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Infância isolada: política pública para a profilaxia da lepra no Maranhão (1930-1950)1 1 Este artigo apresenta os resultados da tese de doutorado concluída no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, em setembro/22, desenvolvida sob a orientação da Profa. Dra. Celia Maria Benedicto Giglio, na Linha de Pesquisa Educação, Estado, Trabalho, no Grupo de Pesquisa Avaliação e Políticas Educacionais.

RESUMO

O artigo objetiva divulgar resultados parciais de investigação desenvolvida no âmbito do curso do doutorado em educação, sobre políticas públicas para a infância no Maranhão, com recorte no período do Estado Novo onde a preocupação com as epidemias que se alastravam pelo estado desencadeou práticas profiláticas para controle dos indivíduos enfermos pela Lepra. No caso das crianças, foram isoladas em preventório, denominado Educandário Santo Antonio, após os pais serem diagnosticados com a doença e institucionalizados na Colônia do Bonfim, leprosário localizado em região distante da cidade de São Luís. Com base na análise de literatura como os relatórios, decretos estaduais e bibliografia produzida por intelectuais sobre o período do governo de Paulo Martins de Souza Ramos no Maranhão, evidenciamos práticas políticas de subordinação das crianças aos anseios de uma sociedade que queria se ver livre do incômodo que elas geravam, apesar de serem filhos sadios. As interlocuções com a teoria de Erving Goffman (2008) elucidaram a institucionalização da infância como estratégia de controle, vigilância e estigmatização dos indivíduos marcados pelo sofrimento da doença sob o discurso de uma política para a profilaxia. Os resultados da pesquisa permitem constatar a construção de uma política de segregação voltada à população desvalida no Maranhão, com foco nas crianças, filhos sadios dos enfermos de Lepra, as qual foram submetidas ao trabalho e a uma educação higienista e moralizante que deixou marcas nessa geração.

Palavras-chave:
Políticas Públicas; Infância; Lepra; Maranhão

ABSTRACT

The article aims to disseminate partial results of research carried out within the scope of the doctoral course in education, on public policies for children in Maranhão, with a focus on the period of the Estado Novo, where the concern with the epidemics that spread throughout the state triggered prophylactic practices to control of individuals sick with leprosy. In the case of the children, they were isolated in a preventorium, called Educandário Santo Antonio, after their parents were diagnosed with the disease and institutionalized in Colônia do Bonfim, a leper colony located in a region far from the city of São Luís. Based on the analysis of literature such as reports, state decrees, and bibliography produced by intellectuals about the period of government of Paulo Martins de Souza Ramos in Maranhão, we evidence political practices of subordination of children to the wishes of a society that wanted to get rid of the nuisance that they generated, despite being healthy children. Interlocutions with Erving Goffman’s theory (2008) elucidated the institutionalization of childhood as a strategy for control, surveillance, and stigmatization of individuals marked by suffering from the disease under the discourse of a policy for prophylaxis. The research results show the construction of a policy of segregation aimed at the underprivileged population in Maranhão, focusing on children, healthy children of leprosy patients, who were subjected to work, and a hygienist and moralizing education that left marks on this generation.

Keywords:
Public Policies; Childhood; Leprosy; Maranhão

Introdução

As políticas públicas no Brasil, durante o Estado Novo, estiveram voltadas ao controle populacional e à criação de instituições para vigilância dos indivíduos. Sobre a saúde pública, a departamentalização racionalizava os serviços de atendimento à população, principalmente aos acometidos pelas epidemias que se alastravam pelo país e que exigiam uma atuação mais efetiva do governo. No caso do Maranhão, entre 1930 e 1950, especificamente, no governo de Paulo Martins de Souza Ramos, governador e interventor federal, tem-se a efetivação da Diretoria Geral de Saúde e Assistência, e que compreendia a Sessão Técnica e Administrativa, responsáveis pela coordenação e execução das políticas de profilaxia das doenças epidêmicas no estado.

A epidemia da lepra no Brasil avançava nas primeiras décadas da República e exigiu que naquele momento, algumas decisões fossem tomadas pelo governo federal para controle da doença. A constituição de uma Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas repercutiu nas ações que deveriam se efetivar nos estados brasileiros, como a construção de leprosários e preventórios para isolamento dos doentes e de seus filhos sadios. Essa política de cerceamento dos indivíduos com diagnósticos positivados submeteram as crianças à exclusão social e o disciplinamento de suas condutas (PINTO NETO et al., 2000PINTO NETO, José Martins et al. O controle dos comunicantes de hanseníase no Brasil: uma revisão da literatura. Hansenologia Internationalis, Bauru, SP, v. 25, n. 2, p. 163-76, 2000. Disponível em: https://periodicos.saude.sp.gov.br/hansenologia/article/view/36440. Acesso em: 25 jul. 2022.
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)2 2 Os estudos desses autores trouxeram contribuições importantes para a pesquisa com foco na saúde pública, desde a Proclamação da República até a atualidade. .

Nesse sentido, pretende-se nesse artigo, apresentar dados sobre a atuação da política profilática contra a lepra no Maranhão, destacando o isolamento de crianças no Educandário Santo Antonio, preventório localizado em São Luís que mantinha os filhos sadios de pais diagnosticados com a doença isolados dos familiares e da sociedade. A partir da análise documental dos relatórios do governador/interventor federal Paulo Ramos, decretos estaduais e de textos publicados por intelectuais da medicina maranhense sobre o período no Maranhão, identificou-se os discursos e as práticas para profilaxia e isolamento dos indivíduos doentes de lepra e seus filhos sadios, que sob o controle de Damas da Assistência, eram submetidos ao abandono, moralização e apagamento de suas histórias.

As contribuições dos estudos de Goffman (2008GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada (1963). São Paulo: LTC, 2008.) mobilizaram reflexões sobre a institucionalização e a estigmatização dos indivíduos que são internados pela coerção do Estado. As análises do autor sobre o policiamento das condutas em instituições totais e fechadas, e a medicalização dos corpos possibilitaram compreender o funcionamento das políticas públicas, no período da ditadura getulista e sua repercussão na realidade maranhense. Os estudos de Câmara (2009CÂMARA, Cidinalva Silva. O Começo e o Fim do Mundo: estigmatização e exclusão social de internos da colônia do Bonfim. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2009.) trouxeram contribuições históricas sobre o período do Estado Novo no Maranhão.

O Maranhão Novo e as políticas para a profilaxia da lepra

No Maranhão, a criação da Diretoria de Saúde e Assistência, em 1938, que reunia a Diretoria Geral, o Centro de Saúde Dr. Paulo Ramos, o Instituto Osvaldo Cruz, os Distritos Sanitários e os Serviços de Assistência Social, Hospitalar e Pronto Socorro, coordenava as ações das políticas de Saúde Pública. Especificamente, os Serviços de Assistência Social, incluía os hospitais e outros espaços institucionais que administravam a profilaxia de epidemias e doenças crônicas, como a tuberculose, a lepra, e doenças mentais, inclusive um hospital para “psicopatas” (MARANHÃO, 1941, p. 114).

As iniciativas de combate à lepra foram lideradas pelo médico maranhense Achilles Lisboa, ocupante de diversos cargos na administração estadual e que adotara os discursos para informação aos maranhenses sobre a doença. Em seus artigos, publicados em jornais e em manifestos avulsos para circulação de suas ideias, orientava sobre as condutas que a população deveria adotar para evitar o contágio. Sua atuação na década de 1930 no Maranhão protagonizou a criação de políticas públicas para a saúde contra as doenças tropicais, viroses e epidemias como a da Lepra. Em seu manifesto Catecismo de Defesa contra a Lepra, publicado em 1936, além de orientações a população, Lisboa demarcava sua posição em prol da elite que representava, considerando as pessoas residentes na periferia e na zona rural como desprovidas de higiene e, por isso, vulneráveis ao contágio da doença (CÂMARA, 2009CÂMARA, Cidinalva Silva. O Começo e o Fim do Mundo: estigmatização e exclusão social de internos da colônia do Bonfim. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2009.).

Proibição rigorosa, imediata, pela polícia ou pela própria autoridade sanitária, de se misturarem à população os doentes de lepra declaradamente contagiantes, vedando-se-lhe sobretudo a entrada nas igrejas, nas repartições públicas, nos bondes, nos cafés, nas casas comerciais, nos mercados, em toda parte, afinal, onde haja aglomeração de pessoas são e se exponham gêneros comestíveis, deverá ser severamente estabelecida (LISBOA, 1936LISBOA, Achilles. Catecismo de defesa contra a Lepra. São Luís: Imprensa Oficial, 1936., p. 14).

Além dessa manifestação pública de combate à doença, os discursos de Lisboa soavam como um tratado contra a pobreza e o desvalimento, responsabilizada por ele como motivo para o surgimento das epidemias, em razão da ausência das condições sanitárias adequadas para evitar a disseminação da doença. Os modos de vida e as culturas periféricas e rurais são desconsideradas em seus posicionamentos, rotuladas como hábitos vinculados a malandragens e práticas de ociosidades cotidianas: “com males outros muitos da imigração africana, tais como a lepra, a bouba, a ainhum, a diamba, o timbó, a bilharzia, o tambor, o bumba-boi, veio também o Necator, que é, mais do que o paludismo, fator essencial de nossa anemia tropical e, portanto, da preguiça, da inaptidão e moleza, dos nossos trabalhadores rurais” (LISBOA, 1947LISBOA, Achilles. A imigração e a Lepra. Revista de Geografia e História, São Luís, ano II, n. 2, 1947., p. 103).

Desse modo, Lisboa comungava com o projeto eugenista dos governos interventoriais que comandavam o Maranhão sob os olhos de Getúlio Vargas, o presidente que determinava as políticas e os políticos no Brasil. De 1930 a 1945, o Estado do Maranhão foi governado por políticos indicados por Vargas, que prezavam pela unidade política da federação quanto aos mandos de sua gestão. De José Luso Torres a Clodomir Cardoso, foram 12 interventores federais no período, escolhidos pela presidência da república, para administrarem o governo do Maranhão, sendo que a gestão do governador Paulo Martins de Sousa Ramos, que foi interventor no Maranhão por 9 anos (1936-1945) e construiu novas instituições para a organização administrativa, que segundo ele, foi encontrada em verdadeiro caos. O governo de Ramos foi o mais duradouro e modificou o cenário administrativo do estado (CÂMARA, 2009CÂMARA, Cidinalva Silva. O Começo e o Fim do Mundo: estigmatização e exclusão social de internos da colônia do Bonfim. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2009.).

Paulo Ramos e Achilles Lisboa, portanto, se tornam os aliados na configuração das políticas para a saúde durante o regime ditatorial do Estado Novo, articulando ciência e política para a organização dos espaços de isolamento e tratamento dos enfermos de Lepra, doença que assolava a cidade e demandava imediatas iniciativas governamentais. Logo em 1933, no governo de Antonio Martins de Almeida, já eram apresentadas ao presidente Vargas a real situação do estado com relação à epidemia em uma Exposição, categoria de relatório destinado a prestação de contas das atividades que eram desenvolvidas nas unidades federativas. Na época, o único lugar para isolamento dos doentes era o Leprosário do Gavião, uma vila que funcionou no Bairro Lira até 1937, por trás do Cemitério central da cidade de São Luís, de mesmo nome (CÂMARA, 2009CÂMARA, Cidinalva Silva. O Começo e o Fim do Mundo: estigmatização e exclusão social de internos da colônia do Bonfim. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2009.).

Nesse relatório, Almeida (1933ALMEIDA, Antônio Martins de. Exposição apresentada a Getúlio Vargas pelo interventor Federal no Estado do Maranhão. São Luís: Imprensa Oficial, 1933., p. 54) destacava a necessidade de construção de um novo leprosário, mais amplo, para abarcar a quantidade de doentes que vinham do interior do Estado, pois o espaço existente não possuía mais condições sanitárias de funcionamento: “as condições dos casebres desse depósito de humanos é de iminência de ruína, não resistindo às primeiras chuvas ou vento que já se anunciam”. A Ponta do Bonfim foi o lugar escolhido para a construção da nova colônia, entregue em 1937. Em 1935, o Decreto nº 799, de 22 de março, autorizava o fornecimento de materiais para a construção do Leprosário da Ponta do Bonfim.

Fica, desde já o Secretario Geral do Estado autorizado a assignar contracto com a firma Guilherme Bluhm desta praça, para fornecimento de materiaes necessarios as installações do Leprosario da Ponta do Bomfim, de accordo com a proposta apresentada pela refererida firma; revogadas as disposições em contrario (MARANHÃO, 1935, p. 12).

A Ponta do Bonfim (Figura 1), escolhida pelo distanciamento da capital, tinha localização privilegiada por ficar do outro lado da margem do Rio Bacanga, que banha a região central da ilha maranhense. Ou seja, os doentes eram deixados lá de barco e ficavam totalmente isolados, o que causava inúmeros sofrimentos aos familiares dessas pessoas, além do estigma que marcava não apenas os doentes, mas também suas famílias. “Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida” (GOFFMAN, 2008GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada (1963). São Paulo: LTC, 2008., p. 15). Além da Colônia, outras políticas foram criadas para se estender o atendimento que tinham por alvo acercar-se dos vínculos familiares dos enfermos: os dispensários e os preventórios.

Os estudos de Câmara (2009CÂMARA, Cidinalva Silva. O Começo e o Fim do Mundo: estigmatização e exclusão social de internos da colônia do Bonfim. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2009.), que partiram da análise dos documentos de implantação da Colônia do Bonfim e de entrevistas a ex-internos, mostrou a ineficiência do sistema isolacionista brasileiro para o tratamento da lepra. No Maranhão, com a escassez de recursos, a intenção com a construção de um leprosário fora da cidade era para, verdadeiramente, retirar os doentes do convívio com os outros, ditos sadios. “Tais barreiras contribuem para a manutenção da exclusão dos egressos do Bonfim do convívio social e para o silenciamento de suas memórias, que não aparecem na história do bairro formado em seus arredores” (CÂMARA, 2009CÂMARA, Cidinalva Silva. O Começo e o Fim do Mundo: estigmatização e exclusão social de internos da colônia do Bonfim. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2009., p. 36).

FIGURA 1
PONTA DO BONFIM - PARTE DO MAPA DE SÃO LUÍS

Em São Luís, funcionou o Dispensário Frei Querubim onde se realizava, segundo Paulo Ramos, em sua Exposição ao Povo Maranhense (1938RAMOS, Paulo Martins de Souza. Exposição ao povo maranhense. São Luís: Imprensa Oficial, 1938.), “tratamento ambulatorial dos contagiantes, censo, vigilância e diagnostico dos casos recentes ou dissimulados de lepra” (RAMOS, 1938RAMOS, Paulo Martins de Souza. Exposição ao povo maranhense. São Luís: Imprensa Oficial, 1938., p. 17). Assim, os casos suspeitos poderiam ter atendimentos para diagnosticar os sintomas que, porventura, estivessem manifestando em seus corpos. Eram espaços necessários para controle da população e normalização da vida social, isolando sob autoridade médica os casos confirmados. A coerção sobre a população doente desenvolvia uma sensação de medo e de angústia, quando o diagnóstico era positivado, pois saberiam dos isolamentos e da perda de seus vínculos parentais.

O Plano Nacional de Combate à Lepra, foi um programa de governo criado em 1935 que previa a construção de leprosários, dispensários e preventórios, a partir de dados do Censo Leprológico3 3 Estatística do quantitativo de doentes com Lepra no Brasil, realizado a partir de 1933, atualizado anualmente por cada estado. de 1933. Um plano getulista desenvolvido no Ministério de Educação e Saúde, tendo Capanema como ministro e dirigente dos objetivos de exterminar a lepra no Brasil (MACIEL, 2007MACIEL, Laurinda Rosa. “Em proveito dos sãos, perde o lázaro a liberdade”: uma história das políticas públicas de combate à lepra no Brasil (1941-1962). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense, 2007.). Construído com base nas políticas desenvolvidas em outros países, o plano se organizava a partir das estatísticas brasileiras sobre a expansão da doença em cada estado.

A tese de Elaine Cristina Rossi Pavani (2019PAVANI, Elaine Cristina Rossi. O controle da “Lepra” e o papel dos preventórios: exclusão social e interações socioespaciais dos egressos do Educandário Alzira Bley no Espírito Santo. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2019.), que estudou a exclusão e as interações socioespaciais dos egressos de um educandário na cidade de Vitória (ES), analisa a criação desses espaços para o isolamento e a educação das crianças filhas de pais leprosos. A autora destaca que a institucionalização por isolamento foi uma proposta seguida pelo Brasil a partir das experiências de países americanos e europeus e era defendida como principal medida para os acometidos pela doença. “Os portadores da doença eram internados compulsoriamente nos leprosários, os filhos sadios ficavam internos em preventórios e os dispensários realizavam o diagnóstico da doença e o encaminhamento para as devidas instituições” (PAVANI, 2019PAVANI, Elaine Cristina Rossi. O controle da “Lepra” e o papel dos preventórios: exclusão social e interações socioespaciais dos egressos do Educandário Alzira Bley no Espírito Santo. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2019., p. 121).

Os dispensários e preventórios seguiam as orientações firmadas entre os órgãos federais e estaduais e acompanhavam os índices da doença no Brasil, por meio de conferências nacionais e estaduais. A I Conferência Nacional de Assistência Social aos Leprosos, realizada no Rio de Janeiro entre os dias 12 e 19 de novembro de 1939, promovida pela Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra (FSALDL) em diálogos com todas as Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra presentes em cada estado, estabeleceram os critérios de funcionamento desses espaços. No documento final da conferência para divulgação dos compromissos com as instituições de assistência, identificam-se cláusulas sobre as famílias dos enfermos:

10.° - Para execução da assistência moral e material à família do Lázaro o que concorre favoravelmente para mantê-lo no isolamento deverão ser empregados todos os meios possíveis, principalmente os seguintes: a) - recolhendo e mantendo em estabelecimento adequados os filhos menores e sadios dos doentes de lepra; b) - amparando de modo particular a esposa sadia do Lázaro, cuja assistência, em determinados casos, merece especial atenção, podendo ser-lhe concedido mesmo o auxílio financeiro que será mantido somente, até o seu reajustamento social; c) - prestando todo o amparo possível aos demais parentes que dependam do leproso, principalmente aos pais por ele arrimados; d) - amparando como se parentes fossem quaisquer pessoas inválidas cuja subsistência dependia do Lázaro internado; e) prestando com especial cuidado assistência moral aos menores dependentes do Lázaro e não recolhidos a estabelecimentos adequados, pelo menos até a maioridade, encaminhando-os segundo os bons princípios sociais; f) - procurando ainda encaminhar na vida, obtendo colocações, aos filhos e pessoas dependentes dos leprosos, velando ao mesmo tempo pela continuidade e melhoria da situação de cada um; g) - não descurar de um bem orientado programa de educação sanitária em relação à lepra, ao dispensar assistência a família do Lázaro (BRASIL, 1939, p. 432).

A vigilância sobre a vida dos familiares era uma das medidas tomadas após o diagnóstico era realizado no indivíduo doente, a fim de combater o avanço da doença no resto da população. A polícia sanitária4 4 Médicos, enfermeiros e seguranças visitavam os lugares, como residências, e conduziam à força os prováveis diagnósticos de lepra na cidade. Situações constrangedoras e violentas marcavam esses episódios condecorados como profiláticos e saneadores. foi, portanto, um sistema necessário para diagnóstico e condução coercitiva dos indivíduos doentes aos leprosários, e de seus filhos para os preventórios. Demais familiares recebiam visitas sanitárias e medicamentos para tratamento preventivo. “1.° - Polícia Sanitária : Visitas por médico a casas em vacância - 637; visitas por guardas a casas em vacância - 541; visitas por guardas em polícia sistemática - 19.926; intimações feitas - 267; intimações cumpridas - 135; projetos e plantas despachados - 113” (MARANHÃO, 1941, p. 117).

Em 1942, o Relatório de Paulo Ramos ao Presidente da República, explanava sobre o movimento do Dispensário para atendimento dos casos diagnosticados no Maranhão.

No ano de que se trata, o movimento do Dispensário foi o seguinte: Comparecimentos para 1° exame 28; tipo lepromatoso 13; casos abertos 23; notificações recebidas 34; comunicantes examinados 56; comparecimentos para reexame 33; comparecimentos para tratamento 237; receitas prescritas 130; injeções aplicadas 1.268; exames de laboratório 145; visitas em domicílio fara tratamento 124; visitas em domicílio para vigilância 202; doentes enviados a Colônia do Bonfim 27 (MARANHÃO, 1942, p. 146).

Assim, sob vigilância contínua, a população estava submetida aos mandos das políticas profiláticas do governo Paulo Ramos, que inaugurava espaços com o discurso da prevenção, mas, que na verdade, estigmatizavam os doentes e os marcavam a pretexto de medidas epidemiológicas.

O isolamento das crianças como prevenção: o Educandário Santo Antonio

O Preventório, chamado Educandário Santo Antônio (Figura 2), teve esse nome por ser anexo a um Convento de mesmo nome, no bairro do Cutim Anil, em São Luís. Tratado como lugar de beneficência por confinar as crianças, filhas dos enfermos que estavam isolados na Colônia da Ponta do Bonfim, pertencia desde sua inauguração, em 08 de dezembro de 1941, a uma Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra no Brasil5 5 A Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra iniciou suas atividades no Brasil na cidade de São Paulo onde foi fundada no ano de 1926. A reunião de fundação ocorreu na casa de Jorge Tibiriçá, descendente de uma família de políticos e casado com Alice Tibiriçá, a responsável pela convocação da reunião para fundar a sociedade de assistência às crianças filhas dos lázaros. .

O Preventório para o filho sadio do Lázaro, construído às expensas da União e sob os auspícios da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra no Brasil, foi inaugurado em 8 de dezembro de 1941, por ocasião da visita, a esta capital, do Dr. João de Barros Barreto, digno Diretor Geral do Departamento Nacional de Saúde (MARANHÃO, 1941, p. 121).

A Sociedade, organização filantrópica feminina para a causa da lepra no país, foi transformada em política de saúde e assistência, pois insistiu no encaminhamento que deveria ser dado às crianças pobres saudáveis, filhas dos enfermos, pois teriam que ser conduzidas aos preventórios sob a coerção do Estado. Essa instituição assistencialista, com atuação das mulheres da elite, liderava os discursos e posicionamentos sobre o tratamento que deveria ser realizado no âmbito dos preventórios.

FIGURA 2
EDUCANDÁRIO SANTO ANTÔNIO, PREVENTÓRIO EM SÃO LUÍS

O Decreto-lei nº 30, de 25 de janeiro de 1938, estabelecia nova organização aos serviços da Diretoria de Saúde e Assistência do Estado do Maranhão. No Título IV, sobre a Profilaxia da Lepra, capítulo único, artigo 83, mencionava aspectos sobre as crianças e a separação que deveriam sofrer dos pais doentes, isolados em domicílio ou em hospitais, logo quando nasciam “e mantidos, até a adolescência, em preventórios, para tal fim especialmente destinados” (MARANHÃO, 1938, p. 78). No parágrafo único do art. 91, o regulamento proibia a frequência de crianças filhas de leprosos em escolas, sem vigilância rigorosa, “e desde que apresentem sintomas suspeitos, não mais poderão permanecer entre crianças sãs” (MARANHÃO, 1938, p. 78). O art. 95, inciso 1, destacava o trabalho realizado pelas iniciativas privadas na organização do preventório, em especial o já realizado pela Sociedade da Assistência.

As instituições privadas, que cooperarem na luta contra a lepra, ficarão subordinadas aos dispositivos legais existentes, e, no que se refere a ação profilática, deverão obedecer a orientação técnica da diretoria de Saúde e Assistência, sob cuja fiscalização deverão funcionar, competindo-lhes preferentemente: a) a assistência aos filhos sadios dos doentes de lepra; b) a assistência as famílias dos doentes internados; c) a assistência social aos doentes internados; d) a assistência aos que tiverem alta dos leprosários, do isolamento domiciliário, dos dispensários e dos preventórios; e) a assistência aos doentes de lepra e suas famílias, sempre que pela situação local, e de acordo com a autoridade sanitária, não tiver sido possível ainda a Internação; f) a cooperação com os poderes públicos na educação sanitária, desde que seja seguida a orientação técnica das autoridades sanitárias; g) auxílio ou criação de centros de estudos e investigações assim como cooperação no tratamento dos doentes, desde que haja articulação com o serviço oficial (MARANHÃO, 1939, p. 85).

O Decreto-lei nº 518, de 23 de outubro de 1941, concedia ao Educandário Santo Antônio dispensa das taxas de materiais adquiridos pela Sociedade para composição do espaço de prevenção da doença pelo confinamento das crianças. Essas práticas políticas demonstravam a aliança do governo com a filantropia para garantia do funcionamento do preventório, como instituição necessária.

Considerando que a Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, nesta capital, por sua presidente, requer dispensa das taxas de armazenagem, capatazias e estatística para 45 volumes de móveis e aparelhos importados para instalação do Educandário Santo Antônio - preventório para filhos sadios de Lázaros (MARANHÃO, 1942, p. 94)

As Sociedades, constituídas em vários estados brasileiros, organizadas como uma Federação, em 1935, passam a ser presididas por Eunice Weaver, casada com o norte-americano Charles Anderson Weaver, a assistente social, formada pela Universidade de Carolina do Norte, passou a dedicar-se à assistência social aos leprosos, tendo fundado e presidido a Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, se alinhando aos interesses do Ministério da Educação e Saúde, e obteve apoio financeiro considerável (SANTOS, 2011SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Filantropia, poder público e combate à lepra (1920-1945). História, Ciências, Saúde, Manguinhos, RJ, p. 253-74, 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/8sD4DNVVgvwzWbJsqdNhW8M/?lang=pt. Acesso em: 11 ago. 2022.
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). Conforme os estudos de Gomide (1991GOMIDE, Leila Regina Scalia. Órfãos de pais vivos: a lepra e as instituições preventoriais no Brasil: estigmas, preconceitos e segregação. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.), as mulheres da filantropia em prol dos enfermos de Lepra viabilizavam, pelo poder aquisitivo que detinham seus maridos, a consolidação de uma política nacionalista estritamente feminina, que olhava para as crianças como o futuro ameaçado. Alinhadas aos discursos médico-higienistas, as mulheres da Federação das Sociedades da Assistência cunhavam práticas segregacionistas das crianças, para proteção de uma sociedade que as bania. No Maranhão, a diretora Maria Joaquina Maia de Andrade, filha do Proprietário de Terras Manoel José Maia e casada com o médico Annibal de Pádua Andrade, como diretora do Educandário Santo Antonio correspondia aos anseios da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, seguindo a rigidez imposta para a educação e vigilância das crianças, filhas dos leprosos internados na Colônia do Bonfim. Esteve à frente dos trabalhos da Sociedade e do Educandário entre os anos de 1938-1947, segundo dados da Federação, coletados no trabalho realizado pelos professores Francieli Lunelli Santos e José Augusto Leandro, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (SANTOS; LEANDRO, 2019SANTOS, Francieli Lunelli; LEANDRO, José Augusto. Mulheres da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, 1926-1947. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, RJ, v. 26, p. 57-78, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/hcsm/a/RRjBPZx7gDMTKbkCJ6TrTyh/?lang=pt. Acesso em: 15 ago. 2022.
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).Na pesquisa de Santos e Leandro (2019), fez-se o levantamento de preventórios brasileiros e suas diretorias, constituídas pelas mulheres da Federação, sendo que no Educandário Santo Antônio, preventório maranhense, a atuação de Maria Joaquina seguia rigorosamente o disposto no Regimento Interno dos Preventórios aprovado pela mesma Federação, em 1941, o qual relatava sobre as crianças que manifestassem interesse em estudar (letras, artes ou ciências) poderiam estudar fora do estabelecimento com todas as despesas custeadas. Entretanto, na realidade isto não acontecia, pois as oportunidades eram extremamente limitadas e os internados acabavam por ter acesso apenas ao curso primário, que era ministrado nas instituições. O Regimento seguia as normas do Regulamento dos Preventórios do Departamento Nacional de Saúde, que normatizava o tempo que as crianças deveriam ficar na instituição.

19.° - O Preventório deverá compor-se de uma creche, de um pavilhão de observação, de pavilhões gerais, de uma escola profissional ou de instituição congênere. 20.° - Na creche deverão ser admitidas as crianças menores de 2 anos de idade, e as nascidas nos leprosários. 21.° - As crianças de mais de 2 anos de idade até 12 anos, do sexo masculino, e até a maioridade as do sexo feminino, serão admitidas nos pavilhões gerais. 22.° - As crianças de sexo masculino, de 12 a 18 anos de idade, deverão ser encaminhadas às escolas profissionais ou instituições congêneres (BRASIL, 1939, p. 433).

A Lei nº 610 de 13 de janeiro de 1949, que fixou normas para a profilaxia da lepra nacionalmente, ordenava que as políticas estaduais garantissem a educação para as crianças institucionalizadas em preventórios: “Art. 26. As crianças comunicantes de doentes de lepra, internadas em preventórios ou recebidas em lares, será proporcionada assistência social, principalmente sob a forma de instrução primária e profissional, de educação moral e cívica, e de prática de recreações apropriadas” (BRASIL, 1949, s/p.). Segundo dados do Relatório Preliminar do Grupo de Trabalho da Secretaria de Direitos Humanos e Secretaria Nacional de promoção dos direitos da pessoa com deficiência, escrito em 2012, as crianças internadas nessas instituições não recebiam a educação orientada pela legislação. O ensino se baseava apenas na aprendizagem da leitura, escrita e operações matemáticas (BRASIL, 2012). O trabalho sim, era uma atividade estimulada no interior do educandário, tendo a ordem e a disciplina como imposições para manutenção de um bom funcionamento da instituição.

Gomide (1991GOMIDE, Leila Regina Scalia. Órfãos de pais vivos: a lepra e as instituições preventoriais no Brasil: estigmas, preconceitos e segregação. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1991.) relata que os meninos ficavam internados nesses espaços até completarem 18 anos, e as meninas até os 21 anos, em regime asilar sem contato com seus pais, assim como toda a comunidade, somente com médicos e enfermeiros autorizados. Na pesquisa realizada pela cientista social maranhense Ellen Cristina Pinheiro Ferreira, em 2017FERREIRA, Ellen Cristina Pinheiro. Filhos separados: entre construção de demandas e reconhecimento. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017., que utilizou em seu trabalho monográfico a metodologia da história oral6 6 A metodologia da história oral visa resgatar memórias e fatos pessoais através da contação feita por indivíduos que viveram as experiências utilizando entrevistas estruturadas, que serão depois analisadas para compor uma interpretação sobre o passado, não encontrada em documentos. , encontram-se os relatos de egressos do Educandário que trazem informações sobre a constituição dos espaços e dos tempos das crianças internas. “As crianças residentes do Educandário passavam por constante controle sanitário. As falas dos filhos internados na instituição sugerem que as crianças eram vistas como possíveis receptáculos da doença” (FERREIRA, 2017FERREIRA, Ellen Cristina Pinheiro. Filhos separados: entre construção de demandas e reconhecimento. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017., p. 15).

A investigação, realizada com homens e mulheres que viveram a dor da separação de suas famílias, destaca que a criação dessas instituições “antileprosos” contribuiu para segregar e disseminar o preconceito com as pessoas que eram conduzidas ao regime de internação, já que ficavam isoladas em lugares distantes do perímetro urbano. As diretorias que assumiam a administração do educandário, sabendo das consequências dessa segregação, orientavam a omissão de suas próprias histórias aos egressos da instituição, para poderem trabalhar e continuar suas vidas, além muros. “Sofri preconceito, porque a gente ia procurar lugar pra trabalhar e ninguém aceitava, porque se soubesse que era filho de doente, eles não empregavam de jeito nenhum” (FERREIRA, 2017FERREIRA, Ellen Cristina Pinheiro. Filhos separados: entre construção de demandas e reconhecimento. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017., p. 33).

O Estado, nas falas dos representantes do governo e das Sociedades de Assistência, defendia a proteção dessas crianças e a integridade das vidas dos egressos ao saírem das instituições a continuarem suas vidas, após isolamento no Educandário. Porém, mediante a escuta dos relatos, Ferreira (2017FERREIRA, Ellen Cristina Pinheiro. Filhos separados: entre construção de demandas e reconhecimento. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017., p. 34) afirma que “na realidade a intervenção estatal de efeito pedagógico recomendada no Regimento interno dos educandários acatada pelos agentes do Estado acabava promovendo a indiferença parental”. Na escuta das histórias desses homens e mulheres, marcados pela discriminação e pela vigilância impostas pelo adoecimento de seus familiares e pela política controladora dos indivíduos, tem-se explícito a forma de tratamento diferenciado para as crianças maranhenses. Aquelas consideradas normais, deveriam ter vínculos afetivos com seus pais e protegidos pela lei. Já as que tinham pais internados na Colônia, deveriam obrigatoriamente, manter distanciamento dos pais e da convivência familiar e social (FERREIRA, 2017FERREIRA, Ellen Cristina Pinheiro. Filhos separados: entre construção de demandas e reconhecimento. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017.).

Sabe-se que diversas instituições responsáveis por garantir os cuidados de menores, acabam por ser responsáveis também por violações aos direitos dessas pessoas. Não tenho intuito de generalizar estas condutas criminosas expandindo sua realização a todos os funcionários destas instituições. Desejo apenas demonstrar a existência nesta parcela da população, atingida pela política de profilaxia da hanseníase que não possuía a doença, mas que como seus pais hansenianos, teve que carregar estigmas e passar por graves violações dos direitos humanos, decorrentes das próprias práticas e inconsistências do Estado que foi responsável pelos danos físicos e morais causados a estas pessoas, quando retiradas de suas casas e enviadas a estabelecimentos onde não se supervisionava as ações de funcionários (FERREIRA, 2017FERREIRA, Ellen Cristina Pinheiro. Filhos separados: entre construção de demandas e reconhecimento. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017., p. 35-36).

Mário7 7 Nome fictício, para preservar o nome verdadeiro do entrevistado. , uma criança enviada para o Educandário, hoje com 77 anos, foi um dos relatos investigados pela pesquisadora sobre o cotidiano na instituição. Nascido em 1945, Mário nasceu na Colônia do Bonfim, foi institucionalizado no educandário na manhã após seu nascimento, residindo ali por 16 anos. Segundo o relato, não existia sentimento de afeto e de estima na convivência com os funcionários e nem em relação aos pais, mesmo distantes. Não eram recuperadas as lembranças e nem resgatados os sentimentos parentais que tanto necessitavam as crianças, isoladas naqueles espaços. Comparou o tratamento dado pelos funcionários e freiras que trabalhavam na instituição às crianças, como “um bando de animais soltos”:

[...] às crianças do berçário tinham uns carrinhos de mão [...] tinham um ferrinho cumprido [...] o ferrinho furava a parede e eles começavam a comer barro, barro da parede [...] instinto de criança! E o índice de crianças que morriam de anemia, era alto. [...] Mas não ficava ninguém ali monitorando, tomando conta, não! Não ficava ninguém ali, não! (FERREIRA, 2017FERREIRA, Ellen Cristina Pinheiro. Filhos separados: entre construção de demandas e reconhecimento. Monografia (Graduação em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017., p. 63).

Outros relatos reportaram às violências físicas e verbais, contados por Mário com muita tristeza e angústia. A falta de cuidado das pessoas que trabalhavam no Educandário com as crianças acabou causando situações de morte e de fuga entre os internos, que sofriam com a ausência de seus pais e familiares, impedidos de visitarem a instituição. Pela falta de conhecimento que essas populações, em sua maioria pobres, tinham sobre a lepra e sobre a política de profilaxia, o governo aumentava o grau de informação sobre a enfermidade, alarmando os habitantes sobre as consequências em conviver com algum infectado. Obviamente, isso causava o aumento da discriminação e excluía, não somente os doentes, mas todos os seus familiares sadios, da convivência social. Essas pessoas foram retiradas do contexto de “criatura comum e total, reduzindo-se a pessoas estragadas e diminuídas” (GOFFMAN, 2008GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada (1963). São Paulo: LTC, 2008., p. 66).

Em 1950, com a publicação do Tratado de Leprologia, organizado pelo Serviço Nacional de Lepra do Ministério de Educação e Saúde, tendo como diretor o Dr. Ernani Agrícola, com prefácio escrito por Gustavo Capanema, o governo brasileiro reunia numa obra, uma ampla abordagem sobre o desenvolvimento da doença, desde o período colonial. No capítulo IX da obra, intitulado O Estado Nacional e a Profilaxia da Lepra no Brasil: a Cooperação da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, o órgão esclarecia sobre o importante papel das mulheres e a construção de uma política para fundação dos preventórios e a cooperação com os governos estaduais (BRASIL, 1950).

Na execução dessas campanhas, as abnegadas damas da Federação percorriam numerosas cidades, procurando despertar a consciência do povo realizando conferências, ou por meio do rádio, folhetos, imprensa etc., sempre com o elevado propósito de angariar fundos para o completo desempenho de suas finalidades (BRASIL, 1950, p. 133).

O Educandário Santo Antônio funcionou até os anos 1970, continuando como política de assistência à saúde, mas perdendo seus objetivos iniciais. Não se sabe exatamente em que ano o Educandário deixou de receber os filhos dos enfermos em São Luís, mas teve suas dependências adaptadas ao atendimento de menores infratores, já que a epidemia de Lepra teria amenizado com a política intervencionista do Governo Vargas. Hoje funciona como creche comunitária, ainda sob os interesses da Fundação Eunice Weaver, presidida por instituições filantrópicas e religiosas.

Considerações finais

A assistência às crianças maranhenses anunciada no período do Estado Novo configurou um modo extravagante de proteção à infância que atuava em prol da invisibilidade e do apagamento das histórias dos indivíduos estigmatizados. Considerados como sobras daquela sociedade, os filhos sadios dos enfermos de Lepra foram incluídos em uma política cuja racionalidade se traduzia na fabricação de uma infância isolada e esquecida a si mesmo. Revisitar a história das instituições de proteção à infância é um percurso epistemológico necessário para considerarmos esses espaços como encaminhamentos das políticas públicas que, no passado, educavam crianças a partir da segregação dos seus corpos.

Assim, discursos e práticas produzidos em documentos como relatórios de governo e decretos estaduais são fontes privilegiadas para compreendermos a atuação dos administradores junto às associações e outros grupos políticos interessados no isolamento das crianças, como as senhoras da elite, classificando os indivíduos e mantendo os doentes longe do resto da população, negando suas identidades. As ações de intelectuais como os leprólogos garantiam a circulação do ideário nacionalista presente na ditadura getulista que, potencialmente, excluía da convivência social os corpos fragilizados pela lepra. Posteriormente, essas políticas marcavam as vidas das crianças que foram submetidas a essas medidas ditas profiláticas, fazendo-as invisíveis no percurso subsequente a saída da instituição.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Este artigo apresenta os resultados da tese de doutorado concluída no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, em setembro/22, desenvolvida sob a orientação da Profa. Dra. Celia Maria Benedicto Giglio, na Linha de Pesquisa Educação, Estado, Trabalho, no Grupo de Pesquisa Avaliação e Políticas Educacionais.
  • 2
    Os estudos desses autores trouxeram contribuições importantes para a pesquisa com foco na saúde pública, desde a Proclamação da República até a atualidade.
  • 3
    Estatística do quantitativo de doentes com Lepra no Brasil, realizado a partir de 1933, atualizado anualmente por cada estado.
  • 4
    Médicos, enfermeiros e seguranças visitavam os lugares, como residências, e conduziam à força os prováveis diagnósticos de lepra na cidade. Situações constrangedoras e violentas marcavam esses episódios condecorados como profiláticos e saneadores.
  • 5
    A Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra iniciou suas atividades no Brasil na cidade de São Paulo onde foi fundada no ano de 1926. A reunião de fundação ocorreu na casa de Jorge Tibiriçá, descendente de uma família de políticos e casado com Alice Tibiriçá, a responsável pela convocação da reunião para fundar a sociedade de assistência às crianças filhas dos lázaros.
  • 6
    A metodologia da história oral visa resgatar memórias e fatos pessoais através da contação feita por indivíduos que viveram as experiências utilizando entrevistas estruturadas, que serão depois analisadas para compor uma interpretação sobre o passado, não encontrada em documentos.
  • 7
    Nome fictício, para preservar o nome verdadeiro do entrevistado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Set 2022
  • Aceito
    06 Jun 2023
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