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A hermenêutica na pesquisa educacional: validade e demarcação do conhecimento

Hermeneutics in educational research: validity and demarcation of knowledge

RESUMO

O presente artigo propõe uma reflexão crítica acerca das potencialidades e limites da hermenêutica como instrumento investigativo, considerando-se a rigorosidade e a vigilância epistêmica com o campo educacional. O estudo resulta de abordagem metodológica bibliográfica de perspectiva analítica e hermenêutica. Entre as pretensões deste texto, considera-se a possibilidade de ampliar as reflexões e problematizações sobre a hermenêutica como método investigativo. A pesquisa evidencia que, para a investigação em perspectiva hermenêutica, torna-se fundamental a formação teórico-epistemológica do pesquisador. Ademais, destaca-se, na arte interpretativa, o processo comunicativo intersubjetivo dialógico como nuclear. Partindo da revisão crítica da formação em pesquisa no campo educacional, a investigação segue de perto a de Jean Grondin e sua discussão sobre a pretensão de universalidade da hermenêutica filosófica. A investigação aborda o tema reconstruindo argumentos da filosofia de Gadamer e Habermas. O artigo culmina destacando a historicidade e a circularidade hermenêutica através do diálogo vivo com a tradição como critérios de validade e demarcação, no exercício de atualização do conhecimento através da abordagem hermenêutica.

Palavras-chaves:
Hermenêutica filosófica; Investigação; Epistemologia; Metodologia

ABSTRACT

The present paper proposes a critical reflection about the potentialities and limits of hermeneutics as an investigative tool, considering the epistemic rigor and vigilance towards the educational field. The study results from a bibliographical methodological approach of analytical and hermeneutic perspective. Among the pretensions of this paper, the possibility of expanding the reflections and problematizations about hermeneutics as an investigative method is considered. The research evidences that, for the investigation in hermeneutic perspective, the theoretical-epistemological formation of the researcher becomes fundamental. Furthermore, it is emphasized that in the interpretative art, the dialogical intersubjective communicative process is nuclear. Starting from the critical review of research training in the educational field, the investigation follows closely the research of Jean Grondin and his discussion on the claim of universality of philosophical hermeneutics. The investigation approaches the topic by reconstructing arguments from the philosophy of Gadamer and Habermas. The paper culminates by highlighting hermeneutical historicity and circularity through living dialogue with tradition as criteria of validity and demarcation, in the exercise of updating knowledge through the hermeneutic approach.

Keywords:
Philosophical hermeneutics; Investigation; Epistemology; Methodology

Introdução

Desenvolver um projeto de pesquisa, de conclusão de curso, dissertação ou tese, sempre mergulha o pesquisador em um conjunto de dilemas e questões, que precisa ser enfrentado para desenhar o percurso da investigação e, assim, alcançar os resultados que nos propomos descortinar. Dentre essas questões, estão a definição sobre a perspectiva epistemológica em que abrigamos nosso objeto ou problema de investigações e a realização de um desenho do percurso da pesquisa ou sua metodologia. Em outros termos, trata-se de abrigar o projeto a critérios de validade, responsabilidade, reconhecimento e certificação acadêmica.

Ajudam-nos, a critério de introdução, as definições de Robert Blanché (1988BLANCHÉ, Robert. A epistemologia. Tradução: Natália Couto. Lisboa: Editorial Presença, 1988., p. 27), nas quais “epistemologia ‘não é propriamente o estudo dos métodos científicos, que constitui o objeto da metodologia e faz parte da lógica’; a epistemologia é ‘essencialmente o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências’”. Já por metodologia, Robert Blanché refere-se, primeiramente,

à orientação dos meios em vista de um fim, isto é, o caminho escolhido, em segundo lugar, às regras, aos instrumentos, às técnicas, aos procedimentos adotados para obter dados, informações, evidências e, em terceiro lugar, aos processos de descrição, análise, de síntese, de explicação, de compreensão e de interpretação [...] (1988, p. 12).

Corroboram essa afirmação Pilar de Moraes Sidi e Elaine Conte, ponderando que a metodologia “é o caminho que o pesquisador percorre, abrangendo os métodos e técnicas utilizadas para encontrar a melhor forma de ajudar a compreender e responder ao problema de pesquisa” (2017, p. 1947). Método entendido como caminho é mais que uma mera técnica. Além de ser o percurso investigativo traçado pelo pesquisador, também é aquilo que lhe garante segurança para publicizar e compartilhar, com seus pares, os resultados que alcançou, que outros pesquisadores reconheçam o modo como chegou a determinadas conclusões. Ademais, a metodologia está de alguma forma conectada à ética da pesquisa, de tal modo que os saberes encontrados através desta metodologia proporcionem conhecimento passíveis de reconhecimento e confiança.

Ainda nesse sentido, vale ressaltar que a pesquisa implica responsabilidade. Seria desastroso e irresponsável para qualquer área - educação, por exemplo - desenvolver atividades sustentadas em conhecimento que não tenha passado por um processo de reflexão e crítica rigorosa, resultante de uma pesquisa realizada com rigor epistemológico e metódico. Apostar cegamente no procedimentalismo ou gerar resultados sem possibilidade de reconhecer o modo como foram produzidos poderia levar a prejuízos e danos imediatos e futuros na extensão desses conhecimentos, causar equívocos nos processos de ensino e aprendizagem no caso da educação, comprometendo a formação das novas gerações e lesando a sociedade num todo.

A hermenêutica é citada como método de pesquisa e considerável conjunto de trabalhos, compondo a metodologia juntamente com outras técnicas. Ao que tudo indica, ela é tomada como a prática de interpretação de fatos, dados ou fenômenos. Mas poderia a hermenêutica ser uma mera prática de interpretar? De que interpretação estamos tratando na hermenêutica? Nem sempre está claro em que sentido recorremos à hermenêutica, se como método ou como uma perspectiva filosófica e epistemológica. Afinal, o que é a hermenêutica? Seria um método? Como a investigação hermenêutica pretende proporcionar conhecimentos válidos e confiáveis para as ciências humanas? Ela integra as ciências lógicos-experimentais? Qual é o lugar e de onde fala o pesquisador hermeneuta?

Certamente, há diversas definições para o termo hermenêutica. Não é a pretensão deste artigo a padronização ou a determinação de um sentido último para o termo. Isso seria totalmente descabido e pretensioso diante da vasta bibliografia sobre o tema. Em todo caso, objetivamos contribuir com uma simples reflexão sobre o lugar da hermenêutica, no caso da pesquisa educacional, buscando compreender melhor sua proposta, reconhecendo, de um lado, sua complexidade, potencial de construção de saberes válidos e, por outro lado, evitando tomá-la de modo superficial e raso.

O que segue é uma breve reconstrução que busca refletir sobre como a hermenêutica é uma perspectiva investigativa, que se ocupa de saberes e que dá conta de certos pressupostos acadêmicos. A presente argumentação procura reconstruir elementos a partir da discussão presente no desenvolvimento da hermenêutica filosófica e a sua pretensão de universalidade. Isso se justifica porque é na hermenêutica filosófica que se pode situar a discussão mais aprofundada e desenvolvida do tema. Seguimos, de perto, algumas discussões de Gadamer (2001GADAMER, Hans-Georg. La filosofia griega y el pensamiento moderno. In: El inicio de la sabiduría. Tradução: Antonio Gómez Ramos. Barcelona/Buenos Aires/México: Editorial Paidós, 2001. p. 125-132., 2012), apoiadas nas ricas reflexões de Jean Grondin (1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999.), que se ocupa especificamente da reconstrução do problema da busca de validade do saber que emerge da reflexão hermenêutica e de como ela contribui na elaboração de saberes válidos para a coordenação da vida humana.

Objetivamos também apresentar algumas reflexões sobre a demarcação do conhecimento nas abordagens investigativas da hermenêutica, seus critérios de validação e o rigor necessário que lhe confere o status de um saber fiável. Por conhecimento válido, entendemos os saberes que foram submetidos ao crivo da reflexão crítica e sustentam-se como aceitáveis na orientação e coordenação das ações humanas ao serem submetidos à dúvida e ao questionamento reflexivo. Afinal, todo conhecimento que se produz em âmbito acadêmico pressupõe que seja estendido, que gere impactos na vida social e humana. No caso da educação, esse impacto é na formação humana1 1 Com esse argumento não pretendemos menosprezar o saber popular e ordinário, mas destacar o caráter do saber acadêmico, que o distingue de tantas outras formas de saber e que tornam o saber acadêmico distinto em sua responsabilidade na produção e extensão desse saber. .

O presente artigo está estruturado nos seguintes tópicos: após a introdução, apresentando as questões investigativas (0), segue-se o tópico que busca ampliar a problematização e justificar a importância da formação em pesquisa no campo da educação (1). A partir disso, realizamos uma breve reconstrução de alguns argumentos sobre a hermenêutica filosófica a partir das posições de Gadamer e Habermas (2); seguimos com a reflexão expondo a distinção e os argumentos pelos quais a hermenêutica escapa ao domínio das ciências lógicas-experimentais (3), sinalizando para a dimensão dialética e dialógica da hermenêutica, que se realiza sob o primado da linguagem orientado pela pergunta (4); por fim, a argumentação culmina com a breve exposição de dois critérios centrais, demarcadores do conhecimento hermenêutico: a historicidade e a circularidade (5).

A formação em pesquisa no campo educacional

Na investigação hermenêutica, talvez mais que em outras perspectivas investigativas, o pesquisador ocupa um lugar fundamental, principalmente, porque a hermenêutica é um exercício dialógico, como veremos em seguida. A formação do sujeito que investiga, tanto em pesquisa como sua formação cultural, seu conhecimento e o lugar que habita no mundo, é fundamental. Isso não significa que o pesquisador, em sua margem de liberdade, está desautorizado da rigorosidade e vigilância epistemológica as quais devem se manter constantes ao longo do processo investigativo e em suas decisões. O espírito atento deve acompanhar-lhe por todo o processo, indispensável, inclusive, para que os seus pares possam entender e acompanhar “como e em que bases o pesquisador chegou às suas conclusões” (GOLDENBERG, 1998GOLDENBERG, Mirian. A arte de pesquisar. Rio de Janeiro: Record, 1998.). Trata-se de uma questão de honestidade e responsabilidade intelectual (MEZAROBA; MONTEIRO, 2014), pois, à medida que o pesquisador expõe seu âmago, ele interpreta o mundo ao seu redor.

É o método, certo rigor, vigilância epistemológica que visa assegurar a credibilidade dos resultados, um caminho coerente em direção - não às verdades últimas -, mas como conhecimentos mais acertados possíveis, coerente com a perspectiva epistêmica e de ciência em que se abriga a pesquisa. Implícita, nessa constatação, está a dimensão ética da pesquisa. O conhecimento que se produz gera mudanças na sociedade, ao menos, essa é a expectativa e, portanto, somos responsáveis pelas mudanças que, eventualmente, se venha a gerar ao afirmar ou negar conhecimentos.

Disso se depreende a necessidade da sólida formação e da responsabilidade do pesquisador. O campo de investigação em Educação é atravessado pelo encontro de diversas áreas de saber, as quais carregam suas perspectivas teóricas e investigativas para o campo educacional. Apesar do esforço histórico em direção à diversificação metodológica, a demarcação daquilo que é aceitável segue fortemente um viés de quantificação do observável, mesmo sob a roupagem de pesquisa qualitativa. Essa também é a percepção de Dalbosco et al (2018DALBOSCO, Cláudio. Almir.; SANTA, Fernando. Dala.; BARONI, Vivian. A hermenêutica enquanto diálogo vivo: contribuições para o campo da pesquisa educacional. Educação, v. 41, n. 1, p. 145, 2018. Disponível em: https://www.academia.edu/37329639/A_hermen%C3%AAutica_enquanto_di%C3%A1logo_vivo_contribui%C3%A7%C3%B5es_para_o_campo_da_pesquisa_educacional. Acesso em: 11 nov. 2022.
https://www.academia.edu/37329639/A_herm...
, p. 147), que destacam a forte presença da perspectiva metodológica-experimental nas pesquisas educacionais e que, como consequência, implica uma baixa densidade teórica-reflexiva.

Isso pode ser verificado, entre outras coisas, pelo fato de a maioria das investigações nesse âmbito nivelar a demarcação do saber a procedimentos técnicos de coleta de sistematização de dados e não avançar em processos críticos-reflexivos. A perda do vínculo teórico com as reflexões educacionais oriundas da tradição filosófico-pedagógica em nome de um procedimentalismo metodológico acarreta, em última análise, “o enfraquecimento das próprias pretensões de validade do conhecimento educacional”(DALBOSCO, 2014DALBOSCO, Cláudio. Almir. Pesquisa educacional e experiência humana na perspectiva hermenêutica. Cadernos de Pesquisa, v. 44, n. 154, p. 1028-1051, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/Z5BJS9xp8vD8ztPF65nqqgq/?lang=pt. Acesso em: 11 nov. 2022.
https://www.scielo.br/j/cp/a/Z5BJS9xp8vD...
, p. 1032).

Da mesma forma, mantém-se forte a tese de que o procedimentalismo garante certa objetividade científica e, portanto, é critério de produção de conhecimento, colocando, em segundo plano, a exigência da formação teórica-reflexiva e da consideração do lugar do qual fala e dialoga o sujeito pesquisador. Nesses argumentos, o que está em jogo não é o menosprezo ao procedimento, mas a defesa do fortalecimento da formação teórico-filosófico do pesquisador no campo educacional, campo que se caracteriza justamente como ciência humana por ser atravessado por infinitos temas que exigem uma reflexão crítica e reflexiva qualificada.

E é nesse ponto que é possível avançar em relação às críticas de Dalbosco, Gatti e Charlot2 2 É justamente nessa direção que vários autores têm alertado sobre certa fragilidade em relação às pesquisas no campo da educação. Dentre eles, podemos destacar a crítica de Charlot (2006) e Gatti (2012a, 2012b), que, além da questão da formação dos pesquisadores, enfatizam fragilidades adicionais no campo educacional. Apontam, como prováveis razões, o caráter multidisciplinar da área, que torna o campo tematicamente difuso e disperso e, de outra parte, a forte persistência da perspectiva metodológica-experimental do paradigma cientificista. A esse dilema, associa-se o debate sobre o estatuto próprio da educação, que ainda se mantém controverso em nossos dias, que já estava contemplado nas reflexões de autores como Johann Friedrich Herbart (2003, p. 11), que, ao final da sua vida, na obra Umriss pädagogischer Vorlesung (Esboços para um curso de pedagogia) de 1843, defendia, como fundamento ou objeto da pedagogia, a educabilidade do educando (Der Grundbegriff der Pädagogik ist die Bildsamkeit des Zöglings). , que, ao sinalizarem para a dificuldade da pesquisa no campo educacional e da carência de conhecimentos sobre o problema da abordagem metodológica e da fragilidade formativa do investigador, abrem caminho para o tema da falta de conhecimento mais aprofundado de temas, como a demarcação, a validade e a relação entre perspectiva epistemológica e metodologia, para além das perspectivas cientificistas e experimentais. É necessário que tenha em seu horizonte questionamentos, a exemplo de: qual o papel desta investigação? Como seus resultados poderão ser apropriados por outros pesquisadores no sentido de construir uma educação mais igualitária? Que novos problemas nos desafiam em uma sociedade complexa?

Ainda em relação ao campo da investigação educacional, é problemática - dentro da filosofia da ciência da educação, sua perspectiva epistemológica - a questão sobre onde se situa ou se demarca aquilo que possa ser aceito como conhecimento verdadeiro ou mais acertado, ou como, pelo método, pode-se acessar/produzir/desenvolver esse conhecimento.

Nisso somos obrigados a defender a tese de que todo modo de produzir saberes, em alguma medida, orienta-se por uma concepção ontológica de saber, uma episteme. Quando o pesquisador tem dificuldades em visualizar como a sua pesquisa situa-se dentro de uma ou mais perspectivas epistemológicas, a relação do método com essa ontologia, que, de alguma forma, modaliza os saberes, num modo de conceber o mundo humano e as coisas, terá problema em estruturar sua investigação. Sobre essa questão, tendemos a associar-nos à afirmação de Dalbosco (2018DALBOSCO, Cláudio. Almir.; SANTA, Fernando. Dala.; BARONI, Vivian. A hermenêutica enquanto diálogo vivo: contribuições para o campo da pesquisa educacional. Educação, v. 41, n. 1, p. 145, 2018. Disponível em: https://www.academia.edu/37329639/A_hermen%C3%AAutica_enquanto_di%C3%A1logo_vivo_contribui%C3%A7%C3%B5es_para_o_campo_da_pesquisa_educacional. Acesso em: 11 nov. 2022.
https://www.academia.edu/37329639/A_herm...
, p. 147), de que a fragilidade na investigação educacional reside essencialmente no “fato de as pesquisas educacionais terem renunciado à pergunta pela validade do seu próprio conhecimento, abdicando, com isso, do rigor teórico e da qualidade do conhecimento produzido”.

O que se evidencia nesses argumentos iniciais é a importância da formação teórico-epistemológica do pesquisador em educação como condição de qualidade da investigação. A fragilização da formação do pesquisador implica risco não somente para o pesquisador, mas também para a própria área de investigação. É a sólida formação em pesquisa que permite que o investigador desenhe adequadamente seu objeto/problema em pesquisa, que propicia que formule adequadamente a pergunta de pesquisa, eleja as ferramentas e instrumentos mais acertados, trace um caminho metodológico adequado e realize o enfrentamento crítico-reflexivo, aprofundando, com máximo alcance, a investigação, em busca de conhecimentos que contribuam para o desenvolvimento do campo educacional3 3 Nisso, evidencia a importância de uma formação consistente para a pesquisa e para além da pesquisa, para a qual nada contribuem o enxugamento e encurtamento do tempo de formação dos pesquisadores. A precarização dos currículos quanto ao recurso só tem contribuído para o “crescente pragmatismo e imediatismo que restringe parte da pesquisa educacional à temática da formação de professores” (DALBOSCO; SANTA; BARONI, 2018, p. 147). .

Destaca-se a importância do preparo dos pesquisadores, o que não depõe a favor de práticas que podem ser caracterizadas como elitismo intelectual, de pesquisadores que se refugiam atrás de teorias e sistemas filosóficos metafísicos. A pesquisa educacional que não parte do fenômeno educacional seria uma contradição, já que a educação é uma práxis. É preciso rechaçar, principalmente na pesquisa educacional, perspectivas investigativas que desconsideram o saber da experiência4 4 Emprega-se aqui o termo experiência diverso de empiria, ou técnica, mas no sentido amplo de vivência como usado por autores como John Dewey (2010) e Johann Friedrich Herbart (2010). Sobre o tema, sugerimos a leitura de Schwenberg & Neitzel (2019), Neitzel(2015) e Boufleuer (2010). e suas contribuições para reflexão educacional.

A hermenêutica: entre Gadamer e Habermas

Dada a simples contribuição deste artigo na tentativa de compreensão dessas questões, não é possível abordar toda a vasta produção sobre o tema e nos concentraremos em torno da contribuição de Gadamer como grande referência da hermenêutica. Concentrar-nos-emos na hermenêutica filosófica, pois imaginamos que esta seja a perspectiva mais elaborada da hermenêutica e da qual derivam outras tantas concepções. É na filosofia que se encontra a mais rica reflexão sobre a arte da interpretação. Dentro desse recorte, o que interessa é justamente a discussão em torno da possibilidade de a hermenêutica produzir saberes válidos, generalizáveis ou com o caráter de universalidade do saber principalmente na pesquisa educacional, esquivando-nos da armadilha argumentativa do procedimentalismo metodológico das ciências lógicos-experimentais.

Grondin (1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999.) também aponta Gadamer como filósofo de referência em se tratando da hermenêutica filosófica. Eventualmente, Paul Ricour poderia ser considerado outro pensador de referência da hermenêutica filosófica, mas, segundo o autor, nenhum mesmo entre os precursores como Schleimacher ou Dilthey, ocupou-se de maneira tão profunda com o tema como em Gadamer, embora tenham contribuído significativamente com o debate. Afirma Grondin com Heidegger, que a hermenêutica é coisa de Gadamer e, nesse sentido, “embora sua filosofia tenha desencadeado numerosas discussões, principalmente com a crítica da ideologia de Habermas e com o desconstrutivismo de Derrida, não podem ser registradas formulações realmente inovadoras no campo da hermenêutica” (GRONDIN, 1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999., p. 24).

A hermenêutica gadameriana recebeu críticas principalmente de Habermas, crítica que não é o foco deste artigo, mas que julgamos pertinente trazer à luz, uma vez está diretamente relacionada com o problema5 5 Habermas(2013) defende que as ciências sociais não poderiam abrir mão da hermenêutica na pesquisa sem prejuízos, mas apresenta duas objeções em relação à hermenêutica de Gadamer: A primeira objeção (1) estaria ligada à posição de Gadamer, ao defender que, a “compressão se coloca de início em contextos não científicos”, em espaços da vida, como a literatura, mídias sociais, onde a hermenêutica filosófica teria a “tarefa de elucidar os processos de compreensão ordinários” sem ser, nesses espaços, uma tentativa de sistematizar ou comparar e analisar dados (HABERMAS, 2013, p. 38). Em seguida (2), a objeção não se liga à interpretação de modo geral, mas as questões específicas do processo técnico da interpretação, que poderiam ser contornados em “testes de validade e a confiabilidade dos instrumentos que poderiam evitar influências incontroladas que, de outro modo, se insinuariam na investigação a partir da complexidade não analisada e difícil de manejar da linguagem ordinária e da vida quotidiana” (HABERMAS, 2013, p. 38). . O que está em jogo na crítica de Habermas é, principalmente, a dificuldade de mensuração e o controle dos dados. A questão levou, por um lado, segundo Habermas, a um emprego inflado da interpretação na filosofia e, de outra parte, dúvidas e desconfianças sobre a possibilidade de gerar um saber fiável a partir de uma concepção de interpretação mais experimental. Esse dilema mobilizou o debate filosófico em torno da hermenêutica na busca por uma maior clareza sobre seu lugar na investigação, o que também ficou conhecido como “guinada interpretativa” (HABERMAS, 2013HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013., p. 38).

A perspectiva de uma análise pretensamente objetiva dos significados propostos pela linguagem, atravessada por condições subjetivas, estaria estreitamente relacionada às experiências construídas pelo pesquisador, efetuando-se a objetividade e a subjetividade como elementos inseparáveis. Dessa forma, o processo de abstração da verdade que, aparentemente, poderia ser abstraída da análise hermenêutica, poderia ocultar uma falseabilidade da consciência da realidade, legitimadora de relações de exploração sistematicamente organizada. Denotou-se, então, o que Habermas (1987HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica: para a crítica da Hermenêutica de Gadamer. Porto Alegre: LP&M, 1987.) denominou de comunicação sistematicamente perturbada, ou seja, uma comunicação surgida no contexto de uma sociedade em que a linguagem humana é admitida como alienável, ideologicamente influenciável, devido a fatores estruturantes que poderiam intervir na liberdade.

Esse processo desencadeou um conjunto de movimentos e tendências, segundo Habermas, das quais é interessante sinalizar algumas que são pertinentes. O primeiro elemento resulta do embate entre Thomas Kuhn e Karl Popper que, de certo modo, abalou a autoridade do “empirismo lógico” e permitiu que uma “epistemologia pós-empirista emergisse”, propiciando que se alargasse o espaço para a presença e o lugar da hermenêutica. Consequentemente, houve um rearranjo normativo das abordagens científicas (HABERMAS, 2013HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013., p. 39). A isso soma-se o fracasso das teorias sociais em suas promessas científicas, teóricas e práticas a partir de uma perspectiva positivo-lógica e de um objetivismo cientificista, permitindo que florescessem novas abordagens fenomenológicas, hermenêuticas, da teoria crítica, entre outras. Conforme Habermas (2013, p. 39), não tanto pelo seu êxito, mas como alternativa à ciência predominante.

Diante disso, o nosso interesse é refletir e buscar uma aproximação à hermenêutica de Gadamer, como seu principal representante, procurando compreender que perspectiva epistemológica é a hermenêutica e em que medida o conhecimento, que se elabora nessa perspectiva, é um conhecimento válido.

Linguagem e o pesquisador residente no mundo

Retomemos a afirmação de Pilar de Moraes Sidi e Elaine Conte (2017SIDI, Pilar de Morais; CONTE, Elaine. A hermenêutica como possibilidade metodológica à pesquisa em educação. Revista ibero-americana de estudos em educação, v. 12, n. 4, p. 1942-1954, . 2017. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/9270. Acesso em: 11 nov. 2022.
https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoa...
, p. 1947), de que a metodologia é o “caminho que o pesquisador vai percorrer, abrangendo os métodos e técnicas utilizados para encontrar a melhor forma de ajudar a compreender e responder ao problema de pesquisa” e, nesse sentido, sempre pressupõe uma certa ontologia do conhecimento a ser encontrado. Na hermenêutica, esse caminho desenha-se sob a esteira da linguagem. Para Hans-Georg Gadamer (2012GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer; Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. v. I., p. 612), “ser que pode ser compreendido é linguagem”. Conforme Gadamer, a linguagem não é somente um instrumento de comunicação de sinais articulados. Ou seja,

Há sempre uma deformação técnica quando a moderna tematização da linguagem vê a linguagem como um instrumento, um sistema de sinais, um arsenal de recursos comunicativos, como se esses instrumentos ou meios de fala, palavras e expressões, fossem preparados em uma espécie de reserva e só tivessem que ser aplicados a algo que se encontrasse (GADAMER, 2012GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer; Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. v. I., p. 612).

Para Manfredo Oliveira (2006OLIVEIRA, Manfredo. Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2006.) e Jean Grondin (1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999.), Gadamer, como grande expoente da hermenêutica, elabora sua filosofia em diálogo com a tradição filosófica, principalmente Heidegger e sua análise do “eis-aí-ser”, que, além de discutir a questão da compreensão como meio de investigação nas ciências do espírito, coloca a compreensão na esteira constitutiva do ser histórico (OLIVEIRA, 2006OLIVEIRA, Manfredo. Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Edições Loyola, 2006., p. 255).

Nessa perspectiva, o sujeito pesquisador é posto no mundo, uma vez que, diante da hermenêutica, o pesquisador não manipula simplesmente instrumentos lógico-experimentais, mas precisa habitar e tornar-se mundo. Para encontrar-se em casa no mundo, a correspondência interna entre tornar-se a própria casa (heimischwerdern) e fazer-se a própria casa (sich-heimisch-machen) é aquilo que distingue o artesão, o especialista, o criador de novas configurações e formas, os técnicos, o homem que domina uma técnica e, ao mesmo tempo, é encontrar um lugar próprio.

Se Dilthey produziu seu pensamento no contexto do cientificismo e, nesse sentido, buscou aproximar a hermenêutica aos métodos exitosos das ciências da natureza de seu tempo, Gadamer critica essa tentativa com veemência, principalmente, em Verdade e Método, assinalando que a hermenêutica não pode ser pensada como método enquanto técnica, sem prejuízos para uma perspectiva que se queira inscrever nas ciências do espírito. Conforme afirma Menezes,

[...] tal vertente teórico-metodológica parece integrar um sistema ideológico que conceptualiza dicotomicamente o saber, repartido em campos radicalmente distintos: Naturwissenschaften e as Geisteswissenschaften, as quais se fundariam sobre a tradicional fé na irredutibilidade da humana realidade e na completa autonomia de suas escolhas em face das condições materiais da existência, e apontando respectivamente para operações intelectuais, também encaradas por seu turno como distintas: a explicação (Erklaren) e a compreensão (Verstehen) (MENEZES, 1988MENEZES, Eduardo Diatahy B. de. Jürgen Habermas, a hermenêutica e epistemologia das ciências do homem. Forum Educ., v. 12, n. 4, p. 21-33, 1988., p. 26).

É justamente à impossibilidade de reduzir a hermenêutica a uma perspectiva cientificista e seu movimento de objetificação da realidade que se inscreve a crítica de Gadamer. Isso nos leva a perguntar em que medida a hermenêutica é método e, sendo, como poderíamos defini-lo. Na obra La filosofia griega y el pensamiento moderno, o pensador busca em diálogo com a tradição do pensamento grego e moderno, evidenciar os limites e as fronteiras da objetificação. Nesse ponto, Gadamer (2001) toca em uma questão que nos é cara e que a filosofia da ciência tem se debatido por muito tempo: afinal, qual é o alcance do pensamento investigativo e metodológico moderno?

Entre outras consequências para a pesquisa de cunho filosófico e hermenêutico, reside no fato de que a razão formal e científica tem seus limites e coloca, do lado de fora, o pensamento especulativo, a arte e demais formas de saber. Considera aceitável, como conhecimento, somente aquilo que consegue objetificar e quantificar em suas categorias e estruturas da consciência. Há uma certa reivindicação hodierna por considerar e integrar ao conhecimento, à ciência e ao pensamento razoável, outras formas de saber que a perspectiva cientificista insiste em deixar do lado de fora dos saberes válidos.

É preciso reconhecer, porém, que, se por um lado, sente-se a necessidade de estender o arco para outras formas de saber e produzir ciência e pensamento, também incorremos no risco da incorporação de elementos, de saberes e premissas que podem levar a prejuízos e equívocos na compreensão e organização da vida humana. Há um risco imenso de que meras opiniões e interpretações sejam alçadas a saberes válidos, sem diálogo e sem se submeterem ao crivo da reflexão crítica. Nesse sentido, Gadamer refere:

De fato, o conceito de “objetividade” e o de “objeto” são tão alheios ao entendimento imediato pelo qual o homem tenta fazer um lar no mundo que os gregos não tinham nenhum conceito para ele, o que já é muito significativo. Eles dificilmente poderiam falar de uma “coisa”. A palavra grega que usaram nesta área foi a palavra pragma, que não é totalmente estranha para nós, ou seja, aquela com a qual se está enredado na prática da vida, aquela que não é oposta e confrontada como algo a ser superado, mas aquela em que nos movemos e com a qual temos que fazer. Esta é a orientação que tem sido marginalizada na moderna visão de mundo cientificamente estruturada e na tecnologia baseada nela (GADAMER, 2001GADAMER, Hans-Georg. La filosofia griega y el pensamiento moderno. In: El inicio de la sabiduría. Tradução: Antonio Gómez Ramos. Barcelona/Buenos Aires/México: Editorial Paidós, 2001. p. 125-132., p. 128-129).

Em relação a esse ponto, Gadamer aprofunda a provocação questionando o lugar e a noção de liberdade humana. Para tanto, forja o conceito de inobjetividade essencial, que designa a dimensão da vida humana que pertence à liberdade, à esteticidade, à criatividade, ao inusitado, que “não pode ser apreendida ou demonstrada com as possibilidades teóricas do conhecimento”, mais precisamente, lógico-experimentais (GADAMER, 2001GADAMER, Hans-Georg. La filosofia griega y el pensamiento moderno. In: El inicio de la sabiduría. Tradução: Antonio Gómez Ramos. Barcelona/Buenos Aires/México: Editorial Paidós, 2001. p. 125-132., p. 129). Essa perspectiva de Gadamer encontra ressonância em Hannah Arendt (2014ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito: o pensar, o querer, o julgar. Tradução: Cesar Augusto R. de Almeida; Antonio Abranches; Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.), para quem a dimensão fundamental do pensamento e da ação distintivamente humana reside na capacidade especulativa. A liberdade não é um fato da natureza, mas é, para Gadamer (2001, p. 129) um “factum da razão, algo em que temos que pensar por que não podemos nos entender de forma alguma se não nos considerarmos livres”.

Cabe aqui mencionar uma das objeções de Herbart à filosofia de Kant, ao defender que a liberdade não pode ser inscrita como algo dado a partir de uma realidade metafísica ou transcendental a priori. Herbart afirma que, na concepção de liberdade transcendental, não há lugar para se pensar formação humana ou a educação, uma vez que ela é dada a priori (HERBART, 1887HERBART, Johann Friedrich. Sämtliche Werk in Chronologische Reihenfolge (Band 1). Langensalza: Hermann Beyer & Söhne, 1887. v. 1., p. 55). Liberdade é, assim, concordando com Gadamer, um fato da razão à medida que o sujeito se exercita racionalmente e, assim, constitui-se em liberdade, que se desenvolve à medida que as pessoas se exercitam formativamente. Fora disso, não seria possível a própria formação humana.

Olhando para a perspectiva de investigação, a questão que se coloca diante desses argumentos é: como manter a vigilância epistêmica ou quais são os mecanismos que permitem manter o pesquisador no caminho daquilo que é o mais acertado à vida fraterna humana? Essa questão coloca-se em um momento complexo de negacionismo reacionário e profusão de teorias pseudocientíficas. Teorias totalmente equivocadas do ponto de vista acadêmico e que operam de modo irresponsável com a vida e, de outra parte, não contribuem na edificação de uma sociedade mais humana, trazem prejuízos para decisões éticas, políticas, culturais, educacionais, de ordem jurídica, de gestão e administração e influenciam em tomadas de decisão com consequências catastróficas e perversas.

A pergunta e a interlocução investigativa pelo diálogo vivo

Buscando ilustrar seus entendimentos de linguagem, Gadamer recorre a distinção de dois termos gregos: (1) glotta - empregado para designar a linguagem como um órgão fonador e que emite sons; e (2) lógos - que designa a ação de comunicar, da linguagem para/no diálogo e entendimento. Ele destaca que é no logos que “o próprio mundo [é] evocado pela fala, elevado à presença, disponibilizado a participação comunicativa”(GADAMER, 2001GADAMER, Hans-Georg. La filosofia griega y el pensamiento moderno. In: El inicio de la sabiduría. Tradução: Antonio Gómez Ramos. Barcelona/Buenos Aires/México: Editorial Paidós, 2001. p. 125-132., p. 131). A linguagem, assim, não é uma mera ferramenta designativa, mas o mundo que se põe na própria linguagem, de modo estruturado, sem a pretensão e objetificação. O mundo articula-se na experiência comunicativa com os outros.

Para Gadamer (2012GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer; Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. v. I., p. 497), todo o processo de compreensão é linguístico, sendo que a linguagem é o meio sobre o qual se realiza um diálogo entre os interlocutores. E, dentro do diálogo, é a pergunta que assume um lugar fundamental, ou seja, não “[…] se fazem experiências sem a atividade do perguntar” (GADAMER, 2012GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer; Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. v. I., p. 473). A ideia do diálogo é excepcional, uma vez que o diálogo só é possível em uma posição de abertura. Mesmo que os interlocutores estejam em lugares diversos de seus percursos constitutivos, em diferentes momentos da trajetória de pesquisa, o diálogo exige abertura e abdicação das certezas.

O diálogo sempre se realiza na interlocução do outro que se faz presente pela linguagem. Por isso, também é um diálogo vivo, em que é necessário saber ouvir e levar a sério o que está sendo dito, fazer-se presente no diálogo, permitir e exigir que o outro compareça, aceitando que a verdade é sempre processual, em constante reviravolta, processo de argumentação, diálogo acerca da pretensão e dos argumentos apresentados. Em um diálogo autêntico, Hans-Georg Flickinger afirma que os interlocutores procuram “um sentido possível e por isso mesmo sempre provisório” (2014, p. 90). Ainda pontua:

Nesse esquema, os interlocutores precisam aceitar o risco de expor sua identidade intelectual, não temendo que esta seja colocada em xeque pela intervenção do outro (seja um interlocutor, um texto ou uma situação pedagógica específica), pois assumir o risco de perder o fundamento firme da própria postura intelectual é renunciar também ao direito de ter a última palavra (FLICKINGER, 2014FLICKINGER, Hans-Georg. Gadamer e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., p. 107).

É no diálogo franco e aberto que se conduz a pesquisa hermenêutica e a pergunta é seu guia. A pergunta é sempre libertadora, pois suspende, por algum tempo, o já sabido. Mas não qualquer pergunta, como mera retórica ou que induz uma resposta, mas a pergunta que se mantém aberta e interminável. Ela quebra com a possibilidade de uma rígida definição a priori da resposta que se pretendia encontrar, evitando que o pesquisador intente conhecer os resultados das pesquisas antes mesmo de iniciá-las. “A abertura do perguntado consiste em que não está fixada uma resposta” (GADAMER, 2012GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer; Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. v. I., p. 474). Nisso repousa a primazia da pergunta em relação à resposta: a arte de perguntar é a arte de pensar (GADAMER, 2012, p. 479).

Cabe ressaltar que não é possível expulsar os sujeitos ou o mundo da investigação, nem se isolar como investigador fora do mundo. A respeito disso, Gadamer entende que o mundo não pode ser expulso da investigação e da pesquisa educacional, nem repousar na superfície da objetificação. Nesse sentido, devemos reconhecer a articulação peculiar, uma tríade, entre contexto/mundo, pesquisador e interlocutor. O mundo de coisas e seres humanos é o lugar em que se situa o problema da investigação e no qual se coloca um conjunto de questões a ser enfrentado.

Investigar, nesse sentido, implica buscar compreender, interpretar e explicar essas perguntas em diálogo com diferentes interlocutores. Esses interlocutores não estão, necessariamente, presentes conosco imediatamente no tempo e no espaço, mas se fazem presentes por meio da tradição e do legado histórico-cultural, dos registros de suas contribuições e permanência na história do pensamento, ou seja, mesmo que distantes no tempo e no espaço, este é um diálogo que se torna vivo.

Em Hans-Georg Gadamer (2012GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer; Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. v. I., p. 497), todo o processo de compreensão é linguístico, sendo a linguagem considerada como o meio sobre o qual se realiza o acordo entre os interlocutores. Nesse processo dialógico, torna-se fundamental a abertura à opinião do outro, seu direito de fazer uso da palavra, num esforço evidente por parte dos envolvidos em “chegar a nos pôr de acordo com relação à coisa”. Ademais, faz “parte de toda verdadeira conversação atender realmente ao outro, deixar valer os seus pontos de vista e pôr-se em seu lugar, e talvez não no sentido de que se queira entendê-lo como esta individualidade, mas sim no de que se procura entender o que diz” (GADAMER, 2012GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer; Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. v. I., p. 499). Dalbosco et al identificam também essa característica da conversação no exercício hermenêutico do pesquisador que dialoga e busca interpretar os textos, em que a reconstrução é “guiada pela compreensão do que nele se diz” (DALBOSCO; SANTA; BARONI, 2018DALBOSCO, Cláudio. Almir.; SANTA, Fernando. Dala.; BARONI, Vivian. A hermenêutica enquanto diálogo vivo: contribuições para o campo da pesquisa educacional. Educação, v. 41, n. 1, p. 145, 2018. Disponível em: https://www.academia.edu/37329639/A_hermen%C3%AAutica_enquanto_di%C3%A1logo_vivo_contribui%C3%A7%C3%B5es_para_o_campo_da_pesquisa_educacional. Acesso em: 11 nov. 2022.
https://www.academia.edu/37329639/A_herm...
, p. 148).

Em todo caso, é sempre na esteira da linguagem que se processa o diálogo e a franca conversação. A linguagem permite que se produzam sentidos - sempre pessoais, pois cada um produz sentidos próprios - e que se elaborem significados - que são sempre partilhados e produzidos intersubjetivamente, no processo comunicativo de conversação; assim, a linguagem assume infinitas funções, como a definição dos signos. A construção de significados para os mais diversos fenômenos do mundo da vida é constante e permanente. É através dele que se renova e produz o conhecimento na busca de compreensão para os mais diversos problemas e desafios que se apresentam nas mais distintas áreas de saber, como o da educação. E isso significa, segundo Grondin, “que precisamos de palavras para podermos conhecer” (GRONDIN, 1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999., p. 11). O ser humano habita esse lugar entre o potencial criativo-libertador e o cárcere-prescrito da linguagem.

Por essa razão também, Gadamer (2012GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer; Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. v. I.) afirma que a hermenêutica não pode ser entendida como um método, mas como uma arte. Com isso, não deseja liberar a arte da interpretação da necessidade do rigor e da vigilância epistêmica, do compromisso e da responsabilidade ética que um sujeito pesquisador assume ao produzir conhecimento. Ademais, a hermenêutica, mesmo como diálogo vivo, sustenta-se no diálogo com a tradição, sua historicidade e circularidade. O que Gadamer está tentando evitar é submeter ou tornar a hermenêutica e a própria filosofia em procedimentalíssimo lógico-experimental6 6 Essa posição de Hans-Georg Gadamer encontra coro em Hannah Arendt (2014), que afirma que é na dimensão especulativa do pensamento que se encontra a dimensão criativa e libertadora humana. .

Gadamer opõe-se à tentativa de desnivelamento das ciências do espírito e da hermenêutica como produtores de conhecimento verdadeiro como se fosse algo “meramente ‘subjetivo’ ou ‘estético’, isto é, afastado do reino do conhecimento” (GRONDIN, 1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999., p. 184). Isso estaria ligado à Crítica do Juízo de Kant e à subjetivação do conceito de gosto, que, segundo Gadamer, “desacreditou qualquer outro conhecimento teórico, além daquele das ciências naturais, ela pressionou a autodeterminação das ciências do espírito no sentido de se orientarem pela metodologia das ciências naturais”(GRONDIN, 1999, p. 184).

É por essa razão também, segundo Grondin (1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999.), que boa parte da obra Verdade e Método ocupa-se com o lugar da arte na produção do conhecimento humano, ou seja, não se trata de um método, mas da arte de interpretar. Além disso, a arte hermenêutica não pode ser tomada como uma mera interpretação, exegese ou filologia, uma vez que seu exercício “estende-se a todas as ciências e perspectivas de orientação da vida” (GRONDIN, 1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999., p. 41).

O conhecimento que resulta hermenêutico emerge desse processo dialógico aberto, criativo, na esteira da linguagem. É verdade que o exercício interpretativo é algo que atravessa as diversas áreas e práticas metodológicas. Essa percepção é também de Jaime Paviani (2009PAVIANI, Jaime. Epistemologia Prática: ensino e conhecimento científico. Caxias do Sul: Educs, 2009., p. 73), para quem os processos analíticos, dialéticos e hermenêuticos encontram-se em graduações diversas, mais ou menos, em todos os processos investigativos. Se todo saber produz-se na esteira da linguagem, ela sempre envolve, em maior ou menor medida, processos interpretativos. Em todo caso, o fato de transpassar as diferentes abordagens metodológicas pode acarretar o risco de seu emprego descuidado, podendo-se caracterizar ligeiramente como hermenêutica o que é uma abordagem metodológica, o que, em certa medida, pode estar correto, mas também negligenciar a dimensão do rigor e da vigilância epistemológica que a hermenêutica exige, não em sentido lógico-experimental.

Historicidade e círculo hermenêutico

A caracterização descuidada da pesquisa como hermenêutica também pode gerar dúvidas sobre a capacidade da hermenêutica produzir saberes creditáveis, fiáveis, responsáveis e até mesmo provocar dificuldades na condução adequada da pesquisa por parte do investigador. O que está em jogo é a pretensão de universalidade da hermenêutica. Mesmo que não seja possível dar conta dessa pretensão de modo último e acabado, ela não deve escapar às preocupações do investigador como horizonte epistemológico, na tentativa de que aquilo que se alcance como conhecimento seja o mais acertado possível.

Se não podemos abandonar a pretensão de universalidade, como é possível, na hermenêutica, manter ou alcançar essa pretensão? Essa discussão tem acompanhado a hermenêutica desde Dilthey. Nessa discussão a universalidade ou validade foi visualizada passível de ser alcançada através do emprego de procedimentos, pela historicidade, linguagem, entre outros. Nesse sentido, Grondin destaca que se tentou “reconstruir de tal forma a pretensão de universalidade da hermenêutica, que ela devia culminar na tese [...] de que tudo seria historicamente condicionado” (GRONDIN, 1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999., p. 37). Nesse caso, logicamente, a validade da própria pretensão de universalidade deveria ser historicamente condicionada. Em outros termos, a pretensão e a universalidade deveriam “estrangular-se numa autocontradição” (GRONDIN, 1999, p. 37).

Gadamer posiciona-se criticamente contra essas pretensões, tanto do historicismo quanto do procedimentalismo das ciências lógico-experimentais, afirmando que as ciências do espírito deveriam buscar seu próprio caminho para possuir o estatuto de ciência. Enquanto as ciências da natureza pautam-se por métodos da indução lógica, as ciências do espírito deveriam lançar mão de “condições psicológicas especiais” e tocar o conhecimento por uma “espécie de tato, e para isso, necessita de aptidões espirituais de outra espécie, por exemplo, riqueza de memória e prevalência de autoridades” (GADAMER, 2012GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio Paulo Meurer; Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. v. I., p. 39). Em outros termos, a qualidade da investigação está ligada à ampla formação do pesquisador.

Para Gadamer era mais razoável, diante das discussões e dilemas em torno do estatuto científico para as ciências do espírito, tomá-las como “algo semelhante ao tato ou a um não metodizável” (GRONDIN, 1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999., p. 182) e, assim, escapar a uma modalização do saber das ciências do espírito. Por isso, segundo Grondin, Verdade e Método, “efetuará uma crítica fundamental à obsessão metodológica, revelada na preocupação pela cientificidade das ciências do espírito” (GRONDIN, 1999, p. 183). Nisso reside a tese de que a hermenêutica deve ser mais compreendida a partir da tradição cultural que da própria ciência, ou seja, a demarcação do conhecimento na hermenêutica em Gadamer dá-se a partir do diálogo circular com a tradição cultural ou circularidade hermenêutica.

Deslocar os saberes das ciências do espírito para fora daquilo que se passou a assumir como conhecimento válido seria, ainda hoje, sem sentido e de uma perda sem medida para a existência humana num todo, principalmente para a pesquisa no campo educacional. É na segunda seção de Verdade e Método que localizamos a “reconquista da especificidade da hermenêutica das ciências do espírito”, em que encontramos a geisteswissenschaftliche Hermenêutik ou hermenêutica científico-espiritual, de acordo com Grondin (1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999., p. 185). Na reconstrução histórica que faz da hermenêutica do século XIX, Gadamer detecta e critica uma concepção de historicidade universal com pretensões absolutas, apontando a dificuldade de articulação da hermenêutica com a vida. Esta encontra em Husserl e na hermenêutica da facticidade de Heidegger seu reencontro.

É em Heidegger, na sua ontologia da estrutura fundamental do círculo hermenêutico, que Gadamer se apoia para delinear os traços fundamentais de uma teoria da compreensão hermenêutica. A circularidade para Gadamer assume o estatuto da universalidade. Nesse sentido, afirma Grondin:

O círculo é universal, porque cada compreensão é condicionada por uma motivação ou por um pré-conceito. Os pré-conceitos - ou a pré-compreensão - escreve Gadamer provocadoramente, valem, de certa forma, como ‘condições de compreensão’ transcendentais. A nossa historicidade não é uma limitação, e sim um princípio de compreensão. Nós compreendemos e tendemos para uma verdade, porque somos guiados nesse processo por expectativas sensoriais (1999, p. 186).

Em Heidegger, torna-se clara a dimensão do historicismo da hermenêutica, que sempre é circunstancial e próprio de uma época. Assim, não se trata de um “simples afastamento dos preconceitos, porém de seu reconhecimento e elaboração interpretante” (GRONDIN, 1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999., p. 187). Torna-se necessário que o processo de interpretação, primeiramente, elabore criticamente seus preconceitos e, assim, um objeto possa adquirir validade diante deles. Obviamente, a compreensão pode ser conduzida por concepções equivocadas, enganadoras, sem nunca poder se esquivar plenamente desse risco. Torna-se necessário o empenho em desenvolver “princípios de compreensão adequados à realidade” (GRONDIN, 1999, p. 187). Esses esboços prévios só podem confirmar-se nas próprias coisas e, portanto, numa tarefa contínua, circular da compreensão.

A questão então é: existe algum critério para diferenciar os verdadeiros preconceitos dos falsos? Encontrar esse critério é talvez uma grande aspiração da hermenêutica e de qualquer ciência. Mas, fatalmente, tragicamente, não existe esse critério, que resolveria todos os problemas da interpretação, uma vez que seria necessário simplesmente aplicar o critério. Em todo caso, não havendo critérios, há indícios. Estes podem ser rastreados, em um olhar retrospectivo, em que podemos localizar princípios que, de certo modo, comprovaram-se. E, para tanto, é importante um certo afastamento histórico, como no caso da arte. Ela não tem acesso imediato a seus critérios, seus “pré-conceitos”, os princípios de verdade, que, pelo distanciamento, tornam os juízos mais seguros. Trata-se de uma espécie de “fecundidade da distância temporal” (GRONDIN, 1999GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo-RS: Unisinos, 1999., p. 189). Ademais, “círculo hermenêutico significa que não se pode conceber a compreensão fora de um contexto histórico e social. A circularidade da compreensão constitui-se a partir da relação e da condição de ser capaz de comunicar” (GRONDIN, 1999, p. 151).

A Heidegger está somado o pensamento de Gadamer, que, em sua obra Verdade e Método, defende a impossibilidade de uma objetividade interpretativa. A defesa da ideia do círculo hermenêutico dá-se através do qual o entendimento reflexivo de uma obra é apropriado e ganha profundidade no exercício de análise e diálogo vivo com seus argumentos e conceitos. Para Gadamer, todo intérprete já faz parte de uma pré-convenção em seu exercício interpretativo que é composto das percepções, conhecimentos, crenças individuais e sociais.

Podemos perceber, porém, em Gadamer, uma ambiguidade sutil, já que a consciência dos sujeitos é sustentada por uma história da influência e, por outro lado, há a necessidade de tomada da consciência dessa influência hermenêutica de nossa consciência. Gadamer coloca sua filosofia diante de uma situação paradoxal, semelhante à filosofia transcendental de Kant. A nossa consciência da situação hermenêutica(histórica) permite-nos, em uma via, tomar consciência de nossa estrutura de compreensão e, por outra via, a consciência dos limites dessa consciência, desse empreendimento, que se apresenta consequentemente como finitude.

Considerações finais

A ideia de um diálogo vivo presente na hermenêutica gadameriana, pensado como relação franca e simétrica em que os interlocutores constroem conjuntamente novos significados, assegura o espaço dessa arte da interpretação, como pretendia Gadamer, para pensar nas pesquisas educacionais e no conhecimento humano de modo geral, em seu caráter contingente e falível. O fato é que Gadamer não se refere a um método de interpretação, uma técnica defendida por alguns de seus antecessores históricos, mas se trata da “tentativa de inserção ontológica do ser humano no contexto temático a ser analisado” (FLICKINGER, 2010FLICKINGER, Hans-Georg. A caminho de uma pedagogia hermenêutica. Campinas: Autores Associados, 2010., p. 37).

O que podemos constatar é que a hermenêutica busca, enquanto recurso investigativo para o campo educacional, a compreensão daquilo que está em nosso horizonte visível e de percepção, daquilo que vivenciamos e partilhamos em nossas trajetórias existenciais, exigindo imersão e vivência em múltiplas culturas e experiências daquele que pretende exercer a arte da interpretação. Implica também o movimento em direção a nós mesmos, não como objetificação de si mesmo, mas como busca por autocompreensão do modo como nos compreendemos em relação a nós mesmos e como sujeitos postos no mundo.

Disso, podemos reter que é no círculo hermenêutico, dinâmica pela qual o pesquisador mantém diálogo constante e vivo com a tradição de pensadores em educação, na esteira da linguagem e dos processos comunicativos, que encontramos um critério de demarcação de verdade da investigação hermenêutica. Essa tradição tem a historicidade como sua aliada, em que podem ser encontrados indícios de saberes que perduram como saberes válidos e que auxiliam na elaboração de conhecimentos na compreensão do fenômeno educacional presente.

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  • SIDI, Pilar de Morais; CONTE, Elaine. A hermenêutica como possibilidade metodológica à pesquisa em educação. Revista ibero-americana de estudos em educação, v. 12, n. 4, p. 1942-1954, . 2017. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/9270 Acesso em: 11 nov. 2022.
    » https://periodicos.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/9270
  • 1
    Com esse argumento não pretendemos menosprezar o saber popular e ordinário, mas destacar o caráter do saber acadêmico, que o distingue de tantas outras formas de saber e que tornam o saber acadêmico distinto em sua responsabilidade na produção e extensão desse saber.
  • 2
    É justamente nessa direção que vários autores têm alertado sobre certa fragilidade em relação às pesquisas no campo da educação. Dentre eles, podemos destacar a crítica de Charlot (2006) e Gatti (2012a, 2012b), que, além da questão da formação dos pesquisadores, enfatizam fragilidades adicionais no campo educacional. Apontam, como prováveis razões, o caráter multidisciplinar da área, que torna o campo tematicamente difuso e disperso e, de outra parte, a forte persistência da perspectiva metodológica-experimental do paradigma cientificista. A esse dilema, associa-se o debate sobre o estatuto próprio da educação, que ainda se mantém controverso em nossos dias, que já estava contemplado nas reflexões de autores como Johann Friedrich Herbart (2003, p. 11), que, ao final da sua vida, na obra Umriss pädagogischer Vorlesung (Esboços para um curso de pedagogia) de 1843, defendia, como fundamento ou objeto da pedagogia, a educabilidade do educando (Der Grundbegriff der Pädagogik ist die Bildsamkeit des Zöglings).
  • 3
    Nisso, evidencia a importância de uma formação consistente para a pesquisa e para além da pesquisa, para a qual nada contribuem o enxugamento e encurtamento do tempo de formação dos pesquisadores. A precarização dos currículos quanto ao recurso só tem contribuído para o “crescente pragmatismo e imediatismo que restringe parte da pesquisa educacional à temática da formação de professores” (DALBOSCO; SANTA; BARONI, 2018, p. 147).
  • 4
    Emprega-se aqui o termo experiência diverso de empiria, ou técnica, mas no sentido amplo de vivência como usado por autores como John Dewey (2010) e Johann Friedrich Herbart (2010). Sobre o tema, sugerimos a leitura de Schwenberg & Neitzel (2019), Neitzel(2015) e Boufleuer (2010).
  • 5
    Habermas(2013) defende que as ciências sociais não poderiam abrir mão da hermenêutica na pesquisa sem prejuízos, mas apresenta duas objeções em relação à hermenêutica de Gadamer: A primeira objeção (1) estaria ligada à posição de Gadamer, ao defender que, a “compressão se coloca de início em contextos não científicos”, em espaços da vida, como a literatura, mídias sociais, onde a hermenêutica filosófica teria a “tarefa de elucidar os processos de compreensão ordinários” sem ser, nesses espaços, uma tentativa de sistematizar ou comparar e analisar dados (HABERMAS, 2013, p. 38). Em seguida (2), a objeção não se liga à interpretação de modo geral, mas as questões específicas do processo técnico da interpretação, que poderiam ser contornados em “testes de validade e a confiabilidade dos instrumentos que poderiam evitar influências incontroladas que, de outro modo, se insinuariam na investigação a partir da complexidade não analisada e difícil de manejar da linguagem ordinária e da vida quotidiana” (HABERMAS, 2013, p. 38).
  • 6
    Essa posição de Hans-Georg Gadamer encontra coro em Hannah Arendt (2014), que afirma que é na dimensão especulativa do pensamento que se encontra a dimensão criativa e libertadora humana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2022
  • Aceito
    01 Nov 2022
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