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As representações da obrigatoriedade do uniforme escolar do ensino secundário na imprensa maranhense (1894-1904) 1 1 Disponibilidade de dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está citado no artigo e referenciado na seção “Fontes documentais”.

The representations of the obligatory nature of secondary school uniforms in the Maranhão press (1894-1904)

Resumo

Neste estudo se explanam as representações da obrigatoriedade do uniforme escolar liceísta que aparecem nas notícias publicadas nos jornais Pacotilha (1880-1939) e Diário do Maranhão (1855-1911), no intuito de se analisar até que ponto ditas representações podem ter influenciado nos processos de produção, indicação, aprovação, distribuição e uso deste artefato no período de 1894 a 1904. Objetiva-se compreender o alcance das representações da indumentária oficial do Liceu Maranhense nos processos de produção, distribuição e consumo deste artefato, apontando-se para a cultura escolar, a cultura material escolar e o uniforme escolar como categorias fundamentais que têm ênfase no estudo das representações e práticas. Caracteriza-se a pesquisa como bibliográfica e documental, apoiada nos pressupostos teórico-metodológicos da História Cultural, ao se cruzar notícias de jornais com leis e decretos, assim como com anais de congressos, mensagens e relatórios de governadores de estado. Conclui-se, que a avaliação do valor da aquisição de um objeto escolar deve considerar critérios históricos, econômicos, sociais e culturais que afetam a vivência dos indivíduos de forma coletiva e/ ou particular, podendo influenciar nos sentidos atribuídos ao vestir; portanto, contribui-se aqui com a História da Educação maranhense quando aponta para a diferenciação de práticas que marcam desigualdades nas formas de se conceber a indumentária, assim como na produção, circulação e uso, mesmo que se tenha imposto o mesmo uniforme a diferentes sujeitos num mesmo espaço escolar.

Palavras-chave
Uniforme escolar liceísta; Cultura escolar; Cultura material escolar; História da educação maranhense

Abstract

This study explains the representations of the obligatory nature of Liceu Secondary School’s uniform that appear in news published in the newspapers Pacotilha (1880-1939) and Diário do Maranhão (1855-1911), with the aim of analyzing to what extent these representations may have influenced the processes of production, indication, approval, distribution, and use of this artifact in the period from 1894 to 1904. The goal is to understand the extent of the representations of the official attire of Liceu Maranhense in the processes of production, distribution, and consumption of this artifact, pointing to school culture, school material culture, and school uniforms as fundamental categories which are emphasized in the study of representations and practices. The research is characterized as bibliographic and documentary, supported by the theoretical-methodological assumptions of Cultural History, by crossing newspaper news with laws and decrees, as well as with annals of congresses, messages, and reports of state governors. It is concluded that the evaluation of the value of acquiring a school object should consider historical, economic, social, and cultural criteria that affect the experiences of individuals in a collective and/or particular way, which can influence the meanings attributed to dressing; therefore, this contributes to the History of Education in Maranhão by pointing to the differentiation of practices that mark inequalities in the ways of conceiving attire, as well as in its production, circulation, and use, even though the same uniform was imposed on different subjects in the same school space.

Keywords
Secondary school uniform ; School culture ; School material culture ; History of Education in Maranhão

Introdução

O Colégio Pedro II, primeiro estabelecimento de ensino secundário do Brasil, aberto em 25 de março de 1838 no Rio de Janeiro (Lonza, 2005LONZA, Furio. História do uniforme escolar no Brasil. São Paulo: Rhodia: MEC, 2005.; Mendes, 2017MENDES, Silvan Sousa. A “ausência” de cor dos alunos no Lyceu do Maranhão (1871-1889). 2017. Monografia (Licenciatura em História) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017. Disponível em: https://monografias.ufma.br/jspui/bitstream/123456789/2195/1/SILVANMENDES.pdf . Acesso em: 5 set. 2021.
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; CEDOM, 2020CEDOM. Memória histórica do Colégio Pedro II, [S. l.: s. n.], 2020. Disponível em: http://www.cp2.g12.br/images/comunicacao/memoria_historica/index.html. Acesso em: 10 Jul. 2020.
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), serviu de modelo nacional para esse nível de instrução influenciando nas decisões de suas congêneres como, por exemplo, o Liceu Maranhense. Nos documentos relacionados ao Colégio conseguimos encontrar informações sobre a prescrição do uniforme desde a sua criação em 1837, mas não encontramos dados sobre a existência de uma indumentária padrão exigida durante os primeiros anos de funcionamento do Liceu, criado em 1838. Essa diferença pode ser entendida pelo ordenamento escolar: o Colégio era internato e externato; o Liceu, apenas externato, condição que se constitui em uma das principais críticas do jornal Pacotilha (1880-1939) quando se refere à obrigatoriedade, pois, segundo ele, apenas nos internatos é “em que o costume tem introduzido a obrigatoriedade d’um trajo determinado nas funcções escolares. Em todos os estabelecimentos do seu genero, ha plena liberdade a este respeito, guardada apenas a restricção imposta pela decencia” (PACOTILHA, 1894a, p. 2PACOTILHA. O uniforme dos estudantes. Jornal da Tarde, São Luís, v. 14, ed. 127, p. 2, 30 maio 1894a.).

Pelos estudos da imprensa, acreditamos que os primeiros traços sobre a obrigatoriedade de uma vestimenta oficial liceista no Maranhão surgiram a partir de maio de 1894, durante o período em que ocorria a Revolução Federalista (1893-1895), momento histórico utilizado como argumento por um grupo de alunos indicado como responsável pela solicitação do fardamento. Pelos argumentos, o uniforme escolar serviria como forma de evitar os constrangimentos oriundos do recrutamento forçado, situação em que um discente já teria sido vítima (PACOTILHA, 1894a, p. 2PACOTILHA. O uniforme dos estudantes. Jornal da Tarde, São Luís, v. 14, ed. 127, p. 2, 30 maio 1894a.). É nesse contexto que buscamos um panorama sobre o ensino secundarista maranhense durante a Primeira República, suas características, problemas e mudanças no tempo. Ao escolhermos trabalhar com os uniformes escolares entendemos que esse processo envolve estudar de forma simultânea a história das instituições, como esse objeto se insere nas suas dinâmicas e como pode ter afetado as práticas de forma individual ou coletiva. Nesse sentido, investigarmos em que medida as representações sobre a obrigatoriedade da indumentária oficial do Liceu Maranhense, registradas pelos jornais Pacotilha (1880-1939) e Diário do Maranhão (1855-1911) podem ter influenciado nos processos de produção, indicação, aprovação, distribuição e uso dos uniformes escolares no período de 1894 a 1904 é nossa problemática central, no intuito de compreender o papel dessas representações em ditos processos e no próprio uso da indumentária. Para isso, apontamos a cultura escolar, a cultura material escolar e o uniforme escolar como categorias fundamentais na perspectiva da História Cultural que têm ênfase no estudo das representações e práticas, delimitando o período de análises, em função de ser a fase em que encontramos maiores embates na imprensa sobre a inserção de um modelo específico de uniforme.

Os objetos escolares são inseridos em um ambiente que impõe formas de comportamentos que correspondem a regras institucionais previamente elaboradas (Julia, 2001JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, São Paulo, v. 1, n. 1. p. 9-43, 2001. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4250681/mod_resource/content/1/273-846-1-PB.pdf. Acesso em: 2 jul. 2022.
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). Porém, neste trabalho, o uniforme é analisado seguindo a tríade livro – leitura - leitor (Chartier, 1988CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Lisboa: Difel, 1988.); ou seja, mediados pela forma como o objeto é descrito na fonte (o objeto na sua materialidade a partir das representações), o que os sujeitos fazem com a imposição desse artefato (as práticas nas suas diferenças) e o contexto político, social ou econômico (a história das configurações sociais/culturais) em que estão inseridos (Nunes; Carvalho, 2005NUNES, Clarice; CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Historiografia da educação e fontes. In: GONDRA, José Gonçalves (ed.). Pesquisa em história da educação no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 49-62. Disponível em: https://anped.org.br/sites/default/files/caderno_anped_no.5_set_1993.pdf . Acesso em: 29 jun. 2020.
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; Castellanos, 2022aCASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Childhood of the artificer apprentices in Maranhão Empire (1841-1899). Paedagogica Historica, [S. l.], v. 6, p. 1-17, 2022a., 2022bCASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Livros de leituras nos manuais de civilidade como cultura material da escola maranhense para o ensino do ler e do vir-a-ser. Cadernos de História da Educação, v. 21, [S. l.], p. 1-21, 2022b.). Essa organização possibilita uma compreensão mais ampla da cultura material escolar, uma das inúmeras ramificações que compõem o universo da cultura, onde “os objetos escolares são [vistos como] artefatos tecnológicos produzidos socialmente e que carregam marcas do seu tempo” (Kinchescki; Sousa, 2017, p. 2KINCHESCKI, Ana Paula de Souza; SOUSA, Gustavo Rugoni de. A escola e seus objetos: reflexões sobre cultura material escolar. In: COLÓQUIO LUSO-BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO, 3., 2017, Joinville. Anais [...]. Joinville: Udesc, 2017. p. 1-3.).

De acordo com a nota divulgada pela primeira vez em 8 de junho de 1894 (MARANHÃO, 1894aDIÁRIO DO MARANHÃO: Jornal do Commercio, Lavoura e Indústria. Instrucção publica. v. 25. ed. 6231. São Luís: Typographia a Vapor de Frias Filho & Cª Succs, 1894a. p. 2. Publicado em 13 jun. 1894.), os alunos teriam até 10 de julho de 1894 para se adequarem à norma que tornou obrigatória a compra e uso do uniforme liceista idealizado em dois modelos: um mais barato de brim pardo com alamares e botões amarelos, e um mais caro, para quem tivesse condições de adquiri-lo, composto de blusa parda de botões pretos e bonet de aba verniz luzido, com um círculo na frente e um livro bordado em ouro (PACOTILHA, 1904PACOTILHA. O Manduca. Jornal da Tarde, São Luís, v. 24, ed. 2, p. 1, 1904.). A seguir, serão expostas diferentes apropriações dessa imposição, segundo os jornais em tela, e o que elas podem nos dizer sobre a trajetória desse objeto na cultura escolar do Liceu Maranhense; cultura que pode ser traduzida como “um conjunto de [...] normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas” (Julia, 2001, p. 10JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, São Paulo, v. 1, n. 1. p. 9-43, 2001. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4250681/mod_resource/content/1/273-846-1-PB.pdf. Acesso em: 2 jul. 2022.
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); finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização, a partir das quais, dita instituição define a sua organização material e orienta os modos de pensar (Viñao Frago, 1995VIÑAO FRAGO, Antonio. Historia de la educación e historia cultural. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 0, p. 63-82, set./dez. 1995.).

Das fontes aos fragmentos sobre o uniforme liceísta no Jornal Pacotilha e no Diário do Maranhão

Na busca da forma do objeto, lidamos com duas vertentes: de um lado, entender o que são os jornais e onde estão localizadas as notícias sobre o uniforme; do outro, como são as descrições em registro. Para isso, apresentamos informações gerais sobre estes impressos e duas notícias publicadas (com diversos ritmos de periodicidade segundo sua importância, vigência e projeção) que tratam de condições distintas da sua imposição3 3 - Essa exposição é um recorte da dissertação Vestir-se pela e para a escola: representações da obrigatoriedade do uso do uniforme escolar no Liceu Maranhense (1894-1909) defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Maranhão em 2022. Aqui optamos por verticalizar as análises em função de dois exemplos emblemáticos sobre a imposição/aceitação desta indumentária, na contramão de horizontalizar vários registros dentro de um conjunto de dados/situações, que mesmo complementando-se, apontam para outras abordagens. : no Diário do Maranhão (1855-1911), uma negação ao uniforme; no Pacotilha (1880-1939), o orgulho da posse do modelo original. Essa oposição refere-se às práticas particulares de grupos ou indivíduos que vivenciaram o período da sua obrigatoriedade simultaneamente e correspondem ditas argumentações aos dois primeiros eixos de análise propostos.

O jornal Pacotilha (1880-1939) foi criado por Victor Lobato (1854-1893) em 1880, o qual já tinha trabalhado no Jornal para todos (1876-1877) e n’A Flecha (1879-1880), o que pode ter contribuído para a permanência do Pacotilha no mercado. Já o Diário do Maranhão (1855-1911) como jornal comercial, foi fundado em 1855 por Torres Cunha (Jorge, 2008, p. 225JORGE, Sebastião. A imprensa do Maranhão no séc. XIX (1821-1900). São Luís: Lithograf, 2008.). Os propósitos são distintos. Raramente o Diário (1855-1911) abria espaço para o discurso opinativo, pois sua proposta atendia o comércio, a lavoura, a indústria e o Estado, na contramão do jornal Pacotilha (1880-1939) que, embora se projetasse também para esses assuntos, se constituía numa imprensa em conflito com decisões administrativas estatais desde a sua criação, tendo a opinião maior espaço na redação pelo seu caráter político de oposição.

Nesse universo de jornais com objetivos particulares, seguindo a proposta de Nunes e Carvalho (2005NUNES, Clarice; CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Historiografia da educação e fontes. In: GONDRA, José Gonçalves (ed.). Pesquisa em história da educação no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 49-62. Disponível em: https://anped.org.br/sites/default/files/caderno_anped_no.5_set_1993.pdf . Acesso em: 29 jun. 2020.
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) e de Castellanos (2022bCASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Livros de leituras nos manuais de civilidade como cultura material da escola maranhense para o ensino do ler e do vir-a-ser. Cadernos de História da Educação, v. 21, [S. l.], p. 1-21, 2022b.), a busca pela “história do objeto na sua materialidade”, de acordo com o primeiro eixo da história cultural, é nossa ação iniciática; ou seja, as representações via imprensa que se remetem à indumentária escolar a partir de quatro elementos cruciais: 1) a “forma” como aparecem as referências ao uniforme (recursos tipográficos e/ou imagéticos atribuídos ao discurso); 2) com qual “frequência” se registram (a periodicidade do artefato somado à frequência das formas), isto é, identificar não somente quantas vezes se publica uma mesma notícia, anúncio ou aviso, mas em quantas ocasiões dentro de uma forma específica se explicitam, tendo em contas as permanências, ausências e intermitências; 3) o “dispositivo” em uso (o jornal ou coluna em que a notícia aparece) e; 4) a “estrutura” das fontes que abrigam a problemática do uniforme (que outras informações circundam a notícia e o que podem apontar sobre as intenções do jornal e o contexto histórico do período); aspectos estes que nos encaminham para o segundo eixo de análise: a história das práticas nas suas diferenças4 4 - Esses critérios aplicados aos jornais têm sido estudados pelo Núcleo de Estudos ─ NEDHEL. Algumas informações podem variar, por isso, à medida em que novas análises vêm sendo realizadas, observamos e avaliamos sua aproximação com os pressupostos teórico-metodológicos da História Cultural e a variação dessa aplicação em cada objeto/fonte específicos. .

Entendendo a fonte histórica como “resíduos, vestígios, discursos e materiais de todos os tipos que, deixados pelos seres humanos historicamente situados no passado, chegaram ao tempo presente através de caminhos diversos” (Barros, 2019, p. 7BARROS, José D’Assunção. Fontes históricas: introdução aos seus usos historiográficos. Petropólis: Vozes, 2019.), toda caracterização da fonte é uma preparação exaustiva do material a ser analisado, uma separação de itens que particularizam uma forma específica de noticiar os acontecimentos, que falam sobre escolhas dos jornalistas em paralelo com o olhar do próprio pesquisador, afinal, “os jornais são instrumentos e campos de lutas [...]. Não há nada de neutro na mais simples escolha encaminhada pelo jornal acerca do que informar, de quando informar, de como informar” (Barros, 2019, p. 189BARROS, José D’Assunção. Fontes históricas: introdução aos seus usos historiográficos. Petropólis: Vozes, 2019.).

É válido destacar que, apesar de exaustiva, essa etapa inicial é um processo descritivo, que ajuda a organizar os recortes dos jornais, levantar e buscar dados sobre questões que ainda devem ser respondidas, pois a conversão em fonte só ocorre pela problematização:

Só se tornam fontes quando contém pistas de sentido para a solução de um enigma proposto. São sem dúvida, dados objetivos de um outro tempo, mas que dependem do historiador para revelar sentidos. Elas são, a rigor, uma construção do pesquisador e é por elas que se acessa o passado.

(Pesavento, 2012, p. 98PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.).

Nosso foco é no uniforme escolar do Liceu Maranhense, contudo, também nos deparamos com questões relacionadas ao processo de produção dos jornais compreendendo que suas características atendem a interesses e se moldam para um público-alvo que não se limita à escola, pois “as representações são também portadoras do simbólico [;] dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam” (Pesavento, 2012, p. 41PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.). Considerando esses alertas, o que os jornais maranhenses nos mostram? No Quadro 1 exibimos um exemplo das tabelas que serviram como estratégia de localização, mapeamento e análise dos registros levantados dos jornais:

Quadro 1 -
Características dos jornais

O que o quadro aponta enquanto dados iniciais: a) os subtítulos podem indicar objetivos, o subtítulo do jornal Diário do Maranhão (1855-1911), por exemplo, expõe seu aspecto comercial, na contramão do jornal Pacotilha (1880-1939) que mudou de Hebdomadário crítico e noticioso (1880), para Jornal da Tarde (1881), quando começou a garantir sua publicação diária; b) O título das notícias dos jornais ajuda a compreender qual é o foco das publicações relacionadas ao uniforme: de um lado, pertencer à coluna de atos oficiais, indicando que a obrigatoriedade do objeto dividia espaço com outros temas como nomeações, remoções de cadeiras públicas, despachos (requerimentos e resoluções diversas), dentre outras solicitações e/ ou decisões; do outro, o destaque é dado à experiência de um aluno em específico; c) a data e a periodicidade apontam para um recorte temporal que, colocado em panorama, permite visualizar as oscilações que as mudanças nas práticas dos sujeitos podem ter provocado com o passar dos anos, incluindo as alterações dos propósitos dos jornais; d) a identificação da equipe responsável pela publicação, incluindo a tipografia e o valor, exibem os processos de produção e os produtores dos jornais, que podem ser significativos para entender os recursos dessa imprensa e os seus custos de aquisição, além de nomear seus responsáveis. Observar essas diferenças entre as fontes permite que o pesquisador conheça “o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social e construída, pensada, dada a ler” (Chartier, 1988, p. 16–17CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. 2. ed. Lisboa: Difel, 1988.).

Apresentados esses dados gerais, explicaremos aspectos mais específicos sobre nosso recorte nas fontes, definição dos processos e o que informam as notícias selecionadas. Do Diário do Maranhão (1855-1911) extraímos um recorte que faz parte da coluna intitulada Atos Oficiais, publicada em 16 de junho de 1894: “Joaquim de Oliveira Santos e Francisco de Carvalho Filho, estudantes do Lyceu Maranhense, requerendo dispensa do uniforme que vão usar os estudantes do mesmo Lyceu - Não há que deferir” (DIÁRIO DO MARANHÃO, 1894c, p. 3DIÁRIO DO MARANHÃO: Jornal do Commercio, Lavoura e Indústria. Instrucção publica. v. 25. ed. 6234. São Luís: Typographia a Vapor de Frias Filho & Cª Succs, 1894c. p. 1-2. Publicado em 16 jun.1894.). Na primeira página da mesma edição encontramos a nota da Secretaria da Instrução Pública que informava a obrigatoriedade, texto que circulava com frequência na imprensa, incluindo o Pacotilha (1880-1939). A localização dessas informações sobre o uniforme na estrutura do Diário (1855-1911) permite inferir que, para esta imprensa, o Liceu Maranhense não tem destaque em relação a outras decisões estatais divulgadas; entretanto, ao colocarem na primeira página as regras impostas segundo a cultura escolar instaurada (Viñao Frago, 1995VIÑAO FRAGO, Antonio. Historia de la educación e historia cultural. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 0, p. 63-82, set./dez. 1995.) e, apenas na segunda, sem detalhes nem explicações, o indeferimento da solicitação dos dois alunos, a fonte parece ocultar intencionalmente o movimento contrário à obrigatoriedade; a negação aos modelos sugeridos e já considerados como cultura material da escola que apontaria para a identificação e pertencimento (Dussel, 2016DUSSEL, Inés. Cuando las apariencias no engañan: una historia comparada de los uniformes escolares en Argentina y Estados Unidos (siglos XIX-XX). Pro-posições, Campinas, v. 16, n. 1, p. 65-86, 2016. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643755/11270 . Acesso em: 8 nov. 2020.
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; Castro, 2013CASTRO, César Augusto (org.). Cultura material escolar: a escola e seus artefatos (MA, SP, PR, SC e RS, 1870-1925). São Luís: UFMA: Café & Lápis, 2013.; Castellanos, 2022aCASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Childhood of the artificer apprentices in Maranhão Empire (1841-1899). Paedagogica Historica, [S. l.], v. 6, p. 1-17, 2022a.). Para Barros (2019BARROS, José D’Assunção. Fontes históricas: introdução aos seus usos historiográficos. Petropólis: Vozes, 2019.), a forma como um texto é escrito implica diretamente na sua leitura, portanto, os produtores dos discursos ocupam um lugar de poder não apenas sobre o que é lido, mas também pela forma como essa leitura será realizada. Nesse caso, primeiro o leitor é informado de que já existia uma portaria em circulação, da qual Joaquim de Oliveira Santos e Francisco de Carvalho Filho, citados só na página seguinte, deveriam se adequar; segundo, e só na página seguinte, em linhas breves, é possível encontrar as solicitações de dispensa realizadas. Dessa forma, recorda-se que o uniforme faz parte de um conjunto de normas relacionadas à escola (Peres; Souza, 2013PERES, Eliane; SOUZA, Gisele de. Aspectos teóricos-metodológicos de pesquisa sobre cultura material escolar: (im)possibilidades de investigação. In: CASTRO, César Augusto (org.). Cultura material escolar: a escola e seus artefatos (MA, SP, PR, SC e RS, 1870-1925). 2. ed. São Luís: UFMA: Café & Lápis, 2013. p. 43-68.), utilizando-se recursos que reforçam o poder de quem impõe a norma (Bourdieu, 2011BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. 2. ed. Coimbra: Edições 70, 2011.) pelo uso de espaços específicos, seja na escola, seja na estrutura da imprensa.

Sobre as práticas, esses dois alunos trazem uma contribuição significativa. O registro da solicitação, apesar de ter sido negada, marca uma presença no tempo. Levando em consideração os jogos de poder, conforme discute Certeau (1998CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: as artes de fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1988.), a estratégia de imposição do uniforme é questionada pelas táticas de apropriação dos sujeitos, que incluem o uso de artifícios; requerimentos estes que utilizam para tentarem reverter, mesmo que individualmente, a decisão em favor próprio. Nessa lógica, classificamos a notícia como “distribuição versus uso”, pois embora a obrigatoriedade estivesse estabelecida, nem todos os alunos conseguiram ou desejaram adquirir nenhum dos modelos idealizados (ver Quadro 1). Em 16 de julho de 1894, após o prazo de adequação ter sido estendido de 10 de julho para 31 de julho de 1894 (DIÁRIO DO MARANHÃO, 1894dDIÁRIO DO MARANHÃO: Jornal do Commercio, Lavoura e Indústria. v. 15. ed. 6258. São Luís: Typographia a Vapor de Frias Filho & Cª Succs, 1894d. p. 2. Publicado em 16 jul. 1894.), o uso do uniforme foi flexibilizado para alunos que comprovassem estar concluindo o vigente curso. Seria essa a situação de Joaquim Santos e Francisco Filho? Não podemos afirmar! O que as fontes tornam evidente é que essas mudanças de prazo e a criação de uma exceção à regra alertam para um movimento relevante que coloca a rejeição ao uniforme em um lugar não restrito ao custo, mas a outras motivações/necessidades capazes de colocar a importância de ser identificado/reconhecido como liceísta em segundo plano.

O outro recorte traz uma perspectiva diferente no Pacotilha (1880-1939). Publica-se na primeira página, em 02 de janeiro de 1904, uma breve biografia de O Manduca5 5 - Não conseguimos afirmar, até o momento, se “Manduca” é um pseudônimo ou se a história é uma representação; isto é, um discurso criado como forma de sensibilizar e/ou denunciar sobre acontecimentos comuns a discentes com trajetórias escolares parecidas. : aluno negro que vestia com orgulho o uniforme indicado pela portaria de 8 de junho de 1894. Escrita por Joaquim Serra, não se faz ênfase no uniforme como artefato que faria parte da cultura material da escola; mas no percurso escolar e profissional desse aluno, expondo-se suas expectativas e frustrações. Notícia que classificamos como “uso” (ver Quadro 1), já que traz à baila as representações sentidas pelo corpo discente:

Desde o dia da portaria que impoz tal condição aos estudantes, muitos dos quaes abandonaram o Lyceu pelo enorme dispendio della, ninguem mais encontrou o Manduca que não fosse com a sua blusa parda de botões pretos e o seu bonet de aba verniz luzido, onde, na frente e num circo, rutilava em oiro bordado um livro, emblema dos estudiosos. Com que prazer conferiu o Manduca o seu fardamento com o original-modelo que executara o Ory que fôra collocado na Secretaria! Foi-lhe uma delicia, isso!.

(PACOTILHA, 1904, p. 1, grifo nosso)PACOTILHA. O Manduca. Jornal da Tarde, São Luís, v. 24, ed. 2, p. 1, 1904.

O trecho traz dados singulares. Primeiro, a redução da frequência de alunos do Liceu devido à imposição do uniforme pelo dispêndio criado, o que confirma a força do movimento contrário à obrigatoriedade enquanto tática de apropriação; segundo, na contramão, que Manduca não fora mais visto sem o seu original-modelo idealizado por Ory (o professor de desenho): mais caro e que continha em seu bonet o “emblema dos estudiosos”. Na esteira desses elementos, é necessário, em início, entendermos o universo desta notícia, para compreendermos as diferenças do significado do uniforme para além do custo.

Em 1904, os embates entre o jornal Pacotilha (1880-1939) e o Estado foram reduzidos em comparação ao período de 1894 a 1897. Nesses três anos, as críticas à imposição da sua obrigatoriedade em função da presença de alunos pobres no Liceu e de ter sido definida no meio do ano letivo, e não durante as matrículas, foram constantes. Essa mudança de posicionamento não foi por acaso: os julgamentos que precedem 1904 tinham como alvo o vice-governador Casimiro Dias Vieira Junior. Nesse sentido, a discussão era muito mais política, envolvendo várias ações do vice-governador, incluindo o vestuário liceísta, do que pedagógica ou administrativa. Além disso, a presença de um elogio ao uniforme, tão criticado no passado, na primeira página, também expressa as particularidades de um grupo específico que entre os séculos XIX-XX e até a atualidade lutam por reconhecimento. Nesse período, intelectuais negros entenderam que o acesso ao ensino era condição necessária, mas não suficiente, para romper as barreiras enraizadas historicamente pela discriminação. De acordo com Cruz (2016CRUZ, Mariléia dos Santos. A produção da invisibilidade intelectual do professor negro Nascimento Moraes na história literária maranhense, no início do século XX. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 36, n. 73, p. 209-230, 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1806-93472016v36n73-011.
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), um dos intelectuais que também vivenciara e denunciara a exclusão social de pessoas negras foi José do Nascimento Moraes. Escritor, professor e jornalista que produziu obras como Vencidos e degenerados (de 1915); Neurose do medo (de 1923) e Contos de Valério Santiago (de 1972).

Portanto, o orgulho de vestir o uniforme e, especificamente, o mais caro dos modelos, pode expressar uma conquista que é singular, pois indica que Manduca representava uma mudança na história. A relevância de ter um filho em um espaço que prometia privilégios em cargos públicos inspirava os sonhos do seu pai que “comovido, em lágrimas, assegurou que o Brasil seria governado pelos negros, quer os brancos quisessem ou não” (PACOTILHA, 1904, p. 1PACOTILHA. O Manduca. Jornal da Tarde, São Luís, v. 24, ed. 2, p. 1, 1904.). Nesse sentido, o uniforme compõe parte significativa da nova perspectiva social que se projeta, onde grupos sociais historicamente marginalizados começam a se ver em novos espaços, com recursos que lhes foram privados, adquirindo novos papéis. “O valor simbólico da formação intelectual, para esta família, dá para o uso do uniforme um peso particular [;] dizem mais do que aquilo que mostram ou enunciam” (Pesavento, 2012, p. 41PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.). Esses efeitos revelam a força das táticas de apropriação na função de reconhecer ou não um dado imposto, uma vez que, não sendo reconhecido não se materializa ou se mantém (Bourdieu, 2011BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. 2. ed. Coimbra: Edições 70, 2011.).

Neste sentido, mesmo que sejam duas notícias em análise, como exercício de reflexão, os diversos ritmos de periodicidade de ambas na documentação e as diversas formas e teores das publicações, segundo as ênfases dadas (importância, novidade, vigência e projeção), evidenciam como os indícios apontam para a configuração social em que a própria fonte está inserida para os contratantes interesses implícitos nos registros, e de como as escolhas do posicionamento da escrita na tipografia do suporte podem influenciar não só as formas de se ler e compreender o uniforme escolar, na época como artefato que faria parte da cultura material da escola após sua obrigatoriedade, como também a produção de diversos sentidos ao respeito que atendem ao primeiro eixo de análise da História Cultural: a história do objeto (o uniforme), na sua materialidade, via representações do jornal.

Para compreender o segundo eixo, detalhamos as ações dos sujeitos descritas nos discursos e suas possíveis motivações para negar a obrigatoriedade ou se adequar a ela como artefato imposto via cultura material da escola (Castellanos, 2022bCASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Livros de leituras nos manuais de civilidade como cultura material da escola maranhense para o ensino do ler e do vir-a-ser. Cadernos de História da Educação, v. 21, [S. l.], p. 1-21, 2022b.), pois não há “prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles” (Chartier, 1991, p. 177CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, abr. 1991. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40141991000100010. Acesso em: 10 set. 2021.
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). Nessa lógica, entendermos as configurações sociais/culturais instauradas (Nunes; Carvalho, 2005NUNES, Clarice; CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Historiografia da educação e fontes. In: GONDRA, José Gonçalves (ed.). Pesquisa em história da educação no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p. 49-62. Disponível em: https://anped.org.br/sites/default/files/caderno_anped_no.5_set_1993.pdf . Acesso em: 29 jun. 2020.
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), na análise do terceiro eixo, tendo em conta as mudanças psíquicas ou formas de pensar dos indivíduos com respeito ao uniforme como indumentária escolar imposta e as armaduras conceituais da época sobre a identificação/pertença de um indivíduo com um grupo ou uma instituição via artefato cultural analisadas em suas variações históricas (Castellanos, 2022aCASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Childhood of the artificer apprentices in Maranhão Empire (1841-1899). Paedagogica Historica, [S. l.], v. 6, p. 1-17, 2022a.), nos ajudam a compreender o contexto no qual se dinamizou o ensino secundário na Primeira República Maranhense e os aspectos inseridos na sua organização, funcionamento e ordenamento, já que não podemos interpretar as práticas desconsiderando as condições sociais e culturais de sua produção que podem influenciar, embora não determinem, as decisões de sujeitos ou grupos. Logo, a seguir buscamos quais representações sobre o Liceu Maranhense podem ter contribuído para a aquisição do uniforme como artefato da cultura material dessa escola, em paralelo com os aspectos que possam ter interferido na negação da sua imposição.

O Liceu Maranhense e as implicações no uso do uniforme

A identificação prometida pelo uso do uniforme conduz a uma necessidade que não se limita aos portões da escola. Em outras palavras, as roupas comunicam, funcionam como mecanismos úteis para transmitir uma mensagem (Borges, 2015BORGES, Letícia Oliveira. A produção de identidade através dos uniformes escolares: significado e conceituação. Revista do Lhiste, Porto Alegre, n. 3, v. 2, jul./ dez. 2015. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/revistadolhiste/article/view/59777. Acesso em: 16 jan. 2023.
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); portanto, procuramos na oficialização de um modelo de farda escolar o porquê da urgência da mensagem a ser transmitida e de onde parte o desejo pela leitura desses corpos em formação e socialização.

A obrigatoriedade do uniforme é um fator fundamental, pois marca uma mudança nas práticas em curso e na cultura escolar da instituição (Viñao Frago, 1995VIÑAO FRAGO, Antonio. Historia de la educación e historia cultural. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 0, p. 63-82, set./dez. 1995.; Dussel, 2016DUSSEL, Inés. Cuando las apariencias no engañan: una historia comparada de los uniformes escolares en Argentina y Estados Unidos (siglos XIX-XX). Pro-posições, Campinas, v. 16, n. 1, p. 65-86, 2016. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643755/11270 . Acesso em: 8 nov. 2020.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
; Borges, 2015BORGES, Letícia Oliveira. A produção de identidade através dos uniformes escolares: significado e conceituação. Revista do Lhiste, Porto Alegre, n. 3, v. 2, jul./ dez. 2015. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/revistadolhiste/article/view/59777. Acesso em: 16 jan. 2023.
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). A sua idealização surge como medida de segurança e identificação, embora sua aquisição tenha sido comprometida no primeiro ano, quando foi imposta, apesar da existência de alunos que optassem pela compra imediata, como Manduca. Essas informações não são dadas gratuitamente, motivo pelo qual os jornais precisaram ser analisados considerando as intencionalidades implícitas nos registros (Barros, 2019BARROS, José D’Assunção. Fontes históricas: introdução aos seus usos historiográficos. Petropólis: Vozes, 2019.). A partir daí, surgem algumas perguntas: qual a história institucional do Liceu? Que problemáticas estavam em curso? Quais os conflitos entre a sua imagem como única escola de ensino secundário maranhense e suas condições internas de funcionamento?

Desde a sua criação, em 1838, o Liceu já sofria problemas estruturais, estando localizado de forma adaptada no Convento do Carmo. Em 1890 é transferido para um prédio alugado na Rua Formosa, número 26, que mais tarde fora comprado (1893), como tentativa de fixar a escola e resolver instabilidades organizacionais. Um dos agentes responsáveis pelas novas medidas foi Luiz Ory (Teixeira, 1899TEIXEIRA, Gaspar. Maranhão illustrado. v. 1. São Luiz: [s. n.], 1899. Disponível em: http://casas.cultura.ma.gov.br/portal/sgc/modulos/sgc_bpbl/acervo_digital/arq_ad/20150723155400.pdf.Acesso em 08 abr. 2020.
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), o mesmo professor responsável pela idealização do modelo oficial do uniforme liceísta em conjunto com os estudantes, de acordo com o jornal Pacotilha (1880-1939). Neste mesmo prédio, em 1894, funcionavam também a Secretaria da Instrução Pública e a Escola Normal (MARANHÃO, 1894MARANHÃO. Congresso do Estado do Maranhão. Anais [...]. São Luís: [s. n.], 1894. Acta da sessão ordinária em 15 de junho de 1894. Disponível em: http://casas.cultura.ma.gov.br/ Acesso em: 12 mar. 2021.
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), instituições estas que dividiam não só o espaço físico, mas também uma série de atribuições, sendo comum que um mesmo professor atuasse nesses três estabelecimentos e em outros cargos, notadamente na política; acúmulo de funções que no período imperial pode ter prejudicado o exercício qualitativo da docência, ao mesmo tempo, que refletia o leque de oportunidades e favorecimentos que a administração pública abria para quem tinha acesso a uma formação intelectual mais abrangente, na contramão da que estava disponível para a maioria da população (Ribeiro, 2006RIBEIRO, Vânia Mondego. A implantação do ensino secundário público maranhense: Liceu Maranhense. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2006. Disponível em: https://tedebc.ufma.br/jspui/bitstream/tede/137/1/VaniaMondego.pdf. Acesso em: 10 jul. 2020.
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). Público elitizado que manteve em funcionamento até a República, dinâmicas de poder instauradas, não sendo tão simples alterá-las o quanto sonhara Manduca. Luiz Ory, por exemplo, estava à frente da nova organização do Liceu, do uniforme e das aulas, o que possibilita refletir sobre o nível de influência de intelectuais em tantos espaços de poder simultaneamente: na política, na imprensa, na escola e na economia local, por exemplo, que interferiram na cultura escolar dos espaços escolares, especificamente no Liceu Maranhense, como lugar de referência do ensino Secundário e na cultura material em uso, que estimularam a produção de novos sentidos.

O uniforme pode ter sido uma ferramenta pensada para garantir a segurança dos alunos mediante as abordagens violentas do recrutamento, ao mesmo tempo em que surge numa fase de reorganização do Liceu: duas ações lideradas por um mesmo nome e um mesmo professor, Luiz Ory. Condições distintas que parecem atender a um interesse comum, padronizar o vestuário dos liceístas a fim de identificá-los. Bourdieu (2011BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. 2. ed. Coimbra: Edições 70, 2011.) explica que o simbólico, aqui representado pela roupa, se for reconhecido, pode exercer “um poder quase mágico” de mobilização equivalente ao que é “obtido pela força (física ou econômica)” (Bourdieu, 2011, p. 14BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. 2. ed. Coimbra: Edições 70, 2011.). Portanto, se considerarmos o panorama social do recrutamento forçado, contrariando a ideia de que essa vestimenta prejudicaria os alunos mais pobres do Liceu, muito usada pelo Pacotilha (1880-1939), poderíamos afirmar que apesar dos custos em discussão, simbolicamente teria muito mais valor para este grupo do que para outros pela própria vulnerabilidade instituída; embora não tenhamos identificado nas fontes se a comissão de alunos que emitira verbalmente o desejo pelo uniforme seja composta por uma classe social específica. Dessa forma, o valor financeiro e simbólico não pode ser definido em hiato com o contexto político, social, cultural e econômico maranhense; afinal, a força do poder do simbólico reside na relação entre quem impõe e quem está sujeito à imposição “na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença” (Bourdieu, 2011, p. 14–15BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. 2. ed. Coimbra: Edições 70, 2011.).

Porém, observamos uma incongruência entre o peso do valor simbólico e a baixa aquisição do uniforme, o que nos fez levantar ainda mais questões. O que faz com que, no mesmo lugar e tempo de alunos como Manduca, que se orgulhavam tanto pelo uso do uniforme, considerando o significado da formação intelectual e suas promessas profissionais, só um ínfimo número tenha se adequado às regras no prazo inicialmente indicado? Para entender porque o uniforme sempre aparece em segundo plano como artefato da cultura material do estabelecimento, é fundamental conhecer alguns dos problemas que podem ter afetado sua aquisição e as novas determinações a respeito.

Ter um prédio próprio não resolveu a instabilidade organizacional do Liceu e pode explicar porque a obrigatoriedade do uniforme não teve a receptividade esperada. De 1894 a 1905, foi constatada uma oscilação frequente de matrículas e da grade curricular expondo uma constante tentativa de atender à formação prevista pelo Ginásio Nacional, somada a outras necessidades de formação para o setor comercial do Estado. Em 1894 havia cerca de 125 alunos matriculados em diferentes aulas (MARANHÃO, 1895MARANHÃO. Relatório apresentado ao exm. sr. Capitão-Tenente Manoel Ignacio Belfort Vieira pelo 1° Vice-Governador exm. sr. Dr. Casimiro Dias Vieira Junior em 2 de fevereiro de 1895. [S. l.: s. n.], 1895. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 16 jan. 2022.
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); em 1897 o número de matrículas no primeiro ano de curso foi de 59 e 31 de inscrições avulsas, totalizando 90 entre matriculados e inscritos (MARANHÃO, 1897MARANHÃO. Mensagem com que o exm. sr. Manoel Ignacio Belfort Vieira apresentou ao Congresso do Estado em 18 de fevereiro de 1897. [S. l.: s. n.], 1897. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 9 dez. 2021.
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). Com a reforma do Liceu Maranhense, pela Lei n. 226 de 15 de abril de 1899 (MARANHÃO, 1899MARANHÃO. Lei n. 226 de 15 de abril de 1899. Estabelece a reforma do Liceu Maranhense. [S. l.: s. n.], 1899. Disponível em: http://casas.cultura.ma.gov.br/portal/sgc/modulos/sgc_bpbl/acervo_digital/arq_ad/20150831151628.pdf. Acesso em: 17 fev. 2021.
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), a escola passou a ter, além de 23 disciplinas, um curso noturno de comércio anexo (com duração de dois anos), composto pelas cadeiras de francês, inglês e alemão (todas práticas); aritmética comercial e escrituração mercantil; e noções de direito comercial. Os critérios de matrícula eram os mesmos exigidos dos liceístas.

Em 1900, pela Lei n. 232 de 5 de março, o Liceu foi separado da Secretaria da Instrução Pública e desanexado do Curso Comercial “o qual funcionar[ia] no edifício do Liceu ou da Escola Normal, conforme julga[sse] o Governo mais conveniente” (MARANHÃO, 1900, p. 3MARANHÃO. Lei n. 232 de 5 de março de 1900. Separa o Lyceu a Secretaria da Instrução Pública e dá outras providências. In: MARANHÃO. Coleção das Leis do Estado do Maranhão de 1900. [S. l.: s. n.], 1900. Disponível em: http://casas.cultura.ma.gov.br/. Acesso em: 9 ago. 2021.
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). No dia 30 de março de 1900 o local designado para a Secretaria foi o pavimento térreo do Convento N. S. das Mercês, ocorrendo a sua instalação em 2 de abril de 1901 (MARANHÃO, 1901MARANHÃO. Mensagem apresentada ao Congresso do Estado em 13 de fevereiro de 1901 pelo Exm. Sr. Governador Dr. João Gualberto Torreão da Costa. [S. l.: s. n.], 1901. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 24 dez. 2021.
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).

Transferido o Liceu para o antigo Seminário das Mercez, só teve começo o ano letivo em abril, funcionando as aulas apenas seis meses, do que certamente resultou o grande número de inabilitações na última série de exames, quando se procedeu com justiça, mas não rigorosamente. É bom notar a progressão decrescente, de ano para ano, na matrícula de alunos, fato aliás de fácil compreensão. Tendo os mesmos alunos a certeza de que, prestados certos exames gerais, se habilitam à matrícula nas diversas Academias, preferem fazê-los, abstendo-se de seguir o curso de Ciências e Letras, durante muitos anos, na dúvida de serem bem sucedidos em todas as matérias de cada um.

(MARANHÃO, 1901, p. 12MARANHÃO. Mensagem apresentada ao Congresso do Estado em 13 de fevereiro de 1901 pelo Exm. Sr. Governador Dr. João Gualberto Torreão da Costa. [S. l.: s. n.], 1901. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 24 dez. 2021.
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).

De acordo com o relatório, as matrículas foram diminuindo no decorrer do tempo pois, sabendo que só precisariam ser aprovados nos exames para se habilitarem para as diversas academias do país, muitos alunos começaram a optar por não realizar o curso de Ciências e Letras, fazendo apenas o exame (MARANHÃO, 1901MARANHÃO. Mensagem apresentada ao Congresso do Estado em 13 de fevereiro de 1901 pelo Exm. Sr. Governador Dr. João Gualberto Torreão da Costa. [S. l.: s. n.], 1901. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 24 dez. 2021.
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). Em 1905, dos 61 alunos matriculados, 43 se inscreveram apenas nas aulas avulsas. Para João Nepomuceno de Souza Machado, redator do relatório da Secretaria da Instrução Pública (MARANHÃO, 1905MARANHÃO. Mensagem apresentada ao Congresso do Estado em 16 de fevereiro de 1905 pelo Exm. Sr. Coronel. Alexandre Colares Moreira Junior, 1.° vice-governador. [S. l.: s. n.], 1905. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 25 nov. 2021.
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), a alternativa de realizar os exames sem precisar estar matriculado no curso completo colocava em dúvida as vantagens do ensino seriado. Associa-se a isso as mudanças de currículo que comprometiam o planejamento das aulas implicando em inabilitações (MARANHÃO, 1901MARANHÃO. Mensagem apresentada ao Congresso do Estado em 13 de fevereiro de 1901 pelo Exm. Sr. Governador Dr. João Gualberto Torreão da Costa. [S. l.: s. n.], 1901. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 24 dez. 2021.
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), o que também pode ter reduzido o interesse na realização dos cursos liceístas e, por consequência, no uso dos elementos que faziam parte da sua rotina, como o uniforme.

Aparentemente a redução das matrículas não era apenas um problema local. Segundo Pessanha e Brito (2014PESSANHA, Eurize Caldas; BRITO, Silvia Helena Andrade de. Ensino secundário ou educação secundária? Controvérsias e singularidades na escrita de sua história. Série-Estudos, Campo Grande, n. 38, p. 237-250, 2014. Disponível em: https://www.serie-estudos.ucdb.br/serie-estudos/article/view/750. Acesso em 18 maio 2021.
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), desde o Império a clientela escolar “pouco numerosa, bem como a falta de professores habilitados a atender as exigências impostas pela organização do trabalho didático proposta para o ensino secundário, foram alguns dos determinantes a dificultar tal iniciativa” (Pessanha; Brito, 2014, p. 242PESSANHA, Eurize Caldas; BRITO, Silvia Helena Andrade de. Ensino secundário ou educação secundária? Controvérsias e singularidades na escrita de sua história. Série-Estudos, Campo Grande, n. 38, p. 237-250, 2014. Disponível em: https://www.serie-estudos.ucdb.br/serie-estudos/article/view/750. Acesso em 18 maio 2021.
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). Para as autoras, no Colégio Pedro II, no período imperial, houve uma queda entre a quantidade de alunos matriculados no primeiro ano e no último, resultado do abandono daqueles que acabavam recorrendo aos exames parcelados. Queda que também foi observada na Primeira República Maranhense: 1° (12 matrículas), 2° (3), 3° (1), 4° (1), 5° (1), 6° (0 – nenhuma); Alunos avulsos (43) (MARANHÃO, 1905MARANHÃO. Mensagem apresentada ao Congresso do Estado em 16 de fevereiro de 1905 pelo Exm. Sr. Coronel. Alexandre Colares Moreira Junior, 1.° vice-governador. [S. l.: s. n.], 1905. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 25 nov. 2021.
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). Isso pode indicar que o abandono escolar no ensino secundário não estava diretamente relacionado ao uniforme; mas a obrigatoriedade pode ter sido um agravante mediante o custo da matrícula que já era um fator decisivo na exclusão da maioria da população das aulas secundaristas. Se fosse sugerido na matrícula a obrigatoriedade desse artefato, quais seriam as chances de obter uma queda ainda maior no número de inscritos?

Recordamos que os alunos não precisavam se matricular no curso completo para realizar os exames e obter o diploma. Até 1895, a taxa de matrícula era de 5$000 réis por inscrição em cada aula, valor reclamado via petição pelos estudantes. Como resultado da solicitação, a taxa se tornou anual (MARANHÃO, 1895MARANHÃO. Relatório apresentado ao exm. sr. Capitão-Tenente Manoel Ignacio Belfort Vieira pelo 1° Vice-Governador exm. sr. Dr. Casimiro Dias Vieira Junior em 2 de fevereiro de 1895. [S. l.: s. n.], 1895. Disponível em: http://ddsnext.crl.edu/. Acesso em: 16 jan. 2022.
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). Seguindo essa média de valor reclamada somada ao fato de não ser necessário frequentar o curso completo para realizar os exames, quais as condições dos alunos e a importância de adquirir o uniforme se o mais barato custava em torno de 35$000 (PACOTILHA, 1894bPACOTILHA. Uniforme de estudantes. Jornal da Tarde, São Luís, v. 14, ed. 140, p. 2, jun. 1894b.). Acreditamos que a aquisição pode ter sofrido uma queda, pelas incertezas dos próprios alunos sobre suas condições de concluir os estudos na instituição resultando na facultatividade decretada em 1898 por Cunha Martins6 6 - Alfredo da Cunha Martins (1842-1916) foi um maranhense formado em direito (PE, 1866) e no Maranhão atuou em várias funções: foi promotor público em Caxias e Brejo (MA, 1868-1872); juiz municipal de Barreirinhas (MA, entre 1873-1877); juiz de direito em Grajaú (1877), sendo transferido para Cametá (PA, 1883). Retornou para São Bento (MA, entre 1885-1889), quando seria transferido em seguida para Corumbá (MT); mas aposentou-se. Na política, foi deputado provincial do Maranhão (1874-1875) pelo partido Conservador. Na República foi eleito deputado estadual; depois, segundo vice-presidente do M. (1892-1893), retornando ao governo em 1895; 1897 e 1898, com pausas nestes anos. Atuou como deputado federal do MA de 1898 a 1902. (CPDOC, 2013, não paginado). . Sendo assim, compreende-se que o uniforme não perde seu status de artefato da cultura material escolar imposto ao não ser adquirido; ao contrário, a sua negação apenas sinaliza fragilidades na relação entre o público e o funcionamento da escola como cultura escolar específica, pelas condições que a própria instituição estabeleceu em função de suas necessidades e propósitos, abrindo brechas para que alguns artefatos fossem opcionais.

Por isso, é fundamental compreender que a busca pelo reconhecimento do pertencimento à instituição só pode ser compreendida a partir da identidade:

Uma construção simbólica de sentido, que organiza um sistema compreensivo a partir da ideia de pertencimento. A identidade é uma construção imaginária que produz coesão social, permitindo a identificação da parte com o todo, do indivíduo frente a uma coletividade, e estabelece a diferença. A identidade é relacional, pois ela se constitui a partir da identificação de uma alteridade. Frente ao eu ou ao nós do pertencimento se coloca a estrangeiridade do outro.

(Pesavento, 2012, p. 89–90PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.).

Se a identidade é o aspecto basilar para construção do pertencimento, precisamos, em primeiro lugar, encontrar o eu do uniforme do Liceu. Quem é determinante, quem predomina, quem se coloca frente a esse outro, o estrangeiro que está à margem dessa relação decisória e o porquê. Um eu que é individual e coletivo e ainda está sendo, aos poucos, consultado nas mais diversas fontes deixadas nos trilhos da história. Diante de todas essas condições adversas de funcionamento, Joaquim de Oliveira Santos, Francisco de Carvalho Filho e Manduca são alunos que representam singularidades dentro de um mesmo grupo e período, por meio de suas práticas, expondo ramificações decisórias que expõem a multiplicidade histórica dos sujeitos que interagem com/nas instituições em função das culturas escolares instituídas e dos usos dos suportes que podemos classificar como “produtos da cultura material escolar” (Castellanos, 2022b, p. 143CASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Livros de leituras nos manuais de civilidade como cultura material da escola maranhense para o ensino do ler e do vir-a-ser. Cadernos de História da Educação, v. 21, [S. l.], p. 1-21, 2022b.), por imposição ou consenso.

Considerações finais

Nas pesquisas realizadas nos jornais Pacotilha (1880-1939) e Diário do Maranhão (1855-1911) identificamos 3 casos distintos que relatam sentidos opostos atribuídos à obrigatoriedade do uniforme escolar no Liceu Maranhense na Primeira República. Se os requerimentos de dispensa dos modelos sugeridos no Diário (MARANHÃO, 1895bMARANHÃO. Congresso do Estado do Maranhão. Anais [...]. São Luís[: . n.], 1895. 1.ª Sessão Ordinária da 2.ª Legislatura. Disponível em: http://casas.cultura.ma.gov.br/. Acesso em: 24 out. 2021.
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) sugerem a presença indelével dos discentes na história da instituição via registro de solicitação, que marcam transgressões às regras pretensamente impostas, embora tenham sido negados pelo Estado; no Pacotilha (1904PACOTILHA. O Manduca. Jornal da Tarde, São Luís, v. 24, ed. 2, p. 1, 1904.), na contramão, um relato de memória sobre a vida de Manduca, descreve a relação positiva com o uniforme, do qual sente orgulho em vesti-lo. Nos primeiros, as motivações ao pedido de dispensa não são explicitas na documentação, o que provavelmente envolve alto custo e/ ou insegurança quanto ao tempo de permanência no curso; no segundo, o orgulho da indumentaria que simboliza destaque/pertença pode justificar-se pela história de vida enquanto aluno negro de uma instituição elitizada que prometia oportunidades a seus egressos. Enfim, esses dois olhares/posicionamentos contrapostos apontam para a produção de sentidos diversos em dependência do significado que tiveram os objetos da cultura material escolar em função da pluralidade de corpos, das vivências e de seus usos num mesmo espaço. Desse modo, a aquisição ou não do uniforme não pode ser restrita a critérios econômicos, embora sejam elemento fundamental, já que questões simbólicas, sociais e culturais intrinsecamente latentes devem ser mobilizadas e analisadas à luz da História Cultural para descortinar diversas práticas em função de um mesmo objeto que geram a diferenciação, e por tanto, desigualdades.

Referências

  • BARROS, José D’Assunção. Fontes históricas: introdução aos seus usos historiográficos. Petropólis: Vozes, 2019.
  • BORGES, Letícia Oliveira. A produção de identidade através dos uniformes escolares: significado e conceituação. Revista do Lhiste, Porto Alegre, n. 3, v. 2, jul./ dez. 2015. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/revistadolhiste/article/view/59777 Acesso em: 16 jan. 2023.
    » https://seer.ufrgs.br/index.php/revistadolhiste/article/view/59777
  • BOURDIEU, Pierre. O poder do simbólico. 2. ed. Coimbra: Edições 70, 2011.
  • CASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Childhood of the artificer apprentices in Maranhão Empire (1841-1899). Paedagogica Historica, [S. l.], v. 6, p. 1-17, 2022a.
  • CASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Livros de leituras nos manuais de civilidade como cultura material da escola maranhense para o ensino do ler e do vir-a-ser. Cadernos de História da Educação, v. 21, [S. l.], p. 1-21, 2022b.
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  • VIÑAO FRAGO, Antonio. Historia de la educación e historia cultural. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 0, p. 63-82, set./dez. 1995.
  • 3 -
    Essa exposição é um recorte da dissertação Vestir-se pela e para a escola: representações da obrigatoriedade do uso do uniforme escolar no Liceu Maranhense (1894-1909) defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Maranhão em 2022. Aqui optamos por verticalizar as análises em função de dois exemplos emblemáticos sobre a imposição/aceitação desta indumentária, na contramão de horizontalizar vários registros dentro de um conjunto de dados/situações, que mesmo complementando-se, apontam para outras abordagens.
  • 4 -
    Esses critérios aplicados aos jornais têm sido estudados pelo Núcleo de Estudos ─ NEDHEL. Algumas informações podem variar, por isso, à medida em que novas análises vêm sendo realizadas, observamos e avaliamos sua aproximação com os pressupostos teórico-metodológicos da História Cultural e a variação dessa aplicação em cada objeto/fonte específicos.
  • 5 -
    Não conseguimos afirmar, até o momento, se “Manduca” é um pseudônimo ou se a história é uma representação; isto é, um discurso criado como forma de sensibilizar e/ou denunciar sobre acontecimentos comuns a discentes com trajetórias escolares parecidas.
  • 6 -
    Alfredo da Cunha Martins (1842-1916) foi um maranhense formado em direito (PE, 1866) e no Maranhão atuou em várias funções: foi promotor público em Caxias e Brejo (MA, 1868-1872); juiz municipal de Barreirinhas (MA, entre 1873-1877); juiz de direito em Grajaú (1877), sendo transferido para Cametá (PA, 1883). Retornou para São Bento (MA, entre 1885-1889), quando seria transferido em seguida para Corumbá (MT); mas aposentou-se. Na política, foi deputado provincial do Maranhão (1874-1875) pelo partido Conservador. Na República foi eleito deputado estadual; depois, segundo vice-presidente do M. (1892-1893), retornando ao governo em 1895; 1897 e 1898, com pausas nestes anos. Atuou como deputado federal do MA de 1898 a 1902. (CPDOC, 2013, não paginadoCPDOC. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. MARTINS, Alfredo da Cunha. [S. l.], Cpdoc, 2013. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/MARTINS,%20Alfredo%20da%20Cunha.pdf. Acesso em: 8 jun. 2021.
    https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files...
    ).
  • 1
    Disponibilidade de dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está citado no artigo e referenciado na seção “Fontes documentais”.

Editado por

Editor
Prof. Dr. Roni Cleber Dias Menezes

Disponibilidade de dados

Disponibilidade de dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está citado no artigo e referenciado na seção “Fontes documentais”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2022
  • Aceito
    15 Maio 2023
  • Revisado
    24 Abr 2023
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