Acessibilidade / Reportar erro

Os reflexos de uma política de acesso à educação infantil destinada a bebês e crianças desnutridas1 1 Projeto de pesquisa desenvolvido com auxílio financeiro da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

RESUMO

Este artigo analisa como o programa Creches e Centros de Atendimento à Infância Caxiense (CCAIC), proposta intersetorial de segurança alimentar e nutricional, do município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense do estado do Rio de Janeiro, que possui como critério de matrícula a desnutrição e/ou risco nutricional das crianças, tem traduzido as demandas sociais dos bebês, crianças e famílias, e seus possíveis efeitos na vida desses sujeitos. Para tanto, delineamos o histórico dessa política pública de combate à desnutrição; trazemos alguns achados advindos da análise diagnóstica da rede pública de educação infantil; e, por fim, analisamos os possíveis efeitos dessa política pública na garantia do direito ao acesso à creche, bem como vislumbramos demandas para uma política intersetorial de atendimento aos bebês e crianças. São explorados dilemas e tensões dessa política que tem como tarefa a mitigação da pobreza, como, por exemplo: a produção de um olhar preconceituoso sobre bebês, crianças e famílias, já que a ênfase está na noção de carência; a multidimensionalidade do ato de se alimentar, extrapolando uma perspectiva fisicalista dos nutrientes para a discussão da alimentação; a cristalização dos critérios de matrícula, naturalizando o comprometimento dos preceitos constitucionais e o princípio de igualdade que garantem a educação infantil para todas as crianças.

Palavras-chave:
Educação Infantil; Desnutrição; Acesso; Intersetorialidade

ABSTRACT

This article analyzes the Creches e Centros de Atendimento à Infância Caxiense (CCAIC) program, an intersectoral proposal for food and nutrition security, in the city of Duque de Caxias, Baixada Fluminense in the State of Rio de Janeiro, Brazil, which has children’s malnutrition or nutritional risk as an enrollment criterion. First, we present a historical outline of this public policy to combat malnutrition. Next, we bring some research findings from the diagnostic evaluation of the public education network. Finally, we analyze the possible effects of this policy in guaranteeing the right to access kindergarten and discuss possible demands for an intersectoral policy for the care of babies and children. We explore the dilemmas and tensions of this policy aiming to mitigate poverty, such as the production of a prejudiced look at babies, children, and their families; the multidimensionality of eating, extrapolating a physical perspective of nutrients in the food discussion; the crystallization of enrollment criteria, naturalizing the commitment of constitutional precepts and the principle of equality that guarantee Early Childhood Education for all children. Thus, this work sought to question how the CCAIC policy has understood the social demands of babies, children, and families and its effects on their lives.

Keywords:
Early Childhood Education; Malnutrition; Access; Intersectionality

Introdução

Este artigo é um recorte de um projeto mais amplo de pesquisa, ainda em andamento, que visa analisar concepções de avaliação do trabalho com bebês na educação infantil. Especificamente neste trabalho, analisamos as Creches e Centros de Atendimento à Infância Caxiense (CCAIC) que constituem um conjunto de sete instituições do município de Duque de Caxias (RJ), de responsabilidade das Secretarias Municipais de Educação, de Saúde e de Assistência Social. Os CCAIC são uma política pública intersetorial de segurança alimentar e nutricional que trazem até hoje o baixo peso e a baixa estatura das crianças como critérios de seleção de matrícula. Mesmo após avanços legais, como aqueles que instituíram a educação como um direito de todas as crianças brasileiras desde o seu nascimento e colocaram a educação infantil como primeira etapa da educação básica (BRASIL, 1988; 1996), encontramos marcas significativas de uma abordagem médico-assistencialista, comum ao atendimento de bebês e crianças no início do século passado (KUHLMANN JUNIOR, 1991KUHLMANN JUNIOR, Moysés. Instituições pré-escolares assistencialistas no Brasil (1899-1922). Cadernos de Pesquisa, n. 78, p. 17-26, 1991.), e de discursos que enfatizam o atendimento na primeira infância como mecanismo de combate à pobreza (CAMPOS, 2011CAMPOS, Roselane Fátima. Educação infantil: políticas e identidade. Retratos da Escola, v. 5, n. 9, p. 217-228, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.22420/rde.v5i9.7. Acesso em: 11 jul. 2022.
https://doi.org/10.22420/rde.v5i9.7...
).

Esses sentidos da educação infantil, que ainda marcam o trabalho nas creches e pré-escolas, participam da produção de práticas avaliativas. Ao analisar as concepções de avaliação que se expressam através de discursos e práticas pedagógicas com bebês no contexto da creche, precisamos considerar os sentidos que os profissionais produzem para essa ação, bem como suas condições de produção. Como apontado por Castro e Souza (2017CASTRO E SOUZA, Marina Pereira de. Políticas e Práticas de Avaliação na Creche: uma pesquisa na rede pública do Município do Rio de Janeiro. 2017. 230f. Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.), é necessário problematizar os programas destinados à primeira infância, como os de enfrentamento da pobreza e/ou melhoria do desempenho escolar, para evitarmos uma compreensão de desenvolvimento, de aprendizagem e de práticas avaliativas fragmentadas, contrárias aos marcos legais brasileiros. Mesmo quando inexistem critérios formais e concretos para a verificação das experiências das crianças, estas são examinadas de formas sutis fomentando alguns questionamentos. Como a lógica médico-assistencialista impacta o trabalho pedagógico com os bebês? Será que novas desigualdades são produzidas? Na produção das avaliações no cotidiano da creche, os professores conseguem romper com os estigmas de pobres e carentes, valorizando os bebês em suas especificidades? Quais discursos subsidiam as práticas avaliativas nesses contextos?

De modo a analisar como o programa CCAIC tem traduzido as demandas sociais dos bebês, crianças e famílias, bem como seus efeitos na vida desses sujeitos, o presente artigo: i) apresenta o histórico dessa política pública de combate à desnutrição; (ii) traz uma análise diagnóstica do município de Duque de Caxias, evidenciando as suas características, e dos sete CCAIC que fazem parte da sua rede; e iii) discute possíveis efeitos dessa política pública na garantia do direito ao acesso à creche, vislumbrando demandas para uma política intersetorial de atendimento aos bebês e crianças.

A história das Creches e Centros de Atendimento à Infância Caxiense: um olhar para as crianças pobres

Ao remontar a trajetória histórica dos CCAIC, na busca pelos sentidos delineados para esse equipamento, partimos de uma concepção de linguagem que considera não apenas o enunciado, mas também o contexto de enunciação (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.). De acordo com Goulart (2013GOULART, Cecília Maria Aldigueri. Política como ação responsiva: breve ensaio acerca de educação e arte. In: FREITAS, Maria Teresa. Educação, arte e vida em Bakhtin. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 69-93., p. 72), a linguagem, como resultado da atividade humana coletiva, reflete a sociedade em todos os seus aspectos econômicos e sociopolíticos, sendo a política “[...] entendida como modo axiológico de organização e hierarquização do poder no sentido coletivo da vida social [...]”, produzida “[...] nos caminhos da palavra, constituindo-se e constituindo modos de agir, pensar e construir o grande e tensionado diálogo da sociedade”.

Nessa perspectiva, a partir de dois trabalhos que tratam dessa política (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.; MARTINS et al., 2022MARTINS, Leane Rodrigues; ROSISTOLATO, Rodrigo; PRADO, Ana Pires do; MUANIS, Maria Comes; CERDEIRA, Diana Gomes da Silva. “É muito triste isso, cara, ver uma criança não entrar por causa de 100g!”: Decisões discricionárias na implementação de uma política intersetorial de combate à fome. Jornal de Políticas Educacionais, v. 16, p. 1-23, 2022.)2 2 Foram encontrados apenas dois trabalhos que tratam sobre o tema - uma dissertação de mestrado e um artigo -, ambos apresentam o histórico da elaboração e implementação da política aqui analisada. O primeiro trabalho analisa os efeitos dessa política no enfrentamento das desigualdades sociais. Já o segundo, reflete sobre as ações e decisões discricionárias dos gestores escolares, nutricionista e assistentes sociais envolvidos no processo de pesagem das crianças. e de documentos produzidos no âmbito da Secretaria Municipal de Educação, buscamos compreender tendências, concepções, tensões e ausências na organização do atendimento às crianças nesses equipamentos públicos, ou seja, uma tentativa de leitura sobre o que dizem, mas também sobre o que não dizem. O discurso é uma prática social, arena de disputas ideológicas e políticas, não se configurando como espelho da realidade (BAKHTIN, 2006BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.).

Dentro de um contexto marcado pela pobreza e desigualdade social, Duque de Caxias compõe uma região periférica, habitada em sua maioria pela classe popular, onde a questão da desnutrição é identificada como um grave problema social. Desde a década de 1980, com as Casas de Acolhimento de Desnutridos São Gabriel (Ação Social Paulo VI - Arquidiocese de Duque de Caxias) e a Casa de Recuperação de Desnutridos (Sistema Municipal de Vigilância Alimentar e Nutricional), um conjunto de ações assistencialistas e compensatórias é destinado à população pobre (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.), como o programa de atendimento aos desnutridos e às gestantes em risco nutricional, que distribuía leite em pó e óleo; pautas induzidas pelo programa Ação Cidadania (VASCONCELOS, 2004VASCONCELOS, Francisco de Assis Guedes de. Fome, solidariedade e ética: uma análise do discurso da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 11, n. 2, p. 259-277, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59702004000200003. Acesso em: 9 jul. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0104-5970200400...
).

Dessas ações, destaca-se o protagonismo de Dom Mauro Morelli, bispo das Dioceses de Duque de Caxias e São João de Meriti na Baixada Fluminense, que promoveu um movimento importante de combate à fome. A partir da informação de que 21% das crianças atendidas nas unidades de saúde estavam enquadradas como desnutridas ou em risco nutricional (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.), foi convocada uma audiência pública que culminou na mobilização do projeto “Mutirão contra a desnutrição materno-infantil e pelo direito à infância”. No ano de 2001, aproximadamente 23 mil crianças com até 5 anos foram pesadas e “[...] constatou-se que mais de 70% dessas crianças estavam desnutridas ou em risco nutricional; seus pesos e/ou estaturas eram inferiores aos índices estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como saudáveis”. (MARTINS et al., 2022MARTINS, Leane Rodrigues; ROSISTOLATO, Rodrigo; PRADO, Ana Pires do; MUANIS, Maria Comes; CERDEIRA, Diana Gomes da Silva. “É muito triste isso, cara, ver uma criança não entrar por causa de 100g!”: Decisões discricionárias na implementação de uma política intersetorial de combate à fome. Jornal de Políticas Educacionais, v. 16, p. 1-23, 2022., p. 3).

Posteriormente, em 2002, foi elaborado um projeto que tinha como referência a ação da Diocese de Duque de Caxias, que já realizava um trabalho de atendimento às crianças desnutridas. Assim, surgiu o programa Portal do Crescimento, uma casa de recuperação de desnutrição de crianças de 1 a 5 anos, que funcionava como unidade escolar. Seus critérios de matrícula eram: quadro de desnutrição e renda per capita mensal da família de até meio salário mínimo. De acordo com Cortez (2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.), a renda não foi um critério utilizado na prática do acesso à política. Assim, através da Lei Municipal nº 1.686/2003 de Duque de Caxias, foi criado o primeiro portal no bairro do Amapá, situado no distrito de Xerém, identificado como um dos bolsões de pobreza da cidade.

A proposta do Portal do Crescimento envolvia as Secretarias de Educação, Saúde, Ação Social, Cultura e Habitação, com os seguintes eixos temáticos: i) saúde, através de uma complementação alimentar; ii) renda, através de apoio às famílias com programas de geração de renda; e iii) educação, buscando o desenvolvimento global das crianças (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.). Dentro desses eixos, várias atividades eram previstas como: a garantia de quatro refeições diárias para as crianças, a criação do cartão pequeno cidadão pela Secretaria Municipal de Saúde, a orientação para as famílias na construção de um cardápio, o desenvolvimento e aplicação de cursos para os pais e a implantação de brinquedotecas com atividades lúdicas e terapêuticas.

Embora estivesse previsto, não existiam professoras no Portal do Crescimento. Os voluntários da pastoral eram contratados como agentes (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.), e, apenas em 2003, foi criado o Conselho Municipal de Notáveis com o objetivo de monitorar e avaliar o programa, articulando setores necessários para o desenvolvimento do Portal do Crescimento. Um ano depois, o programa foi ampliando com a criação de cinco novas unidades: Jardim Anhangá, Jardim Gramacho, Olavo Bilac, Parque Muísa e Xerém.

A história evidencia que o tema da nutrição se mantém por muito tempo como pauta relevante para a gestão pública de Duque de Caxias. Observamos isso através do Decreto Municipal nº 4.890/2006, que instaura o programa CCAIC, que substitui os Portais de Crescimento. Até os dias atuais, o critério de matrícula nesses estabelecimentos continua sendo a desnutrição ou risco nutricional e sua última ampliação ocorreu em 2006, com a sétima unidade inaugurada em Campos Elíseos.

De acordo com Cortez (2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.) e Martins et al. (2022MARTINS, Leane Rodrigues; ROSISTOLATO, Rodrigo; PRADO, Ana Pires do; MUANIS, Maria Comes; CERDEIRA, Diana Gomes da Silva. “É muito triste isso, cara, ver uma criança não entrar por causa de 100g!”: Decisões discricionárias na implementação de uma política intersetorial de combate à fome. Jornal de Políticas Educacionais, v. 16, p. 1-23, 2022.), atualmente o projeto não apresenta o funcionamento previsto, pois não possui médico nas unidades nem distribuição das cestas básicas de alimentos, mas mantém quatro refeições diárias. “Embora o desenho original da política tenha se modificado, os CCAIC consolidaram-se como um espaço pedagógico, em meio ao desafio de recuperar a saúde das crianças, afetadas em seu desenvolvimento pela desnutrição”. (MARTINS et al., 2022MARTINS, Leane Rodrigues; ROSISTOLATO, Rodrigo; PRADO, Ana Pires do; MUANIS, Maria Comes; CERDEIRA, Diana Gomes da Silva. “É muito triste isso, cara, ver uma criança não entrar por causa de 100g!”: Decisões discricionárias na implementação de uma política intersetorial de combate à fome. Jornal de Políticas Educacionais, v. 16, p. 1-23, 2022., p. 4). De acordo com Cortez (2020), em entrevistas com as gestoras dos CCAIC, em alguns contextos observa-se mudança no perfil nutricional e começam a existir vagas ociosas pela ausência de crianças com o perfil esperado para a matrícula. Essa observação dialoga com o trabalho de Martins et al. (2022) que acompanhou pesagens no ano de 2020 e constatou que algumas unidades não preencheram as vagas disponíveis. Mesmo assim, nos trabalhos de Cortez (2020) e Martins et al. (2022), há uma defesa da manutenção desse equipamento devido à sua presença em contextos de extrema pobreza, baixos índices de desenvolvimento humano e altos índices de violência, facilitando o acesso das famílias a programas voltados à assistência social, à saúde e à orientação em relação a hábitos de higiene.

O projeto do Portal do Crescimento possui imprecisões enquanto instituição de educação infantil que vão desde a escolha de seu nome até a sua função pedagógica e sociopolítica. Seu objetivo geral apresenta a mesma ênfase dos CCAIC que é: “[...] promover um programa de combate à desnutrição na primeira infância de Duque de Caxias tendo em vista o atendimento da criança na faixa etária de 1 a 5 nos de idade que se encontra em risco nutricional” (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020., p. 135). Entretanto, somente nos objetivos específicos do CCAIC aparece “atividades educativas focadas no tema da alimentação saudável”, enquanto o Portal do Crescimento pretende “[...] garantir interações sociais, cognitivas e de saúde capazes de reintegrar na sociedade, crianças com quadro de desnutrição infantil de 0 a 6 anos vítimas das mais diferentes mazelas sociais e suas respectivas famílias melhorando a qualidade e suas expectativas de vida [...]”. (CORTEZ, 2020, p. 124).

Os textos são produzidos em um contexto político e social que evidencia noções sobre crianças e infância(s). Os sentidos que emergem dos documentos orientadores dessas políticas permitem a formulação de algumas perguntas: em que medida essas concepções podem ser observadas nos contextos institucionais? Como as imprecisões, lacunas, contradições, preconceitos marcam as relações com os bebês, crianças e suas famílias? Uma política voltada para a criança pobre se desdobra em relações pobres de afetos e sentido?

A oferta educacional nos CCAIC

Passadas duas décadas desde a primeira creche Portal do Crescimento, que deu origem aos CCAIC, muita coisa mudou. De 2000 a 2020, as matrículas de educação infantil do município saltaram de 9.897 para 24.449,3 3 Optou-se por considerar em 2000 as matrículas da pré-escola somadas a da classe de alfabetização e, em 2020, a soma de creche e pré-escola. Dados disponíveis em: https://www.gov.br/inep. Acesso em: 15 ago. 2022. foram aprovados dois Planos Nacionais de Educação (PNEs) (2001 e 2014), a educação infantil foi incluída em 2006 no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), e a pré-escola tornou-se obrigatória a partir de 2009. Que outras transformações ocorreram no atendimento educacional na rede pública de Duque de Caxias? Quais são as atuais condições de oferta educacional dos sete CCAIC? Na busca de possíveis respostas para esses questionamentos, realizamos uma análise diagnóstica utilizando os dados quantitativos disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), como o Censo Demográfico de 2010, a base MUNIC de 2018 e o sistema Cidades@, em complemento aos microdados do Censo Escolar da Educação Básica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). As análises apresentadas a seguir contemplam, portanto, as características demográficas e administrativas do município, bem como os dados da oferta educacional dos CCAIC em relação à rede pública municipal.

Duque de Caxias é um dos mais populosos municípios brasileiros com 929.449 habitantes em 2021 e está localizado na região metropolitana do Rio de Janeiro (RJ). A sua taxa de escolarização da população de 6 a 14 anos e os resultados obtidos pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) podem ser considerados baixos, se comparados com os dados do seu estado e do país. A gestão municipal possui uma secretaria exclusiva para educação que cuida dos recursos financeiros e considera como medidas prioritárias para a inclusão de alunos, a formação inicial de docentes e o chamamento público para matrículas. Desde 2014, existe um Plano Municipal de Educação, com uma estrutura de controle social composta por fórum e conselhos de educação, alimentação e pelo Fundeb, mas não há registros de que haja levantamento de demanda da população em idade escolar. Em 2010, havia 70.301 crianças de 0 a 5 anos que representavam 8,4% da população, sendo esperado um aumento dessa população decorrente do incremento de nascidos vivos entre os anos de 2010 a 2015 registrado pelos dados do Datasus (BRASIL, 2022).

O município é dividido em 40 bairros dos quais sete contemplam um CCAIC, são eles: Amapá, Campos Elíseos, Jardim Anhanga, Jardim Gramacho, Jardim Olavo Bilac, Parque Muisa e Xerém. Para reconhecermos as peculiaridades de cada uma dessas localidades, trabalhamos com a dispersão estatística de cada variável do censo em relação à média do município. Em outras palavras, um bairro se diferencia dos demais quando uma determinada característica encontra-se a pelo menos dois desvios-padrão da média municipal. Seguindo esse critério, verificamos, por exemplo, que dos bairros dos CCAIC: i) em Xerém e Amapá, há uma maior concentração de crianças de cor de pele branca e amarela e da etnia indígena, respectivamente; ii) em Xerém, é maior a concentração de homens na população; iii) no bairro de Jardim Anhangá, o responsável pelo domicílio concentra-se na faixa dos 30 a 39 anos, enquanto Campos Elíseos na faixa de 10 a 19 anos; iv) há uma maior concentração de domicílios com cinco moradores em Jardim Anhangá e Amapá; e v) Olavo Bilac é um bairro onde encontramos uma maior concentração de famílias com renda per capita entre meio e um salário mínimo. Além dessas distinções verificadas através das variáveis raça/cor das crianças de 0 a 5 anos, sexo da população, idade do responsável pelo domicílio, número de moradores e renda per capita, não foram encontrados qualquer outra distinção dos bairros onde se encontram os CCAIC como aquelas que poderiam estar relacionadas à espécie, tipo ou incidência de pessoas alfabetizadas no domicílio.

Conhecer quem são as crianças, onde vivem e o perfil de suas famílias são condições essenciais para a formulação de políticas públicas (FALCIANO, 2022FALCIANO, Bruno Tovar. Por uma avaliação em larga escala da rede escolar que respeite a educação infantil e subsidie a gestão pública. 2022. 216f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.). Todavia, a partir das variáveis estudadas no Censo Demográfico de 2010, não encontramos características demográficas que destacassem os bairros dos CCAIC em relação aos demais bairros do município. Quais seriam, portanto, as características que determinaram a escolha e manutenção desses sete bairros como locais de prioridade ao atendimento de bebês e crianças nos CCAIC?

Em relação à oferta de educação infantil, verifica-se um aumento de 48% do número de matrículas na rede pública de Duque de Caxias entre os anos de 2009 e 2019, enquanto praticamente não houve alteração das 414 matrículas dos CCAIC em 2009 para as 407 matrículas de 2019. Notamos ainda que o atendimento das crianças de 0 a 3 anos na rede pública cresceu nas escolas onde havia apenas a oferta de creche, representando 42,6% do total de matrículas em 2019, enquanto as matrículas para as crianças de 4 e 5 anos foram criadas em escolas onde também havia outras etapas da educação básica, como o ensino fundamental, e representavam quase a totalidade do número de matrículas (90,9%) para essa faixa etária da rede pública municipal em 2019.

Se por um lado os CCAIC não acompanharam a expansão da rede, por outro, eles tiveram uma importância significativa na manutenção do acesso à educação infantil para os bebês. Na Tabela 1, na qual são apresentados os dados de matrículas por faixa etária, podemos observar que os CCAIC atendem mais uniformemente às matrículas em cada uma das idades como também representam 100%, 19,7%, 8,3% e 7,2% das crianças com menos de 1 ano, 1 ano, 2 anos e 3 anos, apesar de concentrar apenas 3,4% do total de matrículas da rede pública.

TABELA 1
NÚMERO DE MATRÍCULAS E PROPORÇÃO POR IDADE DO TOTAL DA REDE MUNICIPAL E DOS CCAIC SEGUNDO A FAIXA ETÁRIA DE 0 A 5 ANOS NO MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS EM 2019

Quando comparamos os CCAIC em relação às outras escolas públicas da rede que ofertam creche e pré-escola, podemos observar através da Tabela 2 que eles oferecem uma infraestrutura mais adaptada às necessidades das crianças de 0 a 5 anos e suas instalações são adequadas para a alimentação, apresentando apenas um CCAIC que informou não possuir despensa. Nessa mesma tabela, verificamos que praticamente todas as crianças são atendidas em horário integral, o que os diferencia muito das outras escolas da rede, principalmente na pré-escola onde praticamente não há o atendimento em horário integral na rede pública.

TABELA 2
CARACTERÍSTICAS DE INFRAESTRUTURA E TEMPO DE ESCOLARIDADE NA TURMA DOS CCAIC EM COMPARAÇÃO ÀS DEMAIS ESCOLAS PÚBLICAS DA REDE SEGUNDO AS ETAPAS CRECHE E PRÉ-ESCOLA NO MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS EM 2019

Através da existência ou ausência de uma equipe multidisciplinar, variável analisada na Tabela 3, verificamos pouca diferença em relação às categorias profissionais que atendem as crianças nos CCAIC se comparado com as demais escolas da rede pública, excetuando-se a ausência nos CCAIC de “fonoaudiólogo(a)” e “bibliotecário(a), auxiliar de biblioteca ou monitor sala de leitura”. Todavia, o número de matrículas por profissional é significativamente menor nos CCAIC do que nas demais escolas, denotando uma melhor capacidade de atendimento. Cabe ainda destacar que, ao analisar a formação dos docentes, encontramos uma maior proporção de profissionais com ensino superior nos CCAIC tanto na etapa creche, que é de 100%, quanto na pré-escola, que é de 91%. Nas demais escolas da rede pública, essas proporções são de 80% e 86%, respectivamente.

TABELA 3
NÚMERO DE MATRÍCULAS POR CATEGORIA PROFISSIONAL NOS CCAIC EM COMPARAÇÃO COM AS DEMAIS ESCOLAS PÚBLICAS SEGUNDO AS ETAPAS CRECHE E PRÉ-ESCOLA NO MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS EM 2019

Ao analisarmos os dados do Censo Escolar da Educação Básica no período de 2009 a 2019, observamos que: i) houve uma grande expansão do atendimento à educação infantil na rede pública do município de Duque de Caxias, entretanto não houve a mesma expansão do atendimento dos CCAIC; ii) há uma mudança no perfil de escola de educação infantil, no qual tem sido privilegiado o acesso das crianças de 0 a 3 anos a escolas que atendem exclusivamente a creche e as crianças de 4 e 5 anos na pré-escola com outras etapas da educação básica; iii) os CCAIC atendem as crianças bem pequenas em maior proporção do que o resto da rede pública; iv) a infraestrutura dos CCAIC são mais adaptadas em relação à média da rede pública; v) os CCAIC possuem melhor estrutura para oferecer alimentação, bem como atendem em horário integral, o que o diferencia, principalmente, na pré-escola; e vi) há nos CCAIC uma relação menor de matrículas por profissional, estes possuem formação com ensino superior com mais frequência, mas há poucas diferenças quanto às categorias profissionais se comparado com as demais escolas da rede pública.

Limites, tensões e contradições de uma proposta de política intersetorial para educação infantil

Na história da educação infantil brasileira, diferentes funções e sentidos foram construídos para a institucionalização das crianças pequenas - assistencialismo, compensação, preparação para a alfabetização, formação integral da criança. E sobre o viés assistencialista das instituições de educação infantil, Kuhlmann Junior (2010, p. 165) afirma que estas são: “[...] portadoras de signos de preconceito - aos mais necessitados, aos incapazes [...]”, com a expectativa de “disciplinar e apaziguar as relações sociais”. É importante destacar que esses diferentes sentidos atravessam a história, marcando as políticas e práticas da creche e pré-escola. Os programas compensatórios, que não significaram uma superação da tendência assistencialista, marcam as políticas educacionais brasileiras a partir da década de 1970. O desenho do atendimento compensatório às crianças pequenas, influenciado por organismos multilaterais, era modelo dito “não formal”, de baixo investimento público: espaços inadequados, com precariedade de material pedagógico e ausência de qualificação profissional (ROSEMBERG, 2002ROSEMBERG, Fulvia. Organizações multilaterais, estado e políticas de educação infantil. Cadernos de Pesquisa, n. 115, p. 25-63, 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0100-15742002000100002. Acesso em: 11 jul. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0100-1574200200...
). Como estratégia de gestão da pobreza, a educação infantil mostrou-se um caminho para compensar carências, por meio do combate à desnutrição e da preparação para o ensino fundamental (CAMPOS, 2009CAMPOS, Rosânia. A educação das crianças pequenas como estratégia para a contenção da pobreza: análise de iniciativas dos organismos internacionais em curso na América Latina. Praxis Educativa, v. 4, n. 1, p. 29-39, 2009. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-43092009000100004&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 21 jul. 2022.
http://educa.fcc.org.br/scielo.php?scrip...
).

Nos anos 1980 e 1990, um conjunto de leis, diretrizes, planos e programas aponta para um novo paradigma sobre a criança e o seu atendimento, centrado na noção da criança como sujeito ativo, de direitos - que brinca, que deseja, que quer conhecer e participar -, produto e produtor de história e cultura. Esses documentos buscam: a afirmação da educação infantil e suas especificidades; a emergência de uma pedagogia da infância; o fortalecimento da perspectiva de proteção às crianças. No entanto, a política para a infância é marcada por disputas.

A história dos CCAIC, que começa com o Portal do Crescimento, evidencia uma proposta de atendimento que abrange ações de saúde, nutrição e educação, num esforço nomeado como intersetorial. Contudo, é preciso problematizar o entendimento de intersetorialidade, assim como das concepções sobre educação infantil que emergem dessas propostas.

Num primeiro momento, com o Portal do Crescimento, o trabalho se aproximou de um modelo não formal, com profissionais sem formação, marcado por uma visão preparatória para apoiar as crianças, especialmente as mais pobres, de possíveis “dificuldades de aprendizagem” (termo presente no texto do projeto), explicadas pela desnutrição e pela pobreza. A proposta do Portal do Crescimento afirma que essas crianças “[...] tem uma história de vida que compromete seu desempenho futuro [...]”; “[...] um passado marcado pela fome, pela falta de acompanhamento de saúde, agravados, muitas vezes pelas dificuldades enfrentadas por suas famílias desestruturadas”. (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020., p. 123).

Esses fragmentos evidenciam um olhar preconceituoso que coloca as crianças pobres sob o estigma da incapacidade e supõe o entendimento da existência de um padrão único ou médio para o desempenho das crianças, tomando a infância como modelo único, abstrato. O desempenho nomeado como insatisfatório possivelmente seria compreendido como resultado de carências nas práticas de criação dos pais, bem como nos limites socioeconômicos experimentados, localizando sobre a criança o motivo do não aprender. Os programas compensatórios desenharam grandes objetivos, que iam desde a fixação por meio do uso da linguagem até a orientação dos pais na educação dos seus filhos, englobando ações assistencialistas, médicas-higienistas e de doutrinação de virtudes (PATTO, 1977PATTO, Maria Helena Souza. Privação Cultural e Educação Pré-Primária. Rio de janeiro: Livraria José Olympio, 1977.).

Junto ao tema da nutrição, os dois projetos têm como finalidade preparar as famílias para sua relação com seus filhos e o enfrentamento da pobreza. Segundo o projeto do CCAIC, é finalidade chegar: “[...] ao núcleo da família por meio de intervenções que garantam a geração de trabalho e renda na superação da insegurança alimentar e miséria” (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020., p. 134); contudo, é preciso refletir criticamente a forma que tradicionalmente a escola se relaciona com as famílias - desqualificando seus hábitos alimentares e responsabilizando as mães pela ausência de padrões de cuidado (sendo as mulheres as principais responsáveis pelas crianças pequenas). Em outra parte, destaca o seguinte objetivo: “[...] impulsionar socialmente essas famílias, dando-lhes condições para que no futuro próximo possam caminhar sozinhas”. (CORTEZ, 2020, p. 135). Fica a dúvida se o projeto consegue tratar o tema da pobreza de forma multifacetada e complexa, evitando a produção de preconceitos e exclusões. Essa ideia de tornar as famílias produtivas não seria uma estratégia de “humanizar” o capitalismo? Essa lógica não favorece a dominação e a manutenção das desigualdades estruturais?

Assim, é preciso refletir sobre os padrões normativos e os processos de culpabilização produzidos na creche e na pré-escola. Essa lógica, tão comum no contexto da educação infantil, bem como nas políticas educacionais e nos programas de atendimento às famílias pobres, não possibilita mudanças de concepções (SAWAYA, 2006SAWAYA, Sandra Maria. Desnutrição e baixo rendimento escolar: contribuições críticas. Estudos Avançados, v. 20, n. 58, p. 133-146, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142006000300015. Acesso em: 15 jul. 2022.
https://doi.org/10.1590/S0103-4014200600...
). Quais processos produzem os comportamentos das famílias tomados como “inadequados”? Quais sãos os caminhos de luta e de sobrevivências das crianças e suas famílias? Há espaços de acolhimento, diálogo e participação das famílias nas creches e pré-escolas? Sobre essa concepção preconceituosa, Kullmann Junior (2010, p. 166) fala da pedagogia desses contextos: “[...] uma pedagogia da submissão, uma educação que humilha para depois oferecer o atendimento como dádiva, como favor aos poucos selecionados para o receber”.

Além desses aspectos, o texto do Portal do Crescimento menciona pesquisas, sem citar as fontes, que apontam:

[...] que o sistema cognitivo, físico e emocional da criança é constituído nos seus primeiros anos de vida. Quando a criança não tem acesso a serviço de creches e pré-escolas e está fora de cobertura de uma política de proteção alternativa a essas ações seu desenvolvimento fica comprometido, interferindo no seu processo de aprendizagem. Garantir, portanto, atendimento adequado nessa etapa é fundamental para que os pequenos sejam, no futuro próximo, alunos saudáveis e mais adiante cidadãos saudáveis e participantes ativos. (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020., p. 123).

O Portal do Crescimento foi extinto, contudo fica o questionamento sobre as marcas dessa proposta na organização do trabalho dos CCAIC, já que essa noção preventiva também está presente na justificativa do documento que apresenta seu projeto. Essa perspectiva aproxima-se da ideia de que as crianças vítimas da desnutrição sofrem deficiências físicas e mentais, possuem déficits cognitivo e linguístico, próxima das discussões das teorias de privação cultural. Mesmo que o programa considere o contexto de pobreza das crianças de Duque de Caxias, o texto não evidencia um movimento de busca das causas da desnutrição e suas consequências como resultado de concepções e ações estabelecidas a partir de relações sociais, econômicas e políticas que estruturam a sociedade brasileira; um fenômeno produzido num quadro de exclusão social. Assim, cabe perguntar: quais bens culturais e direitos sociais estão sendo negados às crianças e às suas famílias? É possível separar os efeitos da desnutrição no corpo das crianças dos efeitos produzidos pela precariedade de suas vidas?

Essa compreensão de que a educação das crianças pequenas tem como tarefa a mitigação da pobreza pode fragilizar a educação infantil como direito social, ganhando espaço nas políticas de assistência focalizada, ocupando um lugar de estratégia de combate à pobreza e de melhoria do desempenho escolar. Segundo Campos (2012CAMPOS, Roselane Fátima. “Política pequena” para as crianças pequenas?: Experiências e desafios no atendimento das crianças de 0 a 3 anos na América Latina. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 49, p. 81-105, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782012000100005. Acesso em: 15 jul. 2022.
https://doi.org/10.1590/S1413-2478201200...
, p. 82), existe uma “repolitização” da concepção de pobreza “[...] na medida em que se introduz uma disjunção entre as condições estruturais que a produz e as suas formas de manifestação”. Esse movimento de defesa de uma política preventiva de combate à pobreza, tomando a primeira infância como objeto, é atualizado na contemporaneidade com perspectivas neurobiológicas (CAMPOS, 2012CAMPOS, Roselane Fátima. “Política pequena” para as crianças pequenas?: Experiências e desafios no atendimento das crianças de 0 a 3 anos na América Latina. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 49, p. 81-105, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782012000100005. Acesso em: 15 jul. 2022.
https://doi.org/10.1590/S1413-2478201200...
). Dessa forma, essas reflexões parecem oportunas para o projeto dos CCAIC, ainda vigente em Duque de Caxias.

O projeto CCAIC conta com uma equipe pedagógica4 4 Atualmente, os CCAIC contam com uma diretora, orientadora pedagógica, professora, auxiliar materno-infantil e/ou Auxiliar de Desenvolvimento da Educação Básica (ADEB). e prevê que as crianças deverão “[...] ser capacitadas através do processo educativo, de forma holística, para a cidadania [...]” (CORTEZ, 2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020., p. 134), tendo como ênfase atividades pedagógicas com o tema da alimentação saudável. Em outra parte do material, há uma lista grande, indicando que as atividades pedagógicas estarão fundamentadas na formação pessoal e social divididas em: autocontrole; autoconceito; relação interpessoal; cuidados básicos com a alimentação; higiene corporal e ambiental; valorização do diálogo; autoconfiança e autoestima; autonomia; linguagem oral; construção não verbais; noção de tempo e espaço; coordenação e movimento etc. Em relação à avaliação, destina um campo para uma avaliação processual, organizada em: número de atividades, indicadores de progresso e meios de verificação. O documento indica registro de “desempenho por observação e participação” (expressão do próprio documento). Também aponta a necessidade de uma avaliação final através da produção de relatórios sobre os avanços e os entraves das condições nutricionais, pedagógicas e de saúde. A cada ano, deverá ser produzido um relatório anual com todas as ações desenvolvidas com as crianças, suas famílias e a comunidade local.

Sobre a dimensão pedagógica, chama a atenção a ausência dos documentos legais brasileiros que normatizam a educação infantil, como referência da proposta, bem como o uso da expressão “capacitação”. Será que esse termo está associado à ideia de transmissão e preparação para o mercado? A noção de capacitação aparece mediante a compreensão de que as crianças dos CCAIC podem/conseguem menos? Também emerge a questão: quais são as possíveis apropriações docentes a partir dessa grande lista sem nenhuma discussão? Nesse formato, o texto pode assumir contornos prescritivos, tendo grande risco de não provocar reflexões e outros sentidos para a prática docente. Na mesma direção, a avaliação do trabalho com as crianças é situada no campo do desempenho, distanciando-se do debate sobre a avaliação na creche e pré-escola (CASTRO E SOUZA, 2017CASTRO E SOUZA, Marina Pereira de. Políticas e Práticas de Avaliação na Creche: uma pesquisa na rede pública do Município do Rio de Janeiro. 2017. 230f. Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.). Ainda cabe perguntar: será que esses aspectos destacados no documento analisado também são priorizados em outras unidades públicas de atendimento às crianças pequenas em Duque de Caxias?

Outro ponto central é o lugar do tema da alimentação. Segundo o seu projeto, o CCAIC é uma política pública municipal de segurança alimentar e nutricional sustentável, que possui a tarefa de reduzir a prevalência de diversas formas de desnutrição das crianças de 1 a 5 anos. Ao ler o documento que normatiza sua organização e objetivos, assim como as pesquisas que são referências deste artigo, percebe-se que o tema da desnutrição e insegurança alimentar assume um lugar de protagonismo na organização desse atendimento, o que pode indicar ausência de diálogo e uma sobreposição de temas importantes do trabalho educativo na creche e pré-escola. Faltam elementos que ajudem a pensar o tema da alimentação como um direito das crianças articulado com outros, já que a proposta pedagógica da educação infantil deve garantir: “[...] acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens [...]”, e também o direito “[...] à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças”. (BRASIL, 2009, p. 18). No entanto, o que parece sobressair na proposta é um olhar para falta, para o déficit, em relação às crianças e às suas famílias.

Também cabe nesse debate pensar a multidimensionalidade do ato de se alimentar (VIANA et al., 2017VIANA, Marcia Regina; NEVES, Alden Santos; CAMARGO JUNIOR, Kenneth Rochel; PRADO, Shirley Donizete; MENDONÇA, André Luis Oliveira. A racionalidade nutricional e sua influência na medicalização da comida no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, p. 447-456, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.25432015. Acesso em: 13 jul. 2022.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017222...
), extrapolando uma perspectiva fisicalista dos nutrientes e sua relação com organismo. Dessa forma, comer é uma experiência complexa, sendo necessário um enfoque histórico e social, que problematize os saberes médicos, referencial hegemônico para a discussão do tema. Viana et al. (2017VIANA, Marcia Regina; NEVES, Alden Santos; CAMARGO JUNIOR, Kenneth Rochel; PRADO, Shirley Donizete; MENDONÇA, André Luis Oliveira. A racionalidade nutricional e sua influência na medicalização da comida no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, p. 447-456, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.25432015. Acesso em: 13 jul. 2022.
https://doi.org/10.1590/1413-81232017222...
) apontam para a necessidade de relativização da concepção de nutrição que foca na dimensão energética, da funcionalidade dos alimentos para pautar o que seria uma nutrição saudável adequada. Os mesmos pesquisadores refletem sobre o processo de medicalização da comida, ou seja, uma alimentação pautada numa racionalidade nutricional, em princípios supostamente científicos. Dentro dessa lógica, a capacidade dos sujeitos de autocuidado com a alimentação é desqualificada, e o lugar da cultura e das relações nesse processo é menosprezada. Assim, a alimentação seria um caminho para uma melhor “performance existencial” (VIANA et al., 2017). Nesse sentido, o projeto CCAIC associa saúde alimentar com progresso. Quais sentidos implícitos podem ser observados nessa máxima? Para essa lógica, você é o que come? Quem são as crianças pobres e suas famílias?

A partir desse debate, surge o questionamento sobre a manutenção da desnutrição como critério de matrícula. Entende-se que os critérios de matrícula são criados diante da insuficiência do Estado na construção de respostas às demandas sociais. Estes são orientados pelo princípio da diferença e da reparação diante de uma sociedade desigual. Contudo, observa-se uma cristalização desses critérios, naturalizando o comprometimento dos preceitos constitucionais e o princípio de igualdade que garantem educação infantil para todas as crianças (BRASIL, 1988). Portanto, os critérios não funcionam de forma transitória, legitimando a ausência do Estado e os mecanismos de seleção para o acesso à educação infantil. Os critérios de seleção devem estar associados a uma discussão ampla sobre infância e pobreza, aliados a um planejamento de expansão do atendimento, especialmente quando falamos dos bebês na creche. Contudo, observamos a invisibilidade dos bebês, traduzida em políticas e formas de acolhimento limitadas e limitantes.

Esse debate fica ainda mais complexo quando assume a desnutrição e/ou risco nutricional como critério de seleção. Primeiro, é preciso considerar outras perspectivas para pensar o tema da alimentação e saúde das crianças. Que outras questões atravessam a saúde das crianças atualmente? Em relação à alimentação, quais distúrbios nutricionais na infância acometem a população infantil de Duque de Caxias? Ser magro e/ou pequeno é sempre um problema médico? Além dessas questões, a desnutrição não engloba a totalidade dos desafios experimentados pelas infâncias que habitam o território de Duque de Caxias. A seleção dos CCAIC toma a desnutrição como algo individual, isolado, passível de ser enfrentado descontextualizadamente. É preciso assumir o tema da alimentação numa perspectiva complexa, considerando seus aspectos sociais e culturais e, principalmente, questionando quais meios de exclusão e preconceitos são produzidos nesse processo de seleção, marcando, possivelmente, as experiências educativas das crianças e bebês.

Assim, é preciso olhar para o tema da alimentação de forma crítica e ampla, perguntando: quais são as histórias das crianças e adultos com os alimentos? Além da falta, qual a comida preferida? Sobre se alimentar e ser alimentado, quais são as memórias, desejos, cheiros e texturas que as narrativas das crianças e adultos podem acionar?

As discussões problematizadas aqui sobre a política dos CCAIC, explorando suas fragilidades, dilemas e tensões, abre espaço para o debate do tema da intersetorialidade. De acordo com Cortez (2020CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.) e Martins et al. (2022MARTINS, Leane Rodrigues; ROSISTOLATO, Rodrigo; PRADO, Ana Pires do; MUANIS, Maria Comes; CERDEIRA, Diana Gomes da Silva. “É muito triste isso, cara, ver uma criança não entrar por causa de 100g!”: Decisões discricionárias na implementação de uma política intersetorial de combate à fome. Jornal de Políticas Educacionais, v. 16, p. 1-23, 2022.), os CCAIC não preservam a sua organização original, não partilhando sua gestão e ações com outras secretarias. Os diálogos têm acontecido pontualmente e esporadicamente. Com certeza, essa é uma questão que merece ser refletida no âmbito da gestão pública: qual a efetividade dessa política atualmente? Contudo, este trabalho propõe uma discussão mais aprofundada, buscando refletir sobre os desdobramentos éticos e políticos dessa política.

Sobre “intersetorialidade”, parece haver uma postura simpática em relação à temática, como se possuísse um único sentido. Akerman et al. (2014AKERMAN, Marco; SÁ, Ronice Franco de; MOYSES, Simone; REZENDE, Regiane; ROCHA, Dais. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 11, p. 4291-4300, 2014.) apontam para polissemia do termo, com direções distintas, com conflitos e contradições. Os autores indicam a ausência de “teorias” que consagrem o tema como categoria de pesquisa e avaliação (AKERMAN et al., 2014AKERMAN, Marco; SÁ, Ronice Franco de; MOYSES, Simone; REZENDE, Regiane; ROCHA, Dais. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 11, p. 4291-4300, 2014., p. 4292). Com objetivo de melhorar a vida das pessoas, tem-se um esforço na integração de políticas públicas, fortalecendo a importância de vínculos horizontais de interdependência e complementariedade, tomando sujeitos e contextos em suas complexidades. O esforço da intersetorialidade significa a articulação de saberes, conhecimentos, experiências, poderes e setores, acionando diferentes entendimentos sobre o papel do Estado. Entretanto, esse não é um desafio simples diante da fragmentação e desarticulação das políticas, além das divergências de interesses e instabilidade política (GÓES; MACHADO, 2013GÓES, Flávia Temponi; MACHADO, Lucília Regina de Souza. Políticas educativas, intersetorialidade e desenvolvimento local. Educação & Realidade, v. 38, n. 2, p. 627-648, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/57qVjg5BQZ9gf5tWZYtzT5h/?lang=pt. Acesso em: 19 jul. 2022.
https://www.scielo.br/j/edreal/a/57qVjg5...
).

Segundo Jaccoud (2016JACCOUD, Luciana. Pobreza, direitos e intersetorialidade na evolução recente da proteção social brasileira. In: MACEDO, Juliana Matoso; XEREZ, Flávia Helena Saraiva; LOFRANO, Rodrigo (Orgs.). Intersetorialidade nas políticas sociais: perspectivas a partir do programa Bolsa Família. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2016. p.15-30., p. 23), a intersetorialidade ganha destaque nas ações que buscam superar a pobreza.

Entretanto, o esforço intersetorial pode mobilizar perspectivas diversas sobre o papel do Estado no campo social. Tanto como abordagem de problemas sociais como enquanto instrumento de gestão, a intersetorialidade tende a fortalecer uma perspectiva restritiva de proteção social se capturada e ressignificada pela problemática estrita da pobreza.

Nesse sentido, a abordagem intersetorial implicará modos de gestão distintos, bem como respostas diferentes. Essa tensão pode ser observada entre as políticas universalistas, destinadas a todas as crianças, e o modelo residualista, que produz políticas sociais que operam com elementos que limitam a inclusão e a promoção social.

Trazer uma perspectiva crítica sobre o acesso aos CCAIC e as concepções de suas funções educativa, social e política não significa menosprezo à situação das infâncias em Duque de Caxias. Especialmente após o período da pandemia, observamos o empobrecimento acentuado da população. Em 2022, mais de 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, apenas quatro entre dez famílias têm acesso pleno à alimentação (AÇÃO DA CIDADANIA, 2022). Diante desse cenário, é grande a probabilidade que o tema da alimentação atravesse o cotidiano das instituições públicas, especialmente a escola. Este trabalho buscou questionar como a política do CCAIC, que têm ênfase no combate à desnutrição e à insegurança alimentar, tem traduzido as demandas sociais. Como essa política dialoga com os direitos das crianças e suas famílias, respeitando suas histórias, culturas e territórios? Quais são os efeitos dos caminhos assumidos pelos CCAIC na vida das crianças e bebês?

Considerações Finais

A educação infantil integra as políticas sociais, arena de disputa de interesses e necessidades de grupos que compõem a sociedade. Na construção de uma estrutura jurídica e política do que seria a educação infantil, vários campos do conhecimento, em conflito, trazem elementos para pensar as experiências necessárias na infância, com compreensões divergentes sobre bebê/criança, o seu papel social e o que bebês e crianças pequenas precisam para se desenvolver plenamente. No caso dos CCAIC, em uma proposta de gestão/solução da pobreza, problematizamos a possibilidade de sua consolidação como uma política residualista com viés compensatório, pensada e formulada para uma infância vulnerável que pode colaborar com a produção de estigmas - desnutrida, agressiva, violenta, que não aprende. Em que medida essa política forja a infância, busca higienizar e controlar crianças e famílias? Como ela marca as relações dentro e fora das instituições educativas? Dessa forma, é importante questionar as estruturas burocráticas tradicionais e hierárquicas, distantes das necessidades da sociedade, tomando crianças e bebês como centro das políticas sociais, fortalecendo respostas intersetoriais que qualifiquem as ações em contextos desiguais, numa perspectiva de garantia de direitos - sensível às demandas, aos contextos, às relações, aos modos de viver, aos sonhos.

REFERÊNCIAS

  • AÇÃO DA CIDADANIA. Disponível em: https://www.acaodacidadania.org.br Acesso em: 12 dez. 2022.
    » https://www.acaodacidadania.org.br
  • AKERMAN, Marco; SÁ, Ronice Franco de; MOYSES, Simone; REZENDE, Regiane; ROCHA, Dais. Intersetorialidade? IntersetorialidadeS! Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 11, p. 4291-4300, 2014.
  • BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.
  • BRASIL. Lei n° 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Casa Civil. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. 1996.
  • BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB 5/2009 de 18 de dezembro de 2009. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, 2009.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. DATASUS (Departamento de Informática do SUS). Informações de saúde. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/informacoes-de-saude-tabnet/. Acesso em: 1 maio 2022.
    » https://datasus.saude.gov.br/informacoes-de-saude-tabnet
  • CAMPOS, Rosânia. A educação das crianças pequenas como estratégia para a contenção da pobreza: análise de iniciativas dos organismos internacionais em curso na América Latina. Praxis Educativa, v. 4, n. 1, p. 29-39, 2009. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-43092009000100004&lng=pt&nrm=iso Acesso em: 21 jul. 2022.
    » http://educa.fcc.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-43092009000100004&lng=pt&nrm=iso
  • CAMPOS, Roselane Fátima. Educação infantil: políticas e identidade. Retratos da Escola, v. 5, n. 9, p. 217-228, 2011. Disponível em: https://doi.org/10.22420/rde.v5i9.7 Acesso em: 11 jul. 2022.
    » https://doi.org/10.22420/rde.v5i9.7
  • CAMPOS, Roselane Fátima. “Política pequena” para as crianças pequenas?: Experiências e desafios no atendimento das crianças de 0 a 3 anos na América Latina. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n. 49, p. 81-105, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1413-24782012000100005 Acesso em: 15 jul. 2022.
    » https://doi.org/10.1590/S1413-24782012000100005
  • CASTRO E SOUZA, Marina Pereira de. Políticas e Práticas de Avaliação na Creche: uma pesquisa na rede pública do Município do Rio de Janeiro. 2017. 230f. Tese (Doutorado em Educação) - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
  • CORTEZ, Judith de Lima. A creche e Centro de Atendimento à Infância Caxiense/Rio de Janeiro: um desafio educacional em meio à desnutrição. 2020. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares) - Instituto de Educação/Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, 2020.
  • FALCIANO, Bruno Tovar. Por uma avaliação em larga escala da rede escolar que respeite a educação infantil e subsidie a gestão pública. 2022. 216f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.
  • GÓES, Flávia Temponi; MACHADO, Lucília Regina de Souza. Políticas educativas, intersetorialidade e desenvolvimento local. Educação & Realidade, v. 38, n. 2, p. 627-648, 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edreal/a/57qVjg5BQZ9gf5tWZYtzT5h/?lang=pt Acesso em: 19 jul. 2022.
    » https://www.scielo.br/j/edreal/a/57qVjg5BQZ9gf5tWZYtzT5h/?lang=pt
  • GOULART, Cecília Maria Aldigueri. Política como ação responsiva: breve ensaio acerca de educação e arte. In: FREITAS, Maria Teresa. Educação, arte e vida em Bakhtin. Belo Horizonte: Autêntica, 2013, p. 69-93.
  • JACCOUD, Luciana. Pobreza, direitos e intersetorialidade na evolução recente da proteção social brasileira. In: MACEDO, Juliana Matoso; XEREZ, Flávia Helena Saraiva; LOFRANO, Rodrigo (Orgs.). Intersetorialidade nas políticas sociais: perspectivas a partir do programa Bolsa Família. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2016. p.15-30.
  • KUHLMANN JUNIOR, Moysés. Instituições pré-escolares assistencialistas no Brasil (1899-1922). Cadernos de Pesquisa, n. 78, p. 17-26, 1991.
  • KUHLMANN JUNIOR, Moysés. A educação assistencialista. In: KUHLMANN JUNIOR, Moysés. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 2010. p. 165-178.
  • MARTINS, Leane Rodrigues; ROSISTOLATO, Rodrigo; PRADO, Ana Pires do; MUANIS, Maria Comes; CERDEIRA, Diana Gomes da Silva. “É muito triste isso, cara, ver uma criança não entrar por causa de 100g!”: Decisões discricionárias na implementação de uma política intersetorial de combate à fome. Jornal de Políticas Educacionais, v. 16, p. 1-23, 2022.
  • PATTO, Maria Helena Souza. Privação Cultural e Educação Pré-Primária. Rio de janeiro: Livraria José Olympio, 1977.
  • ROSEMBERG, Fulvia. Organizações multilaterais, estado e políticas de educação infantil. Cadernos de Pesquisa, n. 115, p. 25-63, 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0100-15742002000100002 Acesso em: 11 jul. 2022.
    » https://doi.org/10.1590/S0100-15742002000100002
  • SAWAYA, Sandra Maria. Desnutrição e baixo rendimento escolar: contribuições críticas. Estudos Avançados, v. 20, n. 58, p. 133-146, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142006000300015 Acesso em: 15 jul. 2022.
    » https://doi.org/10.1590/S0103-40142006000300015
  • VASCONCELOS, Francisco de Assis Guedes de. Fome, solidariedade e ética: uma análise do discurso da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 11, n. 2, p. 259-277, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-59702004000200003 Acesso em: 9 jul. 2022.
    » https://doi.org/10.1590/S0104-59702004000200003
  • VIANA, Marcia Regina; NEVES, Alden Santos; CAMARGO JUNIOR, Kenneth Rochel; PRADO, Shirley Donizete; MENDONÇA, André Luis Oliveira. A racionalidade nutricional e sua influência na medicalização da comida no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, p. 447-456, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.25432015 Acesso em: 13 jul. 2022.
    » https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.25432015
  • 1
    Projeto de pesquisa desenvolvido com auxílio financeiro da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
  • 2
    Foram encontrados apenas dois trabalhos que tratam sobre o tema - uma dissertação de mestrado e um artigo -, ambos apresentam o histórico da elaboração e implementação da política aqui analisada. O primeiro trabalho analisa os efeitos dessa política no enfrentamento das desigualdades sociais. Já o segundo, reflete sobre as ações e decisões discricionárias dos gestores escolares, nutricionista e assistentes sociais envolvidos no processo de pesagem das crianças.
  • 3
    Optou-se por considerar em 2000 as matrículas da pré-escola somadas a da classe de alfabetização e, em 2020, a soma de creche e pré-escola. Dados disponíveis em: https://www.gov.br/inep. Acesso em: 15 ago. 2022.
  • 4
    Atualmente, os CCAIC contam com uma diretora, orientadora pedagógica, professora, auxiliar materno-infantil e/ou Auxiliar de Desenvolvimento da Educação Básica (ADEB).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Set 2022
  • Aceito
    17 Maio 2023
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br