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Cigarro, baralho e ensino e aprendizado da leitura no Brasil no início do século XX

Cigarette, deck and teaching and learning how to read in Brazil in the early 20th century

Cigarro, baraja y enseñanza y aprendizaje de la lectura en Brasil al início del siglo XX

RESUMO

Neste artigo, analisa-se, sob o conceito de cultura material instrucional, o Baralho Alphabetico para ensino da leitura, lançado em 1902 pela indústria de cigarros Veado, do Rio de Janeiro, e distribuído nas carteiras Semilla de Havana e Santo Angelo. A fábrica Veado foi fundada pelo português José Francisco Corrêa, em 1874, e tornou-se uma das marcas mais famosas de cigarro no Brasil. Nas carteiras de cigarros da marca Veado, eram distribuídos diferentes artefatos, como, por exemplo, cartões, cromos, fotografias e também o Baralho Alphabetico. Dentre as conclusões obtidas, está a de que o referido Baralho foi um artefato original e pioneiro no contexto da indústria brasileira. Além disso, conclui-se que se tratou de uma iniciativa singular como forma de contribuição à instrução popular.

Palavras-chave:
Leitura; Baralho Alphabetico; Brasil; Século XX

ABSTRACT

Under the concept of instructional material culture, the Baralho Alphabetico (“Alphabetic Deck”) for teaching reading skills, released in 1902 by the Veado cigarette industry from Rio de Janeiro and distributed in the Semilla de Havana and Santo Angelo packs, is analyzed in this article. The Veado factory was founded by the Portuguese José Francisco Corrêa in 1874, and became one of the most famous cigarette brands in Brazil. Within the cigarette packs of the Veado brand different artifacts were distributed as, for example, cards, stickers, photographs and, from 1902, the Baralho Alphabetico. Among the obtained conclusions is that the referred Baralho was an original and pioneer artifact in the context of the Brazilian industry. Besides, it is also concluded that it was a unique initiative as a manner of contributing to popular instruction.

Keywords:
Reading; Veado; Baralho Alphabetico; Brazil; 20th Century

RESUMEN

En este artículo se analiza, bajo el concepto de cultura material instructiva, el Baralho Alphabetico para enseñanza de lectura, lanzado en 1902 por la industria de cigarros Veado, de Rio de Janeiro, y distribuido en las cajas Semilla de Habana y Santo Angelo. La fábrica Veado fue fundada por el portugués José Francisco Corrêa, en 1874, y se convirtió en una de las marcas más famosas de cigarrillos en Brasil. En las cajas de esta marca eran distribuidos diferentes artefactos como, por ejemplo, tarjetas, cromos, fotografías y además el Baralho Alphabetico. Entre las conclusiones obtenidas está la de que dicha baraja fue un artefacto original y pionero en el contexto de la industria brasileña. Además de eso, se concluye haberse tratado de una iniciativa singular como forma de contribución a la instrucción popular.

Palabras clave:
Lectura; Baralho Alphabetico; Brasil; Siglo XX

Introdução

A relação anunciada desde o título deste artigo parece improvável: cigarro, baralho e ensino e aprendizado da leitura. Não é, contudo, o que revela a produção e a distribuição de um Baralho Alphabetico pela marca de cigarros Veado.

Os cigarros da marca Veado eram fabricados no Rio de Janeiro pela Imperial Estabelecimento de Fumo, considerada a primeira fábrica de cigarros do Brasil, que foi fundada pelo português José Francisco Corrêa, o Conde de Agrolongo (1853-1929), em 18741 1 As propagandas da Veado nos jornais indicam o endereço da fábrica como sendo a Rua Sete de Setembro, n. 74, Rio de Janeiro/RJ. .

Especificamente em relação ao Baralho Alphabetico, estudá-lo supõe a perspectiva da “[...] existência de um processo mais amplo de disseminação da cultura escrita para além da escola e [...] da possibilidade de que alguns materiais podem ter sido transferidos de um espaço de transmissão para outro” (FRADE, 2010bFRADE, Isabel Cristina A. da S. Alfabetização, escolarização e cultura escrita em Minas Gerais no século XIX. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (Orgs.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010b. p. 249-278., p. 270).

Em razão disso, aborda-se o Baralho Alphabetico para o ensino e aprendizado da leitura a partir do conceito de cultura material instrucional (PERES, 2021PERES, Eliane. Cultura material escolar e cultura material instrucional no ensino e aprendizado escolar e doméstico da leitura e da escrita (Memórias de Aprendizes, Século XX). In: CORDEIRO, Andréa Bezerra et. al. (Org.). A Teia das Coisas: cultura material escolar e pesquisa em rede. 1 Ed. Curitiba: NEPIE/UFPR, 2021.), entendido como aqueles artefatos produzidos e/ou usados fora do âmbito escolar, via de regra, no espaço doméstico. O conceito demarca, pois, “a circulação, os usos e as invenções criativas de determinados objetos e suportes para o ensino e o aprendizado da leitura e da escrita em espaços não-escolares” (PERES, 2021, p. 160-161). Cultura material instrucional é composta, então, de artefatos disponíveis socialmente, que não eram voltados especificamente à escola (revistas, almanaques, livro de orações, jogos, panfletos, cartazes, cartas, cartões, lotos, materiais impressos e manuscritos de circulação cotidiana e de uso em espaços religiosos, comerciais, industriais, políticos etc.). Admite-se, contudo, que essa conceituação pode abarcar materiais tradicionalmente produzidos e direcionados às escolas, em uma intrincada e complexa relação entre a vida cotidiana e a cultura escolar, como é o caso dos abecedários, muitos deles indicados para uso familiar ou de ensino individual ou em pequenos grupos (por vezes, familiares). Como se verá neste trabalho, era o caso do Baralho Alphabetico, distribuído em carteiras de cigarro da fábrica Veado.

Os dados para o presente estudo foram obtidos em jornais do Rio de Janeiro (Jornal do Brasil, Annuario do Jornal do Brasil, Jornal do Commercio, O Paiz, A Notícia, A Imprensa, Gazeta de Notícias, Cidade do Rio), disponíveis na Hemeroteca Virtual da Biblioteca Nacional, além de informações sobre o fundador da fábrica Veado, José Francisco Corrêa, localizadas em arquivos virtuais de Portugal e do Brasil. No desenvolvimento da investigação, encontrou-se, também, à venda, em um site especializado, fotografias para estereoscópio distribuídas pela Veado e o próprio Baralho Alphabetico2 2 Originalmente, o Baralho Alphabetico era composto por 50 cartas, 25 maiúsculas e 25 minúsculas. Considerando o tempo decorrido da circulação desse artefato, as cartas obtidas estão em bom estado. Entretanto, o baralho não está completo, o que não comprometeu o seu entendimento e a análise: faltam, em ambos os conjuntos (minúsculo e maiúsculo), coincidentemente, ou não, as cartas referentes à letra m (m/M); contudo, há repetições de cartas para o caso do alfabeto maiúsculo: há duas cartas das letras g/q/z, respectivamente das palavras/imagens: queixada, zebra; para o caso da letra g as imagens/palavras são diferentes: galo e gato. , o que muito contribui para o entendimento e a análise do artefato, cuja intuito era que crianças e adultos operários pudessem aprender a ler rapidamente e de maneira eficiente, podendo, assim, a fábrica e seus proprietários contribuir com a instrução popular, conforme referido nas matérias jornalísticas. Assim sendo, compreende-se que “o investimento no ensino da leitura e da escrita e em seus materiais articulava-se, de certa forma, à compreensão de que o desenvolvimento e o progresso da instrução popular estariam intimamente ligados à possibilidade de enriquecimento e bem-estar dos países” (KINCHESCKI, 2022KINCHESCKI, Ana. P. de S. Instrumentos e acessórios de escrita: a construção de uma necessidade “universal” para a escolarização da infância (1860-1890). Tese de Doutorado em Educação - Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2022., p. 76).

Assim, considerando essa perspectiva, mais os dados elencados e a ancoragem no conceito de cultura material instrucional, o presente artigo foi dividido, além da Introdução e das Considerações Finais, em duas seções: na primeira, faz-se considerações gerais sobre a fábrica de cigarros Veado e seu fundador; na segunda, apresenta-se e analisa-se especificamente o artefato em foco: o Baralho Alphabetico, distribuídos nas carteiras de cigarro Semilla de Havana e Santo Angelo.

Os cigarros Veado

Quereis fumar bom e barato? Procurai os saborosos cigarros marca Veado (A NOTÍCIA, 1901, p. 2) Era assim um dos apelos publicados nos jornais cariocas para atrair os consumidores a comprem os cigarros da marca Veado.

Como afirmado, os cigarros Veado eram fabricados pela Imperial Estabelecimento de Fumo, fundada em 1874 pelo português José Francisco Corrêa, o Conde de Agrolongo (1853-1929). Segundo dados do Arquivo José Francisco Corrêa, da Universidade do Minho, ele “nasceu em 14 de fevereiro de 1853, no lugar da Bouça, freguesia de São Lourenço de Sande, concelho de Guimarães” (ARQUIVO DISTRITAL DE BRAGA, 2022, s/d). Os dados revelam ainda que:

Era filho de António Correia e Maria Ferreira. [...] Com dez anos mudou-se para o Porto e, mais tarde, para o Brasil onde trabalhou numa fábrica de cigarros em Niterói. Com 18 anos começou a gerir uma pequena fábrica do mesmo ramo e mais tarde fundou a sua própria empresa - a Imperial Estabelecimentos de Fumos “Veado”. Enquanto viveu no Brasil contraiu matrimónio com D. Ambrosina Savard Saint-Brisson, com quem teve dois filhos, uma menina e um menino. Ainda neste período, dirigiu o Hospital de Beneficência Portuguesa no Rio de Janeiro. Regressado a Portugal, foi-lhe concedido o título de Visconde de Sande, em 28 de abril de 1898, por carta de mercê do Rei Dom Carlos. [...] Suas ações de benemerência valeram-lhe o já mencionado título de Conde de Agrolongo. Faleceu em Lisboa em 15 de abril de 1929 (ARQUIVO DISTRITAL DE BRAGA, 2022, s/d).

Em uma página on-line de arte, José Francisco Corrêa, o Conde de Agrolongo, é assim descrito:

Fotógrafo, Industrial, proprietário da Fábrica de Fumos Veado (a mais importante empresa do gênero no século passado, fundada, em 1874, na cidade do Rio de Janeiro), foi um dos pioneiros da fotografia amadora no país. Um dos raros autores oitocentistas a, comprovadamente, realizar nus fotográficos no Brasil, dedicou-se também às paisagens e às composições alegóricas, durante as décadas de 1880 e 1890. Foi o responsável pela difusão em massa das imagens fotográficas no país, ao distribuir como brinde para os clientes de sua empresa, uma coleção de centenas de fotografias estereoscópicas diferentes, muitas das quais de sua própria autoria, acompanhadas dos respectivos visores durante a última década do século dezenove (ESCRITÓRIO DE ARTE, 2022, s./p).

É possível corroborar algumas das afirmativas acima com os dados da pesquisa. Com a imagem do animal como marca, as propagandas dos cigarros Veado revelam que eles eram vendidos em carteirinhas e em maços. No caso das carteirinhas, os reclames indicam que elas vinham com imagens (cromos, fotografias, cartões) de diferentes lugares, objetos e acontecimentos, como, por exemplo, de Lisboa, do centenário de Vasco da Gama, do centenário da Índia em Lisboa, do Rio de Janeiro, de bandeiras e mapas dos estados brasileiros, de tipos de ruas, de tipos Orientais, de animais, de antigos guerreiros, de crianças, de grupo de pessoas, de atividades. Imagens fotográficas para estereoscópio de distribuição nas carteiras de cigarro e de troca (as maiores) eram um dos artefatos mais referidos nos anúncios e aparentemente os mais procurados. Ao que tudo indica, conforme as informações anteriores, tratava-se de fotografias da autoria do próprio José Francisco Corrêa. Em geral, os anúncios referem-se a coleções e a colecionadores.

No anúncio a seguir (FIGURA 1), pode-se visualizar o “logotipo” da fábrica - a imagem de um veado aparentemente em um campo cercado de vegetação -, o anúncio da venda em maços e carteirinhas, essas últimas com imagens de lugares/acontecimentos - Rio de Janeiro e Lisboa, nesse caso. Além disso, há algo que é recorrente nas propagandas, qual seja, o destaque à qualidade do fumo usado e do papel de produção dos cigarros. A propaganda permite, ainda, identificar o local de funcionamento da fábrica, pelo menos em um primeiro momento: situava-se à Rua Sete de Setembro, n. 74 (em outros materiais esse endereço se altera para Rua da Assembléa, 94 a 98, mostrando, talvez, a expansão dos negócios de José Francisco Corrêa & Cia.).

FIGURA 1
Propaganda dos cigarros Veado

Em relação às imagens fotográficas e ao estereoscópio, como se pode ver na Figura 2, a seguir, era preciso juntar 100 delas para obter o equipamento, pelo menos por esse anúncio. Adiante, ver-se-á que esse número se altera para mais:

FIGURA 2
Anúncio dos cigarros veado no correio da manhã

O Museu Virtual de Geomática, da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, apresenta algumas imagens de Estereoscópios. Na Figura 3, a seguir, reproduz-se um modelo de Estereoscópio de Bolso TOPCON. A imagem é reproduzida apenas para se ter uma ideia do que se tratava esse equipamento que, no caso da empresa Veado, depois de colecionar 100 fotografias, segundo o reclame anterior, que seriam devidamente carimbas, era possível trocar pelo referido equipamento, que permitiria visualizar as imagens fotográficas em dimensões diferentes e ampliadas:

FIGURA 3
Estereoscópio de bolso topcon

Em 1913, saiu uma propaganda no jornal A Noticia, na qual faz referência que a marca Veado alcançou o maior consumo no país e que mais de mil casas comerciais no Rio de Janeiro e outros estados entregavam os brindes “em troca das figurinhas stereoscopicas” (A NOTICIA, 1913, p. 2).

Durante o estudo realizado, obtiveram-se três dessas fotografias: em uma delas, há duas imagens fotográficas com grupos de crianças na praia; na outra, imagens da primeira comunhão, também de crianças em grupos; e, na terceira, foram fotografados e reproduzidos grupos de crianças de creches de Lisboa. Essa última é aqui apresentada na Figura 4 como exemplo (frente e verso):

FIGURA 4
Frente e verso de uma fotografia para estereoscópio distribuído pela Veado

Nesse caso, como se pode ler, 500 fotografias distribuídas nas carteiras de cigarros, “nos deliciosos cigarros” Semilla de Havana, Certamen, Diplomatas e Hygienicos, davam direito de trocar por 50 fotografias de grande formato, além do stereoscopio. Aqueles que reunissem 300 das primeiras poderiam receber as segundas, podendo optar por levá-las sem o aparelho ou escolher o aparelho sem as fotografias, demostrando que era preciso consumir ou conseguir um número bastante grande das imagens distribuídas nos cigarros para efetuar a troca, em qualquer dos casos escolhidos.

O negócio que João Francisco Corrêa montou a partir e para a venda dos cigarros que sua fábrica produzia parece bastante sofisticado à época, final do século XIX e primeiras décadas do século XX: distribuição, agregado às carteiras de cigarro, de diferentes imagens, fotografias, cromos, além de premiações, troca de produtos, entre outras estratégias de venda que intentavam tornar atrativa a compra dos cigarros para além do próprio consumo do produto pelos fumantes.

Esses atrativos também incluíam vales para “retratos”, como mostra essa pequena nota de 1907 (FIGURA 5), intitulada Admirável!...:

FIGURA 5
Anúncio de vale para retrato

Original a ideia de que os cigarros Retratistas dessem vales para troca por retratos. Embora os vales fossem para tirar “retratos de graça” em “uma das acreditadas fotografias da praça”, não seria o próprio José Francisco Corrêa, sendo ele fotógrafo, um dos retratistas? Tal hipótese não é improvável.

Foram muitas os “brindes” distribuídos nas carteiras dos cigarros da fábrica Veado. Havia, como referido, uma forte estratégia de divulgação e promoção dos cigarros: além das propagandas em formato grande com a imagem símbolo da empresa, uma outra estratégia de divulgação foi publicar diariamente, em jornais do Rio de Janeiro, uma pequena nota, geralmente na primeira ou na segunda página, como se vê a seguir, em um exemplo (FIGURA 6):

FIGURA 6
Nota publicada no jornal A Noticia

As inúmeras e quase diárias propagandas nos jornais do Rio de Janeiro, principalmente entre o final do século XIX e início do século XX, sempre apresentam os cigarros Veado como tendo preços vantajosos e como sendo de “qualidade acreditadíssima”, “sem rival”, “deliciosos”, “delicadíssimos”, “chics”, “hygienicos”, “saborosos”, tendo “os fortes e os fracos”, para “todos os gostos”, de “fino preparo”, “preparados com a mínima porção de papel”, com “acreditados fumos”, em “elegantes e lindas carteiras”. Em 1908, a marca foi premiada na Exposição Nacional, o que, segundo o jornal A Noticia, “prova a excellencia e capricho com que são preparados os produtos desta importante fabrica, 1ª da América do Sul” (A NOTICIA, 1909, p. 2).

Além de apresentar os cigarros como os melhores do mercado, apelavam, reiteradamente, para as vantagens de obtenção dos artefatos colecionáveis e das premiações (vales e objetos) que decorriam da compra dos produtos da marca Veado.

Com o Baralho Alphabetico não foi diferente. É o que se apresenta e discute a seguir, sendo que se trata do foco principal deste artigo.

O Baralho Alphabetico dos cigarros Veado

A mesma afirmativa de Galvão (2010GALVÃO, Ana Maria. de O. História das culturas do escrito: tendências e possibilidades de pesquisa. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T (Orgs.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.) sobre a cultura escrita de modo geral pode ser dita em relação à leitura em específico: trata-se de uma prática cultural dinâmica e que ocupa diferentes lugares simbólicos e materiais na sociedade. Além disso,

Aprender a ler-escrever-contar supõe ao menos um tempo e um espaço específicos, com frequência uma pessoa em quem se reconhece a capacidade de instruir e a quem se remunera, enfim, os instrumentos sem os quais a transmissão não poderia ter lugar. Se a escola não é sempre o local dessa mediação, é porque certos grupos sociais, introduzidos desde muitas gerações na cultura escrita, mantêm estas primeiras aprendizagens no domínio familiar (HÉBRARD, 1990HÉBRARD, Jean. A escolarização dos saberes elementares na época moderna. Teoria & Educação, v. 2, p. 65-110, 1990., p. 68).

Daí que a ideia de uma materialidade para o ensino da leitura que não é necessariamente escolar, mas, para além disso, pode ser caracterizada mais amplamente como uma cultura material instrucional, na qual a escola e os professores não são necessariamente os mediadores, faz sentido no caso do Baralho Alphabetico dos cigarros Veado. Diante disso, podemos, como afirmou Frade (2010bFRADE, Isabel Cristina A. da S. Alfabetização, escolarização e cultura escrita em Minas Gerais no século XIX. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (Orgs.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010b. p. 249-278., p. 270), “presumir a existência de um processo mais amplo de disseminação da cultura escrita para além da escola e pensar na possibilidade de que alguns materiais podem ter sido transferidos de um espaço de transmissão para outro”, como já destacado.

Contudo, é preciso enfatizar que a prática de produzir e usar alfabetos ilustrados e coloridos (tanto em cartões/cartas soltas, quanto em formato códex, o livro) na escola e fora dela para ensino e aprendizado da leitura não foi prerrogativa da fábrica de cigarros Veado, como se pode ver em apenas um exemplo do conjunto de que se dispõe na pesquisa (FIGURA 7):

FIGURA 7
Anúncio de obras infantis - Livraria Universal

Do conjunto dos dados da pesquisa, cujo exemplo é esse anúncio de 1879 do Diário do Maranhão, pode-se afirmar a existência e a circulação, em praticamente todas as províncias do país, de impressos (livros, lotos, abecedários, cartões) com imagens, na sua maioria anunciados como sendo coloridas.

Esses artefatos eram direcionados tanto às famílias, demostrando que na esfera familiar também se podia aprender a ler, quanto às escolas. Em relação ao primeiro, um exemplo importante (FIGURA 8) é reproduzido a seguir:

FIGURA 8
Anúncio de loto

Para além da descrição do material, que denota a qualidade, quantidade e a complexidade do jogo (compêndio, cartões ilustrados, letras em madeira, caixinha de madeira) e a existência de artefatos dirigido às famílias - muito embora provavelmente esse material pudesse ser adquirido apenas por uma parcela da população -, ele aponta também para duas grandes tendências do ensino da leitura nos finais do século XIX e início do século XX: o debate pelo fim da soletração e o ensino intuitivo. Embora não seja o foco deste estudo, as referências ao método intuitivo serão retomadas adiante, uma vez que elas também aparecem no caso do Baralho Alphabetico, indicando que sua produção estava em consonância com as tendências pedagógicas do período.

Retomando o aspecto dos impressos com imagens para ensino da leitura no Brasil (na escola e fora dela) no período mencionado e revelando a tradição da circulação desses impressos, Frade (2010aFRADE, Isabel Cristina. A. da S. Uma genealogia dos impressos para o ensino da escrita no Brasil no século XIX. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 264-281, 2010a.Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/59BgMmzm9kKTSCjXxndPybR/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 18 jul. 2022.
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) exemplifica com o caso do Syllabario Portuguez ou novo método para aprender a ler em breve tempo a língua portuguesa e o sistema métrico ilustrado com numerosas estampas, de J. R. Galvão, que apresenta, “em suas primeiras páginas, um alfabeto e depois um alfabeto ilustrado, composto, com exceção de dois temas, de descrição de animais” (FRADE, 2010aFRADE, Isabel Cristina. A. da S. Uma genealogia dos impressos para o ensino da escrita no Brasil no século XIX. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 264-281, 2010a.Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/59BgMmzm9kKTSCjXxndPybR/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 18 jul. 2022.
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, p. 277).

Aliás, Frade, em seus estudos (2010aFRADE, Isabel Cristina. A. da S. Uma genealogia dos impressos para o ensino da escrita no Brasil no século XIX. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 264-281, 2010a.Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/59BgMmzm9kKTSCjXxndPybR/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 18 jul. 2022.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/59BgMmzm...
; 2010b; 2016), mostra a variedade de artefatos produzidos e usados no Brasil nos séculos XIX e XX para ensino da leitura. A autora identifica, no século XIX, para o caso da Província de Minas Gerais, a circulação de tábuas, tabelas e cartas, bem como o uso de grandes páginas ou cartazes, “talvez uma grande página de um livro para todos” (FRADE, 2010aFRADE, Isabel Cristina. A. da S. Uma genealogia dos impressos para o ensino da escrita no Brasil no século XIX. Revista Brasileira de Educação, v. 15, n. 44, p. 264-281, 2010a.Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/59BgMmzm9kKTSCjXxndPybR/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 18 jul. 2022.
https://www.scielo.br/j/rbedu/a/59BgMmzm...
, p. 267) para o ensino da leitura. No estudo referido, a pesquisadora analisa, do ponto de vista do conteúdo e da materialidade, abecedários, cartas de ABC e silabários impressos. O abecedário, segundo Hébrard, citado por Frade, poderia ser um material impresso em uma folha, uma folha e meia ou três folhas. Entretanto, Frade (2010a, p. 274), comparando e discutindo materiais produzidos na França, identifica e caracteriza também os abecedários ilustrados como:

[...] livros de imagens que pretendem provocar nas crianças pequenas o gosto por aprender a ler. Apesar de aparecerem numa sequência de A a Z, esses abecedários podem ser consultados em qualquer ordem, de forma não linear, como um livro de imagem, e a criança pode deter-se numa letra ou em uma ilustração com a ajuda de um adulto e demandar o que está escrito.

Pode-se considerar, também, como afirmou Choppin (2009CHOPPIN, Alain. O manual escolar: uma falsa evidência histórica. História da Educação, v.13, n. 27, 9-75, 2009. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/article/view/29026. Acesso em: 19 jul. 2022.
https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/ar...
), que abecedário é, desde o século XVI, um pequeno livro impresso. Stephanou e Souza (2016STEPHANOU Maria; SOUZA, Mariana V. P. Abecedários em circulação: entre dicionários, impressos e cartilhas escolares. História da Educação, v. 20, n. 50, p. 297-325, 2016. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/article/view/67559. Acesso em: 13 jul. 2022.
https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/ar...
, p. 301) observam que “[...] os abecedários têm uma longa história, remontam mesmo à invenção dos sistemas de escrita e das convenções elaboradas para sustentá-las.” As autoras estabelecem, ainda, baseadas em estudos de autores franceses, a relação entre os abecedários e o uso das letras capitulares nos manuscritos da Idade Média. Segundo elas, “[...] uma espécie de reunião dessas belas letras esboçava a emergência do abecedário como conjunto de letras do alfabeto.” (STEPHANOU; SOUZA, 2016STEPHANOU Maria; SOUZA, Mariana V. P. Abecedários em circulação: entre dicionários, impressos e cartilhas escolares. História da Educação, v. 20, n. 50, p. 297-325, 2016. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/article/view/67559. Acesso em: 13 jul. 2022.
https://seer.ufrgs.br/index.php/asphe/ar...
, p. 301). Relembrando as inscrições do abc em tapeçarias da Idade Média e as genealogias bordadas das linhagens familiares, as supracitadas autoras enfatizam “[...] os usos sociais e culturais, antes mesmo da adoção escolar dos abecedários como artefatos ligados aos métodos de ensino da leitura e da escrita.” (STEPHANOU; SOUZA, 2016, p. 301).

No que tange aos usos dos abecedários como método de aprendizagem para o contexto francês, os registros remontam ao século XV e sua difusão se alarga consideravelmente no século XVIII em diferentes partes do mundo ocidental3 3 Ver para isso, entre outros, Hébrard (2002); Chartier (2004); Choppin (2009); Correa e Silva (2008); Frade (2010a); Souza (2015); 1Stephanou e Souza (2013; 2016). . Vojniak (2014VOJNIAK, Fernando. O Império das primeiras letras: epítome de uma história de cartilhas de alfabetização no século XIX. Revista Educação e Políticas em Debate, v. 3, n. 1, p. 23-37, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.14393/REPOD-v3n1a2014-27680. Acesso em: 25 mai. 2022.
https://doi.org/10.14393/REPOD-v3n1a2014...
, p. 29) chama a atenção para o fato de que:

Nas primeiras décadas do século XIX [...] a pessoa que se encarregasse da tarefa do ensino da leitura e da escrita, se tivesse condições de não limitar-se a confeccionar de forma manuscrita seus próprios recursos didáticos, além das incipientes cartilhas, poderia dispor de certa variedade de impressos como, por exemplo, as cartas de alfabetos, que eram folhetos organizados, na maioria dos casos, com diversas formas de letras estampadas - capitais, minúsculas, de fôrma (redonda) e cursivas - e frequentemente vinham acompanhadas de algumas apresentações de combinações de sílabas e palavras aparentemente simples ou nomes de pessoas; esse tipo de material apelava mais para o visual do que para o discursivo (textos morais, ideológicos ou informativos) e era impresso em poucas páginas, geralmente “in fólio”; os exemplos de nominação destes materiais são as “Cartas de ABC”, as “Cartas de Nome”, os “Silabários”, os “Murais” e os “Abecedários”.

Sobre o Baralho Alphabetico, objeto deste estudo, ele tem algumas especificidades em relação aos materiais já identificados para o ensino da leitura no final do século XIX e primeiras décadas do século XX: trata-se de um abecedário, em cartas soltas (em pequeno formato, medindo 6,5 cm de altura e 4,8 cm de largura), com uma proposta de jogo recreativo que permitiria ao aprendiz - crianças e adultos - divertir-se enquanto aprendia as letras e as palavras, formava novas palavras e dominava, passo a passo, os rudimentos da leitura através de um método caracterizado como intuitivo racional, rápido e facílimo. Para além disso, o Baralho permitiria o domínio de conhecimentos da vida dos animais, temática bastante explorada em abecedários. Esses são alguns dos princípios encontrados nas fontes consultadas que justificam a produção e a distribuição do artefato.

Uma matéria relativamente longa no jornal carioca, Cidade do Rio (cujo diretor era José do Patrocínio), do dia 31 de março de 1902, anunciava que, no dia anterior, 30 de março, o Baralho havia sido lançado:

Em todos os jornais desta capital foi hontem anunciado o haver apparecido Baralho Alphabetico, para aprender a ler com facilidade, distribuído nos acreditados cigarros semilla de Havana e Santo Angelo - marca Veado -, método intuitivo, racional, rapido, e facillimo para aprender a ler pela palavração. (CIDADE DO RIO, 1902, p. 1).

De fato, no dia anterior, 30 de março, dia do lançamento portanto, os jornais do Rio de Janeiro noticiaram o feito, entre eles a Gazeta de Noticias, como se reproduz a seguir (FIGURA 9):

FIGURA 9
Matéria sobre o baralho alfabético

O primeiro destaque a ser feito refere-se ao mencionado método da palavração, caracterizado como intuitivo racional, rápido e facílimo. Sobre o ensino intuitivo, pode-se afirmar que, desde a segunda metade do século XIX, ele era recomendado, no discurso educacional brasileiro, como o mais adequado para a instrução da população. Preconizava-se a conveniência da educação baseada no ensino pelos sentidos. Segundo Valdemarin (2004VALDEMARIN, Vera Teresa. Estudando as Lições de Coisas: análise dos fundamentos filosóficos do Método de Ensino Intuitivo. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2004.), o método pode ser sintetizado em dois termos: observar e trabalhar. Para a autora, “observar significa progredir da percepção para a idéia, do concreto para o abstrato, dos sentidos para a inteligência, dos dados para o julgamento” (VALDEMARIN, 2004VALDEMARIN, Vera Teresa. Estudando as Lições de Coisas: análise dos fundamentos filosóficos do Método de Ensino Intuitivo. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2004., p. 69). Nessa perspectiva, a imagem teria um papel fundamental. Não por acaso, nas referências ao Baralho Alphabetico, além de cada carta apresentar a letra (maiúscula e minúscula, cursiva e de imprensa) e a descrição do animal, reproduzia a imagem do animal correspondente (colorida). Esse aspecto ganha centralidade na difusão do Baralho.

Outros aspectos da matéria do jornal anteriormente reproduzida podem ser enfatizados. Nela, há referências de como era composto o Baralho: de cinquenta cartas com figuras coloridas (25 maiúsculas e 25 minúsculas), tendo na parte superior a letra inicial da figura em diversos caracteres e na parte inferior, abaixo da figura, o nome do animal representado por extenso, como expresso na matéria e como se pode ver nas imagens a seguir (FIGURAS 10 e 11):

FIGURA 10
Frente das cartas com as letras minúsculas do Baralho Alphabetico

FIGURA 11
Frente das cartas com as letras maiúsculas do Baralho Alphabetico

No verso de cada uma delas, está uma pequena explicação do animal representado, como exemplificado a seguir, com o modelo de uma carta do alfabeto maiúsculo (aguia - A aguia é a mais forte das aves rapaces; move-se com celeridade) e uma do minúsculo (zancuda - A zancuda, ave que se distingue pelo comprimento das suas pernas; tem o bico cylindrico e pontudo). Além disso, como se pode ver (FIGURA 12), todas as cartinhas traziam, em destaque, o logotipo da Grande Manufactura de Fumos e Cigarros José Francisco Corrêa & Cia:

FIGURA 12
Verso de uma carta do alfabeto maiúsculo (aguia) e de uma do alfabeto minúsculo (zancuda) do Baralho Alphabetico

Como já mencionado, em ambos os conjuntos (minúsculo e maiúsculo) obtidos, coincidentemente ou não, as cartas referentes à letra m (m/M) estão faltando; contudo, há repetições de cartas para o caso do alfabeto maiúsculo: há duas cartas das letras g/q/z, respectivamente, das palavras/imagens: queixada, zebra; para o caso da letra g, as palavras/cartas são diferentes: galo e gato, indicando para o fato de que poderia haver cartas diferentes para as mesmas letras.

Outro aspecto que merece ser enfatizado é o fato de que, excetuando as imagens/palavras com as letras q (queixada: um quadrupede da raça suina existente nas mattas do Brazil. É o porco do mato), x (xilócopo: inseto da família dos melíferos, grupo dos xylocopitas) e y (yack: mammifero originário do Thibet; pertence ao genero boi), as outras não se repetem para o caso do Baralho Alphabetico minúsculo e maiúsculo. Houve um esforço, ao que tudo indica, pelas características do artefato, na variação das imagens dos animais, consequentemente nas/das palavras.

No verso, ao final de cada carta, em letras muito miúdas, consta a inscrição: Léon de Rennes & Cª, Ourives, 31, Rio. Trata-se da oficina que imprimiu as cartas. De acordo com Daltozo (2006DALTOZO, José Carlos. Cartão Postal: Arte e Magia. Presidente Prudente: Gráfica Cipiola, 2006.):

Entre os editores pioneiros do Rio de Janeiro, encontra-se Léon de Rennes, de nacionalidade belga, fundador da firma L. de Rennes & Cia, inicialmente com oficinas na rua da Guarda Velha (atual Av. Treze de Maio). Já em 1901 encontrava-se na Rua dos Ourives, 31. (...) Após período de turbulência em sua vida, Léon de Rennes abandonou o negócio em 1910, retirando-se para seu país natal. As atividades da empresa continuaram sob a direção do antigo sócio, João Ferreira Pinto, e deste passou para as mãos de seu filho Gustavo, já sob a denominação de Ferreira Pinto & Cia. A editora não produziu só postais do Rio, fez também de Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Pernambuco e Paraíba.

A produção de cartões postais pela León de Rennes & Cia foi tradicional e quantitativa e qualitativamente significativa (à venda até os dias atuais em sites especializados). E a oficina do belga León de Rennes & Cia não produziu só cartões postais, mas também o Baralho Alphabetico, com imagens bastante variadas e coloridas e com tipos diferentes (considerando que as cartas apresentavam maiúsculas e minúsculas, imprensa e cursiva, além dos tipos do texto explicativo e do logotipo do Veado no verso). A qualidade do material não deixava a desejar, e a indicação é de que a fábrica Veado escolheu as pessoas “certas” e uma oficina qualificada para produção do material, demostrando um investimento significativo no Baralho Alphabetico.

Os jornais do Rio de Janeiro, por ocasião ainda do lançamento do Baralho, publicaram as normas de como ele poderia ser jogado, bem como outras possibilidades para o material:

O processo consiste na formação de palavras com os nomes das figuras constantes do baralho, no qual existem as vinte e cinco lettas maiusculas e as vinte e cinco minusculas. As figuras coloridas despertam a attenção da criança, que se empenhará em conhecer a lettra inicial e as que constarem do nome, formando as palavras - moça, velha, casa, barco, arvore, cabra, ovo, dama, mesa, etc.

Ganhará a partida quem formar maior numero de palavras.

As combinações dos jogos são as seguintes: A Moça, A Velha, O Feio, O Mau, O Bom, O Bonito.

Quem formar uma destas palavras, conforme a convenção, marcará maior número de pontos.

As figuras podem ser animaes, aproveitando ao ensino de zoologia, tendo no verso da carta uma breve lição sobre o animal; podem ser objectos de uso doméstico, mesas, cadeiras, pentes; podem ser flores e fructos, aproveitando o ensino de botanica; podem ser instrumentos de indústria e arte manuais, etc. (GAZETA DE NOTICIAS, 1902, p. 4).

No caso do artefato proposto, produzido e distribuído pela fábrica Veado nas carteiras de cigarro Semilla de Havana e Santo Angelo, a originalidade estava também na associação a um artefato de circulação social e à uma prática - o jogo de baralho comum, considerado um vício condenável e pernicioso -, além de caracterizar o método relacionando-o ao que estava em voga no período, como destacado: o método intuitivo, racional, rápido e fácil para ensino e aprendizado da leitura.

No que diz respeito à relação do artefato com o baralho e o jogo de carta comuns, o argumento é que, com o primeiro, poder-se-ia, pela sua natureza pedagógica e educativa, afastar as crianças e adultos do vício pernicioso da jogatina de cartas de baralhos comuns. Por distração e longe do vício, eles aprenderiam mais facilmente as 25 letras do que os 52 caracteres do baralho comum. Além do mais, aprenderia em dois meses - até uma criança de cinco anos -, sem “constrangimento” e sem “cansaço”:

A criança procurará o baralho com distracção, do mesmo modo que se entretêm com os jogos que caracterizam o vicio e ser-lhes-ha mais fácil conhecer as 25 lettras do alfabeto que os 52 caracteres que constituem os baralhos, seus naipes, valor de cada carta e as combinações dos diversos jogos, condemnaveis e perniciosos á educação.

Uma criança de cinco annos, sem constrangimento, sem cansaço, em dous mezes lê facilmente. (GAZETA DE NOTICIAS, 1902, p. 4).

A promessa contínua nas matérias dos jornais consultados era de que não só as crianças seriam beneficiadas com o Baralho, mas igualmente outro público, que, na “hora do serão”, com seus colegas e como forma de lazer, poderia aprender a ler:

E não é sómente a criança que terá esse aproveitamento: o operario adulto, que conhece todos os jogos, inclusive os 90 numeros do lôto e as suas combinações, e que jamais conseguiu aprender a lêr, pode-lo-á conseguir em trinta dias, ao serão, com seus companheiros, nas horas de lazer. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1902, p. 4).

Tal menção leva a crer que a fábrica de cigarros Veado apostava em um processo de aprendizado fora da escola, em espaços domésticos e de trabalho, em parcerias, como “distração”, ou até em processos autodidatas (embora o Baralho supunha o jogo, portanto entre duas ou mais pessoas).

Interessante observar que na matéria do Cidade do Rio (reproduzida de forma muito parecida à Gazeta de Noticias, mas com alguns acréscimos), foi divulgado o criador do Baralho Alphabetico: o professor e redator do jornal, Aprigio Carlos Macedo. Isso revela que a fábrica Veado, de José Francisco Corrêa & Cia, contou com a colaboração de um profissional habilitado para tal intento, em específico para o conteúdo do material:

[...] Invento de nosso companheiro de redacção, professor Aprigio Carlos Macedo, que vendeo a parte applicada a zoologia aos Srs. José Francisco Corrêa & Cia., reputados comerciantes e industriaes assaz conhecidos nesta praça.

O engenheso methodo destina-se ao ensino mecânico da leitura. (CIDADE DO RIO, 1902, p. 1).

Assim como para o caso da oficina escolhida para impressão do Baralho, no caso da “compra do método”, em especial a parte da descrição dos animais do artefato, percebe-se um investimento da José Francisco Corrêa & Cia na produção do material.

Lançado em 30 de março de 1902, conforme noticiou o jornal Cidade do Rio e de acordo com o já referido, o objetivo era de que, pelo Baralho, os aprendizes - crianças e adultos - poderiam conhecer as letras, formar palavras e aprender a ler conhecendo e se apropriando de conhecimentos da zoologia, o que despertaria sua atenção, pelo caráter atrativo, colorido e interessante do material.

Como argumentado na primeira seção, foi bastante original e favorável aos negócios agregar a distribuição do Baralho Alphabetico às carteiras de cigarros:

[...] É natural que as referidas marcas de cigarro, Semilla de Havana e Santo Angelo tenham grande procura, já pela qualidade e sabor dos excelentes fumos empregados no fabrico das mesmas, já pelo chromo reclame que acompanha as respectivas carteirinhas, de dupla utilidade.

Com a applicação do Baralho Alphabetico, destribuido em chromos nos produtos do seu acreditado estabelecimento, prestam os Srs. José Francisco Corrêa & Comp. importante serviço a instrucção popular. (CIDADE DO RIO, 1902, p. 1).

Esse serviço à instrução popular estava associado, parece óbvio, ao impulso da venda de cigarros. Tratava-se, pois, de um negócio que precisava ser rentável. Mesmo assim, é preciso salientar o caráter singular da iniciativa, demostrando a importância da produção e da circulação de artefatos para ensino da leitura para além do espaço escolar, configurando, então, a cultura material instrucional, qual seja: uma cultura e uma materialidade produzidas em outras esferas, comerciais e industriais, e com circulação em espaços extraescolares, especialmente de ensino privado e doméstico. Se esse ensino dependia de materiais (FRADE, 2010bFRADE, Isabel Cristina A. da S. Alfabetização, escolarização e cultura escrita em Minas Gerais no século XIX. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T. (Orgs.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010b. p. 249-278.), eis aí um exemplo concreto da disponibilização desses artefatos, no caso o Baralho Alphabetico, que estava, todavia, associado a uma prática social que à época era legítima e legitimada: o consumo de cigarros.

Considerações finais

Além de vender o produto, por suposto, oferecendo atrativos, a fábrica de cigarros Veado tinha como um de seus projetos difundir a arte da imagem - em fotografias, cartões, cromos - entre a população brasileira, quiçá especialmente seu fundador, José Francisco Corrêa, ele mesmo fotógrafo e amante da fotografia.

Nesse projeto é que estiveram inseridas as muitas coleções e premiações para aquelas pessoas que colecionavam os artefatos que acompanhavam as carteiras de cigarros. Nessas coleções, estavam também a produção, a divulgação e a distribuição do Baralho Alphabetico. O Baralho era divulgado como um material que poderia favorecer o aprendizado da leitura, uma vez que era para ser jogado, sendo, portanto, atrativo e de interesse das pessoas - crianças e adultos.

Composto por 50 cartas, 25 minúsculas e 25 maiúsculas, o Baralho apresentava a palavra e a imagem de um animal correspondente a cada letra/palavra; além disso, no verso, havia dados e informações do animal representado. Aliar outros conteúdos de conhecimentos gerais, zoologia nesse caso, conforme anunciado, era também o propósito do artefato, que foi lançado em 30 de março de 1902, conforme noticiou o jornal Cidade do Rio, em matéria de 31 de março daquele ano, referindo-se ao destaque que a imprensa carioca deu ao lançamento do Baralho no dia anterior.

O intuito, além de tornar atrativa a compra dos cigarros, era contribuir com a instrução popular. Em um momento em que a leitura e a escrita ganham maior centralidade na vida do país, em razão dos discursos republicanos em defesa da escolarização da população, do avanço do comércio, da indústria e da vida urbana, da reconfiguração do trabalho - sentindo ainda os efeitos da abolição da escravidão -, parece fazer sentido, no projeto de Jose Franciso Corrêa & Cia, o lançamento de um Baralho Alphabetico no modelo pensado por um professor, Aprigio Carlos Macedo, também da redator do jornal Cidade do Rio, para o aprendizado da leitura por crianças e jovens operários.

Considerando o ensino e o aprendizado da leitura como uma prática cultural dinâmica e que ocupa diferentes lugares simbólicos e materiais na sociedade (Galvão, 2010GALVÃO, Ana Maria. de O. História das culturas do escrito: tendências e possibilidades de pesquisa. In: MARINHO, M.; CARVALHO, G. T (Orgs.). Cultura escrita e letramento. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.), em especial no período em questão, e a ainda incipiente rede de escolas públicas no país, a produção de uma materialidade para uso em contextos outros - doméstico, religioso, fabril, associativo, do trabalho em geral - foi recorrente na virada do século XIX e início do século XX. Configurou-se, pois, uma cultura material instrucional que tentava dar conta da alfabetização da população que tinha, ainda, parcelas significativas daqueles que não dominavam a leitura e a escrita.

Com os dados disponíveis não é possível abordar os usos do Baralho Alphabetico, mas pode-se, entretanto, afirmar que ele foi um artefato original e pioneiro no contexto da indústria brasileira. Além disso, tratou-se de uma iniciativa singular, especialmente pela qualidade do artefato, com o propósito de ser uma contribuição à instrução popular como reiteradamente as notícias dos jornais mencionavam.

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    » https://doi.org/10.14393/REPOD-v3n1a2014-27680
  • 1
    As propagandas da Veado nos jornais indicam o endereço da fábrica como sendo a Rua Sete de Setembro, n. 74, Rio de Janeiro/RJ.
  • 2
    Originalmente, o Baralho Alphabetico era composto por 50 cartas, 25 maiúsculas e 25 minúsculas. Considerando o tempo decorrido da circulação desse artefato, as cartas obtidas estão em bom estado. Entretanto, o baralho não está completo, o que não comprometeu o seu entendimento e a análise: faltam, em ambos os conjuntos (minúsculo e maiúsculo), coincidentemente, ou não, as cartas referentes à letra m (m/M); contudo, há repetições de cartas para o caso do alfabeto maiúsculo: há duas cartas das letras g/q/z, respectivamente das palavras/imagens: queixada, zebra; para o caso da letra g as imagens/palavras são diferentes: galo e gato.
  • 3
    Ver para isso, entre outros, Hébrard (2002); Chartier (2004); Choppin (2009); Correa e Silva (2008); Frade (2010a); Souza (2015); 1Stephanou e Souza (2013; 2016).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2022
  • Aceito
    26 Jan 2023
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