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Brincar, corpo e movimento como eixos de formação de professores de crianças pequenas

Playing, body and movement as education axes in the qualification of teachers of young children

RESUMO

Este artigo é fruto da investigação “Brincar, corpo e movimento como eixos de formação de professores de crianças pequenas”, e tem como objetivo analisar o resultado da reflexão sobre o que os acadêmicos do Estágio Curricular Supervisionado de Docência na Educação Infantil, do curso de Pedagogia da Universidade de Ponta Grossa, pensam sobre o brincar das crianças nas escolas de estágio. A presente investigação tem como base teórica os trabalhos de Foucault (2007), Larrosa (2004; 2016), Fortuna (2011) e Dornelles (2001). A metodologia utilizada foi de cunho qualitativo, com uso de entrevistas, diários de campo e encontros dialógicos. Os alunos estagiários mostraram que é possível construir novas práticas interativas entre o brincar, o corpo e o movimento, e que por meio dessas práticas se constituam professores e crianças brincantes.

Palavras-chave:
Brincar; Corpo/movimento; Formação de professores; Educação Infantil

ABSTRACT

This paper resulted from the investigation “Playing, body, and movement as axes in the qualification of early childhood education teachers”, and aims to analyze the results reflection upon what students from the education undergraduate course at the State University of Ponta Grossa, who are in the supervised curricular internship in childhood education, think about children’s playing in the schools where they develop their internship. The theoretical background of this investigation includes Foucault (2007), Larrosa (2004; 2016), Fortuna (2011) and Dornelles (2001). It is a qualitative study developed using interviews, field diaries, and dialogue meetings. The interns showed that it is possible to devise new interactive practices between playing, body, and movement, and use these practices to constitute playing teachers and children.

Keywords:
Playing; Body/movement; Teachers’ education; Early childhood education

Para contextualizar o estudo

A atuação na Educação Básica, especialmente na Educação Infantil (EI), marca este artigo. Estar com as crianças nos espaços educativos permite olhar para as práticas instituídas, para as rotinas, fazeres e saberes de crianças, hoje tão naturalizados. A perspectiva de nosso olhar se instala no brincar, no corpo e movimento no contexto da formação de professores, cujos dados foram obtidos entre os anos de 2016 e 2018. Parte-se da análise curricular do Curso Pedagogia, das vozes dos alunos da disciplina de estágio de docência na Educação Infantil dos anos de 2015/2016.

A partir destas vozes, apontamos algumas possibilidades que permitem que o brincar, o corpo e o movimento da criança possam integrar a constituição de professores brincantes. As discussões apresentadas neste texto são produtos de análise tecida por meio dos registros em diários de bordo, entrevistas, questionários e conversas com tais acadêmicos.

Miradas sobre o brincar: Qual brincar? Qual corpo?

Dentre as tantas possibilidades do brincar, o olhar aqui contempla o brincar que perpassa o corpo, que traz marcas de cultura, de histórias de vida, de gênero, de cor e raça. Com esse olhar, miramos crianças e seus professores. Como brincar, por que brincar e elementos para o brincar são temas recorrentes e de grande relevância, tendo em vista que se considera a criança em sua constituição social. Entendemos como imprescindível pensar um brincar que envolva/integre esses corpos e seus movimentos, para não recairmos nas práticas restritivas do brincar.

As pesquisas de Camargo (2011CAMARGO, Daiana. Um olhar sobre o educador da infância: o espaço do brincar corporal na prática pedagógica. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2011.) apontam para as diversas restrições sobre corpos e movimentos de crianças nas práticas pedagógicas. Muitas das ações cotidianas delimitam tempos, espaços, número de brinquedos e interações. Entendemos que essas interações podem acontecer em diferentes circunstâncias, e, dentre elas, nas brincadeiras. Nestas, a criança atua com seus pares e com os adultos, em diferentes espaços, com a natureza, ou seja, em situações que permitem que elas se desafiem, corram, pulem, rolem, utilizando todas as suas capacidades motoras, sua imaginação e criatividade.

Defendemos, assim, a importância de tratar acerca do corpo/movimento no curso de Pedagogia, a fim de possibilitar a acuidade nas práticas da Educação Infantil. Berwanger (2011BERWANGER, Fabíola. Os saberes do movimento do corpo na Educação Infantil: o contexto da formação de professores nas licenciaturas em Pedagogia de Curitiba-Paraná. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011., p. 64) ensina:

Reitero que o movimento humano não se constitui propriedade da Educação Física, e nem pode ser concebido na escola de Educação Infantil como conhecimento exclusivo do profissional de Educação Física, pois as crianças utilizam-se dele a todo o momento, como um recurso empregado na compreensão do meio em que se insere, para expressar seu pensamento e também experimentar relações de comunicação com pessoas e objetos que fazem parte do seu dia a dia. Todavia, a Educação Física aparece como área do conhecimento que promove inúmeras discussões e instiga reflexões pertinentes acerca das variadas possibilidades de utilização do corpo em movimento na Educação Infantil.

Nesse sentido, consideramos que o corpo é parte das diferentes áreas de conhecimento. Assim, é fundamental aos professores que atuam com a Educação Infantil o conhecimento sobre o corpo, a história do corpo e o corpo na história, as restrições ao corpo e ao movimento. Saber sobre o disciplinamento dos corpos é papel do educador e da instituição educativa infantil, bem como as discussões sobre corpo e gênero, corpo e cultura, que não podem mais ficar invisibilizadas ou incompreendidas nos brincares das crianças. Esses brincares têm corpo, e cada corpo tem seu brincar, seu movimento.

Formar professores que pensem o corpo e o movimento integrados ao brincar requer atenção às marcas trazidas em si dessa escola que esquadrinha e disciplina, e o restringe, imobiliza e pune. A manutenção dessas ações pode ser repensada por professores, como aponta Berwanger (2011BERWANGER, Fabíola. Os saberes do movimento do corpo na Educação Infantil: o contexto da formação de professores nas licenciaturas em Pedagogia de Curitiba-Paraná. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011., p. 142): “a formação para a docência tem pouca influência sobre o que pensam, creem e sentem as alunas e elas acabam por terminar sua formação sem ter suas crenças anteriores modificadas”.

Na perspectiva de aprimoramento de si, nos amparamos em Larrosa (2004LARROSA, Jorge. Linguagem e educação depois de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.; 2016), ao tratar do significado da experiência que toca e mobiliza, e, a partir dela, traremos alguns dados da pesquisa para refletirmos sobre o que dizem os pesquisados a respeito das experiências formativas quanto ao brincar, como falam da relação entre o brincar, o corpo e o movimento, da contribuição do brincar e das experiências/reflexões/questionamentos provenientes do Estágio Curricular Supervisionado de Docência na Educação Infantil.

O espaço-tempo da pesquisa, formas e registros

O espaço escolar que se adentra por ocasião dos estágios, como apontamos acima, possibilita aos acadêmicos registrar, rabiscar e questionar acerca de informações, refletindo sobre como se constitui, se organiza e se trabalha no processo de formação inicial das crianças. Nesse sentido, o registro feito em seu diário de bordo é um importante instrumento de compreensão para se pensar o processo de formação do acadêmico/professor. Constitui, portanto, uma ferramenta de registro não só de suas impressões/experiências, mas também dos saberes dos tempos vividos com as crianças, dos espaços educativos e das práticas construídas nesse cotidiano.

Os registros e as reflexões elaborados sobre o brincar, corpo e movimento realizados em seu diário permitem ao futuro professor a aproximação entre teoria e prática, a reestruturação e a aprendizagem de conceitos tratados durante a sua formação.

Diário de bordo ou diário de campo. O diário de campo consiste no registro completo e preciso das observações dos fatos concretos, acontecimentos, relações verificadas, experiências pessoais do profissional/investigador, suas reflexões e comentários. O diário de campo facilita criar o hábito de observar, descrever e refletir com atenção sobre os acontecimentos do dia de trabalho. Por essa condição, ele é considerado um dos principais instrumentos científicos de observação e registro e, ainda, uma importante fonte de informação para uma equipe de trabalho. [...]. Os fatos devem ser registrados no diário o quanto antes após o observado, para garantir a fidedignidade do que se observa [...] (FALKEMBACH, 1987FALKEMBACH, Elza M. F. Diário de campo: um instrumento de reflexão. Contexto e Educação, Ijuí, ano 2, n. 7, p. 19-24, 1987., p. 19-24).

No que se refere ao tema deste estudo, uma das acadêmicas participantes1 1 Atendendo aos critérios éticos, os nomes das estagiárias apresentadas neste estudo foram inventados. Todas as alunas autorizaram sua participação e deram seu assentimento para uso na pesquisa, conforme o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCE) - março de 2015. da pesquisa escreveu, em seus registros:

[...] eu nunca tive oportunidade de observar o brincar como prática pedagógica, a qual é fundamental para o desenvolvimento da criança. O brincar sempre era pensado como atividade livre, se sobrasse tempo no planejamento, e sem direcionamento pedagógico. (Diário de bordo - Gabriella).

Elementos desse diário nos remetem a Zabalza (1994ZABALZA, Miguel Angel. Diários de aula: contributo para o estudo dos dilemas práticos dos professores. Porto: Porto Editora, 1994.), quando afirma que os diários constituem registros dos professores sobre o que vai acontecendo em suas aulas e apresentam duas variáveis básicas: a riqueza informativa - é tanto mais rico quanto mais polivalente for a informação contida, enlaçando o objetivo descritivo e o reflexivo pessoal - e a sistematicidade das observações recolhidas. Para o autor, enquanto o professor escreve sobre a sua prática, pode reconstruir sua atuação profissional, por meio da reflexão.

De tal modo, o diário de bordo construído nas práticas do curso pode contribuir para que os registros das experiências de inserção/observação possibilitem a reflexão e o redirecionamento de práticas/posturas a serem pensadas e delineadas para sua docência.

Sobre os registros das experiências de estágio, Drumond (2013DRUMOND, Viviane. Estágio e formação de docentes de educação infantil em cursos de Pedagogia. Olhares, Guarulhos, v. 1, n. 1, p. 183-206, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.34024/olhares.2013.v1.85. Acesso em: 15 jun. 2022.
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) considera que essa construção escrita, juntamente com os seminários de estágio, validam a importância da observação, documentação, reflexão e discussão em âmbito coletivo, como parte do processo de formação de professores, para a construção de saberes sobre crianças. Por meio deles, os alunos-professores podem vir a conhecer não só reflexões sobre sua aprendizagem e experiências, mas também a questionar e reelaborar sua prática, bem como retomar suas vivências, como aluno-professor.

Sobre o estágio de docência e as experiências com o brincar, o corpo e o movimento

O estágio curricular, em nosso contexto de formação de professores, visa que o acadêmico em formação se atente para particularidades da criança pequena, bem como para o processo educativo da criança, vinculado às práticas desencadeadas na instituição de Educação Infantil, para que essa formação possa ser, como defendem Rocha e Ostetto (2008ROCHA, Eloisa Acires Candal; OSTETTO, Luciana Esmeralda. O estágio na formação universitária de professores de Educação Infantil. In: SEARA, Izabel Christine et al. (org.). Práticas pedagógicas e estágios: diálogos com a cultura escolar. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2008.) e Peroza e Camargo (2019PEROZA, Marilúcia Antônia de Resende; CAMARGO, Daiana. A experiência de encontro entre sujeitos aprendentes: aspecto da formação docente vivenciado no estágio supervisionado em docência na educação infantil. Educação, ciência e cultura, Canoas, v. 24, n. 1, p. 85-98, 2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.18316/recc.v24i1.4595. Acesso em: 15 jul. 2023.
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), uma possibilidade de encontro adulto-criança.

Ao longo dos anos, ao pesquisarmos sobre crianças e infâncias, observamos como o olhar particularmente para o brincar, o corpo e o movimento se constroem, a fim de que o professor em formação pudesse vivenciar práticas que o instigassem a olhar para a amplitude do brincar, para um corpo em movimento. Assim, corpo também é linguagem. Estudos de Garanhani (2010GARANHANI, Marynelma Camargo. O movimento do corpo na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental: uma linguagem da criança. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Ensino fundamental de nove anos: orientações pedagógicas para os anos iniciais. Curitiba, 2010.) e Berwanger (2011BERWANGER, Fabíola. Os saberes do movimento do corpo na Educação Infantil: o contexto da formação de professores nas licenciaturas em Pedagogia de Curitiba-Paraná. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.) enfatizam que a linguagem constitui algo que se institui frente à premissa de que, muito antes da linguagem verbal, é pelo corpo que a criança se comunica, expressando sentimentos, sensações e necessidades. Ainda de acordo com as autoras, na prática docente com crianças, o brincar, são um princípio pedagógico responsável pela integração das diferentes áreas do saber. Dessa maneira, o movimento do corpo está diretamente relacionado às possibilidades do brincar.

Com base nas indagações acerca das experiências com o brincar no espaço/tempo do Estágio de Docência na Educação Infantil, refletimos sobre os registros provenientes da análise dos diários de bordo. Tais dados revelam elementos significativos para a discussão sobre formação e experiências de brincar.

Neles, destaca-se que os tempos de estágio possibilitaram experiências pouco diversificadas quanto a brincar, corpo e movimento, por serem marcadas, na maioria das vezes, pelo “brincar livre ocupando tempos livres”. Como aponta Claudia,

[...] diferente da amplitude pedagógica que o brincar dispõe para a docência na educação infantil, minha experiência vivenciou práticas restritas e de formas pouco direcionadas ao brincar na visão da professora regente, onde o estágio que foi realizado era utilizado como preenchimento do tempo ocioso das crianças. (Diário de bordo - Claudia)

A recorrência desse brincar livre, abordada por Claudia, já foi apontada por Camargo (2011CAMARGO, Daiana. Um olhar sobre o educador da infância: o espaço do brincar corporal na prática pedagógica. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2011.), quando discute os fundamentos da criança protagonista e produtora de cultura, entendendo a EI como espaço de convivência e desenvolvimento pleno. Esse formato sempre “livre” de brincar pouco contribui para atender as necessidades e especificidades da criança pequena, bem como para a exploração/ampliação da linguagem corporal.

Para Martins Filho (2013), ao refletir sobre o tempo na EI, aponta que esse é ora apressado, ora sem nada para fazer. Assim, temos como exemplo o momento do parque, no qual destaca que as professoras “ficavam muito tempo na inércia ou apenas controlando e impedindo as crianças de fazerem algumas coisas” (MARTINS FILHO, 2013MARTINS FILHO, Altino. Minúcias da vida cotidiana no fazer-fazendo da docência na educação infantil. 2013. 305 f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013., p. 144). O autor problematiza também a liberdade, apontando que são os professores que escolhem os brinquedos para brincarem, ou quando é o adulto que direciona as brincadeiras e ações. Nesse âmbito, pergunta-se: que hora do brinquedo livre é essa?

Embora o termo livre, utilizado pelos acadêmicos, retrate a nomenclatura destinada ao brincar nas instituições de EI, ponderamos quanto ao entendimento desse “brincar livre”. Pensamos aqui na definição de livre. O Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (FERREIRA, 2008FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 4. ed. Curitiba: Positivo, 2008., p. 398) apresenta definições como “que não está sujeito a algum senhor; que tem o poder de decidir por si mesmo; licencioso; espontâneo, natural. Que não tem limites, imenso, infinito”.

Observamos o quão importante é pensarmos no “livre” enquanto poder de decisão, tendo em vista que as crianças, ao brincar, ficam submetidas aos espaços delimitados e a elementos restritos, que vão contra a necessidade da criança pequena, como já apontavam os escritos de Camargo (2011CAMARGO, Daiana. Um olhar sobre o educador da infância: o espaço do brincar corporal na prática pedagógica. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2011.) e hoje retornam à discussão, agora sob os olhares/discursos dos alunos:

Como em todas as outras observações, não pude observar um brincar mediado, que tivesse algo intencional. O professor tem totalmente o seu papel voltado a cuidar das crianças e em raros momentos está presente, como mediador de conhecimentos. A única coisa que consegue fazer com tantas crianças é no máximo uma música, o resto fica por conta dos brinquedos e brincadeiras livres. (Diário de bordo - Nicole).

Muitas vezes, a falta de envolvimento e atenção dos professores ao brincar é tratada também por outras acadêmicas, que corroboram os escritos de Nicole, retomando a ideia de livre como descompromisso do adulto ou a serviço da sua rotina e organização. Para Bianca, “o brincar é desprezado pelos professores, ele é tido como um momento de extravasar, quando eles ficam livres e não têm nenhum direcionamento, assim dando pouca importância, embora o discurso dos professores seja o contrário.” (Diário de bordo - Bianca).

Já os escritos de Camila indicam “o brincar como passatempo, matar tempo em que elas deixavam as crianças brincando, faziam outras coisas” (Diário de bordo - Camila), situação em que se constata o brincar preenchendo espaços do cotidiano da EI, a fim de atender as necessidades do professor, sem preparo, possibilidade de escolhas e envolvimento. A acadêmica observa a repetição dessas práticas durante todo o período de estágio. Quanto ao corpo, Camila escreve: “o corpo e movimento era deixar fora, só correr. No pátio, no parque, sem atividades de dança, expressão, teatro, a própria música, nada de perceberem o corpo e o que podiam fazer” (Diário de bordo - Camila).

As estagiárias ressaltam o brincar como recreação e a inquietação quanto à fragilidade das práticas experienciadas, e falam de outras atividades corporais que poderiam compor suas práticas pedagógicas na EI. Para os alunos pesquisados, pensar e refletir sobre essa prática pode tornar-se uma experiência diferenciada sobre o brincar na EI. Experiência que em algum momento os desestabilizava e, de certo modo, poderia contribuir para impulsionar outras e novas práticas sobre o brincar.

Isso que nos leva a problematizar: que outras possibilidades de brincar poderiam ser exploradas? Que outra consciência de si pode constituir a criança, na medida em que pode ter outras experiências? Como tratar, ou não, da experiência ensinada por Larrosa, ou seja, aquela que move, que muda, “que me passa”? Não cabem neste artigo todas as respostas, mas essa inquietação nos remete a defender a formação de professores brincantes, crianceiros e perguntadores, pois, segundo Dornelles (2001DORNELLES, Leni Vieira. Na escola infantil todo mundo brinca se você brinca. In: CRAIDY, Carmem; KAERCHER, Gládis E. (org.). Educação infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001., p. 103): “Garanto que todo mundo brinca se você brinca”.

Muitas vezes, os professores não dão conta que as crianças, por serem sujeitos brincantes, fazem uso de uma “linguagem corporal expressa na motricidade da criança [e que essa] não deve ser posta de lado, como se as aprendizagens significativas fossem apenas vinculadas à linguagem escrita ou ao domínio intelectual” (OLIVEIRA, 2010OLIVEIRA, Nara Rejane Cruz de. Corpo e movimento na educação infantil: concepções e saberes docentes que permeiam as práticas cotidianas. 2010. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 22).

Da mesma forma, Freitas (2008FREITAS, Amanda Fonseca Soares. Corpo, movimento e linguagem: em busca do conhecimento na Escola de Educação Infantil. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.) contribui com as discussões referentes à infância/corpo/linguagem ao considerar a observação do corpo da criança na escola de Educação Infantil.

As diferentes expressões do corpo da criança em busca do conhecimento acontecem como linguagem e esta pode se manifestar em gestos, em movimentos intencionais em direção aos objetos, aos colegas e, com base neles, nas falas, nas mudanças de olhar e de sentimentos. Todas essas expressões estão permeadas de significados e sentidos históricos, sociais e culturais. (FREITAS, 2008FREITAS, Amanda Fonseca Soares. Corpo, movimento e linguagem: em busca do conhecimento na Escola de Educação Infantil. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008., p. 54, grifo nosso).

De algum modo, a incompreensão quanto ao brincar, corpo e movimento relatado pelos acadêmicos sobre o brincar livre distancia-se do que entendemos como linguagem, protagonismo, apropriação e construção de cultura, exploração de suas possibilidades para e pelas crianças. De algum modo, essas ações se repetem sempre da mesma forma, com as mesmas estruturas e em mesmas condições de preenchimento de tempo livre na rotina da EI. Ou seja, repete-se uma prática pedagógica adultocêntrica, cujos interesses e tempos são organizados para atender a necessidade do adulto. Esse brincar trata mais da liberdade ao adulto do que da criança, um brincar como atividade descomprometida, cuja prática está pautada em ações de preenchimento dos tempos da rotina escolar.

Tratamos sobre a experiência proveniente da prática e o anseio de oferecer novas alternativas para as crianças, discutidas e delineadas no processo de planejamento da docência com os acadêmicos. Atentamos para a ausência de possibilidades de movimento nas ações com as crianças. Como aponta Camila, “Na observação da docência, [o brincar] fica um pouco de lado. O corpo em movimento também não se é muito estimulado, a questão prática da brincadeira e do corpo em movimento. O que eu percebo é que não é estimulado.” (Diário de bordo - Camila).

É importante observar que não estamos em oposição ao brincar livre, mas discutimos o entendimento desse brincar, tendo em vista a riqueza do brincar pelo brincar, o explorar espaços, materiais, relacionar-se, o que parece estar limitado nas situações descritas. Destacamos as contribuições de Dornelles (2001DORNELLES, Leni Vieira. Na escola infantil todo mundo brinca se você brinca. In: CRAIDY, Carmem; KAERCHER, Gládis E. (org.). Educação infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001.), quando a autora trata da importância do brincar pelo brincar, do prazer inerente a brincar, que se constitui também de olhar, curtir, do experimentar que integra a infância, na construção das crianças brincantes.

A forma do brincar livre, tal como foi observado na pesquisa, está estruturada apenas em regulações, controle, segmentação dos sujeitos, dos tempos e dos espaços e na ausência de recursos que ampliem as possibilidades de brincar. Assim, a “liberdade” descrita nesse modelo de brincar, apontado pelos alunos estagiários, parece ir ao extremo da não diretividade, da compreensão equivocada, apresentando-se rotineiramente da mesma maneira.

É ponto fundante para pensar o brincar, o corpo e o movimento, uma compreensão, por parte do professor de EI, do que são as especificidades da criança e da Educação Infantil, que incluem a consciência sobre a necessidade de se atender aos Direitos da Criança de participação, de cuidado e proteção. Drumond (2016DRUMOND, Viviane. A centralidade do estágio na formação de professores(as) de Educação Infantil. In: CANCIAN, Viviane Ache; GALLINA, Simone Freitas da Silva; WESCHENFELDER, Noeli (org.). Pedagogias das infâncias, crianças e docências na Educação Infantil. UFSM, Centro de Educação, Unidade Ipê Amarelo. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2016.) enfatiza a complexidade de conhecimentos envolvida no formar professores de crianças pequenas, com características peculiares que extrapolem o modelo do ser professor da escola.

Para Camila, o conceito de livre abrange também a espontaneidade, o não ter limites, o ser imenso, infinito. Mesmo denominado livre, a aluna nos aponta restrições, limitações e controle sobre o brincar, tratando também da restrição de material e de escolha da criança:

[...] professora falava que era momento de brincadeira livre, mas ela não dava oportunidade das crianças terem autonomia de escolher o que brincar, de naquele momento ver o que adaptava à brincadeira, se era fora, se era dentro da sala, o que podia fazer... A professora dava os brinquedos, geralmente pecinhas no chão, e esse era o brincar deles, então, assim, o corpo e o movimento, o brincar em si, não era valorizado. (Entrevista - Camila).

Por outro lado, as entrevistas e os diários de bordo nos mostram também outras formas de controle sobre as crianças que foram vivenciadas pelos estagiários, como a restrição dos espaços e as ordenações de brincar sentados, além do fato de ninguém saber o paradeiro da chave das salas de brinquedo e parques trancados. Dentre tantos relatos, Jéssica afirma: “Fomos para o pátio, a professora falou para que não levantassem e jogou uma caixa de brinquedos para as crianças brincarem” (Diário de bordo - Jéssica).

O registro de Jéssica remete ao “esparrama-brinquedo” evidenciado nos estudos de Camargo (2011CAMARGO, Daiana. Um olhar sobre o educador da infância: o espaço do brincar corporal na prática pedagógica. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2011.), demarcando a ausência de possibilidades de brincar no espaço externo da EI. A limitação do brincar ocorre pela repetição constante dos recursos e a ordem de permanecer sentado. Vale ressaltar que, no dia observado, ocorreu um certo movimento de resistência: as crianças corriam para todos os lados, gerando uma situação tensa e desgastante ao professor, devido ao fato de não conseguirem desfrutar das muitas possibilidades do brincar. O controle e a restrição de materiais e espaços aparecem também nas respostas de Maria Luiza:

[...] com pecinhas, uma maneira assim bem livre de as crianças brincarem. Apesar dessa brincadeira ser livre, as crianças tinham que obedecer a certas regras, então, quando a brincadeira era de pecinha, tinha que continuar brincando na sua mesa, não poderia levantar, brincar no chão, construir assim em grupos, era uma coisa bem restrita. (Questionário - Maria Luiza).

Os registros de Fernanda apontam o brincar na sala de aula:

Nesse momento, os dois Infantil V se juntam para que as professoras possam fazer os seus 15 minutos de intervalo, então, os alunos da outra sala se sentam no tapete e brincam com pecinhas; os demais permanecem brincando nas suas mesinhas com outro tipo de pecinhas de montar. Depois do intervalo da professora, as crianças continuam brincando com as mesmas pecinhas, enquanto ela faz outra atividade, desenha sobre uma cartolina pintada, na parte da manhã. (Diário de bordo - Fernanda).

As citadas “pecinhas” são os blocos de montar, nas atividades que se repetem dia após dia nas práticas pedagógicas vivenciadas, restritas em quantidade por criança, delimitadas em espaço de brincar, sempre na mesa e sentadas. A questão é onde ficam as possibilidades criativas, o movimento e o corpo no brincar, quando, além dos poucos blocos (3 ou 4), não são permitidas trocas entre as crianças, tampouco a exploração das outras peças disponíveis na sala de aula. Verifica-se que o determinado brincar parece servir apenas para distrair as crianças enquanto a professora se dedica a outras atividades, desperdiçando muitas possibilidades de interação com elas.

Do diário de Simone, trazemos a seguinte situação: “A professora disse que eu desse só umas pecinhas e não como eu fui fazer, despejar a caixa para eles. As crianças ficaram muito tempo nessa atividade, nem dando importância para ela, pois, como ganharam poucas peças, um tomava do outro, levantavam da cadeira […] (Diário de bordo - Simone).

Percebemos que a ação do professor tende a controlar também a ação do estagiário, a fim de que a rotina e os modelos não sejam “desviados”, de tal forma que o instituído na Educação Infantil cria uma carapaça, um engessamento de práticas e atitudes que viraram tradição, norma. Passam a ser um fazer muitas vezes sem sentido, que carece de reflexão e meios de traçarmos novas possibilidades de brincar, para além do professor, com e para as crianças.

Quanto às formas instituídas para o controle e o disciplinamento no espaço escolar, aqui vistas na perspectiva do controle ao corpo que quer brincar Ó (2003, p. 122) aponta que

[...] postular o fim do castigo corporal e da humilhação não significou restrição ou economia de meios. Pelo contrário, a escola moderna tratou de ampliar e diversificar, levando a disciplina o mais longe possível, quer dizer, exactamente até àquele ponto em que ela não fosse mais necessária.

Identificamos na pesquisa que as formas de controle estão imbricadas nas ações cotidianas da EI, restringindo o brincar. E, com isso, imita-se o corpo, ao definir o espaço de brincar à mesa e ao estar sentado; ao restringir as relações de troca e construção coletiva, vigiadas pelo olhar da professora, que controla e interfere a cada tentativa infantil de arriscar novas alternativas. E, nesse âmbito, as imposições relatadas pelos acadêmicos, de algum modo, reduzem as possibilidades criativas de construção, exploração de materiais em suas formas, tamanhos etc.

Para tanto, trata-se de restringir espaço e corpo em prol do silêncio, da organização posta pelo adulto e da disciplina considerada relevante, como bem discute Foucault (2007FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 34. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.). Para Dornelles (2001DORNELLES, Leni Vieira. Na escola infantil todo mundo brinca se você brinca. In: CRAIDY, Carmem; KAERCHER, Gládis E. (org.). Educação infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001.), na escola, muitas práticas tendem ao controle disciplinar, com a divisão do tempo marcada pela rotina, corpos distribuídos em mesas e filas, atividades controladas pela professora, vigilância das brincadeiras e do recreio. E, assim, “Muitas vezes, no cotidiano da Educação Infantil, não suportamos a mobilidade, a atividade constante das crianças, e queremos que elas suportem a nossa imobilidade, a nossa inércia.” (DORNELLES, 2001DORNELLES, Leni Vieira. Na escola infantil todo mundo brinca se você brinca. In: CRAIDY, Carmem; KAERCHER, Gládis E. (org.). Educação infantil: pra que te quero? Porto Alegre: Artmed, 2001., p. 107).

O controle aparece também nestes relatos que seguem:

Durante meu estágio, ficou claro que as professoras possuem uma concepção de brincar equivocada, ou seja, na maioria das vezes, eu vi as crianças brincando de maneira livre, sem mediação nenhuma da professora. A professora ficava observando pra elas não brigarem, mas em nenhum momento mediava ou dirigia aquela brincadeira. As crianças tinham o hábito de chegar no pátio e sair correndo, e, durante a intervenção, tive muitas dificuldades de atividades de roda, porque o pátio pra elas é chegar lá e sair correndo. (Diário de bordo - Bianca).

Gritos das professoras e brigas das crianças eram comuns nos tempos de brincar livre. Eles não tinham o que fazer, pareciam cansados. (Questionário - Betina).

Considerando as relações estabelecidas entre as crianças, a disputa por brinquedos pode ser um meio de aprendizagem de si e do outro, nem sempre aproveitada pelos professores, cujas ações de interferência tendem a separar os envolvidos sem uma mediação do conflito, sem entendimento das razões e sem a escuta das crianças. Como nos chama a atenção Verônica, em suas observações: “O momento da brincadeira livre é também o momento da confusão, da briga e do choro. Várias vezes as crianças se desentenderam, especialmente os meninos. Nessas situações, a professora procurava acalmá-los” (Diário de bordo - Verônica).

Tais discursos vêm marcados pelo controle das brigas, do choro, das diferentes formas de manifestação da criança, de seu desagrado com a situação ou o cansaço que pode sentir da rotineira brincadeira sem desafios, acompanhado da rotinização do dia todo na EI. Muitas vezes, há controle do choro que enlaça a disputa de um brinquedo, que carece de olhar atento e mediação, se necessários. Os conflitos perpassam o corpo, mexem com sensações e emoções e, assim, a EI é também um espaço de aprender a resolver conflitos.

O disciplinamento dos corpos também ocorre ao repetirem-se determinados comportamentos, em delimitados espaços, por meio desse brincar livre. Sobre a delimitação dos espaços/tempos das crianças, Moreira e Vasconcellos (2012MOREIRA, Ana Rosa Picanço; VASCONCELLOS, Vera Maria Ramos de. Formação do educador/professor de creche: as questões da inserção e do arranjo espacial. Infâncias e Crianças: lugares em diálogos. Cuiabá: EduFMT, 2012.) discutem que estes são geralmente organizados tendo como referência o mito da infância universal, com estrutura hierarquizada, uniforme e homogênea, a qual define os territórios voltados à infância, em que todas as crianças devem realizar todas as atividades ao mesmo tempo, como ir ao banheiro, alimentar-se, dormir.

Outra abordagem relevante trazida para a discussão diz respeito a como essa forma de brincar implícita no cotidiano das crianças reflete nas ações dos acadêmicos durante a docência:

Em relação à brincadeira da amarelinha, fiquei decepcionada com a falta de coordenação motora das crianças e com o conhecimento das regras do jogo, pois é uma brincadeira própria da idade e a escola possui uma amarelinha no fundo do pátio, ou seja, a professora não aproveita a oportunidade para ajudar no desenvolvimento das crianças. (Diário de bordo - Jéssica).

Constatamos que a rotinização afeta e marca duramente a constituição de si de muitas crianças que, de tão moldadas ao formato de brincar no cotidiano, não se permitem outras possibilidades de exploração, desafio, imaginação. Podemos pensar que outras crianças resistem a qualquer tipo de interferência, em oposição a um novo controle, em meio a tantas formas de domínio a que já estão submetidas?

Sobre as escritas dos acadêmicos, nos questionamos e discutimos com eles sobre o que se refere à cultura infantil, ao direito de brincar, à construção de conhecimentos. Observamos, por exemplo, que o jogo de amarelinha é uma brincadeira tradicional, que de ponta a ponta do Brasil integra o brincar de crianças dentro e fora da escola. Brincar de amarelinha pode garantir o que ensina Garanhani (2010GARANHANI, Marynelma Camargo. O movimento do corpo na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental: uma linguagem da criança. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação. Ensino fundamental de nove anos: orientações pedagógicas para os anos iniciais. Curitiba, 2010.), quando ressalta as possibilidades corporais que tal brincadeira poderia propiciar às crianças. Ela destaca que é por meio dessas práticas que na pequena infância são trabalhadas ações de deslocamento do corpo, manipulação de objetos e equilíbrio.

Possibilidades sobre o brincar, a formação, os vínculos e a interação

Ao tratarmos das experiências sobre o brincar corpo e movimento, vividas durante a pesquisa, vislumbram-se novas possibilidades sobre esses três eixos e a formação dos nossos acadêmicos. A partir dessa pauta de discussão, percebemos o diferencial do professor e as relações entre adulto e criança quando perpassadas pelo brincar:

Eu vi uma professora sentada com eles, conversando sobre o que eles estavam fazendo e prestando atenção no que a criança estava produzindo ali com aquele giz. As outras professoras raramente davam atenção quando as crianças vinham contar algo. Largavam bola, boneca, giz e diziam ‘vai lá brincar’, eles não têm esse espaço de brincadeira, estar junto, de comunhão com o professor. Cada um por si. ‘Corram, façam o que quiser’. Momento largado com poucas práticas diferenciadas. (Diário de bordo da pesquisadora - Helena).

Para Helena, o vínculo entre o adulto e a criança e o estar juntos se sobreleva quando percebe, em meio a várias professoras, a ação diferenciada do olhar, do importar-se com a criança, tão necessários no cotidiano da Educação Infantil. Constata ainda que ser professor brincante vai além da interação física no brincar, ser brincante é estar por inteiro, ouvir, adentrar na fantasia da criança.

As abordagens dos acadêmicos e as discussões traçadas os fizeram entender que o estágio pode constituir-se como um amplo campo de pesquisa, em encontro com o outro que brinca e que precisa brincar de diferentes formas, com diferentes materiais e em diferentes espaços.

Observamos que os alunos-professores, durante a pesquisa, também foram afetados pelos modos de ser professor brincante. E, assim, conseguiram olhar e inquietar-se com o brincar vivenciado nas escolas de estágio, afetar-se com os modelos postos no cotidiano. Quem sabe essa inquietação não possa ajudá-los a constituir-se como professores capazes de trazer em suas ações o diálogo, a pesquisa, a problematização, o aprimoramento da formação no que diz respeito a novas construções teórico-práticas do brincar, do corpo e do movimento no campo da Pedagogia.

Em diferentes momentos, pudemos observar que os seus discursos demonstravam um estranhamento e até indignação ao vivenciarem práticas muito distantes do que vem sendo fundamentado acerca da teoria-prática no espaço de formação da sala de aula na universidade. Expressões como “no meu entender”, “diante do que estudamos”, “brincar desprezado” e outras apontam para um distanciamento teórico-prático. Assim, como o contexto dos estágios havia mostrado aos acadêmicos a necessidade de aprimoramento das discussões, estudos e reflexões das práticas, também descobriam outras possibilidades de ser professor de criança, de ser um professor brincante.

Outro viés importante para pensar as possibilidades do brincar, do corpo e do movimento, alinhadas ao campo da Pedagogia/Educação Infantil, é o reconhecimento indissociável dessas categorias, tendo em vista os eixos estruturantes da EI e os princípios a serem respeitados nas propostas pedagógicas, demarcados nas Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil (DCNEIs) (BRASIL, 2010), sem perder de vista a riqueza das relações criança-criança e criança-adulto.

Atentos aos princípios éticos, políticos e estéticos que fundamentam a EI, entendemos como necessário e importante que o professor se sinta responsável pelo corpo e pelo brincar, e instigado a arriscar-se em novas práticas, novos estudos, outras formas de se brincar com as crianças no cotidiano da escola infantil.

Tanto quanto o aprimoramento das investigações, os conhecimentos já produzidos sobre crianças, infâncias, Educação Infantil e culturas infantis precisam adentrar outros espaços dos currículos de formação de professores, e com isso possam apresentar os avanços teóricos sem esquecer que os fundamentos que embasam a educação de crianças hoje se constituíram com base em muitos saberes construídos ao longo de estudos e teorias sobre as infâncias.

Fundamentadas nas práticas vividas pelos acadêmicos em campo de estágio e pelas vozes que ecoam de seus registros, nos sentimos fortalecidas a defender ainda mais o brincar, o corpo e o movimento como fundamentais na formação de professores. E, assim, alinhá-los aos conhecimentos construídos, ou seja, aproximar os apontados pelos acadêmicos, as necessidades de continuarmos sempre aprofundando as questões teórico-práticas que emergem ao longo de nossas discussões e análises do trabalhado com as crianças na escola.

As vozes dos acadêmicos indicam a necessidade de aprofundamento de estudos e pesquisas que tratam sobre e da criança, reconhecendo as especificidades da Educação Infantil. A necessidade de trabalharmos cada vez mais para a desconstrução de modelos escolarizantes que povoam os discursos e as práticas da Educação Infantil. A necessidade de se buscar aperfeiçoar as lentes de nosso olhar, disponibilizando outros olhares, como forma de se brincar com e junto às crianças. O pensar/discutir/olhar a criança pequena precisa integrar o currículo de formação nas diferentes áreas, para que tratemos dessa criança e da Educação Infantil em sua inteireza, com sensibilidade e comprometimento.

Ao dialogarem sobre o conhecimento produzido no que se refere à criança, à infância, ao brincar, ao corpo e ao movimento, articulado às experiências, aos dizeres, fazeres e registros, os acadêmicos de Pedagogia buscaram entender como esse tema produzia modos de ser crianças brincantes. Isso colaborou para que repensassem e retomassem seus registros, seus relatos de campo, bem como seu processo formativo.

Destacamos a importância do reconhecimento da especificidade da Educação Infantil, da valorização da criança como produtora de cultura, das relações adulto-criança na Educação Infantil, as quais compreendem a capacidade de o adulto-professor constituir-se como professor-brincante, tal como ensina Fortuna (2011FORTUNA, Tania Ramos. A formação lúdica docente e a universidade: contribuições da ludobiografia e da hermenêutica filosófica. 2011. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.), para possibilitar que os alunos-professores tenham a oportunidade de olhar o brincar, deixar brincar e brincar junto com as crianças.

Sobre o brincar e as crianças, tentamos mostrar, em nossas conversas, como o brincar, o corpo e o movimento são categorias indissociáveis. Podemos afirmar, com base nas discussões da pesquisa, que o corpo está integrado ao brincar, o corpo é movimento. A criança, ao brincar, brinca com corpos, o seu, o dos brinquedos, o dos outros, num movimento que constrói, cria e ensina. Esses corpos-movimentos estão presentes no seu brincar quando imitam, fazem gestos e mímicas, quando escolhem brinquedos (este ou aquele boneco, a roupa que veste...), quando se fantasiam. Movimento de mãos e corpos que se tocam, brincam na circularidade das rodas cantadas, se tocam e cruzam no pique-esconde, se movimentam e saltam quando pulam, rolam, sobem, descem nas danças, teatros, mímicas etc., e se expressam fazendo uso de suas diferentes linguagens corporais.

Compreendemos que o brincar e os corpos muito nos dizem das crianças, suas culturas e experiências. É necessário tratar de modo diferente o brincar, o corpo e o movimento das crianças. Ao se inventarem novos modos de ser brincante, podemos refletir sobre as questões de gênero, de raça e de geração que integram o brincar, garantindo uma educação antirracista e sem tanto preconceito. Brincar e garantir com professores e crianças o espaço de discussão sobre o ser brincante nos espaços da formação de professores. Estar atento às possibilidades e resistências no âmbito das práticas com crianças, no intuito de se dialogar sobre a naturalização do que se define como aquilo que é de menino ou de menina, ainda tão presente nos espaços educativos. Isso ainda pode ser encontrado nas cores, nos brinquedos e nas brincadeiras das crianças na escola. Observamos que esses espaços e objetos carecem de reflexão sobre as relações que estabelecemos, sobre quem formamos e o que queremos dizer a esses alunos-professores quanto a seus papéis sociais, que por vezes se distanciam do mundo real.

Considerações finais

Ao se olhar para os relatos provenientes do Estágio de Docência na Educação Infantil que compuseram a pesquisa, buscamos possibilidades de articulação entre conhecimentos produzidos, construídos pelos acadêmicos ao longo do curso, e as práticas referentes ao brincar, ao corpo e ao movimento. Estudantes que tiveram que lidar com estranhamentos, questionamentos e naturalização de alguns comportamentos e práticas, que embasam no trabalho nas escolas de Educação Infantil. Estudantes que, ao problematizarem as questões apresentadas na pesquisa, tiveram que refletir sobre a imprescindibilidade do estudo sobre o brincar, sobre teorias que tratam do corpo e movimento como eixos de formação para a atuação com a criança pequena.

Tais análises foram tecidas por meio dos registros em diários de bordo, entrevistas e questionários que retrataram olhares e vivências tanto dos períodos de observação quanto na docência. Estivemos atentos a esses olhares, às vozes dos acadêmicos e ao que dizem de si como professores em formação, seus conhecimentos e suas experiências de atuação na Educação Infantil, que entendemos como fundamentais para vivenciarem/propiciarem outras maneiras de brincar com crianças e reconhecer todas as possibilidades do brincar.

De algum modo, os acadêmicos do Curso de Pedagogia nos indicaram como central nesta pesquisa o quanto ainda se faz necessário discutir, pensar, refletir sobre a criança. Falar, olhar, discutir sobre o brincar e suas minúcias no cotidiano da EI, repensando sobre o enlace entre brincar, corpo e movimento e a compreensão necessária dessa relação para adentrarmos com mais sensibilidade e competência na produção de crianças brincantes. Os alunos estagiários mostraram que é possível que se construam novas práticas interativas entre o brincar, o corpo e movimento e que, por meio dessas práticas, se constituam professores e crianças brincantes. Reiteramos, assim, o papel e a formação do professor brincante como modo de qualificar cada vez mais não só as aprendizagens sobre o brincar, o corpo e o movimento na escola de crianças pequenas, mas também o trabalho pedagógico na Educação Infantil.

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    Atendendo aos critérios éticos, os nomes das estagiárias apresentadas neste estudo foram inventados. Todas as alunas autorizaram sua participação e deram seu assentimento para uso na pesquisa, conforme o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCE) - março de 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2020
  • Aceito
    24 Mar 2023
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