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A formação das subjetividades em uma escola profissional feminina: análise de uma ficha social

Resumo

Neste artigo apresentamos a análise de uma ficha social que era preenchida quando da candidatura de meninas ao ingresso como alunas na Escola Técnica Feminina Senador Ernesto Dornelles (Porto Alegre/RS, anos 1940). Localizaram-se no arquivo da escola 195 pastas de documentos de alunas que se matricularam na instituição entre 1946 e 1950, entre os quais constam essas fichas. Produzida pelo Serviço de Psicotécnica e Orientação Educacional da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, as fichas eram compostas de duas partes: I) A família, parte que incluía informações sobre a situação econômica dos membros da família, suas condições educacionais e sociais e o interesse do respondente pela profissão da filha; e II) A aluna, seção em que constavam inquirições sobre as condições educacionais e o teor de vida da menina, suas tendências vocacionais e impressões gerais sobre ela. Recorremos a aportes teóricos de Foucault acerca dos procedimentos de exame nas instituições disciplinares e seus efeitos de subjetivação. A análise da ficha social permitiu identificar a partir das questões formuladas e das alternativas de respostas disponíveis às famílias e às alunas algumas das expectativas sociais e possibilidades abertas à formação das subjetividades profissionais das jovens ingressantes.

Palavras-chave
Subjetividade; Formação profissional; Escrituração escolar; Educação feminina

Abstract

This study analyzes a registration form filled out by girls applying for the Senador Ernesto Dornelles Women’s Vocational School (Porto Alegre/RS, 1940). Its archive contained 195 folders with documents from students who enrolled in the institution from 1946 to 1950, including registration forms. Made by the Psychotechnical and Educational Guidance Service of the Department of Education and Culture of Rio Grande do Sul, these files consisted of two parts: I) the family, which included information on family members’ economic, educational, and social conditions and respondents’ interest in their daughter’s profession and II) the student, inquiring about girls’ education, way of life, vocational tendencies, and general impressions. We use Foucault’s theoretical contributions on examination procedures in disciplinary institutions and their subjectivation effects. The analysis of these forms found some of the social expectations and possibilities open to the formation of young applicants’ professional subjectivities based on the formulated questions and the possible answers available for families and students.

Keywords
Subjectivity; Vocational Training; School bookkeeping; Women’s education

Introdução

De que modo o simples ato de preencher um documento para ingresso em uma instituição educacional pode participar do processo de formação das subjetividades dos estudantes? Este trabalho pretende contribuir para elucidar essa questão por meio da análise de uma ficha social 3 3- Disponibilidade de dados: as fichas analisadas neste artigo foram publicadas integralmente em Gil, Viana e Grando ( 2023 ). a ser preenchida quando da candidatura de meninas ao ingresso como alunas na Escola Técnica Feminina Senador Ernesto Dornelles (Porto Alegre/RS, anos 1940). Localizamos no arquivo da escola 195 pastas de documentos de alunas que se matricularam na instituição entre 1946 e 1950, entre os quais constam essas fichas.

Analisamos neste artigo os dois modelos da “ficha social” que foram usados pela escola no período. Trata-se de fichas impressas que foram produzidas pelo “Serviço de Psicotécnica e Orientação Educacional”, da Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, nas quais se encontram espaços para preenchimento de informações elementares, tais como nome da aluna e data de nascimento, além de perguntas cujas respostas destinavam-se a prover informações acerca das condições objetivas de vida das alunas e suas famílias, mas também referentes às atividades realizadas habitualmente pelas meninas, às experiências na execução de trabalhos relacionados aos cursos oferecidos ou ao espaço doméstico e gosto cultural.

Essa documentação integra o amplo e variado conjunto de registros produzidos para finalidades práticas de organização da instituição, que podem ser assumidos como fonte para pesquisa histórica e caracterizados como escrituração escolar. As funções desses escritos articulavam-se à necessidade de organizar as escolas, fiscalizar o trabalho docente, classificar os desempenhos, caracterizar os alunos, registrar e controlar comportamentos, atestar atividades realizadas e etapas finalizadas, entre outras possibilidades. Ao longo dos séculos XIX e XX, a escrituração escolar foi sendo continuamente diversificada e assumindo feição mais especializada e detalhada. Para além de permitir organizar o trabalho escolar e viabilizar o funcionamento das escolas, tal documentação produziu também outros efeitos, de subjetivação, por exemplo, como se pretende argumentar neste artigo. Michel de Certeau ( 2014CERTEAU, Michel de. A economia escriturística. In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 201-224. ) destaca que as práticas escriturísticas tiveram grande centralidade na configuração das sociedades modernas, nas quais as atividades que se afastam da oralidade tendem a ser consideradas mais legítimas. A escola tem papel central nesse processo e, portanto, as práticas escriturísticas escolares destacam-se por sua relevância na compreensão das formas pelas quais se estabeleceram as subjetividades modernas nos últimos dois séculos. A escrita apresenta-se, portanto, nesse sentido, como “a atividade concreta que consiste, sobre um espaço próprio, a página, em construir um texto que tem poder sobre a exterioridade da qual ele foi previamente isolado” (Certeau, 2014CERTEAU, Michel de. A economia escriturística. In: CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 22. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 201-224. , p. 204). Assim, os suportes e enquadramentos da escrita, como é o caso das fichas aqui analisadas, circunscrevem determinadas possibilidades e excluem outras tantas opções.

A Escola Técnica Ernesto Dornelles destinava-se ao ensino técnico profissional e foi inaugurada em 1946, passando a oferecer no Ginásio Industrial os cursos de “Corte e Costura” e de “Chapéus, Flores e Ornatos”. A proposta aqui foi centrar o foco nos itens e nas perguntas que compunham os dois tipos de ficha social que constam no conjunto de documentos relativos a cada estudante. As fichas eram compostas de duas partes: I) A família , parte que incluía informações sobre a situação econômica dos membros da família, suas condições educacionais e sociais e o interesse do respondente pela profissão da filha; e II) A aluna , seção em que constavam inquirições sobre as condições educacionais e o teor de vida da menina, suas tendências vocacionais e impressões gerais sobre ela.

A análise mobilizou aportes teóricos de Foucault ( 1997FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1997. ) acerca dos procedimentos de exame e controle nas instituições disciplinares e seus efeitos de subjetivação. De fato, como observou o autor em Vigiar e punir , parte importante desses procedimentos relaciona-se à produção de um dossiê para cada indivíduo, composto por documentos que registram informações detalhadas sobre as condições de cada um, desde seu ingresso e durante toda sua vida no interior da instituição. O autor relaciona a prática de documentar a presença e o percurso de cada um dos sujeitos que ingressam em uma instituição ao processo de fabricação e normalização do indivíduo nas sociedades modernas. Numa escola, o momento de matrícula de uma criança ou de um adolescente costuma envolver o preenchimento de uma série de formulários, tais como o pedido de inscrição, a ficha de matrícula, uma ficha de saúde etc. Esses papéis reunidos no dossiê individual participam do processo de individualização do estudante, no sentido de que permitem localizá-lo e identificá-lo pelo conjunto de informações que só a ele dizem respeito, que o distinguem no conjunto dos alunos. Ao mesmo tempo, permitem compará-lo aos outros e evidenciar sua aproximação ou distanciamento em relação ao que é observado como sendo normal naquele grupo, bem como medir seus desvios em relação à norma. À medida que o tempo passa, a esses documentos iniciais vêm se juntar outros tantos produzidos no interior da instituição, os quais registram a vida escolar do aluno, seu percurso individual na instituição: desempenho, ausências, atrasos, comportamento e, conforme o caso, transgressões e/ou prêmios e distinções. A instituição conserva esses dossiês para que seja possível recorrer às suas informações nos casos em que se torna necessário tomar uma decisão sobre o destino do(a) estudante, por exemplo, diante de uma transgressão mais séria praticada por ele(a), ou uma dificuldade mais grave, ou até uma situação incomum em sua vida, que pode causar impacto em sua trajetória escolar.

Sendo assim, as perguntas e as opções de respostas previstas nos formulários a serem preenchidos pelos ingressantes produzem uma dupla subjetivação do indivíduo: por um lado, o indivíduo torna-se sujeito no sentido de ser submetido ao poder daqueles que se valem dessas informações para tomar decisões sobre sua vida; por outro, as perguntas e as opções de respostas disponíveis nos documentos induzem o indivíduo a elaborar sua própria subjetividade na forma de respostas verdadeiras sobre si para aquelas questões específicas, comprometendo-se com as verdades declaradas. A análise da ficha social da Escola Técnica Feminina Ernesto Dornelles permite identificar a partir das questões formuladas e das alternativas de respostas disponíveis às famílias e às alunas algumas das expectativas sociais e, portanto, das possibilidades abertas à formação das subjetividades profissionais das jovens ingressantes.

Após essa breve introdução, este artigo traz alguns elementos importantes no que se refere ao tempo e ao espaço para os quais essas fichas foram produzidas. Ou seja, importa identificar, em linhas gerais, as características da escola para a qual essas fichas serviram de registro de inscrição e o próprio significado da existência de uma escola profissional feminina situada em Porto Alegre na segunda metade da década de 1940. Em seguida, figuram a descrição detalhada e a análise das seções que compunham as fichas, as informações solicitadas e as perguntas propostas. Nas considerações finais, retomam-se os aspectos fundamentais da análise.

A Escola Técnica Feminina Senador Ernesto Dornelles no cenário educacional de Porto Alegre

A escolaridade primária obrigatória demorou a ser estabelecida no Rio Grande do Sul. Foi apenas em 1871 que a legislação provincial tornou compulsória a escolarização de meninos e meninas entre 7 e 15 anos. Progressivamente, foi se ampliando a matrícula em escolas de instrução elementar, mas, iniciado o período republicano, tais instituições eram ainda em quantidade muito inferior à necessária para atender à população infantil. A continuidade dos estudos em nível pós-primário não fugiu a essa regra e era ainda mais rara, de modo que, nas primeiras décadas do século XX, eram poucas as opções para matrícula em ginásios, colégios e escolas normais no estado. Para as meninas, a situação era mais complicada e, mesmo em Porto Alegre, capital do estado, prevalecia a escassez nesse domínio. A Escola Complementar (antiga Escola Normal, que depois passou a se chamar Instituto de Educação Flores da Cunha) tinha sido criada em 1906, destinando-se à formação de professores (Louro, 1986LOURO, Guacira Lopes. Prendas e antiprendas: uma história da educação feminina no Rio Grande do Sul. 1986. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1986. ). Em 1939, a escola passou a oferecer não apenas o curso normal, como também os cursos ginasial e complementar. Além disso, existiam no período alguns colégios confessionais que ofereciam curso ginasial feminino, como é o caso dos colégios Bom Conselho e Sevigné, escolas católicas, e o Instituto Porto Alegre (IPA), de orientação metodista. Entre os anos 1942 e 1946, foram instituídas em âmbito federal as Leis Orgânicas do Ensino, que, entre outras atribuições, organizaram a educação profissional no país e deram ensejo à ampliação das opções de escolarização nesse sentido (Medeiros Neta et al. , 2018MEDEIROS NETA, Olivia Morais et al. Organização e estrutura da educação profissional no Brasil: da Reforma Capanema às leis de equivalência. Holos, Natal, ano 34, v. 4, p. 223-235, 2018. ). A Escola Técnica Feminina Senador Ernesto Dornelles, criada em 1946 na cidade de Porto Alegre, veio se inserir no conjunto de iniciativas desse período que buscavam ampliar o rol de opções de continuidade dos estudos, inclusive para as meninas.

Nos anos 1940, Porto Alegre destacou-se como uma capital atenta às necessidades de modernização do espaço urbano e da sociedade, mas manteve grande apreço por valores morais tradicionais. Foi no contexto de articulação entre o moderno e o tradicional que a Escola Técnica Feminina Senador Ernesto Dornelles deu início às suas atividades de ensino, apresentando um currículo que não se destinava apenas à preparação das mulheres para a atividade profissional, mas também visava à sua formação como mães e esposas (Louro; Meyer, 1993LOURO, Guacira Lopes. Prendas e antiprendas: uma história da educação feminina no Rio Grande do Sul. 1986. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1986. ). Assim, a escola despontou como uma opção de formação para o trabalho que, no entanto, não afastaria as alunas das tarefas consideradas especialmente adequadas às mulheres. Os cursos oferecidos (“Corte e Costura” e “Chapéus, Flores e Ornatos”) focalizavam saberes compreendidos socialmente como “inerentes ao universo feminino” (Scholl, 2012SCHOLL, Raphael Castanheira. Memórias (entre)laçadas: mulheres, labores e moda na Escola Técnica Sen. Ernesto Dornelles de Porto Alegre/RS (1946-1961). 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. ). Os cursos duravam quatro anos e a escola recebia meninas que tinham entre 11 e 17 anos. Guacira Lopes Louro e Dagmar Meyer ( 1993LOURO, Guacira Lopes; MEYER, Dagmar. A escolarização do doméstico: a construção de uma escola técnica feminina (1946-1970). Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 87, p. 45-57, 1993. ), ao analisarem o currículo dessa escola, observam um processo de “escolarização do doméstico”. As autoras destacam a importância em melhor conhecer o funcionamento da instituição e o perfil das alunas que a frequentaram, de modo a “entender os propósitos da educação que as mobilizavam e a poderosa e sutil imbricação entre profissionalização e formação de donas de casa” (Louro; Meyer, 1993LOURO, Guacira Lopes; MEYER, Dagmar. A escolarização do doméstico: a construção de uma escola técnica feminina (1946-1970). Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 87, p. 45-57, 1993. , p. 46). Consideramos que a análise da ficha social, que deveria ser preenchida no momento da candidatura das meninas à matrícula nessa instituição, pode contribuir para o avanço desse propósito.

Antes, porém, de passarmos ao escrutínio da ficha, cabe destacar que esse documento não era produzido no âmbito da própria escola, embora sua formulação possa ter contado com a participação dos profissionais que nela atuaram. O cabeçalho da ficha informa a seguinte vinculação: Estado do Rio Grande do Sul / Secretaria de Educação e Cultura/ Superintendência do Ensino Profissional/ Divisão Técnica/ Serviço de Psicotécnica e Orientação Educacional.

O campo educacional brasileiro, especialmente após 1930, ampliou as iniciativas de racionalização da administração das escolas. Importava melhorar os serviços de inspeção, aprimorar as orientações pedagógicas e realizar registros e estudos sistemáticos que permitissem afastar a imprecisão e o caráter arbitrário das ações, que deveriam crescer em objetividade e cientificidade. Em consonância com um movimento que vinha ocorrendo em vários estados brasileiros, também no extremo sul do país houve empenho em colocar em andamento um processo de renovação pedagógica que abarcou diferentes saberes, entre os quais se sobressaíram a Psicologia, a Pedagogia Experimental e a Educação Nova (Peres, 2020PERES, Eliane. Aprendendo formas de pensar, de sentir e de agir – a escola como oficina da vida: discursos pedagógicos e práticas escolares da escola pública primária gaúcha (1909-1959). São Leopoldo: Oikos, 2020. ). No âmbito dessas iniciativas renovadoras, desde 1909, mas com maior ênfase a partir dos anos 1940 – quando foi criado, por exemplo, o Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais (CPOE) –, mudanças empreendidas na estrutura administrativa da Secretaria de Educação e Cultura permitem notar um “esforço em pautar a administração educacional em princípios técnico-científicos” (Peres, 2020PERES, Eliane. Aprendendo formas de pensar, de sentir e de agir – a escola como oficina da vida: discursos pedagógicos e práticas escolares da escola pública primária gaúcha (1909-1959). São Leopoldo: Oikos, 2020. , p 128). A ficha que assumimos aqui como objeto de análise resulta desse conjunto de iniciativas.

A ficha do serviço de psicotécnica e orientação educacional e seus efeitos subjetivantes

A elaboração de uma ficha “social” pelo Serviço de Psicotécnica e Orientação Educacional a ser preenchida pelos estudantes das escolas técnicas profissionais é representativa de uma transformação ocorrida na psicologia, no estudo das diferenças individuais. Enquanto até a década de 1930 prevaleceu a ênfase nos aspectos biológicos associados à hereditariedade, os quais se consideravam como sendo determinantes das (in)capacidades dos alunos, depois desse período se intensificou o interesse pela influência das condições sociais de existência como fator especialmente relevante na definição do potencial dos indivíduos. Pode-se formular a hipótese de que essa ficha social, a qual solicitava uma série de informações relativas às condições sociais, econômicas e do modo de vida das famílias dos estudantes, veio substituir e atualizar documentos anteriores que efetuavam um registro detalhado das características corporais dos alunos. Um exemplo desse tipo de documento foi elaborado no primeiro período republicano no estado de São Paulo, quando se criou o Gabinete de Antropologia Pedagógica e Psicologia Experimental na Escola Normal Caetano de Campos, em 1914. Tratava-se da Caderneta Biográfica dos alunos e era composta de nove páginas, as quais deveriam ser preenchidas com mensurações obtidas a partir de observações antropológicas, fisiopsicológicas e “dados anamnésticos da família” e do aluno, esses últimos coletados a partir de exame médico (Carvalho, 1997CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Quando a história da educação é a história da disciplina e da higienização das pessoas. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). História social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997. p. 291-310. ; Tavares, 1995TAVARES, Fausto. A ordem e a medida: escola e psicologia em São Paulo (1890-1930). 1995. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995. ). Produzida em outro momento, a ficha social que se vai aqui examinar evidencia a mudança de ênfase do orgânico ao social no âmbito da psicologia.

Para Foucault, os processos de subjetivação e de individualização são operações que envolvem o saber e o poder e que dependem de uma série de ações articuladas para se efetivarem. Por isso mesmo, nem sempre se realizam inteiramente de acordo com o plano inicial, sem falhas nem distorções. O simples preenchimento da ficha social de que estamos tratando o evidencia. O modelo dessa ficha não foi elaborado no âmbito das escolas técnicas no interior das quais ela era preenchida, mas provavelmente por técnicos do setor previamente mencionado. Isso sugere a existência de uma possível distância entre seu propósito inicial e aquele que orientava seu preenchimento, provavelmente realizado pelo(a) funcionário(a) da escola que recebia a candidata à matrícula acompanhada de seu responsável. Não é propósito deste artigo analisar as respostas dadas 4 4- No entanto, tal análise foi realizada no âmbito do grupo de pesquisa, já que o corpus documental é composto de cerca de 150 fichas preenchidas. Os resultados dessas análises foram publicados em Gil, Viana e Grando ( 2023 ). De qualquer modo, as autoras têm conhecimento das respostas, o que permitiu compreender melhor as próprias perguntas e o modo como eram interpretadas pelas respondentes. , mas pode-se ao menos indicar que a falta de preenchimento de diversos dos campos previstos em várias fichas nos sugere que nem todas as informações tidas como relevantes pelos formuladores da ficha eram consideradas necessárias ou pertinentes para serem registradas no interior da escola.

Além da ficha social, a documentação típica relativa a cada aluna matriculada na instituição – seu dossiê – incluía ainda outros documentos. Embora os dossiês apresentem alguma variação no que se refere aos formulários e documentos neles inseridos, em geral constam os seguintes materiais, nesta ordem:

1) Formulário com o pedido de inscrição aos exames vestibulares na Escola Técnica Feminina, o qual solicitava os seguintes dados sobre a candidata: nome, cidade e estado onde nasceu, nome do pai e da mãe, ofício do pai ou responsável (mas não da mãe), local de trabalho do pai ou responsável, endereço da candidata e se já havia realizado esses exames anteriormente. A esse formulário, deveriam ser anexados os seguintes documentos: certidão de registro civil de nascimento; atestado de não ser portadora de doença transmissível; atestado de vacinação recente; certificado de instrução, seis fotografias 3×4, de frente e “sem chapéu”;

2) Ficha social, que será detalhadamente descrita a seguir;

3) “Vida escolar”, documento correspondente ao que hoje designamos como histórico escolar, apresentando a relação das disciplinas cursadas ano a ano e registrando as notas obtidas no primeiro e segundo exames, bem como no exame final e a nota final obtida em cada matéria, seguida do registro da promoção ou reprovação no campo destinado a observações. Chama atenção nesse documento o registro do desempenho da candidata nos exames de admissão, por se referirem a provas de aptidão mental, português e matemática. Também é digna de nota a separação do desempenho escolar das alunas em Cultura Geral e Cultura Técnica no cálculo das “notas globais” a cada ano;

4) Documentos anexados, em especial a certidão de nascimento e, eventualmente, algum outro tipo de certificado.

De acordo com Foucault, essa documentação que registra a vida dos sujeitos nas instituições é correlata dos procedimentos de exame aos quais eles são regularmente submetidos e participam em seu processo de individualização. As informações registradas no dossiê individual permitem tomar decisões informadas sobre cada indivíduo, inclusive porque permitem comparar cada um com o grupo do qual faz parte, bem como tornam possível a produção de um conhecimento preciso sobre as características gerais desse grupo, permitindo apreender a norma para esse grupo específico.

Graças a todo esse aparelho de escrita que o acompanha, o exame abre duas possibilidades que são correlatas: a constituição do indivíduo como objeto descritível, analisável, não contudo para reduzi-lo a traços “específicos”, como fazem os naturalistas a respeito dos seres vivos; mas para mantê-lo em seus traços singulares, em sua evolução particular, em suas aptidões ou capacidades próprias, sob o controle de um saber permanente; e por outro lado a constituição de um sistema comparativo que permite a medida de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si, sua distribuição numa “população”.

(Foucault, 1997FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1997. , p. 158).

A descrição da ficha social que compunha o dossiê das alunas da Escola Técnica Feminina Senador Ernesto Dornelles, realizada a seguir, permite vislumbrar esse aparelho de escrita em funcionamento, bem como analisar o processo de transformação da jovem candidata em aluna da instituição. A partir dos elementos contidos nessa ficha, consideramos ser possível afirmar que o preenchimento da ficha convidava a um desenvolvimento da subjetividade no sentido da sociabilidade para a qual se voltava a atenção do saber especializado: menos interessado nas características corporais ou nas propriamente psicológicas, o que se queria registrar mais detalhadamente eram as condições de vida da aluna, os recursos econômicos e os hábitos culturais de sua família, o ambiente moral em que ela vivia. No ato de preencher a ficha, a aluna e o responsável que a acompanhava no ingresso na instituição necessariamente deveriam pensar a respeito de si próprios em termos das suas condições sociais de existência.

Análise da ficha: parte I – A família

A primeira seção da ficha destina-se à obtenção de informações sobre a família da aluna. O quadro inicial traz espaço para preencher a idade, a profissão e o rendimento de cada um de seus membros. Em apenas uma das fichas há a demanda de informação acerca dos sexos. A relação das pessoas que compõem a família encontra-se já impressa na ficha: “pai”, “tutor”, “mãe”, “tutora”. Nos espaços seguintes, espera-se que se arrolem informações sobre os filhos. Nesse caso, uma das fichas solicita “irmãos que vivem no mesmo lar” e a outra pede “filhas e filhos solteiros”. Em uma das fichas há numeração de 1 a 10 para preenchimento sobre os filhos; na outra, esse número vai até 15. Em apenas uma delas, há ainda espaço para indicar “outras pessoas”.

O modo como essa relação de pessoas é apresentada na ficha explicita a estrutura daquilo que se supõe que seja a família de uma aluna. Evidentemente, nem todos os campos precisariam ser preenchidos, mas não deixa de figurar um retrato do que socialmente se esperava como a composição da família normal no período. Assim, os indivíduos seguem formalmente livres para compor sua família, mas são levados pelas categorias expressas na ficha em análise a escolher entre alternativas que já estão predefinidas. Como ressalta Nikolas Rose ( 2011ROSE, Nikolas. Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2011. , p. 114),

[...] nas racionalidades e tecnologias políticas e contemporâneas de governo, a liberdade dos sujeitos é mais do que uma mera ideologia. Os sujeitos são obrigados a serem “livres”, a interpretar sua existência como resultado das escolhas feitas dentre uma pluralidade de alternativas (Meyer, 1986). A vida familiar, a paternidade e mesmo o trabalho não devem mais ser constrangimentos à liberdade e à autonomia: são elementos essenciais no caminho para a autorrealização.

Como se daria o preenchimento de uma dessas fichas caso, por exemplo, a aluna morasse com a avó? Outros arranjos de família, diferentes desse previamente inscrito na ficha, poderiam gerar a percepção de inadequação do modo de vida da aluna em relação às expectativas da escola. A especificação “solteiros” acerca dos filhos que vivem na mesma casa permite supor que a expectativa era que, quando se casassem, os filhos saíssem da casa dos pais. Chama a atenção também, como marca de um outro tempo, a quantidade de filhos que se poderia arrolar em cada ficha. Por fim, é interessante observar a presença da categoria “tutor(a)” em posição que sugere a substituição do pai e/ou da mãe. Nesse caso, a observação das fichas preenchidas evidencia que o tutor poderia ser talvez o padrasto da menina, nos casos em que estão indicadas informações acerca da mãe e do tutor. Mas há também situação em que se trata de tutor e tutora na mesma ficha. Algumas possibilidades se apresentam nessas circunstâncias, entre as quais pode-se considerar que se tratasse de menina órfã criada por pessoas que não eram parentes dela, ou, ainda, corresponder a “filhos de criação”, prática muito corrente na sociabilidade brasileira naquele período (Arend, 2005AREND, Silvia Maria Fávero. Filhos de criação: uma história dos menores abandonados no Brasil (década de 1930). 2005. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2005. ).

Outro aspecto que merece destaque é que a ficha expressa de muitos modos a intenção de apreender as condições socioeconômicas da família, delineando nas categorias empregadas uma sociedade urbana, burguesa e moderna, na qual se supunha viverem as alunas. Assim, por exemplo, no quadro em que se solicitava a descrição dos membros que compunham a família, havia espaço para indicar a “profissão” de cada um, bem como a informação sobre o rendimento mensal expresso nas categorias “salário” e “vencimento”. Tem-se aí um enquadramento específico dado ao mundo do trabalho, que era, no período, bem mais diverso e matizado do que a ficha sugere. Falar em “profissão” não é o mesmo que falar em ocupação ou perguntar em que cada um trabalha. Além disso, não há previsão de que o rendimento pudesse ser variável, oriundo de atividades laborais esporádicas ou de ganhos variáveis, como poderia ser o caso de um proprietário de comércio ou de um profissional liberal, situações que poderiam gerar dificuldade no preenchimento da ficha. As lacunas a serem preenchidas em seguida ao quadro complementam as informações sobre ganhos e gastos da família. Nesse caso, vale observar que diferem bastante na forma entre os tipos de ficha, embora mantenham em ambas o propósito de compreender a vida financeira da família.

Em uma das fichas, após o quadro em que já se teriam indicado os rendimentos de cada membro da família, segue a demanda de informação sobre “outras rendas” (sublocações; pensões; renda de imóveis; renda de títulos; dividendos etc.; renda de horta, criação etc.; diversos) e sobre os “encargos”. Neste último, a proposição era o registro dos gastos mensais com aluguel de casa, despesas com escolas, instituições diversas, salários de empregados e diversos. Por fim, solicitava-se a indicação do “saldo mensal com que se mantém a família”. Interessante observar que as opções de preenchimento trazem alguns itens mais prováveis em famílias abastadas e outros que se referem a famílias economicamente mais modestas. O mesmo pode-se observar na outra ficha em que, no entanto, a demanda pelas informações aparece em forma de perguntas. Aqui há uma questão que difere: “O ordenado dos filhos auxilia a família?”. Como se trata da mesma ficha em que o quadro descritivo pedia preenchimento acerca de “filhas e filhos solteiros”, pode-se aventar que a pergunta em questão pretendesse escrutinar também sobre os filhos casados. Além disso, algo presente em muitas partes da ficha e que se apresenta nesse conjunto de perguntas refere-se ao fato de que frequentemente as opções de resposta são restritas, o que podia gerar uma sensação de inadequação aos respondentes para quem as opções não serviam. Ao referir-se à maneira como a psicologia foi incorporada ao governo das subjetividades no âmbito de instituições como a escola, a fábrica, o asilo, Rose ( 2011ROSE, Nikolas. Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2011. , p. 113) observa que não se tratava de impedir a manifestação da subjetividade, mas de induzir os sujeitos a certos modos de se expressar e de se autoavaliar: “esses aparatos não procuravam esmagar a subjetividade, mas sim produzir indivíduos que atribuíssem um certo tipo de subjetividade moral a si mesmos e que avaliassem e reformassem a si mesmos de acordo com essas normas”. Por exemplo, ao perguntar se a família “mora em casa própria ou alugada”, o que responderia alguém que morasse em uma casa cedida? Na continuidade, há a inquirição sobre se mora “em apartamento ou quartos de pensão”, se “recebe comida de fora” e se “tem empregada”. Por fim, na ficha se questiona se a família possui recursos suplementares: “criação, horta, aluguéis, sublocação, pensão etc.”. É preciso cuidado na análise histórica do perfil de família delineado na ficha. Embora esse tipo de análise não seja o foco neste artigo, valeria observar que o significado de uma prática muda com o passar do tempo e diferindo o local; o que pode significar distinção em um contexto, designa algo comum em outras circunstâncias (Bourdieu, 2017BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2. ed. Porto Alegre: Zouk, 2017. ). É o caso da menção ao rendimento proveniente de aluguel de imóveis, que tende a nos fazer pensar em famílias possuidoras de vários imóveis, mas do modo como aparece na ficha sugere maior variedade de possibilidades, como a sublocação de quartos do imóvel em que se vive, mesmo que esse seja alugado.

A caracterização da família proposta na ficha não se restringe, contudo, à situação econômica. Ambos os tipos de ficha trazem perguntas que se referem às práticas culturais e religiosas, bem como ao estado educacional e a algumas práticas sociais dos membros da família ou da família considerada como unidade. Nesse caso, interessa observar a frequente designação da família como um todo unitário, mesmo em circunstâncias nas quais eventualmente as respostas poderiam variar de um membro a outro. Por exemplo, a frequência a um sindicato ou associação profissional tende a se referir apenas ao membro da família que exerce determinada profissão. Do mesmo modo, tocar um instrumento musical ou dedicar-se a alguma arte também pode ser uma prática individual. Em um dos tipos de ficha, o título que precede às perguntas refere-se às “condições educacionais e sociais”. No outro, essa seção está designada como “condições sociais e cultura”. No primeiro tipo, um quadro requer o preenchimento acerca do pai/tutor e da mãe/tutora no que se refere a “nacionalidade”, “cor” e “grau de instrução”, seguido das opções: “superior, secundário, compl. primário, alfabetizado”. Não há aí possibilidade de indicar a eventual condição de analfabeto, o que não deveria ser assim tão raro, assumidos os dados demográficos referentes ao censo de 1940RECENSEAMENTO GERAL DO BRASIL 1940: censo demográfico: censos econômicos. Rio de Janeiro: IBGE, 1940. 5 5- O censo de 1940 indicava no Brasil uma taxa de alfabetização de 38,8% na população de 5 anos ou mais e de 43,3% na população de 10 anos ou mais. . Depois, pergunta-se se praticavam 6 6- Pela posição na ficha, essas perguntas parecem se referir apenas ao pai/tutor e mãe/tutora. alguma religião e qual seria, além de trazer duas possibilidades de frequência: “com regularidade” ou “ocasionalmente”. Pergunta-se, ainda, se frequentavam associações: profissional, recreativa, esportiva, sindicato ou outra.

A outra ficha segue aproximadamente o mesmo esquema, mas diferem as perguntas, apresentando intenção de conhecimento mais detalhado de práticas culturais. A diferença se apresenta já desde o quadro a ser preenchido com informações sobre o pai/tutor e a mãe/tutora. Aqui não se pede indicação da nacionalidade, mas se mantém a solicitação de informação sobre a cor e o grau de instrução. Para o grau de instrução, há apenas um campo em aberto para preenchimento, sem predefinição dos graus possíveis como na outra ficha. Embora a inserção no quadro leve a crer que essa é uma informação para a qual todos os membros teriam resposta, pode-se, nesse caso, apenas indicar “nenhum”, se os pais fossem analfabetos. Nessa ficha, a religião é um item do quadro, e, portanto, há possibilidade de indicar situações em que pai e mãe tenham religiões diferentes. O fato de constar no quadro, por um lado, individualiza a resposta e, por outro, sugere que seria algo que se espera que todas as pessoas possuam.

A ficha pretende também investigar se os pais frequentavam alguma associação (cultural, religiosa, política, beneficente, profissional, sindicato, recreativa, esportiva ou outra) e, ainda, se:

Exercem alguma função social não remunerada? Qual?

Fazem música em casa? Que gênero?

Que pessoas participam?

Que instrumentos empregam?

Dedicam-se a outras artes? Quais?

Há biblioteca em casa? Nº. de volumes.

Que gêneros de livros predominam?

Fizeram alguma viagem? Aonde?

Que pessoas participaram?

Entre as perguntas analisadas, um conjunto interessante de pressupostos pode ser escrutinado na ficha, delineando uma vida cultural com características marcadamente burguesas, que podem tanto indicar o perfil de estudante que se esperava receber na escola quanto investigar a realização de práticas proscritas. A compreensão dos respondentes sobre se seria um ou outro dos casos depende da proximidade entre sua origem social e as referências socioculturais que organizavam as práticas escolares. Supondo-se, pelo que se conhece do capital cultural valorizado pela escola no período, que a expectativa fosse receber alunos cujas famílias tivessem respostas a dar a essas perguntas, pode-se imaginar que não ter o que responder, ou perceber que as respostas dadas não eram as que a escola esperava, pudesse configurar uma prática sutil de exclusão de determinados grupos sociais que, desde a matrícula, percebiam que seus modos de vida não eram considerados adequados, que suas experiências não eram valorizadas ou consideradas suficientes naquela instituição.

A parte que se refere à família finaliza com perguntas sobre o “interesse pela profissão da filha” 7 7- Vale observar que uma das fichas se refere à “filha” e a outra emprega o termo no masculino, “filho”. Isso talvez se deva ao fato de que a ficha fosse utilizada também em outras escolas técnicas, não apenas na escola técnica feminina. . Nesse item, as duas fichas também diferem bastante. Uma delas é sucinta, perguntando que profissão a família deseja para o filho e por que, qual a vocação do filho e em que a família se baseava para responder, por que o matriculou nessa escola e, por fim, qual a profissão tradicional na família. Aqui é interessante observar essa noção de profissão tradicional da família, que, pela posição no questionário, sugere a compreensão de que pudesse haver alguma relação entre a vocação e a inserção em um campo profissional específico. Na outra ficha, esse item é marcadamente voltado às possibilidades pensadas para a atuação profissional feminina no período. A primeira pergunta já indica uma diferença importante. Em lugar de perguntar “Que profissão deseja para o filho?”, a demanda é: “Quer que a filha siga carreira profissional?”. Dado que se está matriculando a filha em uma escola de ensino profissional, a probabilidade de que a resposta fosse “sim” era bastante grande, o que explica a pergunta seguinte querer saber o motivo do “desejo de que a filha siga a carreira profissional”. Vale notar que são apenas três as possibilidades de resposta previstas para essa pergunta (podendo-se, no entanto, responder sim a mais de uma delas): “dar-lhe uma educação completa para o lar”, “dar-lhe um meio de vida para o futuro”, “auxiliar a família ao concluir o curso”. Em seguida, o nível de curiosidade social que parece estar expresso nas próximas perguntas pode surpreender: “Deseja para a filha outra carreira?”. Por que se aventa que a família, ao matricular a filha em uma escola profissional, desejaria para ela outra carreira que não a proposta pelo curso em questão? A continuidade da ficha traz algumas opções: “Professora? Comerciária… Profissões liberais (medicina, filosofia, engenharia, química industrial, direito, música, artes plásticas etc.)?”. Se a família eventualmente deseja outra carreira para a filha, já não saberia dizer qual? Por que os proponentes da ficha consideraram necessário prover algumas opções? Interessante observar, nesse caso, que a ficha acaba por enunciar alguns horizontes possíveis, abrindo a possibilidade de que a menina e sua família pensassem algumas carreiras profissionais admissíveis para mulheres e que talvez nunca tivessem sido pensadas pelos respondentes. Aqui talvez tenhamos uma ambiguidade: as tentativas de controle das subjetividades implicadas na prática do exame inadvertidamente abrem uma fresta ao criar a possibilidade de escapar à norma social. Ou talvez se expresse nesse formulário um indício da ação discretamente combativa de pessoas que atuavam nos setores administrativos e que desejavam a expansão dos espaços para a atuação feminina na sociedade. Essa possibilidade pode ser considerada a partir da concepção de poder formulada por Foucault ( 2010FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 273-295. , p. 288), para quem o poder corresponde a “um conjunto de ações sobre ações possíveis”, de modo que não representa a exclusão da liberdade. Para o autor, a relação entre o poder e a liberdade é mais complexa, uma vez que ele “opera sobre o campo de possibilidades em que se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos”. Além disso,

[...] o poder só se exerce sobre “sujeitos livres”, enquanto “livres” – entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de possibilidades em que diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer. Não há relação de poder onde as determinações estão saturadas – a escravidão não é uma relação de poder, pois o homem está acorrentado (trata-se, então, de uma relação física de coação) – mas apenas quando ele pode se deslocar e, no limite, escapar.

(Foucault, 2010FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p. 273-295. , p. 289).

Análise da ficha: parte II – A aluna

Nos dois modelos de ficha social que foram examinados, a segunda parte refere-se especificamente à aluna e era dividida em duas seções: “Condições educacionais e teor de vida” e “Tendências vocacionais”. A primeira seção, com sete itens, solicita informações relativas à escolaridade pregressa da aluna: escolas frequentadas, grau obtido, se possui diploma e qual. Logo em seguida, devia-se responder às seguintes questões sobre religião: pratica a religião dos pais? Regularmente ou ocasionalmente? Vale observar que não estava previsto nesse modelo de ficha a possibilidade de a aluna praticar uma outra religião que não a dos pais, nem que o pai e a mãe tivessem crenças diferentes. No segundo modelo de ficha, essas questões eram substituídas pela seguinte: “Que religião pratica?”, a qual deixava sem opção confortável de resposta a aluna que eventualmente não praticasse nenhuma. Esses detalhes são importantes quando se trata de pensar sobre os efeitos do preenchimento de uma ficha como essa no processo de subjetivação das alunas, na medida em que as induzia a se perceberem como ajustadas ou desajustadas às expectativas da instituição. Nos casos em que a situação da aluna não se ajustasse ao formulário, ela era levada a perceber a si própria como exceção.

As questões relativas à religião se colocavam a meio caminho entre aquelas relativas à escolaridade e as seguintes, que se referiam ao “teor de vida”, ou seja, a aspectos da rotina e condições de vida, como: tempo de trajeto até a escola e modo pelo qual realizava esse trajeto; número de refeições por dia (na primeira ficha ainda era preciso registrar se as refeições se realizavam ou não em horário fixo); e a que horas a aluna se deitava e se levantava. Essas questões relacionadas ao dia a dia permitiam à instituição prever maior ou menor facilidade com que a candidata se adaptaria à rotina e às exigências da instituição. Para a candidata que preenchia a ficha, podia ter efeito de advertência, sugerindo que seria apropriado manter hábitos regulares de sono e alimentação. Evidencia-se nesse caso a interface entre os saberes e as prescrições da psicologia e da higiene para a vida escolar.

A segunda seção da segunda parte era dedicada à investigação das tendências vocacionais e é talvez aquela que melhor caracteriza essa ficha social como produto de um serviço de psicotécnica e orientação educacional, aquela que se volta especificamente para a investigação das tendências psicológicas da aluna por meio de questões relacionadas às suas habilidades e desejos. Também nessa seção, a ficha expressa a orientação da psicologia da época para o fator social, pois, embora houvesse campos reservados à identificação de desejos e inclinações, não se demandava que as alunas se examinassem a partir de um vocabulário psicológico incluindo termos como timidez ou extroversão, insegurança ou autoconfiança etc. Mesmo nessa seção, as habilidades e desejos eram diretamente associadas à condição social e ao modo de vida, o que faz pensar na produção de uma subjetividade mais “superficial” derivada da identificação a hábitos, rotinas, condições de vida e preferências por atividades, em vez de uma subjetividade mais “profunda”, introspectiva, relacionada a sonhos, sentimentos e experiências íntimas.

Para que se possa compreender o processo de subjetivação induzido pela ficha, importa considerar os aspectos e alternativas nelas contidos, que induziam a aluna a falar mais de si, bem como as opções disponíveis e indisponíveis para isso no formulário. A esse respeito, vale lembrar a seguinte advertência de Nikolas Rose ( 1998ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu privado. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Liberdades reguladas: a pedagogia construtivista e outras formas de governo do eu. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 30-45. , p. 31): “pode parecer que pensamentos, sentimentos e ações constituem o próprio tecido e constituição do mais íntimo eu, mas eles são socialmente organizados e administrados nos mínimos detalhes”. A solicitação de preenchimento de uma ficha individual em que um conjunto de alternativas era oferecido evidencia esse detalhamento em um procedimento administrativos e seus efeitos subjetivantes. Os aspectos de si mesma sobre os quais a candidata deveria se pronunciar eram os seguintes: suas ocupações preferidas para as horas vagas, sendo que as opções se referiam a jogos, esportes, passeios, desenhos, leituras, trabalhos manuais e trabalhos domésticos, sem deixar espaços para outras possibilidades, como encontrar os(as) amigos(as), namorar, maquiar-se, meditar, escrever etc. Tais elementos mostram que, tanto quanto na parte relativa à família, na parte relacionada à aluna a ficha também expressava a norma social e cultural da época para meninas burguesas vivendo em meio urbano. Solicitava-se ainda que a estudante indicasse o assunto predileto nas suas leituras de livros, revistas ou jornais, bem como sua matéria preferida na escola. No primeiro modelo de ficha, a respondente deveria ainda indicar se tinha preferência pelo estudo ou pelo trabalho manual, o que sugeria uma oposição que era significativa para o campo educacional no período, relacionada à bifurcação do ensino secundário em propedêutico e profissional. Havia ainda um item sobre a frequência de ida ao cinema e o tipo de filme mais apreciado. No primeiro modelo de ficha, indagava-se também na companhia de quem a candidata ia ao cinema, o que sugere que a possibilidade de uma jovem frequentar o cinema sozinha era desconsiderada, deixando em apuro aquela que eventualmente o fizesse.

Seguiam-se questões sobre experiências anteriores de trabalho e sobre expectativas em relação à profissão e à vida após a conclusão dos estudos, as quais eram associadas à identificação de desejos e aversões. Questionava-se se a candidata já tivera alguma ocupação fora de casa e qual o motivo do abandono, uma questão a ser bem ponderada pela respondente, a qual poderia ter um peso importante em sua avaliação. Em seguida, era preciso registrar que curso pretendia frequentar na escola técnica e por qual razão. Logo depois, a respondente era levada a conjecturar sobre seu porvir, indicando a profissão que gostaria de exercer, registrando também aquela que não exerceria de maneira nenhuma e a razão para isso. Finalmente, deveria responder às questões: “Que posição ideal deseja ocupar no futuro? Por quê?”. Interessante destacar aqui que “profissão que gostaria de exercer” e “posição ideal” são duas perguntas distintas, o que implica pensar que a posição ideal das meninas pudesse nada ter a ver com seus anseios profissionais.

Considerando-se que essa ficha social era preenchida pelas candidatas a um curso profissional em uma escola técnica, pode-se imaginar que algumas dessas questões relacionadas à profissão e ao futuro já houvessem sido objeto de reflexão por parte delas antes da necessidade de preenchê-la. Mesmo assim, o exercício de responder às questões na sequência apresentada e de justificar cada uma das respostas era provavelmente novo, levando-as a pensar, talvez pela primeira vez, na conexão possível – tornada necessária pela ficha – entre hábitos de lazer, preferências relativas a leituras e filmes, trabalhos anteriormente realizados etc., e a escolha do curso profissional e ainda sua “posição ideal” no futuro. Desse modo, a ficha induzia à elaboração e ao compromisso com um projeto de vida condizente com uma subjetividade que era produzida em termos das alternativas apresentadas no próprio documento. Supondo-se que as respostas eram verdadeiras, a respondente era levada a se identificar com seu documento, que registrava as informações sobre si própria, fornecidas por ela mesma, por maior que fosse o estranhamento ou a confusão que tivesse experimentado ao preenchê-lo diante de perguntas e alternativas sobre as quais talvez nunca tivesse pensado anteriormente. Na perspectiva de Nikolas Rose, que subsidia esta análise, esse processo explicita um aspecto característico da formação das subjetividades na modernidade.

Os estilos de vida devem ser construídos através de escolhas feitas dentre uma pluralidade de alternativas, cada qual devendo ser legitimada em termos de escolha pessoal. O self moderno é impelido a dar sentido à vida por meio da busca por felicidade e autorrealização em sua biografia individual: a ética da subjetividade está inextricavelmente atada aos procedimentos do poder (Rose, 2011ROSE, Nikolas. Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2011. ). Ao final da ficha, em campos que deveriam ser preenchidos pelo(a) funcionário(a) da instituição encarregado(a), deveria registrar-se as impressões gerais causadas pela candidata em relação ao seu traje, asseio, atitude e expressão. O campo seguinte reservava espaço para o registro de “observações especiais” e era seguido de outro com espaço equivalente para a “apreciação final”.

Considerações finais

A tradução do indivíduo para o domínio do conhecimento torna possível governar a subjetividade de acordo com normas que reivindicam para si o status de ciência por profissionais que ancoram sua autoridade em um conhecimento esotérico, mas objetivo. Na escola, na fábrica, na prisão e no exército, os psicólogos viriam a se tornar experts no uso racional do fator humano. A psicologia começou a reivindicar uma capacidade não meramente de individualizar e classificar, mas também de dar conselhos a respeito de todas as facetas da vida institucional e de aumentar a eficiência e a satisfação, a produtividade e o contentamento (Rose, 2011ROSE, Nikolas. Inventando nossos selfs: psicologia, poder e subjetividade. Petrópolis: Vozes, 2011. ).

O simples ato de preencher um formulário da burocracia escolar, como a ficha social examinada neste artigo, é ilustrativo do modo como a psicologia, seus serviços e procedimentos tornaram-se referência incontornável para a formação das subjetividades modernas. Acostumamo-nos a ser solicitados a preencher documentos como esse, com suas variações e diferentes ênfases, em situações das mais diversas: no momento de ingresso em uma instituição de ensino; ao dar entrada em um hospital; ao buscar uma vaga de emprego; e até mesmo ao requisitar o visto para ingresso em um país estrangeiro. Às vezes o formulário é substituído ou somado a uma entrevista em que se deve responder a questões semelhantes. Em cada caso, somos levados a revelar a verdade sobre nós mesmos, sempre nos termos propostos pelo questionário, o qual nos oferece o esteio e o vocabulário, a estrutura e os limites dentro dos quais devemos produzir nossa própria subjetividade; o qual, além disso, nos induz ao compromisso com as verdades assim formuladas.

Referências

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  • SCHOLL, Raphael Castanheira. Memórias (entre)laçadas: mulheres, labores e moda na Escola Técnica Sen. Ernesto Dornelles de Porto Alegre/RS (1946-1961). 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.
  • TAVARES, Fausto. A ordem e a medida: escola e psicologia em São Paulo (1890-1930). 1995. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
  • 3-
    Disponibilidade de dados: as fichas analisadas neste artigo foram publicadas integralmente em Gil, Viana e Grando ( 2023GIL, Natália; VIANA, Maria Vitória Longo; GRANDO, Luísa. Características e anseios das alunas de uma escola técnica feminina (Porto Alegre/RS, anos 1940). Sillogés, v. 6, n. 1, p. 134-164, 2023. ).
  • 4-
    No entanto, tal análise foi realizada no âmbito do grupo de pesquisa, já que o corpus documental é composto de cerca de 150 fichas preenchidas. Os resultados dessas análises foram publicados em Gil, Viana e Grando ( 2023GIL, Natália; VIANA, Maria Vitória Longo; GRANDO, Luísa. Características e anseios das alunas de uma escola técnica feminina (Porto Alegre/RS, anos 1940). Sillogés, v. 6, n. 1, p. 134-164, 2023. ). De qualquer modo, as autoras têm conhecimento das respostas, o que permitiu compreender melhor as próprias perguntas e o modo como eram interpretadas pelas respondentes.
  • 5-
    O censo de 1940 indicava no Brasil uma taxa de alfabetização de 38,8% na população de 5 anos ou mais e de 43,3% na população de 10 anos ou mais.
  • 6-
    Pela posição na ficha, essas perguntas parecem se referir apenas ao pai/tutor e mãe/tutora.
  • 7-
    Vale observar que uma das fichas se refere à “filha” e a outra emprega o termo no masculino, “filho”. Isso talvez se deva ao fato de que a ficha fosse utilizada também em outras escolas técnicas, não apenas na escola técnica feminina.

Editado por

Editor: Prof. Dr. Fernando Luís Cássio

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2023
  • Revisado
    13 Mar 2023
  • Aceito
    24 Abr 2023
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