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Abandono e evasão escolar sob a ótica dos sujeitos envolvidos

School withdrawal and dropout from the stakeholders’ perspective

Resumo

Este artigo buscou refletir sobre as concepções relativas ao abandono e à evasão escolar por parte de agentes públicos que atuam junto à população juvenil num município de porte médio do interior paulista. Visou-se também dar voz aos beneficiários dessas políticas públicas para conhecer suas realidades e perspectivas sobre suas vivências. Para tanto, foram realizadas dezesseis entrevistas com educadores e profissionais da rede de proteção, dois jovens que passaram pela situação de abandono/evasão e a mãe de um deles. Como referencial analítico foi utilizada a abordagem hermenêutico-dialética. Em relação aos resultados, observou-se que se trata de um problema complexo, com diversos fatores pertencentes às dimensões escolar, socioeconômica, familiar e da singularidade do adolescente, que se entrelaçam e dificultam sua resolução, trazendo a vulnerabilidade social como contexto de risco para o fenômeno. Verificou-se também diferenças nos sentidos atribuídos pelos atores institucionais para as mesmas categorias, o que pode ampliar a compreensão sobre o tema, mas também sugerir divergências nos olhares, tornando as práticas intersetoriais no enfrentamento do problema um desafio.

Palavras-chaves
Abandono escolar; Evasão escolar; Intersetorialidade; Adolescência; Políticas públicas

Abstract

This article sought to think over the concepts associated with school withdrawal and dropout expressed by public agents working with young population in a medium-size city in the countryside of the state of São Paulo. The aim was also to allow beneficiaries of school public programs to voice their thoughts in order to learn about their realities and perspectives based on their experience. Thus, 16 interviews were carried out with educators and professionals working in the public protection network as well as with two youngsters who experienced withdrawal/dropout, and the mother of one of them. The hermeneutic-dialectic approach was used as an analytical framework. Regarding the survey outcome, it was observed that this is a complex problem, with several factors involving the school, the families´ socioeconomic conditions and dimensions, and the uniqueness of the adolescent individual; these factors intertwine and make it difficult to resolve the problem, resulting in social vulnerability as a risky context for the phenomenon. There were also differences in the meanings the institutional players assign to the same categories, which can help improve the understanding of the matter; however, it also indicates the existence of different views, which turn the intersectoral practices intended to tackle the problem into a challenging proposition.

Keywords
School withdrawal ; School dropout ; Intersectorality ; Adolescence ; Public policies

A educação é um dos direitos fundamentais contemplados na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente ( Brasil, 1988BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. , 1990)BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente, Câmara dos Deputados. Diário Oficial da União, Brasília, DF, seção 1, ano 128, n. 135, p. 1, 16 jul. 1990. . A efetivação desse direito não consiste somente no acesso, mas também na permanência nas escolas. Diversos aspectos agem diretamente sobre a qualidade da educação, o desempenho e motivação dos estudantes, sendo o abandono e a evasão escolar situações que trazem consequências significativas no âmbito pessoal e social. Há uma diferença conceitual entre abandono e evasão escolar: o abandono ocorre quando o estudante deixa a escola antes do final do ano letivo, sendo possível que ele retorne no ano seguinte e matricule-se novamente; já a evasão acontece quando o estudante matriculado não conclui seus estudos naquele ano nem retorna nos anos seguintes ( Santos et al. , 2019 SANTOS, Mariana Cristina Silva et al. Programa Bolsa Família e indicadores educacionais em crianças, adolescentes e escolas no Brasil: revisão sistemática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 6, p. 2233-2247, 2019. ).

Pesquisas apontam que há diferentes fatores que agem sobre o abandono escolar, sejam relacionados ao contexto escolar ou fora dele ( Silva, 2016SILVA, Patricia Borges Coutinho da; REZENDE, Nayane Caldeira; QUARESMA, Teresa Cristina Correia. Sobre o sucesso e o fracasso no Ensino Médio em 15 anos (1999 e 2014). Ensaio, Rio de Janeiro, v. 24, n. 91, p. 445-476, 2016. ; Soares et al. , 2015 SOARES, Tufi Machado et al. Fatores associados ao abandono escolar no ensino médio público de Minas Gerais. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 3, p. 757-772, 2015. ). A desigualdade social tem efeitos diretos: fatores como morar em bairros periféricos ( Carrano; Marinho; Oliveira, 2015CARRANO, Paulo Cesar Rodrigues; MARINHO, Andreia Cidade; OLIVEIRA, Viviane Netto Medeiros de. Trajetórias truncadas, trabalho e futuro: jovens fora de série na escola pública de ensino médio. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, p. 1439-1454, 2015. Edição especial. ), não ter escola próxima à casa ( Neri, 2009NERI, Marcelo. O tempo de permanência na escola e as motivações dos sem-escola. Rio de Janeiro: CPS/FGV, 2009. ), ser negro ( Alves; Ortigão; Franco, 2007ALVES, Fátima; ORTIGÃO, Isabel; FRANCO, Creso. Origem social e risco de repetência: interação raça-capital econômico. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 130, p. 161-180, 2007. ; Carvalho, 2016CARVALHO, Marília Pinto de. O fracasso escolar de meninos e meninas: articulações entre gênero e cor/raça. Cadernos Pagu, Campinas, n. 22, p. 247-290, 2016. ), ter pais com baixa escolaridade ( Honda, 2007HONDA, Kátia Morinaga. Um estudo sobre determinantes do atraso escolar. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. ; Salata, 2019SALATA, André. Razões da evasão: abandono escolar entre jovens no Brasil. Intersecções, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 99-128, 2019. ), ser de família monoparental ( Salata, 2019SALATA, André. Razões da evasão: abandono escolar entre jovens no Brasil. Intersecções, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 99-128, 2019. ) e ter um número maior de irmãos ( Soares et al. , 2015 SOARES, Tufi Machado et al. Fatores associados ao abandono escolar no ensino médio público de Minas Gerais. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 3, p. 757-772, 2015. ) diminuem a possibilidade de conclusão dos estudos. Com relação aos fatores escolares, o atraso é um dos mais importantes preditores do problema, pois quanto maior a defasagem idade-série, maior é o risco do abandono ( Fritsch et al. , 2019 FRITSCH, Rosangela et al. Percursos escolares de estudantes do ensino médio de escolas públicas do município de São Leopoldo, RS: desempenho escolar, perfil e características. Ensaio, Rio de Janeiro, v. 27, n. 104, p. 543-567, 2019. ; Soares et al. , 2015 SOARES, Tufi Machado et al. Fatores associados ao abandono escolar no ensino médio público de Minas Gerais. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 3, p. 757-772, 2015. ). Acredita-se que a evasão escolar é o ápice de um processo contínuo de desengajamento entre estudante e escola, não ocorrendo de forma repentina, pois os sinais aparecem previamente ( Carrano; Marinho; Oliveira, 2015CARRANO, Paulo Cesar Rodrigues; MARINHO, Andreia Cidade; OLIVEIRA, Viviane Netto Medeiros de. Trajetórias truncadas, trabalho e futuro: jovens fora de série na escola pública de ensino médio. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 41, p. 1439-1454, 2015. Edição especial. ).

Considerando que o fenômeno estudado é marcado por situações de vulnerabilidade, o conceito aqui adotado é o trazido por Carmo e Guizardi ( 2018, p. 2CARMO, Michelly Eustáquia do; GUIZARDI, Francini Lube. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 3, e00101417, 2018. ), que coloca sua gênese multifatorial, “não estritamente condicionada à ausência ou precariedade no acesso à renda, mas atrelada também às fragilidades de vínculos afetivo-relacionais e desigualdade de acesso a bens e serviços públicos”. É nesse sentido que a vulnerabilidade produz a ocorrência de incertezas e inseguranças, além do frágil ou nulo acesso a serviços e recursos para a manutenção da vida com qualidade. Portanto, é necessário olhar para a integralidade dos sujeitos em situação de vulnerabilidade com a constatação de que eles possuem demandas e necessidades de muitas ordens, múltiplas capacidades e estão suscetíveis a riscos devido à vivência em contextos de desigualdade e injustiça social, exigindo do Estado, por meio das políticas públicas, maior aproximação para potencializá-los no enfrentamento e superação da vulnerabilidade vivenciada ( Carmo; Guizardi, 2018CARMO, Michelly Eustáquia do; GUIZARDI, Francini Lube. O conceito de vulnerabilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistência social. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 3, e00101417, 2018. ).

É importante apontar o papel das políticas públicas como o meio pelo qual o Estado age para o enfrentamento de problemas sociais e a distribuição dos direitos aos cidadãos. Elas podem ser compreendidas como um conjunto de ações por meio das quais o Estado interfere na realidade para solucionar um problema, porém não deve ser vista apenas nessa dimensão, considerando que há conflitos, dinâmicas e interesses de diferentes atores envolvidos ( Serafim; Cruz, 2012SERAFIM, Milena Pavan Serafim; DIAS, Rafael de Brito. Análise de política: uma revisão da literatura. Cadernos Gestão Social, Salvador, v. 3, p. 121-134, 2012. ). Para os autores, o Estado, dentro do sistema capitalista, não tem plena autonomia em relação à sociedade e também não é completamente dependente dela, além disso não beneficia a todos através de suas ações; ele é produto e catalisador das relações sociais, das contradições e tensões presentes na sociedade, na qual estão inseridos interesses, valores, ideologias e projetos políticos distintos.

Quando se procura compreender a política pública para a população jovem, verifica-se que a prática da intersetorialidade é consenso entre diferentes atores, tanto nos governos, quanto na academia e na sociedade civil, compreendendo os jovens como sujeitos de direitos que enfrentam múltiplos problemas e demandam distintas necessidades ( Teruel Guerra; Meirelles Todelo Cruz, 2022TERUEL GUERRA, Erica; MEIRELLES TODELO CRUZ, Maria do Carmo. Intersetorialidade e políticas públicas para as juventudes: contribuições de produções acadêmicas. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 28, e84619, 2022. ). Estudos sinalizam expectativas bastante auspiciosas referentes à efetivação da intersetorialidade, como o estabelecimento de vínculos, corresponsabilidade e cogestão, com ações que partem de campos distintos, possibilitando maior capacidade de intervenção em fenômenos complexos ( Andrade, 2004ANDRADE, Luiz Odorico Monteiro de. A saúde e o dilema da intersetorialidade. 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. ), no entanto faltam estudos sobre como essa implementação acontece na prática. Gonsalves e Andion (2019)GONSALVES, Aghata Karoliny Ribeiro; ANDION, Maria Carolina Martinez. Ação pública e inovação social: uma análise do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente de Florianópolis-SC. Organizações & Sociedade, Salvador, v. 26, n. 89, p. 221-248, 2019. afirmam que crianças e adolescentes muitas vezes são vistos pelo Estado meramente como “beneficiários” da política, não como integrantes do debate público sobre seus direitos, bem como que não se valoriza o papel central da família nessa participação. Chiari et al . (2018)CHIARI, Antônio Paulo Gomes et al. Rede intersetorial do Programa Saúde na Escola: sujeitos, percepções e práticas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 34, n. 5, e00104217, 2018. consideram que o fortalecimento das ações intersetoriais só ocorrerá por meio da adesão de gestores, trabalhadores e famílias e a participação popular já estabelecida nos territórios.

Este artigo tem como objetivo refletir sobre as concepções relativas ao abandono e à evasão escolar por parte de agentes públicos de diferentes setores que atuam junto à população juvenil num município de porte médio do interior paulista, considerando também as vivências de alguns beneficiários dessas políticas, dando voz a adolescentes e suas famílias.

Metodologia

Foram realizadas dezesseis entrevistas: oito com educadores (professores, coordenadores pedagógicos e agentes de organização escolar) de seis escolas estaduais; duas com conselheiras tutelares; três com técnicos da rede de proteção (uma com psicólogo, uma com educadora social e uma com assistente social das áreas de saúde mental, assistência social e defesa de direitos de crianças e adolescentes, respectivamente); duas com jovens (14 e 18 anos) que passaram pela experiência do abandono/evasão; e uma com familiar, mãe da adolescente entrevistada, os quais aqui serão apresentados com nomes fictícios. Foram enviados convites às escolas estaduais, com foco naquelas que indicassem maior vulnerabilidade, identificada a partir da análise de indicadores educacionais como média do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e do Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (Idesp), e índices de complexidade escolar e socioeconômico dos alunos.

O trabalho de campo ocorreu entre janeiro de 2020 e julho de 2021, com interrupção de sete meses devido a períodos de agravamento da pandemia. Nas escolas, sete entrevistas ocorreram de janeiro a março de 2020, antes da pandemia, e somente uma entrevista se deu em julho de 2021. Todos os demais segmentos da rede de políticas públicas, bem como os jovens e a familiar, foram entrevistados durante a pandemia. Foram utilizadas questões semiestruturadas com roteiros adaptados para os diferentes segmentos estudados. De modo geral, as questões se debruçaram sobre as causas do abandono/evasão e as ações das instituições intra e intersetoriais para o enfrentamento do problema. As questões dirigidas aos jovens e à mãe permearam suas vivências relativas ao assunto.

Este estudo origina-se da dissertação “ Abandono e evasão escolar de adolescentes: problema para uma rede (integrada) de proteção ” ( Ramos, 2021RAMOS, Ana Carolina. Abandono e evasão escolar de adolescentes: problema para uma rede (integrada) de proteção. 2021. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas) – Faculdade de Ciências Aplicadas, Universidade Estadual de Campinas, Limeira, 2021. ), desenvolvida no âmbito do mestrado interdisciplinar em ciências humanas e sociais aplicadas da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (FCA/Unicamp). Neste artigo iremos abordar de forma específica os resultados referentes à seguinte pergunta, comum a todos os atores institucionais entrevistados: “Para você, quais são os motivos do abandono e da evasão escolar de adolescentes?”

Para análise dos resultados foi adotado o referencial analítico “hermenêutico-dialético”, cuja análise leva em conta os sentidos das falas dos sujeitos, em seus consensos e dissensos, e os aspectos contraditórios e/ou similares, diante do contexto histórico no e pelo qual foi produzida ( Cardoso; Batista-dos-Santos; Alloufa, 2015CARDOSO, Monique Fonseca; BATISTA-DOS-SANTOS, Ana Cristina; ALLOUFA, Jomária Mata de Lima. Sujeito, linguagem, ideologia, mundo: técnica hermenêutico-dialética para análise de dados qualitativos de estudos críticos em administração. Faces Journal, Belo Horizonte, v. 14, n. 2 p. 74-93. 2015. ; Minayo, 2002MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. ). Para organizar o material obtido nas entrevistas, todas foram transcritas de forma literal. Em seguida realizou-se a leitura do material de forma exaustiva, a fim de identificar categorias relacionadas aos objetivos do trabalho.

As concepções dos agentes públicos sobre as origens do abandono/evasão escolar e a complexidade do fenômeno

As percepções sobre o problema serão apresentadas, relacionando e confrontando as visões dos atores, a partir de suas posições institucionais e contextos, assim busca-se abordar o mundo de significados em que os indivíduos estão inseridos, analisando-os conforme sua complexidade, especificações e diferenças ( Minayo, 2002MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. ). Os resultados sobre a percepção dos fatores causadores de abandono e evasão escolar relativos à “escola, à situação socioeconômica , à família e ao próprio adolescente” surgiram na fala dos entrevistados de distintos segmentos.

Na Figura 1 estão os fatores trazidos pelos participantes das instituições, distribuídos a partir de seus enunciadores e suas confluências, observadas nas intersecções no primeiro diagrama. Ao lado há outro diagrama com esses mesmos fatores, marcados com as cores que sinalizam as dimensões às quais pertencem – “escolar, singularidade, socioeconômica e familiar” –, admitindo a articulação entre as dimensões, conforme se observa nas intersecções da figura. Para exemplificar, a escola possui maior governabilidade para atacar os fatores de abandono escolar por ela gerados, como a “escola não atrativa”, contudo aspectos da dimensão socioeconômica e do próprio adolescente também a permeiam, portanto os fatores não estão desassociados. A seguir serão apresentados todos os fatores relatados pelos participantes a partir de sua dimensão.

Figura 1 -
Diagramas dos fatores causadores de abandono e evasão escolar segundo as percepções dos agentes públicos e suas dimensões de influência

Dimensão socioeconômica

Diversos estudos apontam que condições econômicas mais baixas marcam a realidade dos alunos com maiores propensões a abandonar a escola ( Tavares Júnior; Santos; Maciel, 2020TAVARES JÚNIOR, Fernando; SANTOS, Joan Rosa dos; MACIEL, Maurício de Souza. Análise da evasão no sistema educacional brasileiro. Pesquisa e Debate em Educação, Juiz de Fora, v. 6, n. 1, p. 73-92, 2020. ), sendo o “trabalho infanto-juvenil” enunciado nas pesquisas como forte causador disso ( Abramo; Venturi; Corrochano, 2020ABRAMO, Helena Wendel; VENTURI, Gustavo; CORROCHANO, Maria Carla. Estudar e trabalhar: um olhar qualitativo sobre uma complexa combinação nas trajetórias juvenis. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 523-542, 2020. ; Fritsch et al. , 2019 FRITSCH, Rosangela et al. Percursos escolares de estudantes do ensino médio de escolas públicas do município de São Leopoldo, RS: desempenho escolar, perfil e características. Ensaio, Rio de Janeiro, v. 27, n. 104, p. 543-567, 2019. ), o que foi confirmado em campo. O “envolvimento com substâncias psicoativas” (uso ou venda) também foi evocado entre muitos entrevistados, também atribuído à dimensão social e econômica, pois tanto o uso quanto o tráfico de drogas não dizem respeito apenas ao ato individual, mas sofrem interferência de variáveis de outros âmbitos, como o familiar, o econômico, além de importante influência dos pares ( Schenker; Minayo, 2005SCHENKER, Miriam; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Fatores de risco e de proteção para o uso de drogas na adolescência. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 707-717, 2005. ). A seguir seguem dois relatos de educadores sobre a questão do trabalho e do envolvimento com drogas:

Eu acho que é a falta de recurso […], eles relatam: “mas se eu não trabalhar, mas se eu não conseguir meu dinheiro, eu não tenho um tênis, eu não tenho uma roupa, nem caderno pra vir pra escola, minha mãe não tem dinheiro pra comprar” […]. E a droga né, que nós temos bastante problema também de adolescente, criança que acaba evadindo por conta da droga. Tem casos […] da gente saber que a mãe vai na biqueira e leva comida pro filho pra ele ficar lá, e ele não vem pra escola.

(educador 3).

Chega uma hora da adolescência […] que eles começam […] dar mais valor […] num emprego qualquer aí, em que eles ganham o dinheirinho deles, do que continuar a escola. Eu já vi aluno aqui que tá inserido no tráfico […]. A cultura deles é assim, começa a ganhar dinheiro e começa daí a perder o vínculo com a escola.

(educador 1).

O trabalho como meio de obter dinheiro para o próprio consumo apareceu fortemente entre os educadores, porém com uma conotação de que o trabalho seria uma escolha e algo mais valorizado pelo jovem em comparação com a escola. Esse fator também surgiu entre os técnicos da rede, contudo duas profissionais da área da assistência social ponderaram que o trabalho infantojuvenil ocorre em função das condições de vulnerabilidade das famílias, que precisam priorizar despesas mais essenciais do que a aquisição de produtos de desejo dos jovens:

Quando eles completam 13, 14, anos eles querem trabalhar, aí começa querer uma coisa, querer outra, e a família não tem condições de dar […]. Aí eles querem trabalhar. Eles acham que eles já cresceram e precisam ajudar […]. Acredito que seja mais a falta de condição mesmo, falta de dinheiro. O jovem quer comprar e não tem como comprar.

(técnico 1).

Assim, há uma busca precoce pelo emprego, e o estudo pode ser interrompido em decorrência da dificuldade em conciliá-lo com o trabalho. A situação vivenciada por João é um bom exemplo de caso em que a necessidade de sustentar um filho transformou o trabalho artístico no semáforo – que ele já realizava antes de abandonar os estudos – em prioridade no lugar da escola.

Na Figura 1 , observa-se que o fator “trabalho” está interseccionado com a dimensão “familiar”. Alguns participantes mencionaram que as famílias podem colocar o jovem para trabalhar a despeito dos estudos. A educadora social pontuou a dificuldade em sensibilizar os familiares sobre os prejuízos do trabalho infantojuvenil e a importância da escola, quando os membros estão inseridos em situações de intensa vulnerabilidade social. Além disso, muitos familiares veem o trabalho como forma de afastar os jovens da ociosidade e da exposição nas ruas. O envolvimento com o tráfico de drogas também exerce concorrência com os estudos na percepção de vários entrevistados, mostrando diferenças em relação à literatura brasileira encontrada, que não o apresenta como fator de abandono escolar. Por outro lado, quando mudamos o objeto de estudo, analisando pesquisas sobre os adolescentes envolvidos nesse contexto de risco, verifica-se que a maioria se encontrava evadida da escola ( Bahls; Ingbermann, 2005BAHLS, Flávio Rocha Campos; INGBERMANN, Yara Kuperstain. Desenvolvimento escolar e abuso de drogas na adolescência. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 22, n. 4, p. 395-402, 2005. ; Cardoso; Fonseca, 2019CARDOSO, Priscila Carla; FONSECA, Débora Cristina. Adolescentes autores de atos infracionais: dificuldades de acesso e permanência na escola. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 31, e190283, 2019. ). Alguns entrevistados disseram que a inserção na criminalidade pode ser valorizada por jovens da periferia que têm como referência pessoas que ascenderam rapidamente através do crime, diferentemente do trabalho lícito, grande parte das vezes mal remunerado, caso dos familiares dos adolescentes. Ressalta-se que o tráfico de drogas é considerado uma das piores formas de trabalho infantil pela Organização Internacional do Trabalho ( OIT, 2001OIT. Organização Internacional do Trabalho. C182 – Convenção sobre Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil e Ação Imediata Para sua Eliminação. Brasília, DF: OIT, 2001. ), devido aos riscos que oferecem à saúde e ao desenvolvimento das crianças e dos adolescentes.

Pesquisas apontam que os jovens negros, principalmente os meninos, são o público que tende a abandonar mais a escola ( Alves; Ortigão; Franco, 2007ALVES, Fátima; ORTIGÃO, Isabel; FRANCO, Creso. Origem social e risco de repetência: interação raça-capital econômico. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 130, p. 161-180, 2007. ; Carvalho, 2016CARVALHO, Marília Pinto de. O fracasso escolar de meninos e meninas: articulações entre gênero e cor/raça. Cadernos Pagu, Campinas, n. 22, p. 247-290, 2016. ). A marginalização de jovens negros no sistema educacional também é efeito do preconceito e da discriminação racial ( Calado, 2013CALADO, Maria da Glória. Escola e enfrentamento do racismo: as experiências das professoras ganhadoras do Prêmio Educar para a Igualdade Racial. 2013. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. ). Embora não tenham sido questionados diretamente sobre a relação entre raça e abandono/evasão, nenhum participante mencionou esse aspecto diante da pergunta sobre as razões do problema investigado. O silenciamento ou velamento quanto à temática podem revelar a dificuldade dos atores no reconhecimento do racismo estrutural e institucional que organizam as relações sociais brasileira ( Reis; Calado, 2020REIS, Diego dos Santos; CALADO, Maria da Glória. Diálogos possíveis entre educação antirracista e decolonial: vozes insurgentes, pedagogias críticas e a Lei 10.639/03. Cadernos do Aplicação, Porto Alegre, v. 33, n. 2, p. 1-14, 2020. ), o que pode contribuir para a reprodução do racismo nas instituições escolares e no consequente processo de marginalização do estudante negro.

Dimensão familiar

Os fatores que surgiram referentes à dimensão familiar são: “cuidado de pessoa da família, conflitos familiares e fragilidade no suporte familiar aos estudos”, sendo que os dois primeiros apareceram somente na fala de educadores.

Jovens podem deixar de frequentar a escola para cuidar de uma pessoa doente, filhos ou irmãos mais novos quando seus responsáveis precisam sair para trabalhar ( Abramo; Venturi; Corrochano, 2020ABRAMO, Helena Wendel; VENTURI, Gustavo; CORROCHANO, Maria Carla. Estudar e trabalhar: um olhar qualitativo sobre uma complexa combinação nas trajetórias juvenis. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 523-542, 2020. ), aspecto este que também diz respeito à dimensão social e econômica. Uma coordenadora pedagógica disse: “Eles falam […] que tá cuidando do irmão, que não vem na escola porque não gosta, não vem na escola porque tá cuidando da mãe, porque tá cuidando do vô, porque tem alguém doente”. Os educadores apontaram também os conflitos em casa que podem gerar separações conjugais e mudanças de endereços, fazendo com que a escola fique sem saber se o aluno foi transferido ou se a abandonou. Além disso, uma participante disse que é muito difícil para o aluno manter a concentração e motivação nos estudos quando ele está vivenciando problemas familiares, como brigas entre os pais e até violência doméstica, trazendo efeitos negativos ao desempenho e engajamento escolar. João vivenciou problemas familiares, e, após a separação dos pais, ficou mais complicada sua relação com a escola, uma vez que morava apenas com o pai e tinha que dar conta sozinho de suas questões escolares, sugerindo uma fragilidade no suporte familiar aos estudos, o que apareceu de forma significativa na fala dos entrevistados de todos os segmentos, embora com sentidos diferentes. Entre os educadores, os sentidos atribuídos foram relacionados à dificuldade de os responsáveis incentivarem os adolescentes a estudarem, bem como de exercerem autoridade para que eles frequentem a escola. Há quem tenha relatado que os pais buscam transferir essa responsabilidade para a escola. A questão do exercício da autoridade dos pais, agravada pela maior idade do adolescente ou pelo seu envolvimento em situações de risco, como o tráfico de drogas, também foi apresentada por uma conselheira. Um educador disse que, quando há cobrança de frequência das aulas por parte da família, esta se deve ao Bolsa Família, por ser uma das condicionalidades para seu recebimento. Apenas um representante da educação ponderou que a ausência de acompanhamento familiar nos estudos está associada ao fato de os pais não terem tido acesso à educação, dificultando o auxílio aos filhos. A literatura indica que a baixa escolaridade dos pais é um fator que diminui a possibilidade de conclusão dos estudos ( Honda, 2007HONDA, Kátia Morinaga. Um estudo sobre determinantes do atraso escolar. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. ; Salata, 2019SALATA, André. Razões da evasão: abandono escolar entre jovens no Brasil. Intersecções, Rio de Janeiro, v. 21, n. 1, p. 99-128, 2019. ), o que aparece na fala da assistente social ao relatar que é muito difícil cobrar da família aquilo que ela não teve:

Quando eu retorno para essa família, para os avós desses meninos, para a história dessa família […], pouquíssimos deles tiveram acesso à educação […], então acho que o mesmo processo que a gente faz com o menino a gente tem que fazer com a família. Mas aí a família, por ser mais madura, ela tem o discurso um pouco mais apurado, que é: “eu sofro em não ter educação […]”. Só que aí essa mensagem é muito fraca […], eles não conseguem ser referência e são exigidos de que eles têm que ser.

Charlot (1996)CHARLOT, Bernard. Relação com o saber e com a escola entre estudantes de periferia. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 97, p.47-63, 1996. salienta que não é pertinente apontar, de forma generalizada, que as famílias populares são a razão do fracasso escolar. Ainda que haja um efeito da família na história escolar dos jovens, eles só operam articulados com outros processos e, portanto, não a determinam. Nesse sentido, não é somente a transmissão de um capital cultural dentro da família que garante o sucesso ou o fracasso escolar, outros fatores como a rede de relações familiares, com as identificações que produzem e as referências que os jovens buscam nela, pode colaborar em sua trajetória escolar dentro do âmbito familiar. A experiência de Helena mostra que o suporte que não é possível encontrar em sua mãe, analfabeta, vem da irmã mais nova, mas nem por isso a mãe deixa de apoiá-la:

Minha mãe não sabe ler nem escrever, mas tudo que eu falo pra minha mãe ela ajuda […]. Eu quero começar a mexer com a internet, quem tá me ajudando é minha mãe, quem fala pra mim “você vai conseguir”, “é pra você erguer” é minha mãe, sempre foi minha mãe e a minha irmã […]. Às vezes eu tenho ajuda da minha irmã mais nova. Minha irmã mais nova é mais inteligente que eu […], ela é a mais inteligente de dentro de casa.

(Helena).

A mãe da jovem demonstra a importância dos estudos e seu esforço para que suas filhas estudem, apesar de ela mesma não ter tido essa oportunidade:

Na minha vida […] eu não tive estudos, mas graças a Deus eu tenho uma inteligência […]. Mas eu não quero que minhas filhas fiquem sem o estudo, eu não tive um estudo, eu quero que minhas filhas estudem […]. E o estudo eu sei que é tudo na vida delas […]. Mesmo que eu sei que a Helena tem problema, tô correndo atrás, tô lutando. A [nome da irmã] é mais inteligente um pouco, eu peço pra ela ajudar a Helena. Eu não tenho como estar ajudando, mas […] somos uma família unida.

O olhar torna-se mais compreensivo, e não julgador em relação às famílias das classes populares, quando nos deparamos com suas histórias sensíveis e de direitos básicos violados ao longo das gerações.

Dimensão singularidade

Ainda que o abandono e a evasão não sejam problema de ordem individual, estando atravessado por questões sociais múltiplas, não se pode desconsiderar a história singular e a subjetividade em sua relação com o que afeta cada sujeito. Os relatos de que a família por vezes não consegue exercer autoridade sobre o adolescente, sobretudo com o avanço da idade, mostram a busca, nesta fase da vida, por maior autonomia, o enfrentamento às autoridades e a procura por seus próprios interesses, os quais podem colidir com os interesses dos adultos de sua casa, bem como os da escola. Para esta dimensão foram considerados os fatores “gravidez, problemas de saúde mental e desinteresse pela escola”, que, conforme já citado, também são permeados pelo coletivo.

Quanto à gravidez, as conselheiras tutelares e os educadores entendem que essa condição faz com que a jovem interrompa seus estudos. A literatura apresenta, de forma predominante, a questão da menina e de sua gestação precoce interferindo em sua vida escolar, principalmente em famílias de condições socioeconômicas precárias e em casos em que a jovem não conta com o apoio de outra pessoa da família para cuidar de seus filhos ( Franceschini; Miranda-Ribeiro; Gomes, 2017FRANCESCHINI, Vanessa Lima Caldeira; MIRANDA-RIBEIRO, Paula; GOMES, Marília Miranda Fortes. Porta de entrada ou porta de saída? Fracasso escolar no ensino médio segundo estudantes e coordenadores(as) de escolas em Ribeirão das Neves, MG. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 33, e164208, 2017. ). Optou-se por também inserir nesta categoria a paternidade, uma vez que João colocou que este foi um dos motivos pelo qual não retornou aos estudos. Sua experiência pode nos indicar que a parentalidade pode fazer com que os meninos, ao se perceberem neste novo papel, decidam deixar a escola. João, quando recebeu a notícia de que seria pai, decidiu priorizar o trabalho ao invés dos estudos:

Eu tive tipo a notícia que eu ia ser pai, né? Então, tipo, não consegui conciliar a escola com trabalho, então eu tive que, no momento, agir de uma forma, né? […]. A insegurança de ser pai com 16 anos, meu, eu falei “mano, eu tenho que estar o dia inteiro no farol, tipo, juntar pelo menos R$ 150,00 por dia. Fazer acontecer”. Então naquele momento eu não enxergava que eu poderia, sabe, separar as coisas. Eu fiquei desesperado!

(João).

A situação deste jovem confirma o que é posto pela literatura, de que jovens de baixa renda têm maior risco de abandonarem os estudos, assim, a gravidez/paternidade, embora admitida como categoria da singularidade, também está abarcada pela dimensão socioeconômica, pois, para jovens de baixa renda, o trabalho acaba se tornando prioridade para fazer frente às novas exigências e responsabilidades impostas pela parentalidade.

Quanto aos problemas de saúde mental, boa parte dos educadores apontaram que situações como depressão, transtorno do pânico e automutilação aparecem no contexto escolar e podem afastar o jovem da escola, até mesmo por orientação médica, e as atividades curriculares podem ser feitas em casa. Helena passou por sofrimento emocional após a perda de um familiar e de situações de bullying, não conseguindo permanecer em ambientes fechados:

Daí minha mãe também ficou mal e eu fiquei mal junto com a minha mãe […]. Até hoje eu não consigo ficar em lugar, tipo assim, presa. Tenho medo na hora que as aulas voltar, como eu vou pra escola e ficar dentro da sala. Esses dias eu fui fazer negócio para a inscrição de jovem aprendiz e eu passei mal dentro da sala fazendo a inscrição.

(Helena).

O adolescente pode estar vivenciando situações de sofrimento que dificultam ou impedem sua permanência nos estudos, situações essas relacionadas ao contexto escolar ou de fora dele, que muitas vezes são vividas em silêncio. Helena relatou que se sentiu excluída em uma das escolas que frequentou e o autoisolamento tornou o pedido de ajuda mais difícil: “É que eu não sou muito de me enturmar, essas coisas de escola, com professora, eu não sou de muito, não […]. Eu não consigo, eu não me aproximo de ninguém”.

São poucos os estudos nacionais sobre a relação entre abandono escolar e saúde mental. Silva (2005)SILVA, Francisco Cláudio de Sousa. A evasão escolar de jovens do ensino médio em uma escola pública de Itaituba/Pará. 2005. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. verificou a correlação entre evasão e problemas de saúde, mas não especificou quais problemas seriam esses. A sra. Maria relatou que ficou com depressão após a perda de duas pessoas de sua família e, sendo o arrimo, ficou mais difícil acompanhar e garantir a permanência da filha na escola:

Daí eu desmoronei, comecei só tomar remédio pra dormir, só dormia […]. Daí eu comecei ficar dentro de casa, nem com meus filhos eu gostava de ter contato, eu ia de noite tomar banho, tomava um café e era calmante pra não ver nada, pra não sentir aquela dor que eu sinto até hoje. Era no calmante direto, entendeu?

(Sra. Maria).

Sua filha complementou: “Depois disso, eu ia uma vez na semana pra escola, depois que aconteceu isso, eu parei de ir mesmo”. A sra. Maria, baseando-se em sua experiência pessoal, achou melhor não obrigar sua filha a voltar para a escola, porque, em sua percepção, poderia ser pior para ela: “Eu não vou obrigar, porque minha filha vai ficar pior, aí eu não obrigava, eu falava ‘filha, vai pra escola, você precisa estudar’, e ela falava ‘mãe, eu não consigo ir’. Teve vez que eu catava ela, levava chorando pra escola, eu saía de lá chorando também”. Na época da entrevista, a adolescente ainda não tinha retornado às aulas presenciais e demonstrava insegurança e receio quanto a esse retorno, e tal questão não estava sendo cuidada por nenhuma política pública.

Ainda na dimensão da singularidade, o que mais apareceu foi o desinteresse pela escola , pois todos os setores apontaram esse fator como grande causador de abandono escolar. João confirma isso em sua escolarização:

Eu tinha um comportamento bem de boas, gostava de estudar. Depois que aconteceu problemas na minha vida, eu acabei meio que perdendo o interesse, mas eu acredito que pela situação que eu me encontrava, não por tá desinteressado mesmo, e ficar sem estudar, mas eu acredito que eu não sou muito chegado a estudar, mas reconheço que isso é básico, né, cara? Até tenho vontade de voltar a estudar, mas, é… seria um pouco desinteresse pessoal, né? Talvez eu sinto assim, que tipo, eu gosto, não sei se gosto, será que eu gosto? Estou meio perdido moça, desculpa!

Nota-se que o desinteresse pela escola é mencionado pelo jovem com certa confusão e dúvidas com relação a se este é devido ao momento de dificuldades pessoais ou se de fato não havia o “gostar de estudar”. Posteriormente serão abordados outros aspectos desta entrevista, na dimensão escolar, em que este jovem irá apontar elementos da escola que não favoreciam o interesse por frequentá-la.

Uma educadora relatou que estudar implica disciplina e comprometimento, fazendo com que o aluno perca o interesse por estudar. Outra professora disse que a escola não é vista como um meio de um futuro melhor, pois os alunos percebem que o contexto social mais amplo pode não favorecer pessoas com estudo, as quais acabam recebendo baixos salários, tomando como exemplo o próprio professor. Observa-se mais uma vez a interferência da dimensão socioeconômica que perpassa as escolhas dos jovens. Esta entrevistada pontuou que muitos estão sem perspectivas futuras e não acreditam na educação, principalmente os de regiões de maior vulnerabilidade social, que podem optar por trabalhar e abandonar os estudos.

Para Charlot (2013)CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013. (Docência em formação: saberes pedagógicos). , a razão dos estudos estarem no futuro do aluno é pouco para ele se engajar, pois o motor interno do estudante, o desejo que faz com que ele invista nos estudos, é algo maior do que uma estimulação externa. Para o autor, o motivo precisa coincidir com o objetivo da ação para que ela produza sentido. Em outras palavras, o aluno estuda porque se interessa pelo conteúdo estudado. Quando isso não acontece, os estudos perdem o sentido. É importante ponderar que a falta de interesse nos estudos por parte dos jovens não significa que eles estejam desprovidos de outros interesses, até mesmo dentro do ambiente escolar, conforme aponta o próprio Charlot (2013)CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013. (Docência em formação: saberes pedagógicos). ao dizer que estudantes podem ir para escola para encontrarem os amigos. Nessa fase da vida (tão cheia de “vida”) pode haver outros interesses concorrendo com os estudos.

A categoria “desinteresse pela escola”, apontada como pertencente à dimensão da singularidade, possui então forte relação com a dimensão escolar, pois toda escola é atravessada por diversos desafios pedagógicos, disciplinares e estruturais que interferem na motivação e no engajamento dos alunos. Nesse sentido, o interesse nos estudos também é produzido pela escola, contudo essa visão nem sempre encontra respaldo na fala de educadores, como podemos observar neste relato:

O (ensino) médio é próprio desinteresse deles mesmo, né. Pode até ver aqui, essas alunas que a gente tava com elas na secretaria agora […], ano passado elas evadiram e agora, esse ano, voltaram, mas fica dormindo na sala, e por mais que o professor faça, por mais que tenha as aulas, por mais que tem agora essa parte das eletivas, eles não têm interesse também, parte deles também.

(educador 1).

Dimensão escolar

Os fatores do contexto escolar são: “faltas, repetência e defasagem idade-série; baixo rendimento”; bullying ; e “escola não atrativa”. Embora esses fatores não sejam apenas de responsabilidade da escola, uma vez que não estão somente sob sua governabilidade de ação, aqui são colocados como pertencentes à dimensão escolar, por entender que se trata de problemas expressos em seu ambiente e que a escola deve atacar.

Com relação às “faltas e repetências”, que geram “defasagem idade-série”, estas apareceram somente entre os educadores, sendo situações que trazem desmotivação e abandono, conforme relatou um educador: “Tem aquele aluno que repete e para de ir, e aí ele pensa ‘vou ficar por mais um ano? Não, não é pra mim’, então ele desanima, ele não vai mais”. O caso de Helena traz luz a esse problema: em sua trajetória escolar ela teve duas repetências e dois abandonos, sendo que em 2021 retomou os estudos, aos 14 anos de idade, no sexto ano do ensino fundamental, período no qual as crianças costumam ter 11 anos. Helena não se sentia bem em estar com crianças mais novas, sendo um dos motivos de não gostar da escola e não querer voltar ao ensino presencial:

Desde que começaram a me repetir, eu falo que eu não gosto de estudar com crianças mais novas [começa a chorar], porque eu queria estar na sala que era pra mim, tá. Mas só que minha mãe já foi atrás de eu fazer prova pra ver se passa, e eu não consigo, daí eu fico chateada… porque é diferente a idade, é diferente o jeito de pensar, é diferente em tudo.

(Helena).

Conforme a literatura indica, quanto maior a defasagem idade-série, maior é o risco do abandono ( Franceschini; Miranda-Ribeiro; Gomes, 2017FRANCESCHINI, Vanessa Lima Caldeira; MIRANDA-RIBEIRO, Paula; GOMES, Marília Miranda Fortes. Porta de entrada ou porta de saída? Fracasso escolar no ensino médio segundo estudantes e coordenadores(as) de escolas em Ribeirão das Neves, MG. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 33, e164208, 2017. ; Tavares Júnior; Santos; Maciel, 2020TAVARES JÚNIOR, Fernando; SANTOS, Joan Rosa dos; MACIEL, Maurício de Souza. Análise da evasão no sistema educacional brasileiro. Pesquisa e Debate em Educação, Juiz de Fora, v. 6, n. 1, p. 73-92, 2020. ). As categorias “defasagem idade-série” e “baixo rendimento” estão aqui separadas pois não necessariamente aqueles que apresentam defasagem idade-série têm baixo desempenho, embora isso seja comum, assim como alunos que apresentam baixo desempenho podem não apresentar defasagem na idade-série, pois este aluno foi sendo aprovado sem assimilar os conteúdos importantes. A assistente social relatou que aqueles que já têm uma questão conflituosa com a instituição e ainda possuem dificuldade para aprender, sem conseguir acompanhar os conteúdos, acabam não tendo vontade de ir às aulas. Helena trouxe suas dificuldades, que, segundo ela, ocorrem em todas as matérias, sendo a leitura um desafio:

Eu tenho até dificuldade pra ler, eu leio travando, eu não consigo ler assim pra todo mundo, eu prefiro ler sozinha. Igual minha mãe: “lê isso aqui pra mim”, eu não consigo ler pra ela, tipo assim, eu acho que é muita pressão pra cima de mim […]. Uma época eu tive que ir na escola pra treinar as coisas que eu tinha que aprender, mas só foi uma vez também.

Ressalta-se que, nas escolas por onde ela passou, a ajuda extra foi somente uma aula de reforço que não teve continuidade, mostrando como o Estado tem lidado com os alunos que estão com defasagem, transferindo para as famílias essa responsabilidade. Desempenho abaixo do esperado pode advir do meio em que a aprendizagem acontece, e não puramente de dificuldades cognitivas do aluno. Muitas vezes o que é considerado fracasso do aluno pode ser um reflexo do fracasso do ensino a ele oferecido ( Felipe; Benevenutti, 2013FELIPE, Sione Maschio; BENEVENUTTI, Zilma Sansão. Dificuldade de aprendizagem. Revista Maiêutica Pedagogia, Indaial, v. 1, n. 1, p. 61-64, 2013. ). Nesse sentido, embora as participantes – assistente social e Helena – tenham nomeado a dificuldade de aprender, optou-se por dar o nome a esta categoria de baixo rendimento , a fim de evitar interpretações de que o problema esteja exclusivamente centrado no aluno. Observa-se que os fatores da dimensão escolar estão interseccionados com a dimensão individual, pois eles também contêm elementos do próprio adolescente, contudo essa dimensão pode ser superestimada pelos agentes escolares, e o desengajamento do aluno na escola com o passar dos anos pode ter uma conotação individualizante, conforme se observa na fala deste educador:

Aquele aluno que já vem dando problema há muito tempo, nas outras séries […], a gente não consegue resolver, daí quando chega no nono ou no primeiro, ele começa a reter […], mas normalmente ele dá abandono […]. Os casos de, vamos dizer assim, bons alunos que dão abandono são pouquíssimos, é mais aquele aluno problemático que ocorrem esses casos […]. No sétimo e no oitavo é muito difícil do aluno reter, então ele vai meio que, mesmo aqueles muito ruins, eles vão meio que empurrado […]. Aí chega no nono ano, que é o final do ciclo, começa acontecer as retenções, aí ele retém uma vez, duas vezes, aí ele vê que também já tá fora da idade dos outros alunos, ele vai perdendo o interesse, às vezes, de vir pra escola.

(educador 5).

Com relação ao bullying, somente uma participante da educação o classificou como fator de abandono. Ele é definido como uma forma de violência caracterizada por atos agressivos, repetitivos e com assimetria de poder entre pares ( Lisboa; Braga; Ebert, 2009LISBOA Carolina; BRAGA, Luiza de Lima; EBERT, Guilherme. O fenômeno bullying ou vitimização entre pares na atualidade: definições, formas de manifestação e possibilidades de intervenção. Contextos Clínicos, São Leopoldo, v. 2, n. 1, p. 59-71, 2009. ). Pode acontecer nas formas física (bater, chutar, empurrar, abusar sexualmente, fazer gestos ofensivos, estragar e roubar pertences), verbal (apelidar, importunar, xingar), de forma indireta (com atos de exclusão, isolamento da vítima), ou cyberbullying , que ocorre no espaço virtual, situações essas que podem ser pouco perceptíveis aos adultos, devido ao seu caráter sutil ( Pigozi; Machado, 2015PIGOZI, Pamela Lamarca; MACHADO, Ana Lúcia. Bullying na adolescência: visão panorâmica no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 20, n. 11, p. 3509-3522, 2015. ). Trata-se de um sofrimento silencioso, de que muitas vezes a escola não toma conhecimento, porque o aluno pode não relatar à escola nem à família, dificultando a ação dos agentes escolares. Quando há conhecimento da situação, a educadora disse que a escola busca mediar o conflito entre os alunos. Um trabalhador do serviço de saúde mental relatou o bullying como fator de abandono escolar, dizendo que é uma causa de sofrimento psíquico e que pode gerar aversão do adolescente à escola.

E o contexto da escola entra bastante, já atendi adolescentes que fala “minha escola é muito difícil”. Mesmo adolescentes que gostam de ir à escola falam “minha escola é muito ruim, todo mundo faz uso [de drogas] ou querem me chamar pra brigar, querem me envolver pra alguma coisa, então é difícil ficar na escola.”

(técnico 3).

As experiências de conflito e violência de João com os colegas colaboraram para que ele não gostasse da escola, apesar do interesse pelo conteúdo e bom relacionamento com professores. Ele relatou sua vivência de exclusão escolar, dizendo que constantemente era insultado pelos colegas e, três meses depois que chegou à cidade, se envolveu em uma briga após ser provocado e, numa reação impulsiva, jogou uma cadeira no colega, atingindo uma professora:

Foram três expulsos contando comigo […]. Ah, a professora eu tinha um bom relacionamento com ela, ela entendeu que não foi uma agressividade sabe, gratuita, que eu não quis acertar ela, né. Ela inclusive falou para os policiais que eu não dava trabalho, que eu era um aluno tranquilo […]. Acho que a melhor coisa de toda essa situação foi que ela entendeu.

O que João chama de expulsão na verdade se trata da transferência compulsória para outra escola, porém ele ficou sabendo que ia ser pai e decidiu não iniciar os estudos no novo local, priorizando o trabalho. João também contou que a escola não chamou o conselho tutelar, mas a polícia, que o encaminhou para a delegacia. O caso se tornou notícia no jornal da cidade, o que o deixou bastante indignado e colaborou para seu afastamento dos estudos. Helena também relatou uma vivência bastante negativa em uma das escolas, que podemos entender como bullying, ainda que de forma indireta, que se expressou num movimento de exclusão por parte de seus colegas: “Eu não gosto de falar desta escola, eu tinha poucos amigos […]. Na época eu tinha bastante piolho e nem gosto de falar isso pra minha mãe. Daí as pessoas viam o piolho na minha cabeça e falavam ‘ah, ela tem piolho’, e ninguém ficava comigo”.

Quando a escola não consegue administrar os conflitos que emanam em seu ambiente, tendo em vista a heterogeneidade de pessoas, culturas e pensamentos presentes nesse contexto, a visão que o jovem tem sobre a instituição pode ser negativamente impactada, fazendo com que ele não tenha vontade de frequentar a instituição. Por outro lado, é importante apontar que os profissionais da educação também são continuamente afetados (para não dizer violentados) pela fragilização das políticas educacionais, pela ausência de condições de trabalho adequadas e valorização profissional. Há de se considerar os retrocessos políticos vividos nos últimos anos, com importante redução de recursos e investimento na educação, principalmente por parte do governo federal, que encerrou o ano de 2020 com o menor orçamento da década, principalmente na educação básica em relação às demais etapas ( Todos pela Educação, 2020TODOS PELA EDUCAÇÃO. 6° relatório bimestral de execução orçamentária do ministério da educação (MEC): consolidado do exercício de 2020. Brasília, DF: MEC, 2020. ). Ainda assim, há educadores que, em meio a todo esse contexto, são referências para os alunos e os ajudam a se manter nos estudos, podendo ser os únicos motivos pelo quais o jovem permanece na escola, conforme relatou Helena:

A minha ex-professora, eu converso com ela até hoje, porque […] ela que falava pra mim “você tem que aquilo, aquilo outro, você tem que se erguer, você tem que fazer isso, você vai conseguir”, aí eu já animava, aí eu ficava feliz, eu ia pra escola certinho […]. Acho que depois teve que vir uma substituta, daí parei de ir pra escola.

O fato de a “escola não ser atrativa” ao aluno foi relatado por educadores e técnicos da rede, mas com significados distintos. A primeira categoria contempla os aspectos relacionados ao conteúdo pedagógico, a infraestrutura da escola e ao modelo escolar, que influenciam o engajamento do estudante. A assistente social afirmou que as matérias ofertadas na escola podem estar muito distantes da realidade dos alunos do meio popular, o que dificulta que eles vejam sentido em aprender determinados conteúdos. Ela disse que em seu exercício profissional procura mostrar a importância do conhecimento na vida cotidiana. Uma educadora mencionou a dificuldade em promover engajamentos nos alunos, apontando questões de infraestrutura da escola:

É uma coisa que a gente discute sempre em ATPC [aula de trabalho pedagógico coletivo]: como a escola vai ser mais atrativa pro aluno? Como você vai fugir do texto, da lousa, do giz, pra ele ter mais vontade de vir para escola? E a gente se esbarra no problema da estrutura e de usar outras ferramentas. Nós temos uma sala de informática que está sem internet, sem rede, então não dá pra levar os alunos, e temos uma disciplina de tecnologia. Eu dou tecnologia também, mas sem estrutura, então a gente fica pensando o que fazer com pouco.

(educadora 4).

Assim, é compreensível que a falta de condições de trabalho e de recursos dificultem a transformação da escola em um ambiente mais dinâmico e que os educadores se percebam limitados em sua capacidade de ação.

A tecnologia e a internet são importantes e valorizadas socialmente, bem como pela atual geração de jovens, podendo colaborar para os processos de engajamento, mas ela não é suficiente para garantir maior interesse e permanência. Charlot (2013)CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013. (Docência em formação: saberes pedagógicos). chama a atenção para o “modelo escolar”, isto é, as estruturas de espaço e tempo das escolas, a forma como os alunos são distribuídos em turmas, os modos de avaliar, que pouco combinam com o uso pedagógico do computador e da internet. O “modelo escolar” ainda vigente nas escolas públicas pode interferir no interesse em frequentá-las; segundo Freitas ( 2010, p. 91FREITAS, Luiz Carlos. Avaliação: para além da “forma escola”. Educação: Teoria e Prática, Rio Claro, v. 20, n. 35, p. 89-99, 2010. ), “[...] a luta pela inclusão e acesso ao conteúdo escolar não pode separar-se da luta pela modificação da atual forma escolar, geradora de subordinação [...]”. O autor ainda pontua que a vida, como motivador natural, ficou do lado de fora da escola. A assistente social trouxe aspectos do modelo escolar que impactam os jovens, afirmando tratar-se de um ambiente conservador, pois ouve deles que não possuem espaços de fala e que “não podem fazer nada”. O psicólogo aponta a importância de se repensar este modelo e promover maior participação e abertura da instituição escolar:

Eu acho que a escola precisa ser atravessada com vitalidade, com mais potência […], que faça sentido, que não só um espaço como uma obrigação […]. Que a comunidade construa a escola, e não a escola diga como tem que ser simplesmente […]. Eu acho que o espaço precisa ser ocupado […]. De que não é só o diretor, o coordenador, acho que todo mundo tem que fazer parte disso […]. Quando eu falo em comunidade, não é só os pais, mas os adolescentes mesmos, que eles possam falar […]. Eu sei que não é possível tudo, tudo que as pessoas querem, mas eu acho que, sabe, as pessoas poderem sentir que elas fazem parte disso?

(técnico 3).

Portanto, a motivação para frequentar a escola também está associada ao modelo de escola vigente, o qual poderia ser renovado a partir da participação e inclusão dos adolescentes nos rumos educacionais da instituição.

Considerações finais

Diversas situações podem ocorrer concomitantemente na vida do aluno, dificultando seu engajamento nos estudos e aumentando o risco de abandonar a escola, como ocorreu com João e Helena. Histórias sensíveis, marcadas por diversas vulnerabilidades no âmbito individual, familiar, escolar e socioeconômico, essas dimensões se interrelacionam de forma constante e extrapolam a dimensão individual, sendo dependentes de outros agentes e instituições para seu enfrentamento. Suas realidades e os relatos trazidos pelos participantes confirmam a complexidade do problema.

Este estudo procurou investigar a compreensão de diferentes sujeitos envolvidos com a problemática do abandono/evasão, considerando a intersetorialidade como o meio pelo qual as políticas públicas devem se articular para o atendimento do público infantojuvenil e para a resolução de problemas complexos como o abandono escolar. Olhar essas concepções torna-se fundamental, uma vez que as práticas realizadas possuem concepções subjacentes a elas, as quais podem incluir ou produzir ainda mais afastamento do adolescente em relação à escola. Observou-se que houve uma preponderância por parte dos educadores e conselheiras tutelares em atribuir o problema ao próprio adolescente, seu contexto socioeconômico e familiar, enquanto técnicos da rede tiveram um olhar mais voltado para os aspectos escolares e as condições socioeconômicas como causas para deixar de estudar. Além disso, suas perspectivas podem divergir nos sentidos e significados de uma mesma categoria, conforme ocorreu com “fragilidade do suporte familiar aos estudos e trabalho”. As diferenças de sentidos nas concepções dos atores podem mostrar a amplitude do fenômeno, mas também dão indicativos do desafio para o diálogo e a realização de práticas articuladas e sinérgicas em prol da solução do problema.

Por fim, o abandono/evasão escolar são expressões dos vários âmbitos da vida do estudante e da escola, portanto um desafio não somente para o campo da educação, mas para os diversos setores de atendimento ao público infantojuvenil. Nesse sentido, considera-se que o aprimoramento de políticas públicas passa por considerar e compreender de forma mais aprofundada as visões dos sujeitos implicados.

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Editado por

Editor:
Prof. Dr. Roni Cleber Dias de Menezes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2022
  • Revisado
    27 Fev 2023
  • Aceito
    24 Abr 2023
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