Acessibilidade / Reportar erro

As mulheres em Lolita: um discurso violento sobre a sexualidade feminina

The women in Lolita: a violent discourse about the female sexuality

Las mujeres en Lolita: un discurso violento sobre la sexualidad femenina

Resumo

O presente artigo pretende construir uma leitura psicanalítica sobre as mulheres presentes em ‘Lolita’, obra literária de Vladimir Nabokov, publicada em 1955. O livro é a autobiografia de Humbert Humbert, de 38 anos, que tem como objeto de amor uma garota de 12 anos, a quem ele nomeia como ninfeta. O narrador defende a existência de duas categorias femininas diferentes. A primeira é atribuída às mulheres adultas, nomeadas como agentes paliativos por serem permitidas por Lei a se relacionarem sexualmente com homens; e a segunda, às diabólicas ninfetas, seu verdadeiro objeto de desejo. Partindo de uma leitura freudolacaniana sobre o feminino e apoiada nos estudos da filósofa Simone de Beauvoir sobre as categorias de representação social das mulheres, o artigo realizou um percurso a partir da fala do narrador Humbert Humbert, criador de tais categorias do feminino, para a investigação do conceito sobre fetichismo. Foi possível concluir que o discurso acerca da sexualidade feminina se constitui para benefício exclusivo de Humbert Humbert, que determina e goza com a nomeação de mulheres, ou seja, ao falar sobre o feminino, o narrador nos ajuda a produzir UM saber, voltado, na verdade, para a sexualidade masculina.

Palavras-chave:
psicanálise; sexualidade; feminilidade; ninfeta; fetichismo

Abstract

This article intends to construe a psychoanalytical reading about the women in the literary work Lolita, by Vladimir Nabokov, published in 1955. The book is the autobiography of Humbert Humbert, 38, whose love object is a 12-year-old girl whom that he names as a nymphet. The narrator argues for the existence of two different female categories. The first would be attributed to adult women, named as palliative agents as permitted by the Law to have sexual relations with men. The second to diabolical nymphets, their true object of desire. Starting from a Freudolacanian reading about the feminine and supported by the philosopher Simone de Beauvoir’s studies on the categories of women’s social representation, this paper will return to the narrator Humbert Humbert, creator of such categories of the feminine, to investigate concept about fetishism. At the end of the work, we were able to realize that the discourse about female sexuality is constituted for the exclusive benefit of Humbert Humbert, who determines and enjoys the naming of women, that is, by talking about the feminine, the narrator helps us to produce a knowledge, in fact, about male sexuality.

Keywords:
psychoanalysis; sexuality; femininity; nymphet; fetishism

Resumen

Este artículo pretende construir una lectura psicoanalítica sobre las mujeres presentes en “Lolita”, obra literaria de Vladimir Nabokov, publicada en 1955. El libro es la autobiografía de Humbert Humbert, de 38 años, que tiene como objeto de amor a una niña de 12 años, a la que nombra nínfula. El narrador defiende la existencia de dos categorías femeninas diferentes. El primero se atribuiría a las mujeres adultas, nombradas como agentes paliativos por permitirles la Ley relacionarse sexualmente con los hombres. El segundo a las ninfas diabólicas, su verdadero objeto de deseo. Partiendo de una lectura freudolacaniana de lo femenino y apoyándose en los estudios de la filósofa Simone de Beauvoir sobre las categorías de representación social de la mujer, el artículo hace un recorrido desde el discurso del narrador Humbert Humbert, creador de tales categorías de lo femenino, hasta la investigación del concepto de fetichismo. Al final de la obra, pudimos percibir que el discurso sobre la sexualidad femenina se constituye para beneficio exclusivo de Humbert Humbert, quien determina y disfruta al nombrar a las mujeres, es decir, al hablar de lo femenino, el narrador nos ayuda a producir un conocimiento, de hecho, sobre la sexualidad masculina.

Palabras clave:
psicoanálisis; sexualidad; feminidad; ninfa; fetichismo

Introdução

A feminilidade é um conceito fundamental na teoria psicanalítica. Historicamente podemos localizar na escuta das histéricas a origem da clínica e na descoberta do feminino, ou seja, na constatação da falta (castração), a reorganização da teoria freudiana da sexualidade humana em relação ao lugar do falo, enquanto possibilidade de perdê-lo ou vontade de tê-lo. A feminilidade inaugurou, também, uma nova lógica de escrita da teoria como contínua, viva, à medida em que propôs não concluir uma definição sobre o feminino, mas falar acerca deste como um eterno vir a ser. Finalmente podemos apontar que a feminilidade trouxe a questão do desejo para o centro da teoria psicanalítica a partir da proposta freudiana de substituição da questão inicial o que é uma mulher por uma nova questão: o que quer uma mulher. Devido a essa impossibilidade, proposital, de estabelecer O saber definitivo sobre o feminino, Freud propõe buscar na literatura UM saber sobre a feminilidade.

Muito se tem dito na música, na literatura, na filosofia, na religião, ou até na opinião popular, sobre a mulher, entretanto grande parte do que é dito, ao longo da história e mesmo na contemporaneidade, é assombroso, como uma espécie de reação a um horror que a mulher parece despertar. Segundo a leitura freudiana, em nossa cultura, o falo é o significante que organiza a sexualidade humana; desse modo, a mulher, por não o possuír, evidencia a castração como ameaça possível. A mulher é aquela que apresenta a falta (FUENTES, 2009FUENTES, Maria Josefina Sota. As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino. 2009. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano) - Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-16122009-090444/ . Acesso em: 23 fev. 2021.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
). Na teoria lacaniana a constatação da falta de um significante para a mulher, equivalente ao significante fálico para o homem, leva a mulher a envelopar essa falha, transfigurando-se “de semblante, apelando para a máscara, a mulher faz crer que há algo por trás, quando, na realidade, não há nada” (SANTANA, 2013SANTANA, Vera Lúcia Veiga. Escrita e “Não Falo”. Opção Lacaniana Online Nova Série , ano 4, n. 10, mar. 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_10/Escrita_e_nao_falo.pdf . Acesso em: 19 nov. 2018.
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/num...
, p. 1).

Uma dessas máscaras dadas pela cultura à feminilidade é a da ninfeta. Dessa forma, a obra Lolita foi escolhida com a proposta de se analisar um discurso ficcional masculino (fetichista?) sobre a sexualidade feminina. No livro de Nabokov podemos falar, na verdade, de um discurso sobre as feminilidades, uma vez que o personagem narrador, Humbert Humbert, teoriza a existência de ao menos duas: a ninfeta, por meio da personagem Dolores, objeto de amor do narrador, a quem ele nomeia como Lolita, e o agente paliativo, representado pelas mulheres adultas, permitidas aos homens pela cultura. A partir dessa construção da existência de diferentes feminilidades na vida de uma mesma mulher, as quais a própria mulher desconhece, mas que são necessariamente nomeadas por alguns homens específicos, como Humbert Humbert, o presente artigo pretende investigar o percurso no qual a personagem Dolores deixa de ser criança para ser Lolita. E, uma vez que essa nomeação é dada por um outro que não a própria Dolores, será que este outro, Humbert Humbert, identifica nela uma ninfeta, que já existia apesar dele, ou será que ele a cria, sendo essa categoria apenas uma construção que atenda a uma fantasia do narrador?

Lolita e a sexualidade feminina no olhar de Humbert Humbert

Humbert Humbert, francês, nascido em 1910, é o narrador-personagem que nos conta sua história enquanto está detido em um presídio pelo assassinato de Clare Quilty, um homem que, como seu algoz, tem seu investimento sexual voltado para jovens meninas. Ele nos relata sua vida a partir de um argumento fundamental que justificaria tal investimento: o amor por Annabel que, segundo sua própria elaboração, o levou a desejar Lolita, anos depois.

Lolita, luz da minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da minha boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta. Pela manhã era Lô, não mais que Lô, com seu metro e quarenta e sete de altura e calçando uma única meia soquete. Era Lola ao vestir seus jeans desbotados. Era Dolly na escola. Era Dolores sobre a linha pontilhada. Mas em meus braços sempre foi Lolita (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 11).

Annabel foi o amor de Humbert Humbert em sua juventude. Ela foi a primeira, a primordial, a precursora de Lolita. Conheceram-se por volta dos treze anos de ambos, quando os pais da menina, velhos amigos da família do narrador, alugaram uma casa perto do Hotel Miranda, que pertencia ao pai dele. Humbert Humbert e Annabel foram tomados por “uma paixão louca, desajeitada, impudica e agoniante” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 14) e, em uma noite memorável, a garota conseguiu burlar a vigilância dos pais e eles foram juntos para o fundo do jardim:

[Annabel] tremia e contorcia-se enquanto eu lhe beijava o canto da boca entreaberta e o lóbulo da orelha em fogo. [...] Suas pernas, suas lindas e irrequietas pernas, não estavam de todo fechadas e, quando minha mão localizou o que buscava, uma expressão sonhadora e estranha, misto de prazer e dor, tomou conta daqueles traços infantis (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 16).

A cena foi abruptamente interrompida pelos gritos da mãe de Annabel, que a chamou e inaugurou em Humbert Humbert a tormenta dessa cena sexual com a menina de pernas bronzeadas que nunca pôde ser concluída, não só pela interrupção do chamado da mãe de Annabel, mas também pelo imprevisível da morte: a menina morreu de tifo quatro meses depois. O narrador justifica nesta cena interrompida e na morte do seu amor da juventude o “trauma” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 15) que o impede de viver outro amor. “Até que, por fim, vinte e quatro anos depois, quebrei seu feitiço encarnando-a em outra” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 17). Ele se diz aprisionado na infância, em busca da garota perdida, imperturbável pelo tempo, até que, por fim, encontra outra, Lolita, sucessora da garota morta, Annabel. A primeira (Annabel) gera a segunda (Lolita), antecipando a condição desta como objeto de desejo para um terceiro, Humbert Humbert.

Quando conheceu Annabel, ele tinha a mesma idade que a garota, e, portanto, não a reconheceu como uma ninfeta. No entanto, após vários anos, afirmou reconhecer, retroativamente, nesta a “ninfeta original”, com a qual viveu um amor prematuro e feroz que insistirá em se replicar no futuro, pois “o veneno estava na ferida e a ferida jamais se fechou” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 19), resultando, segundo ele, na impossibilidade de se satisfazer em uma sociedade que não permite que um homem adulto corteje uma menina de doze anos. A predileção de Humbert Humbert se fixa, assim, em meninas bem jovens, as quais ele apresenta como ninfetas.

Quero agora expor uma ideia. Entre os limites de idade de nove e catorze anos, virgens há que revelam a certos viajores enfeitiçados, bastante mais velhos do que elas, sua verdadeira natureza - que não é humana, mas nínfica (isto é, diabólica). A essas criaturas singulares proponho dar o nome de “ninfetas” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 18).

Mas não é qualquer menina a ser reconhecida como ninfeta e nem qualquer homem capaz de identificá-la entre as garotas comuns. É necessário, segundo Humbert Humbert, ser um artista ou um louco, para ser um “ninfoleptos”.1 1 Ninfoleptos são os homens que Humbert Humbert afirma serem capazes de identificar uma ninfeta entre as meninas comuns. Ele refere-se a esses homens como profundamente melancólicos e bem mais velhos que as ninfas, uma vez que um jovem não consegue identificar, entre seus pares, as ninfetas. Quanto às garotas, não é questão de beleza, mas de uma graça preternatural e de um charme volúvel, imponderável, perturbador, que fazem delas “o pequeno e fatal demônio em meio às crianças normais” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 19). As ninfetas são, em número, uma pequena parcela das meninas, não todas. As demais meninas são apenas seres humanos normais, comuns. Quanto à relação entre a ninfeta e o “ninfoleptos”, é preciso haver um intervalo de muitos anos entre eles, preferencialmente décadas.

Em sua vida adulta, Humbert Humbert assume uma duplicidade: mantinha relações com mulheres adultas e, intimamente, diz: “consumia-me uma demoníaca fogueira de concupiscência por todas as ninfetas que passavam na rua e que eu, por um covarde respeito às leis, jamais ousava abordar” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 20). As mulheres, com que ele se relacionava diante da sociedade para mascarar seu desejo por meninas, têm mais que quinze anos e não possuem, portanto, os encantos da infância, ou nunca os possuíram, uma vez que nem toda mulher foi um dia uma ninfeta.

A construção de Humbert Humbert sobre o feminino aponta para o fato de que a sexualidade humana não é um simples fato biológico, mas uma construção, o que parece ter-lhe permitido se apropriar desse fato para construir um saber sobre o feminino que respondesse melhor ao seu próprio modo de gozar. Segundo Simone de Beauvoir, em seu livro O segundo sexo (2016bBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida (1967). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2016b.), essa apropriação não é nova, e a mulher, sem uma definição originária, foi sendo historicamente definida pela cultura conforme as exigências que recaíam sobre ela em cada época:

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino (BEAUVOIR, 2016bBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida (1967). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2016b., p. 11).

Para a filósofa, a mulher, quando definida em fórmulas simples, é frequentemente reduzida a um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la. Na boca do homem o epíteto ‘fêmea’ soa como um insulto; no entanto, ele não se envergonha de sua animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se dele dizem: “É um macho!” (BEAUVOIR, 2016aBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos (1949). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016a., p. 31). Conforme Beauvoir, o corpo da mulher, sob o prisma biológico, é visto como passivo, e é um dos elementos principais da situação de inferioridade em que a mulher é posta em detrimento do macho. No entanto, a concepção biológica não basta para dar uma definição sobre a mulher, nem tampouco sobre o homem.

Retomando a construção elaborada por Humbert Humbert sobre as mulheres, é possível perceber uma intertextualidade que envolve duas figuras místicas e bíblicas: Eva e Lilith, em que as mulheres adultas ou agentes paliativos que ele cita parecem fazer referência à Eva, e as jovens meninas ou ninfetas, à Lilith. Eva, a primeira mulher, esposa de Adão e mãe; Lilith, o demônio feminino, que provoca sonhos eróticos e orgasmos noturnos nos homens. Simone de Beauvoir (2016aBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos (1949). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016a.) aponta que o homem, em sua vivência erótica, separa as mulheres em dois grandes grupos, um grupo no qual ele se permitiria saciar seus desejos e um outro com o qual ele perpetuaria sua existência. As mulheres se tornariam, assim, indispensáveis para a sociedade, porém completamente determinadas pela lei dos homens. Para Beauvoir (2016bBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida (1967). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2016b.), as duas categorias podem ser sintetizadas simbolicamente nas figuras da mãe e da prostituta, ou ainda, entre “santas” e “putas” ou Eva e Lilith, de tal modo que, tradicionalmente, o casamento e a maternidade são o destino da mulher que não seria uma puta.

É pela maternidade que a mulher realiza integralmente seu destino fisiológico; é a maternidade sua vocação “natural”, porquanto todo seu organismo se acha voltado para a perpetuação da espécie. Mas já se disse que a natureza humana nunca é abandonada à natureza (BEAUVOIR, 2016bBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida (1967). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2016b., p. 279).

A mulher “santa”, quando se casa, integra-se ao marido: ela assume o sobrenome do homem, se insere em sua classe social, seu meio, tornando-se sua “metade”, permanecendo na vida privada, onde cuida do lar e dos filhos. Paralelamente existe a prostituta. Ambas existem para que este homem, que impõe a castidade à esposa, mas não para si, possa fazer da prostituição uma suplência para o casamento. “A existência de uma casta de ‘mulheres perdidas’ permite tratar as ‘mulheres honestas’ com o mais cavalheiresco respeito” (BEAUVOIR, 2016bBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida (1967). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2016b., p. 363). Tanto para a esposa quanto para a prostituta o ato sexual é apenas um serviço a ser prestado pela mulher. A única diferença parece ser o número de clientes: enquanto a esposa presta este serviço a um único homem, a prostituta pode prestar tal serviço a vários. Popularmente essa divisão aparece evidenciada na frase: “mulher para casar e mulheres para transar”. A mulher única, singular, encarnará o papel de esposa, por isso se tornará “SUA mulher”, todas as outras mulheres estarão destinadas ao sexo, e todas elas a serviço da satisfação masculina, e não da sua própria.

Assim, em Lolita, a sexualidade feminina também parece determinada pelo discurso e olhar masculino. Podemos relacionar a figura bíblica de Eva com a primeira esposa de Humbert Humbert, Valéria, com quem ele se casa no intuito de que o casamento pudesse, se não extinguir seu desejo por meninas, ao menos mantê-lo sob controle. Se na mitologia cristã Eva foi feita do flanco de Adão e, portanto, foi destinada a ele com a missão de “salvar Adão da solidão” e ser “seu complemento no modo do inessencial” (BEAUVOIR, 2016aBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos (1949). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016a., p. 201), no livro de Nabokov a tarefa de Valéria seria a de manter a sexualidade do marido restrita aos valores morais, e este protegido dos feitiços de Lolita (Lilith). As mulheres possuem, portanto, o poder tanto de perdição quanto de salvação:

É sempre difícil descrever um mito; ele não se deixa apanhar nem cercar, habita as consequências sem nunca se postar diante delas como um objeto imóvel. É por vezes tão fluido, tão contraditório que não se lhe percebe, de início, a unidade: Dalila e Judite, Aspásia e Lucrécia, Pandora e Atená, a mulher é, a um tempo, Eva e a Virgem Maria. É um ídolo, uma serva, a fonte da vida, uma força das trevas; é o silêncio elementar da verdade, é artifício, tagarelice e mentira; a que cura e a que enfeitiça; é a presa do homem e sua perda, é tudo o que ele quer ter, sua negação e sua razão de ser (BEAUVOIR, 2016aBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos (1949). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016a., p. 203).

A história de Humbert Humbert com Lolita tem início quando o personagem, após o término de seu primeiro casamento, parte para os Estados Unidos, onde, hóspede na casa de Charlotte Haze, conhece sua filha, Dolores Haze, a quem ele nomeia de Lolita, de doze anos de idade. Ele se casa com Charlotte Haze para ficar perto de Dolores, ou melhor, para ficar perto de Annabel, quem ele reencontrava no corpo de Dolores (Lolita). O corpo de Annabel se atualiza no corpo de Lolita e faz das duas meninas, uma: a ninfeta.

Era a mesma criança - os mesmos ombros frágeis cor de mel, as mesmas costas flexíveis, nuas e sedosas, os mesmos cabelos castanhos. [...] Com um misto de espanto e êxtase, (o rei chorando de alegria, as trombetas a soar, a ama seca embriagada), vi novamente o recôncavo de seu adorável abdômen onde minha boca, viajando rumo ao sul, se detivera por um instante; e aquelas ancas infantis onde eu beijara a marca crenulada ali impressa pelo elástico do maiô - naquele dia derradeiro, dia louco e imortal, atrás das “Roches Roses”. Os vinte e cinco anos que vivi desde então reduziram-se a um ponto latejante, e se desvaneceram (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 41).

A nomeação de Dolores como Lolita explicita a sexualidade feminina como determinada de modo externo e alheio à própria mulher, como se a esta fosse definida por um desejo que lhe é estrangeiro e masculino. Se o desejo, fundamental na constituição psíquica, é masculino, a mulher, definida pelo homem, deixa de ser sujeito para ser somente o que ele quer que seja. “A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (BEAUVOIR, 2016aBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos (1949). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016a., p. 12 e 13).

A sexualidade feminina segundo o pensamento de Freud

Freud (1931/2008c), em seu percurso teórico sobre a sexualidade feminina, afirma que na origem do desenvolvimento infantil não havia, entre meninos e meninas, o reconhecimento da distinção anatômica. Somente na fase fálica é que a diferença sexual se estabelecerá para ambos. Nas duas primeiras fases, oral e anal, as semelhanças entre os sexos são tantas que levaram Freud a afirmar que “a menininha é um homenzinho” (FREUD, 1933/2018dFREUD, Sigmund. Feminilidade (1933). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018d. Obras completas. v. 7. p. 313-345., p. 320), fundamentalmente devido à constatação de que o primeiro objeto de amor, tanto do menino quanto da menina, é a mãe, e de que esta permanecerá ocupando um lugar central ao longo de todo o desenvolvimento.

Contudo, no Complexo de Édipo, a menina irá alternar o objeto amoroso, da mãe para o pai, e a zona erógena, do clitóris para a vagina. Essa alternância será inaugurada pela castração, que ocorrerá na entrada da fase fálica. Tal fase é marcada pela descoberta da distinção anatômica, quando a garota, diante do garoto, constata que lhe falta algo, sente-se extremamente prejudicada, rende-se à inveja e ao desejo de possuir um pênis. Inicialmente acredita ser uma condição apenas dela, até que, por fim, a menina descobre ser essa uma condição do feminino e culpa a mãe por sua própria castração, uma vez que essa também não possui o falo. Estabelece-se, assim, uma relação ambivalente da menina para com a mãe, permeada, simultaneamente, pela hostilidade para com essa mãe faltosa (castrada) e pelo amor ilimitado ao seu objeto original pré-edipiano (FREUD, 1933/2018dFREUD, Sigmund. Feminilidade (1933). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018d. Obras completas. v. 7. p. 313-345.).

Essa relação de amor e rivalidade entre mãe e filha é percebida e explorada por Humbert Humbert em Lolita, que a evidencia ao longo de seus relatos e a utiliza como modo de acessar a personagem título. Segundo o próprio narrador, mãe e filha discutiam cotidianamente com tanta violência que, para ele, o único momento em que a menina demonstrou algum amor por sua mãe foi quando ela tomou conhecimento de sua morte em um acidente de carro, o que a deixou completamente órfã e à disposição de Humbert Humbert. As discussões entre mãe e filha levaram Charlotte, pouco antes do acidente, a decidir enviar sua filha Dolores (Lolita) para um acampamento e a cogitar matriculá-la em um colégio interno. Charlotte expressa esses planos da seguinte forma: “Receio muito que a Lô não faça parte de meus planos, nem um pouquinho. A Lô sai direto do acampamento para um bom colégio interno, onde haja uma disciplina rigorosa e um sólido ensino religioso” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 84-85).

Para compreender melhor a origem dessa difícil relação entre mães e filhas, Freud (1931/2018cFREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina (1931). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018c. Obras completas. v. 7. p. 285-311.) detalha uma série de motivações que levam a um afastamento da menina em relação à mãe: ela castrou a filha, não lhe dando o genital correto, não a amamentou tempo suficiente, estimulou a atividade sexual, proibindo-a em seguida, e, além de dividir seu amor materno com outros, não foi capaz de corresponder a todas as suas expectativas amorosas. “Talvez seja melhor dizer que a relação com a mãe precisa acabar, justamente por ser a primeira e tão intensa, semelhante ao que se pode observar com frequência nos primeiros casamentos de mulheres jovens” (FREUD, 1931/2018cFREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina (1931). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018c. Obras completas. v. 7. p. 285-311., p. 297).

Para a psicanálise freudiana, portanto, a relação de uma mãe com sua filha é a mais intensa, cheia de afetos contraditórios e ambivalências. De acordo com Freud (1931/2018cFREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina (1931). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018c. Obras completas. v. 7. p. 285-311.), essa primeira ligação com a mãe é difícil de entender analiticamente, mas é de notável importância, pois a forte ligação da mulher com o pai é herança de sua relação com a mãe, sendo essa uma ligação de longo tempo. “O amor da criança é desmedido, exige exclusividade, e não se dá por satisfeito com parcialidades” (FREUD, 1931/2018cFREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina (1931). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018c. Obras completas. v. 7. p. 285-311., p. 293). Esse amor, que não tem uma meta, não se satisfaz plenamente, estando fadado a terminar em decepção, dando lugar à hostilidade. Freud (1931/2018cFREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina (1931). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018c. Obras completas. v. 7. p. 285-311.) afirma que muitas mulheres repetem em seus envolvimentos amorosos a má relação com a mãe. Tal especificidade da relação entre mãe e filha ficará evidenciada como um importante traço da feminilidade.

Na teoria lacaniana, por sua vez, Lacan, ao reler Freud, localizará a feminilidade para além da lógica fálica, de modo que evidenciará que a falta do falo, embora importante, não demonstra ter elementos teóricos suficientes para a compreensão da sexualidade feminina, como veremos a seguir.

A mulher que não existe e a mascarada fálica

Lacan, ao retomar a tópica da feminilidade, estabelece uma importante relação entre o falo e a mulher, na qual ele “desloca o falo de sua função imaginária para os dois sexos, situando-o como o significante do desejo, falta-a-ser” (GALESI, 2012GALESI, Zelma Abdala. De Freud a Lacan: um passo de saber sobre as mulheres!. Opção Lacaniana Online Nova Série, ano 3, n. 8, jul. 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/de_freud_lacan.pdf . Acesso em: 19 nov. 2018.
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/num...
, p. 5). Neste momento da teoria lacaniana, tanto a masculinidade quanto a feminilidade se organizarão em relação ao falo, de um ser e de um ter. Lacan (1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4.) aponta que é da natureza do falo simbólico apresentar-se como presença e como ausência.

Com efeito, tudo o que se pode transmitir na troca simbólica é sempre alguma coisa que é tanto ausência quanto presença. Ele é feito para ter essa espécie de alternância fundamental, que faz com que, tendo aparecido num ponto, desapareça, para reaparecer num outro. Em outras palavras, ele circula, deixando atrás de si o signo de sua ausência no ponto de onde vem. Em outras palavras ainda, o falo em questão - nós o reconhecemos desde logo - é um objeto simbólico (LACAN, 1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4., p. 154).

Desse modo, Lacan (1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4.) afirma que a função simbólica do falo instaura a diferenciação simbólica entre os sexos, na medida em que ele está ou não está presente. Nesse sentido, a mulher não possui o falo, no entanto não o possuir simbolicamente é dele participar através da ausência. O desejo feminino é semelhante àquele desejo alienado da criança ao à mãe. A criança busca satisfazer a mãe, e a forma que ela encontra é desejar ser o falo da mãe. Em síntese, cada mulher pretende ser desejada e amada pelo que ela não tem. Assim, para Lacan, esse “é o desejo do desejo da mãe” (LACAN, 1957-1958/1999LACAN, Jacques. O seminário: as formações do inconsciente (1957-1958). Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar , 1999. livro 5., p.188), um desejo que se estabelece na relação da criança com o falo e que instaura a tríade imaginária: mãe - criança - falo. Alienada pelo desejo de ser ou não ser o falo da mãe, a criança se torna assujeitada ao capricho da mãe, é um se submeter em busca de ser o falo da mãe para então poder satisfazer o desejo dela. “Trata-se de assujeito porque, a princípio, ela [a criança] se experimenta e se sente como profundamente assujeitada ao capricho daquele de quem depende” (LACAN, 1957-1958/1999LACAN, Jacques. O seminário: as formações do inconsciente (1957-1958). Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar , 1999. livro 5., p. 195).

Num segundo momento de sua teoria, Lacan (1972-1973/2008LACAN, Jacques. O seminário: mais, ainda, (1972-1973). Rio de Janeiro: J. Zahar , 2008. livro 20.) apresenta a mulher sob uma modalidade de gozo que não se inscreve, um gozo que não advém da perda, um gozo suplementar que foge à lógica fálica. Ele afirma que, quando um ser falante se localiza do lado das mulheres, isso se dá, pois ele se localiza por ser não-todo situado na função fálica, o que o levou à constatação de que A mulher não existe. “Não há A mulher, artigo definido para designar o universal” (LACAN, 1972-1973/2008LACAN, Jacques. O seminário: mais, ainda, (1972-1973). Rio de Janeiro: J. Zahar , 2008. livro 20., p. 79). Bessa (2012BESSA, Graciela de Lima Pereira. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012., p. 82) afirma que no Seminário Mais, ainda, Lacan esclarece que a negação do quantificador universal sinaliza para o fato de que as mulheres exercem e não exercem a função fálica ao mesmo tempo. Portanto, se torna impossível dizer de toda mulher, pois falta um significante que represente a mulher na ordem simbólica:

Para o inconsciente que reconhece em termos de linguagem apenas a inscrição do sexo masculino, o feminino permanece como lugar do Outro absoluto, da diferença incomensurável, da alteridade radical - razão pela qual, conforme explica Lacan, tudo o que se queira pode ser imputado à mulher, inclusive que ela venha a ser um objeto (FUENTES, 2009FUENTES, Maria Josefina Sota. As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino. 2009. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano) - Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-16122009-090444/ . Acesso em: 23 fev. 2021.
https://www.teses.usp.br/teses/disponive...
, p. 31).

Se a mulher ultrapassa tudo o que se tenta dizer sobre ela, Freud aponta que nos resta abandonar a investigação sobre o que é uma mulher e perguntar às mulheres o que quer uma mulher. A denominação da mulher como enigma para Freud é retomada por Lacan através de seu aforisma de que não há A mulher. Dessa forma, se A mulher não existe, constituindo-se na incompletude, ela deverá construir seu vir a ser na feminilidade de modo singular, cada uma ao seu modo. Para Lacan (1972-1973/2008LACAN, Jacques. O seminário: mais, ainda, (1972-1973). Rio de Janeiro: J. Zahar , 2008. livro 20., p. 79), “não há mulher senão excluída pela natureza das coisas que é a natureza das palavras”, portanto, se não há o que a defina, a mulher pode se apresentar sob a forma de mascarada fálica:

A máscara usada para despertar o desejo do homem acaba por reduplicar a sua falta. Assim, como um adereço, um véu que cobre o corpo feminino, a função da máscara é de causar desejo justamente porque não mostra e, assim, leva a supor a existência de algo, quando, na verdade, não há (CAMPISTA; CALDAS, 2013CAMPISTA, Valesca Rosário; CALDAS, Heloísa Fernandes. Feminilidade: enigma e semblante. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 65, n. 2, p. 258-273, 2013. Disponível em Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672013000200008&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 19 nov. 2018.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 262).

Tal empenho da mulher nesse jogo tem, como objetivo, se fazer amada por aquilo que ela não é, o falo. “Assim, na mascarada, trata-se de parecer o falo para encarná-lo, para mostrar o que não tem” (CAMPISTA; CALDAS, 2013CAMPISTA, Valesca Rosário; CALDAS, Heloísa Fernandes. Feminilidade: enigma e semblante. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 65, n. 2, p. 258-273, 2013. Disponível em Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672013000200008&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 19 nov. 2018.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 262). Dolores Haze acaba por assumir o lugar de Lolita, ao ser noemada desse modo por Humbert Humbert. Lolita é uma mascarada fálica construída pelo narrador a partir de sua fantasia fetichista e que, gradativamente, foi sendo encarnada pela própria menina. O ponto em que, no romance, percebemos que a mascarada fálica foi assumida pela criança pode ser constatado na cena do primeiro beijo no padrasto:

Um momento depois ouvi minha querida subindo as escadas às carreiras. Meu coração expandiu-se com tanta força que quase perdi os sentidos. Puxei para cima as calças do pijama e abri a porta de um golpe: no mesmo instante Lolita chegou, na sua roupa dominical, pisando forte, ofegante, e de repente estava em meus braços, sua boca inocente derretendo-se sob a feroz pressão de ávidas mandíbulas masculinas, ah, minha palpitante amada! (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 68).

Páginas à frente, após a morte de sua mãe, Dolores Haze é levada de seu acampamento por Humbert Humbert a um hotel, e não hesita em contar ao “paizinho”, como o chama, que havia tido relações sexuais com Charlie Holmes, garoto de 13 anos, filho da diretora do acampamento. A seguir, o narrador nos diz: “Vou lhes contar algo muito estranho: foi ela quem me seduziu” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 134). O ninfelopto narra, sem pormenores, então, a primeira “relação sexual” entre ele e Lolita, que, ao acordar, beija o padrasto e lhe pergunta se ele fazia aquilo quando era um menino.

Basta dizer que não percebi o menor traço de pudor nessa bela e ainda imatura mocinha, a quem os métodos modernos de educação mista, os costumes da juventude americana, a indústria dos acampamentos de férias e tudo mais tinham depravado de forma completa e irremediável. Ela encarava o ato sexual apenas como parte do mundo secreto dos jovens, ao qual os adultos não tinham acesso (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 135).

Após o ato, Dolores continua contando ao padrasto sobre as experiências sexuais que teve com uma colega de escola e com o rapaz no acampamento. Em alguns pontos da Narrativa Humbert Humbert demonstra para o seu leitor que reconhecia haver ali, em Lolita, uma criança: Dolores. Ele diz reconhecer que no corpo da ninfeta se encontrava, também, uma criança órfã e desamparada que copulou, só naquela manhã, três vezes com um adulto maduro (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.). Ou seja, mesmo em um momento de reconhecimento de que há ali uma criança, Humbert Humbert não se responsabiliza, uma vez que Lolita, para ele, já era depravada, visto que sobre sua enteada ele deposita uma cortina, um símbolo, que mascara a realidade, permitindo a ele ver sobre este véu a ninfeta que sempre fantasiou. No Seminário Mais, ainda, Lacan (1972-1973/2008LACAN, Jacques. O seminário: mais, ainda, (1972-1973). Rio de Janeiro: J. Zahar , 2008. livro 20., p. 16) aborda a ideia de que o homem se relaciona com a sua fantasia, e não com a mulher: “o gozo, enquanto sexual, é fálico, quer dizer, ele não se relaciona ao Outro como tal”. É nesse sentido que ele chega a dizer que o homem não chega a gozar do corpo da mulher.

Segundo afirma Lacan (1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4.), o que é amado no objeto de amor é aquilo que está mais além. “Essa alguma coisa não é nada, sem dúvida, mas tem essa propriedade de estar ali simbolicamente. Porque é símbolo, não apenas ela pode, mas deve ser este nada” (LACAN, 1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4., p. 157). Para Lacan, o que se apresenta nitidamente como essa interposição é o véu, que ilustra a situação fundamental do amor, visto que, o que está além, como falta, aparecerá como imagem. Ou seja, sobre o véu se pinta a ausência, se projeta a imagem. O véu, ao mesmo tempo que tampona a falta, aponta sua existência.

Mas desde que se coloca a cortina, sobre ela se pode pintar alguma coisa que diz: o objeto está para além. O objeto pode então assumir o lugar da falta, e ser também, como tal, o suporte do amor, mas na medida em que ele não seja, justamente, o ponto onde se agarra o desejo. De certo modo, o desejo aparece aqui como metáfora do amor, mas o que o agarra, a saber, o objeto, este aparece como ilusório, e na medida em que é valorizado como ilusório (LACAN, 1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4., p. 158).

O véu é algo que se localiza sempre entre o sujeito e o objeto. Não é sobre o véu que repousa o desejo, mas em algo que está para além deste véu. O véu tem sua importância, pois tende a realizar como imagem aquilo que ele vela. Ao olhar-se para o véu, não é o véu que interessa, e sim aquilo que o véu cobre, sempre parcialmente. Quando se olha nessa direção, o que é visto não é nem o véu nem o objeto por detrás do véu, porém uma outra coisa, coisa imaginada. O objeto velado não é o objeto em si, é um objeto ilusório, valorizado justamente por ser ilusório. Ele é aquilo que se imagina do objeto na medida em que o objeto está parcialmente encoberto e não pode ser plenamente visto.

“Sobre o véu pinta-se a ausência” (LACAN, 1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4., p. 158). O véu vela a ausência e pode ser, ele mesmo, o lugar dessa ausência. Ou melhor: lugar do desejo, lugar em que se pode estampar essa imagem capturada - o véu torna-se tela ao pintar-se nele a ausência. O véu é de tal importância para o sujeito, que Lacan (1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4., p. 160) questiona: “Por que o véu é mais precioso para o homem que a realidade?”. Ora, essa imagem pintada sobre o véu é uma parada na cadeia metonímica do desejo. À medida que se consegue pintar essa imagem, ela não é mais a imagem desejada e a cadeia continua parando, vez ou outra, em imagens. Cada imagem representada é vista, por um breve momento, como realidade para o sujeito. Porém nunca há satisfação completa, o desejo nunca pode ser satisfeito, ele desliza por entre as mãos e a busca recomeça. Para que o sujeito não se canse de buscar, ele recebe, a cada imagem, uma pequena dose de satisfação, mas nunca toda a satisfação que procura.

O que parece faltar a Dolores e que aparece impresso sobre o véu da mascarada fálica é, justamente, a ninfeta. Dessa forma, Lolita é construída por Humbert Humbert, que, de tanto se reconhecer como o criador e, portanto, possuidor de Lolita, mata Clare Quilty, outro ninfelopto que teve relações com a menina. Humbert Humbert passará anos procurando por sua ninfeta perdida, até conseguir descobrir como e com quem ela estivera. Quilty se apresentará, assim, como figura central para o desfecho da obra. A garota não passa muito tempo junto de Clare Quilty, pois se recusou a participar de uma orgia com outras meninas e vários homens, enquanto eram filmados. Mesmo assim, Lolita diz a Humbert Humbert, anos depois, quando se reencontram, que amava Quilty.

Clare Quilty aponta para a fragilidade da nomeação que Humbert Humbert faz sobre as mulheres ou, ainda, para um ponto insuportável ao fetichista. Na lógica do seu discurso, tal nomeação serviria exclusivamente ao seu interesse, ou seja, Lolita seria exclusivamente sua ninfeta, afinal o fetichista supõe desfrutar de uma vantagem em relação ao seu objeto, o qual ninguém conhece, e que, portanto, não poderia retirar dele. Entretanto, os acontecimentos na vida de Lolita ultrapassaram tais interesses de Humbert Humbert, demonstrando que ele não possui controle sobre a nomeação de sua fantasia fetichista. Ao perseguir Lolita e fazer com que ela fugisse com ele, Quilty confirma, por um lado, a construção fetichista de Humbert Humbert, de que existem meninas cuja única finalidade é proporcionar prazer sexual a alguns homens (ninfoleptos). Por outro lado, Quilty destitui de Humbert Humbert o maior objeto de sua fantasia, criada por ele e para ele: Lolita.

Lolita é um objeto de fetiche de Humbert Humbert imposto sobre a menina Dolores. Entretanto a criança, não sabendo construir outra possibilidade de saída para si e, ao mesmo tempo, não suportando se manter nesse lugar de ninfeta para o padrasto, ousa encarnar, mesmo que provisória e incompletamente, ser a ninfeta para outro ninfolepto. Nesse movimento de fuga, Dolores parece assumir para si mesma a Lolita como sua mascarada fálica, não mais de Humbert Humbert, para que, mais tarde, possa vir a abandoná-la.

Lolita foge, abandonando Humbert Humbert, e anos depois revela ao “paizinho” seu amor por Quilty, aos 17 anos de idade, quando se encontra casada com um rapaz, também jovem, e do qual está grávida. De acordo com Santana (2013SANTANA, Vera Lúcia Veiga. Escrita e “Não Falo”. Opção Lacaniana Online Nova Série , ano 4, n. 10, mar. 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_10/Escrita_e_nao_falo.pdf . Acesso em: 19 nov. 2018.
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/num...
, p. 7), “a máscara é uma tentativa de fazer consistir uma suplência à identidade feminina que não existe. É um recurso imaginário que se encontra preso na significação fálica afastando as mulheres da posição feminina”. Desse modo, indo atrás de uma completude, de ser o falo, a mulher não se encontra.

Lolita repete o assujeitamento da criança com a mãe em sua relação com seu padrasto. Humbert Humbert jogava com Lolita, alternando caprichosamente entre agrados e ameaças de mandá-la para um reformatório, promessas e subornos, para que a menina lhe concedesse o corpo para uso sexual. Ele pagava a menina e, encontrando em uma ocasião o dinheiro que a garota havia juntado, ele o rouba, diminuindo drasticamente o valor que dava a ela, por medo de que ela conseguisse o suficiente para acreditar que poderia fugir dele. Humbert Humbert chega a pedir que Lolita o acariciasse em seu carro, enquanto observava meninas saindo da escola, e que tomasse banho de piscina com as companheiras de sua idade, enquanto ele as olhava de longe.

Dolores, uma vez nomeada como Lolita, é tomada como objeto de desejo fetichista de Humbert Humbert e parece se esforçar por assumir esse lugar sob a forma de mascarada, encenando os caprichos que o “paizinho” deseja. A menina Dolores deseja ser o falo e se faz como tal, na busca por tamponar a falta, assumindo a máscara: Lolita.

Olhar de Humbert Humbert: a ninfeta como fetiche

Freud dá início à obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1901-1905/2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. 11 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Obras completas. v. 6.) evidenciando duas formas de se desviar do comportamento sexual estabelecido pela sociedade de sua época: os desvios quanto ao objeto sexual e os desvios quanto à meta sexual. De acordo com Freud (1901-1905/2016FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. 11 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Obras completas. v. 6., p. 40), “considera-se como meta sexual normal a união dos genitais no ato denominado copulação, que leva a resolução da tensão sexual e temporário arrefecimento do instinto sexual”. Ou seja, “o que se nomeia de sexualidade fora da psicanálise diz respeito apenas a uma vida sexual restrita, a serviço da reprodução e chamada de normal” (FREUD, 1916/2018aFREUD, Sigmund. A vida sexual humana (1916). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a. Obras completas. v. 7. p. 187-210., p. 208), sendo perverso aquilo que se desvia do caminho da reprodução. Um desses desvios é o fetiche.

Segundo Safatle (2010SAFATLE, Vladimir. Fetichismo: colonizar o outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010., p. 49), o fetichismo serve para mostrar como a libido é maleável, evidenciando que as pulsões sexuais não são naturalmente ligadas com a função de reprodução, “mas são [desde a infância] tendencialmente polimórficas, sempre prontas a desviarem, inverterem, transporem, de maneira aparentemente inesgotável, os alvos e objetos sexuais”. Tampouco a sexualidade humana se restringe aos órgãos genitais, podendo apontar para qualquer parte do corpo ou, até mesmo, para além do corpo (como sapatos ou lingerie, por exemplo). Em resumo, o fetichismo serve para evidenciar, retomando a Freud em 1905, que o comportamento humano se manifesta, regularmente, desviando de sua função e de sua meta, sendo, portanto, eminentemente pulsional.

Esses desvios em relação à meta e à função, são explicitamente narrados em Lolita. Para que Humbert Humbert consiga fazer sexo com Charlotte quando se casam, ele evoca a imagem de Lolita e da própria esposa quando jovem, momento em que ela fora também uma ninfeta. Planeja, sem efetivar, dar sonífero para ela e a filha, para que pudesse estuprar Lolita. Decide dá-lo apenas a Charlotte, para que ela não o incomodasse durante a noite com investidas sexuais. A repulsa ao sexo com uma mulher adulta, associada à obsessão de realizar o ato, exclusivamente, com a enteada de 12 anos, ilustra a fixação do personagem em um único objeto sexual, de tal modo que só é possível fazer sexo com mulheres adultas evocando, neste caso, a imagem da criança Esse interesse único e paralisado no tempo se estabeleceu a partir de impressões sexuais bastante precoces, denominadas por Freud como uma “lembrança-encobrida” (Deckerinnerung), “ou seja, uma recordação que desloca o verdadeiro núcleo do acontecimento, que nos fixa em algo que apenas encobre um acontecimento que deve ser revelado. Trata-se, assim, de insistir que há algo antes da imagem congelada pelo fetiche” (SAFATLE, 2010SAFATLE, Vladimir. Fetichismo: colonizar o outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010., p. 49).

Essa imagem congelada é, em Lolita, a cena-imagem da relação sexual entre Annabel e Humbert Humbert, interrompida pela mãe da garota e, mais tarde, pela morte desta. Para Lacan (1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4., p. 160), o que constitui o fetiche é retirado do momento da história em que a imagem se fixa, congela; é uma interrupção da história, que não se concretiza. A história do sujeito continua, enquanto o objeto do fetiche não.

Dessa forma, Humbert Humbert se mantém preso à menina de pernas bronzeadas, Annabel, e busca reconhecer as mesmas características em Lolita: “os mesmos ombros frágeis cor de mel” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 41). É um mesmo objeto que ele reproduz em outras, a cena que não cessa de se repetir. E, como se trata de uma necessária e imprescindível repetição, o discurso de Humbert Humbert sobre todas as mulheres é violento, pois elas não são consultadas, não há espaço para a existência de uma subjetividade feminina, de modo que elas apenas ocupam os papéis que ele lhes dá em sua cena, esvaziadas. Essa é uma das condições do fetiche.

Para Safatle (2010SAFATLE, Vladimir. Fetichismo: colonizar o outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010., p. 54), o fetiche ocorre através da idealização, subtrai toda singularidade, reduzindo-o a um traço genérico: “Resta o gozo por uma imagem infinitamente reproduzível, impessoal, dessensibilizada”. Ao transformar Dolores em Lolita, Humbert Humbert a esvazia de toda sua singularidade e a transforma em uma imagem para usufruto exclusivo de quem construiu o objeto fetiche. Por isso lhe é insuportável saber que o outro homem, Quilty, transou com ela, uma vez que ela, como objeto de fetiche, deveria ter “restado”, exclusivamente, para ele, razão que leva Humbert Humbert a matá-lo.

O fetiche é o resultado de uma das respostas frente à castração; Freud nomeia essa resposta de ‘desmentido’, em que parece haver uma tentativa de recusa da castração. Desmentir a castração implica não entregar, não ceder, à satisfação ao Outro. Ou seja, ao invés de aceitar a falta/castração da mãe, o sujeito toma o fetiche como uma possibilidade de tamponar essa falta. “Aí está o sentido do complexo de castração, e é nisso que o homem fica preso” (LACAN, 1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4., p. 155). Segundo Lacan, o falo está sempre para além de toda relação entre o homem e a mulher, seja como objeto de uma nostalgia pelo que se perdeu, do lado feminino, seja pelo fetiche que representa o falo como ausente, colocando ali algo que se faça signo, um falo simbólico. Por isso, afirma Lacan (1956-1957/1995LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4., p. 155), “é sempre o menino que é fetichista, nunca a menina [...]. O fetichismo é excessivamente raro na mulher, no sentido próprio e individualizado em que ele se escarna num objeto que podemos considerar como respondendo, de uma maneira simbólica, ao falo como ausente”. O modo de Humbert Humbert responder a ausência do falo na mulher foi colocando a imagem da mulher sobre alguém que ainda não é: uma criança.

Humbert Humbert se encaminhava para locais comuns para crianças, onde se regozijava numa tortura prazerosa, em parques onde meninas pulavam cordas e brincavam de amarelinha, “que elas brinquem ao meu redor para sempre. Que não cresçam nunca!” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 22). As meninas que brincavam em volta do ninfelopto pouco percebiam sua presença, esbarrando nele, o mesmo ocorrendo com as mulheres adultas que por ali andavam, enquanto ele permanecia sentado no banco, “em meu instrumento de tortura e de prazer [...] na minha pracinha pubescente, no meu jardim de macios musgos” (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 22).

Humbert Humbert, portanto, passava despercebido em seu paraíso, rodeado de ninfetas. Sobre isso, Freud (1927/2018bFREUD, Sigmund. Fetichismo (1927). In: ______. Neurose, psicose, perversão. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018b. Obras completas. v. 5. p. 315-325. p. 318) evidencia que o fetichista aponta para outra vantagem: o fetiche não tem seu significado conhecido por outras pessoas, sendo mais facilmente aceito, “sendo cômodo alcançar a satisfação sexual ligada a ele”. Humbert Humbert observa as crianças impunemente, sem que saibam de seu olhar sobre elas, e ainda se questiona sobre o que ocorre depois com as ninfetas, o efeito que ele pode causar sobre elas.

Afinal de contas, eu as possuíra - embora, verdade seja dita, elas não houvessem desconfiado de nada. Muito bem. Mas isso não se manifestaria algum tempo depois? Não lhes teria eu, de alguma forma, adulterado o destino ao conspurcar suas imagens com minha voluptuosidade? Ah, isso foi e continua para mim uma fonte de imensa e terrível perplexidade (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 23).

Ainda assim, Humbert Humbert mantém sob sigilo seu gozo fetichista, e busca fazer semblante de uma sexualidade adulta e culturalmente aceita, recorrendo a agentes paliativos, ou seja, sexo com mulheres adultas. Outro recurso do personagem para sustentar a fantasia de um direito de exercer tal sexualidade fetichista consiste em responsabilizar a cultura e a própria criança, nomeada ninfeta.

Humbert Humbert, no entanto, argumenta que quase todos os pervertidos sexuais são inofensivos e doces, dispostos a trocar a vida pela oportunidade de acariciar uma ninfeta, e que tanto melhor seria se a sociedade não os perseguisse. Não parece haver culpa no seu discurso, e, se fosse para apontar algum culpado, ele citava os costumes da juventude americana como os responsáveis por depravar Lolita, de modo que retirava de si toda responsabilidade pelo que ocorria entre ele e a menina; afinal, para o ninfelopto, a criança é coberta pela imagem de ninfeta. Essa desresponsabilização de Humbert Humbert é explicada por Serge André (1999ANDRÉ, Sergé. La significación de la pedofilia. In: CONFERENCIA EN LAUSANNE, Suiza, en 8 de junio de 1999. Traducción: Guillermo Rubio. Disponível em: Disponível em: https://media.oiipdf.com/pdf/445e2953-1920-4073-83f6-29bad7f05d84.pdf . Acesso em: 20 dez. 2022.
https://media.oiipdf.com/pdf/445e2953-19...
) como um movimento de inversão, em que o pedófilo narra a cena como se ele tivesse sido o seduzido e a criança a sedutora. Essa inversão tem o objetivo de forjar um consentimento e uma intenção da criança, quando, na verdade, foi o fetichista que articulou todo o acontecimento. A suposta intenção da criança no ato tem como objetivo de levá-lo a se livrar, antecipadamente, da acusação de violação ou violência sexual.

Senhoras e senhores membros do júri, quase todos os pervertidos sexuais que anseiam por uma latejante relação com alguma menininha (sem dúvida pontuada de ternos gemidos, mas não chegando necessariamente ao coito) são seres inofensivos, inadequados, passivos, e tímidos, que apenas pedem à comunidade que lhes permita entregar-se a seu comportamento supostamente aberrante mas praticamente inócuo, que lhes deixe executar seus pequenos, úmidos e sombrios atos privados de desvio sexual, sem que a polícia e a sociedade os persigam. Não somos tarados! Não cometemos estupros, como o fazem muitos bravos guerreiros! Somos seres infelizes, meigos, de olhar canino, suficientemente bem integrados para saber controlar nossos impulsos na presença de adultos, mas prontos a trocar anos e anos de vida pela oportunidade de acariciar uma ninfeta (NABOKOV, 2003NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003., p. 89-90).

A fantasia de um erotismo espontâneo na criança, como Humbert Humbert relata ocorrer no caso de Lolita, tem o objetivo de contrapor qualquer interpretação que levaria a cena a se assemelhar a uma violação. André (1999ANDRÉ, Sergé. La significación de la pedofilia. In: CONFERENCIA EN LAUSANNE, Suiza, en 8 de junio de 1999. Traducción: Guillermo Rubio. Disponível em: Disponível em: https://media.oiipdf.com/pdf/445e2953-1920-4073-83f6-29bad7f05d84.pdf . Acesso em: 20 dez. 2022.
https://media.oiipdf.com/pdf/445e2953-19...
) conceitua que, ao contrário do violador que goza com a recusa do outro, submetendo-o com a violência física, o pedófilo faz crer que entre ele e a criança há uma relação de amor. Humbert Humbert deixa isso em evidência ao dizer que homens como ele são doces e não cometem estupros, como outros, a quem ele chama de guerreiros.

André (1999ANDRÉ, Sergé. La significación de la pedofilia. In: CONFERENCIA EN LAUSANNE, Suiza, en 8 de junio de 1999. Traducción: Guillermo Rubio. Disponível em: Disponível em: https://media.oiipdf.com/pdf/445e2953-1920-4073-83f6-29bad7f05d84.pdf . Acesso em: 20 dez. 2022.
https://media.oiipdf.com/pdf/445e2953-19...
) confirma que, para os pedófilos, a infância não é um momento, ou uma fase de transição da vida, destinada a acabar, mas uma espécie de estado de ser que deve se restituir em uma temporalidade que não se define. Eis a exata definição, construída na obra de Nabokov, do conceito de ninfeta: a menina, sedutora, perturbadoramente charmosa, isto é, um demônio, que vive em meio às crianças comuns, sendo identificada apenas por homens muito mais velhos que ela.

Considerações finais ou a desconstrução da ninfeta

O presente artigo buscou, a partir do percurso em Freud, Lacan e Nabokov, apontar para a possibilidade de se construir UM saber e nunca O saber sobre o feminino. Em Lolita, entretanto, assistimos a personagem Dolores deixar de ser criança para ser Lolita a partir da nomeação de um homem adulto, Humbert Humbert, semelhante ao paralelo entre as duas figuras de mulheres, nomeadas na cultura por homens e demonstrado por Simone de Beauvoir (2016aBEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos (1949). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016a.): a “santa” e a “puta”. Na obra Lolita Humbert Humbert afirma seu saber acerca da sexualidade feminina, para benefício exclusivo dele mesmo, classificando as mulheres adultas como agentes paliativos e algumas meninas, crianças, como ninfetas. Nos dois casos é ele, Humbert Humbert, quem determina e goza com a nomeação.

No entanto, o aforisma “A mulher não existe”, de Lacan, desconstrói a ninfeta e também o agente paliativo, visto que, se não há um artigo universal que defina a mulher, não se pode falar dela no singular, nem tampouco classificá-la. Podemos falar da mulher no plural, “as mulheres”, que buscarão, uma a uma, se preencher, indo para além do que dizem delas. Assim, Humbert Humbert deposita um véu sobre Lolita, de tal modo que ele não vê Dolores, apenas a ninfeta, sucessora de Annabel, transformando-a em objeto fetiche.

Dessa forma, a pergunta proposta no início do artigo - Humbert Humbert cria ou reconhece Lolita? - foi respondida: ele a cria. Conseguimos perceber no romance que muito pode ser, realmente, imputado à mulher, o que demonstra a violência da nomeação que não parte do próprio sujeito sobre si, mas de outro, neste caso, mulheres sendo categorizadas por homens. Dolores não sabe que é nomeada como ninfeta, que tem em Annabel uma precursora, visto que Dolores e Lolita não são uma, mas duas: a menina e a ninfeta. Humbert Humbert nunca amou Dolores, somente Lolita, a quem ele nomeia e cria. E Charlotte tampouco soube que era um agente paliativo, ou que foi, no passado, uma ninfeta como a filha.

Quando nos propusemos a escrever este trabalho, tínhamos como foco principal buscar mais um saber sobre a feminilidade, tendo como referência a sugestão de Freud (1933/2018dFREUD, Sigmund. Feminilidade (1933). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018d. Obras completas. v. 7. p. 313-345.) para buscarmos nos poetas mais respostas sobre o enigma do feminino. Foi ao longo da escrita que ficou evidente que o discurso proferido pelo narrador-personagem nos mostrava muito mais sobre a masculinidade do que sobre qualquer outra coisa. Desse modo, percebemos que o romance Lolita parece apresentar versões diferentes de mulheres, mas nos evidencia, na realidade, um entendimento sobre a sexualidade masculina, em especial a fantasia masculina fetichista que impõe que Lolita, a sedutora, prevaleça sobre o corpo da criança Dolores. Trata-se da fantasia de Humbert Humbert de um gozo interminável a partir de uma série de estratégias para reescrever os limites da lei, de modo que esta sua nova lei, que atende aos seus interesses exclusivos, seja aceita pelo Outro (júri). Lolita é um romance sobre o masculino e pode contribuir para pensarmos mais acerca de um modo de gozar fetichista e, ainda, sobre a estrutura perversa, que não foi explorada neste artigo e que deixamos como sugestão para um próximo trabalho.

Referências

  • ANDRÉ, Sergé. La significación de la pedofilia In: CONFERENCIA EN LAUSANNE, Suiza, en 8 de junio de 1999. Traducción: Guillermo Rubio. Disponível em: Disponível em: https://media.oiipdf.com/pdf/445e2953-1920-4073-83f6-29bad7f05d84.pdf Acesso em: 20 dez. 2022.
    » https://media.oiipdf.com/pdf/445e2953-1920-4073-83f6-29bad7f05d84.pdf
  • BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos (1949). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016a.
  • BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida (1967). Tradução de Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 2016b.
  • BESSA, Graciela de Lima Pereira. Feminino: um conjunto aberto ao infinito. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.
  • CAMPISTA, Valesca Rosário; CALDAS, Heloísa Fernandes. Feminilidade: enigma e semblante. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 65, n. 2, p. 258-273, 2013. Disponível em Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672013000200008&lng=pt&nrm=iso Acesso em: 19 nov. 2018.
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672013000200008&lng=pt&nrm=iso
  • GALESI, Zelma Abdala. De Freud a Lacan: um passo de saber sobre as mulheres!. Opção Lacaniana Online Nova Série, ano 3, n. 8, jul. 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/de_freud_lacan.pdf Acesso em: 19 nov. 2018.
    » http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/de_freud_lacan.pdf
  • FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. 11 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Obras completas. v. 6.
  • FREUD, Sigmund. A vida sexual humana (1916). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a. Obras completas. v. 7. p. 187-210.
  • FREUD, Sigmund. Fetichismo (1927). In: ______. Neurose, psicose, perversão Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018b. Obras completas. v. 5. p. 315-325.
  • FREUD, Sigmund. Sobre a sexualidade feminina (1931). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018c. Obras completas. v. 7. p. 285-311.
  • FREUD, Sigmund. Feminilidade (1933). In: ______. Amor, sexualidade e feminilidade Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018d. Obras completas. v. 7. p. 313-345.
  • FUENTES, Maria Josefina Sota. As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino. 2009. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano) - Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-16122009-090444/ Acesso em: 23 fev. 2021.
    » https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-16122009-090444/
  • LACAN, Jacques. O seminário: a relação de objeto (1956-1957). Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. livro 4.
  • LACAN, Jacques. O seminário: as formações do inconsciente (1957-1958). Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar , 1999. livro 5.
  • LACAN, Jacques. O seminário: mais, ainda, (1972-1973). Rio de Janeiro: J. Zahar , 2008. livro 20.
  • NABOKOV, Vladimir. Lolita (1955). Tradução de Jorio Dauster. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003.
  • SAFATLE, Vladimir. Fetichismo: colonizar o outro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
  • SANTANA, Vera Lúcia Veiga. Escrita e “Não Falo”. Opção Lacaniana Online Nova Série , ano 4, n. 10, mar. 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_10/Escrita_e_nao_falo.pdf Acesso em: 19 nov. 2018.
    » http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_10/Escrita_e_nao_falo.pdf
  • 1
    Ninfoleptos são os homens que Humbert Humbert afirma serem capazes de identificar uma ninfeta entre as meninas comuns. Ele refere-se a esses homens como profundamente melancólicos e bem mais velhos que as ninfas, uma vez que um jovem não consegue identificar, entre seus pares, as ninfetas.

Editado por

Editora responsável pelo processo de avaliação: Cláudia Castanheira de Figueiredo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2019
  • Revisado
    21 Nov 2021
  • Revisado
    14 Out 2022
  • Aceito
    22 Mar 2023
Universidade Federal Fluminense, Departamento de Psicologia Campus do Gragoatá, bl O, sala 334, 24210-201 - Niterói - RJ - Brasil, Tel.: +55 21 2629-2845 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista_fractal@yahoo.com.br