 2017. p. 39-58.). Considerá-lo como tal implica uma ruptura, uma falta, que abre o campo do desejo, do articular das palavras para construir uma existência pautada na tensão entre aqui e acolá, entre o eu e outro, como uma circularidade que não é redonda, mas curva. O outro e o Outro não são coincidentes entre si. São dimensões opacas dessa diferença apontada como sendo o abismo e a beleza da existência humana. O outro como o diferente que barra e ascende ao desejo, o Outro como o inconsciente que possibilita, por ser estruturado como linguagem, que os humanos existam, falem e não se entendam.

Ainda assim, Lacan (1953/1998LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. p. 238-324., p. 269) nos demonstra como “o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves para o objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser desejado pelo outro”. É então que se pode falar em destino do homem. Seu destino, sua destinação é falar (falhar?). Na ambiguidade da linguagem, deve percorrer seus confins, obedecer a suas leis por força do desejo, até se haver com uns tais começares, de antes e de sempre, que o constituem na cadeia significante. É a isso que a psicanálise chama de desejo inconsciente, ou, em palavras bem mais simples, desejo de desejar sem perder os fios emaranhados de um padecer da vida, de um apaixonar-se e, ao mesmo tempo, de um sofrer por ela e por causa dela - vida de humano que só se fez porque um dia a palavra erotizou o corpo.

Se o ato psicanalítico pode se resumir a uma troca de palavras entre analista e analisando, é preciso pontuar que isso não significa falar para qualquer um. O analista não é um outro. É ponte para o Outro, o mistério refletido que abre rincões e permite o mergulho em si mesmo, sem se afogar. Lacan (1953/1998)LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. p. 238-324. nos diz que o que se busca ensinar ao sujeito em análise é o reconhecimento de seu inconsciente como sua própria história, e o método psicanalítico brilha em sua originalidade simplória exatamente por não se afastar da essência do humano, a saber, sua existência no campo da fala e da linguagem:

Seus meios são os da fala, na medida em que ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto, como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui a emergência da verdade real (LACAN, 1953/1998LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. p. 238-324., p. 259).

É nesse sentido que a troca de palavras em análise, ou melhor dizendo, a interlocução psicanalítica, não é mais que o discurso robótico, mecânico que um paciente recebe de seu médico. No contexto psicanalítico, é exatamente porque o sujeito tem que ressignificar as palavras que contam sua história, porque é colocado no lugar da interlocução de seu próprio desejo, que pode vir a emergir e existir. A psicanálise reconhece que a linguagem não é restrita ao seu papel de comunicação, mas é, por outro lado, feita de lalíngua, um termo cunhado por Lacan para representar aquilo que da língua não se pode comunicar, que foge à representação e rejeita o papel comunicacional da linguagem.

No reenvio de um significante a outro, a linguagem falha, e é no que ela não comunica que podemos nos aproximar do conceito de lalíngua. Precisamente na fenda produzida pela impossibilidade de representação, Lacan nos fala de uma língua entre outras, isso a que chamou de lalíngua. Milner (2012MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Campinas: Unicamp, 2012., p. 21) aponta que ela “é, em toda língua, o registro que a fada ao equívoco”. Uma vez que qualquer dizer passa necessariamente por lalíngua, ela concerne ao registro do real, pois não pode ser simbolizada nem apreendida pela realidade comum. Esse é o fator que determina que uma língua nunca pode ser igual a si mesma, não pode compor um todo unitário. Há, em toda língua, aquilo que falta, que se equivoca justamente pelo impossível de se representar, impossível de se traduzir em palavras, mas que, mesmo assim, atravessa a linguagem.

Nada no discurso da ciência da psicologia se aproxima dessa prática equivocante, exatamente porque a psicologia, em sua busca de se aproximar das ciências empíricas, optou por um discurso fechado, positivo, pautado no uso da linguagem para o fim de moldar o homem à empiria.

Para uma in(conclusão)

Ao elaborar essa categoria conceitual que subjaz e, ao mesmo tempo, se sobrepõe à linguagem comum, Lacan possibilita que a psicanálise se estabeleça como uma ciência que tem como objeto a própria palavra (portanto, não-ciência), mas que pode desprender-se do purismo linguístico pela busca do elo perdido que devolveria a felicidade de compreensão mútua que nós, pela linguagem, supomos possuírem os animais.

Da existência de lalíngua a psicanálise infere que o sujeito fala mais do que sabe, porque não sabe e nunca pode chegar a dizer tudo. Essa falta é impreenchível e inegociável. Lalíngua é o que não se pode dizer, mas, ainda sim, está presente em toda tentativa de comunicação entre os humanos. Como atesta o inconsciente, no que ele é feito de lalíngua e estruturado como uma linguagem, lalíngua, no que tem de maternal em seu recebimento, é o que vai diferenciar cada ser falante, exilando-o em um campo de incompreensão intransponível, marcado como um riscado no corpo, encarnado em cada um. Assim, Lacan nos aponta que, se há uma língua que não se serve à comunicação, ela deve servir a outra coisa: ao gozo. Uma língua que está envolvida com a satisfação da pulsão, com o desejo inconsciente. É, portanto, no nível de lalíngua que a psicanálise atua.

É no momento da análise, onde a fala do analisante é levada às últimas consequências, que se pode considerar a existência de uma língua que habita qualquer outra língua e que a condena ao erro. Considerando que lalíngua é incompleta, percebe-se que esse ato de não completude perpassa as formas discursivas. Se por um lado a linguística esforça-se para negar essa falta, temos na poesia a expressão máxima de lalíngua não se escrevendo na escrita; uma forma de discurso que incessantemente escolhe não ignorar essa falta de dizer de lalíngua. Esse é o ponto nodal do lugar privilegiado que a psicanálise dá para a linguagem, enquanto campo de emergência do sujeito por seu deslizar na cadeia significante, em contraponto com o uso técnico da palavra realizado pelas ciências. Se para estas a linguagem é meio para apreensão do todo, para aquela é no vazio deixado pelo furo impreterível do não-dizer que podemos continuar a nos (des)entender. Esse é o perigo da vida, do qual nos previne a psicanálise: ignorar que é no não-ser que o humano pode ser, sem ser, tudo.

Referências

  • BURGARELLI, Cristóvão Giovanni. De que sujeito trata a psicanálise? In: ______. (Org.), Padecer do Significante: a questão do sujeito. Campinas: Mercado das Letras, 2017. p. 39-58.
  • COSTA, Terezinha. Psicanálise com crianças. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008.
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  • LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem (1953). In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. p. 238-324.
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  • MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Campinas: Unicamp, 2012.
  • TEO, Thomas. Philosophical concerns in critical psychology. In: FOX, Dennis; PRILLELTENSKY, Isaac; AUSTIN, Stephanie (Eds.). Critical psychology: An introduction. 2nd. ed. London: Sage, 2009. p. 36-53.

Editado por

Editoras responsáveis pelo processo de avaliação:

Ana Claudia Lima Monteiro e Cláudia Castanheira de Figueiredo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2019
  • Revisado
    02 Mar 2023
  • Revisado
    06 Mar 2023
  • Aceito
    12 Abr 2023
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