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A concepção de sistema educacional

DOSSIÊ (A) - A BIOÉTICA / DOSSIÊ (B) - LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

A concepção de sistema educacional

Acácia Zeneida Kuenzer

Professora do Departamento de Planejamento e Administração Escolar, Universidade Federal do Paraná

O Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, vem mais uma vez manifestar sua preocupação com as propostas que pretendem reformar o Sistema Público de Educação.

Esta preocupação decorre tanto das formas de encaminhamento e do conteúdo da legislação relativa à educação quanto aos projetos de lei que tramitam no Conselho Nacional, os quais propõem a cobrança de mensalidades no ensino superior, a regulamentação da eleição de dirigentes ferindo a autonomia universitária e a criação do Conselho Nacional de Educação de modo a minimizar o controle da sociedade civil sobre o MEC.

Historicamente, a Universidade Pública Brasileira tem-se pautado pela defesa intransigente da reforma pública de educação em todos os graus e níveis, neste momento seriamente ameaçada pela concepção de Estado mínimo que progressivamente vem sendo implementada pelas propostas do Governo FHC.

Esta concepção, no que se refere à educação, concretiza-se através de um progressivo descomprometimento do Estado com o princípio constitucional da educação pública e gratuita em todos os níveis, a ser atingida progressivamente a partir da sua forte presença no financiamento da educação com qualidade em todos os graus e níveis.

A Universidade Pública Brasileira, coerente com os princípios que tem defendido, NÃO COMPACTUA com propostas, seja qual for sua origem (do Legislativo ou Executivo), que de alguma forma restrinjam o princípio da gratuidade através da redução do dever do Estado com a universalização da educação pública.

Da mesma forma, não há como concordar com propostas que, ao dividir o ensino fundamental em dois ciclos e ao criar a educação profissional em separado do ensino regular, cristalize a tendência histórica presente desde o Brasil Colonial, de valorizar o saber formal sobre o saber adquirido no trabalho, consolidando a velha dualidade estrutural presente no Sistema Educacional, que estabelece um via de educação geral para os que vão desempenhar as funções intelectuais na sociedade e uma via de educação profissioanal para os que vão desempenhar as funções instrumentais. Esta proposta reveste-se de maior gravidade quando constata-se que a permanência no sistema regular não é a NORMA, uma vez que dele se evadem aproximadamente 92% (noventa e dois porcento) dos estudantes da 1ª série do 1º grau até a 3ª série do 2º grau. Sair do sistema regular pe a norma; portantom duas constatações se impõe:

- em primeiro lugar, reforçar a presença do Estado para assegurar condições de ingresso e permanência;

- em segundo lugar, propor um sistema de ensino, que mais do que ARTICULE, INTEGRE as várias modalidades de educação em um sistema único com estratégias diversificadas para atender as especificidades, porém assegurando sua equivalência, de modo a permitir um fluxo harmônico e ágil, de tal modo que o trânsito entre as modalidades regular, supletiva e profissional seja possível, reconhecendo que há formas múltiplas de aquisição e elaboração do conhecimento teórico/prático.

São propostas deste tipo que AVANÇAM no rumo da construção de uma nação mais desenvolvida, melhorando os índices de educação da população para além da certificação formal, muitas vezes apenas expressão burocratizada e formalista de pseudo-alternativas de apropriação do conhecimento. Ao contrário, o compromisso que o Estado e os educadores devem assumir é com a garantia efetiva de formas de aquisição do conhecimento científico-tecnológico e sócio-histórico que expressem e o esforço da Nação para se fortalecer enquanto democrática e avançada, o que passa também pela educação do seu povo, na perspectiva da aquisição das condições necessárias ao exercício da cidadania expressa pela competência para a participação na sociedade enquanto ser político e produtivo.

Foi com essa concepção, a de reconhecer as diferentes, porém integradas formas de produção e difusão do conhecimento para além do entendimento retógrado e atrasado do privilegiamento da dimensão formalista sobre as situações concretas de aprendizagem, que fez com que os educadores brasileiros defendessem a proposta da constituição de um Sistema Nacional de Educação como estratégia avançada de democratização da educação articulada à democratização da sociedade e ao imperativo de sua inserção no mercado globalizado, não mais como colonizado (para o qual a educação mínima é suficiente) mas como participante competitivo (para o que a competência para produzir ciência e tecnologia com consciência histórica é condição necessária).

No entanto, vemos com estupefação que argumentação do Relator ao Substitutivo da LDB no Senado, Senador Darcy Ribeiro, rejeita esta proposta de forma aligeirada, sem aprofundamento, uso o argumento formalista de que a Constituição, no artigo 211, "não se refere a um sistema nacional integrado, mas sim à colaboração entre os sistemas (União, Estados, Distrito Federal e Município) para a consecução de seus objetivos" (p.7) e ainda a "individualização dos Sistemas contribui para a descentralização e democratização do ensino - meta constitucional" (p.4).

Ora, fica evidente que o Relator fala de outra coisa; em nenhum momento os educadores defenderam como concepção de Sistema Nacional um sistema unificado do ponto de vista administrativo, e centralizado da União, a agir sobre as Unidades Federadas ou Municípios. Seria vesgueira histórica este entendimento ultrapassado e conceitualmente inadequado. É evidente que a constatação dos trágicos números que nos colocam como quase campeões mundiais de analfabetismo e de deseducação da população exige, a partir de um plano nacional elaborado de forma participativa, a ação cooperativa das diferentes esferas do Poder Público - União, Estado e Município, obviamente através de ações descentralizadas na execução, mas derivadas de uma mesma política nacional compartilhada no financiamento. Nesta linha, a "autonomia" entendida como desarticulação das ações é que será irracional, no momento que o próprio Plano Decenal tem claro a melhoria do desempenho educacional só será possível através de um grande esforço nacional.

É assim que a existência de redes distintas, articuladas porém não integradas, ao constituírem sistemas distintos de educação, é uma proposta historicamente atrasada.

Em que pese a última versão do Substitutivo do Senador Darcy Ribeiro já ter resolvido algumas questões relativas à dual presente nas versões anteriores, atendendo a observações dos educadores, ainda persiste uma questão fundamental: a inscrição da possibilidade, no texto, de que as camadas mais pobres da população, freqüentem o 1º ciclo - até a 4ª série - e dirijam-se para a educação profissional, que permanece como uma vertente isolada do sistema regular. Assim é que, caso o aluno escolha esta via, para ter reconhecida sua escolaridade, deverá retornar em paralelo ao sistema - um voltado para a continuidade dos estudos, evidentemente para a classe privilegiada, e outro para os trabalhadores.

Esta proposta dual já está superada pelo próprio desenvolvimento capitalista, caracterizado pela crescente e dinâmica incorporação da ciência e da tecnologia não só no processo produtivo mas também em todas as esferas da vida em sociedade, o que passa a exigir mais educação, e com outra qualidade. Nesta perspectiva, os cursos reduzidos de formação profissional sem base sólida de educação geral, já não atendem às demandas do mundo do trabalho. Da mesma forma, já há estudos mostrando que até a escola técnica começa a ser modelo está sendo historicamente superado.

Já afirmamos no artigo anterior que em decorrência desta nova etapa de desenvolvimento capitalista, com suas novas tecnologias e formas de organização e gestão do trabalho, há uma constatação que se impõe a todos de forma inequívoca: há que formar um trabalhador de novo tipo, que não apenas saiba fazer, mas que tenha o domínio intelectual da técnica e do conteúdo, o que significa dizer o domínio dos princípios, dos fundamentos científicos que estão presentes nas novas tecnologias.

Para tanto, a extensão da educação básica se impõe, a partir do que será realizada, devidamente fundamentada em uma educação geral mais ampla, a qualificação profissional, seja na escola, nas agências de formação profissional ou no trabalho, de modo que este novo trabalhador/cidadão tenha capacidade de educar-se permanentemente, além das capacidades de abstração, flexibilidade, crítica, autonomia intelectual e moral, criatividade (Kuenzer e Gonçalves).

Há que considerar, portanto, que mesmo que a extensão da escolarização básica ao ensino médio não se concretize, a legislação deve apontar a meta a ser alcançada, como diretriz a definir os critérios e as estratégias de alocação de recursos. O Substitutivo do Senador Darcy Ribeiro, ao contrário, ao antecipar a terminalidade, institucionaliza uma situação que já está sendo superada pelas leis do mercado, que hoje determina aos estudante repetentes que se evadiram, a volta à escola pela via do supletivo, muitos deles laternativa fácil para obtenção do certificado escolar, sem garantia de apropriação do conteúdo de qualidade, particularmente na rede privada, onde a oferta desta modalidade tem se confugurado como uma interessante fonte de renda.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1995
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