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Paula Glenadel e Elvira Vigna: agoridade da literatura

Paula Glenadel and Elvira Vigna: Jetztseit of literature

Paula Glenadel y Elvira Vigna: Jetztzeit de la literatura

Resumo

Tomando como objeto central os poemas compilados em A fábrica do feminino, de Paula Glenadel (2008)GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., e o romance Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, de Elvira Vigna (2016)VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., mas recorrendo igualmente a outras obras das autoras, o artigo questiona o que neles se guarda sobre a possibilidade de nascimento do novo. Parte, então, da discussão de Walter Benjamin rubricada sob o conceito de agoridade (Jetztzeit) e investiga a relação entre androginia e natalidade como ruptura com a vida orgânica (Zoé), e a aposta que as autoras fazem na vida simbólica (Bíos) como possibilidade da política. Seria a androginia — a diluição da diferença entre o masculino e o feminino, mas sobretudo entre o Outro e o Eu —, buscamos sustentar, a aposta que suas literaturas mimetizam como alternativa à instrumentalidade da política contemporânea.

Palavras-chave:
Paula Glenadel; Elvira Vigna; natalidade; androginia; agoridade

Abstract

Taking as a central object the poems compiled in Paula Glenadel’s (2008)GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras. A fábrica do feminino, and Elvira Vigna’s (2016)VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras. novel Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, but also resorting to other works by the authors, this paper questions what these writings hold as possibilities for the birth of the new. The paper takes in account Walter Benjamin’s concept of Jetztzeit with the aim of researching the relationship between androgyny and natality as a rupture with organic life (Zoe), and the the authors’ bet on symbolic life (Bios) as a possibility of politics. Androgyny — the indifference between male and feminine, but also between the Other and the Self — is, we seek to argue, the bet that both literatures make as an alternative to the instrumentality of contemporary politics.

Keywords:
Paula Glenadel; Elvira Vigna; natality; androgyny; Jetztzeit

Resumen

Al tomar como objeto central los poemas de Paula Glenadel (2008)GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras. que se encuentran en A fábrica do femenino, así como la novela Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, de Elvira Vigna (2016)VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., además de otras obras de las autoras, el artículo cuestiona lo que en ellos se guarda de una posibilidad del nacimiento del nuevo. Toma en cuenta, entonces, la discusión de Walter Benjamin subrayada en el concepto de Jetztzeit, e investiga la relación entre androginia y natalidad como ruptura con la vida orgánica (Zoé), así como la apuesta que hacen las escritoras en la vida simbólica (Bíos) como posibilidad de la política. Es la androginia – la dilución de la diferencia entre el masculino y el femenino, pero más que nada entre el Otro y el Yo –, hemos intentado sostener, la apuesta que esas literaturas mimetizan como alternativa a la instrumentalidad de la política contemporánea.

Palabras-clave:
Paula Glenadel; Elvira Vigna; natalidad; androginia; Jetztzeit

I

Em “Instantâneo”, poema de Paula Glenadel compilado na primeira parte do livro A fábrica do feminino, de 2008, lemos:

Zoé grávida olha o mar

na barriga, um aquário

uma linha se dilata

nada mais além

da linha do horizonte

lembra da Parca,

a tesoura avara (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 19).

É curioso que este poema, cuja protagonista, Zoé, emerge como expressão da vida orgânica, se encontre em um livro que se refere constantemente à fabricação do feminino, por meio da simbólica que o Ocidente sobre ele produziu. O choque entre as duas concepções de pessoa, a orgânica e a simbólica, coloca-nos diante de um problema que a Filosofia Política, no século XX, retomou de Aristóteles, ao propor uma leitura da modernidade que põe sob tensão os dois conceitos nominativos de vida na Grécia Antiga, Zoé e Bíos.

Para lembrarmos da forma como a problemática é elaborada por Hannah Arendt (2016)ARENDT, Hannah (2016). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária. em A condição humana, o primeiro dos conceitos, Zoé, pode ser entendido como pura vida vivente, na medida em que, relacionado à esfera do trabalho, é marcado por aquilo que tem fim em si mesmo, que não logra perdurar; o segundo, Bíos, por sua vez, coloca-se, ao menos em tese, na esfera da vida qualificada, relacionando-se às esferas da obra e da ação que, com o trabalho, formam a tópica conceitual da Vita Activa. A obra e a ação, ao contrário do trabalho, estariam ligadas, assim, àquilo que se mantém mesmo com o findar de seu ato, dando possibilidade ao sujeito de adentrar a vida pública. Os temas reaparecem no estudo de Giorgio Agamben (2002)AGAMBEN, Giorgio (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG. em Homo Sacer, o qual, comenta Edgardo Castro (2013)CASTRO, Edgardo (2013). Acerca de la (no) distinción entre Bíos y Zoé. In: CAPONI, Sandra; VALENCIA, Maria F. V.; VERDI, Marta; ASSMANN, Selvino (org.). A medicalização da vida como estratégia biopolítica. São Paulo: LiberArs. p. 59-68., não se trata de mera continuidade das obras de Arendt e Michel Foucault, senão de um movimento crítico aos autores. Daí que, na leitura de Agamben (2002)AGAMBEN, Giorgio (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG., o próprio conceito de Bíos se coloque, também, como expressão da vida desqualificada, na medida em que o estado de exceção, antes de se colocar como tal, apresenta-se como paradigma que cortaria com a possibilidade da política e do posicionamento do sujeito na Polis; por isso é a potência-de-não que ocupará a sua reflexão, tomando-a como recusa de concordância com o estabelecido.

Não deve ser ingenuidade de Glenadel, tampouco mera coincidência, que Zoé, personagem que se coloca como pura vida vivente, presa à organicidade do corpo, seja nomeada como tal. O plano lexical do poema relaciona-se à problemática aristotélica retomada por Agamben (2002)AGAMBEN, Giorgio (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG. e Arendt (2016)ARENDT, Hannah (2016). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária., como se observa no léxico “grávida”, que indica nascimento orgânico e que, na segunda estrofe, tem como continuação a impossibilidade de que algo possa ser visto para além de seu próprio acontecimento, indicando fim em si mesmo; isso se relaciona, ainda, à vida avara, pobre, sem obra, que é referenciada no último verso do poema. O próprio título, “Instantâneo”, já indica a finitude de um ato que acaba em si mesmo, que não perdura — ou que congela, como nos instantâneos fotográficos —, esta que é, para Arendt (2016ARENDT, Hannah (2016). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p.107), a definição conceitual de trabalho: “é típico de todo trabalho nada deixar atrás de si, que o resultado do seu esforço seja consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido”.

Não se trata, para a autora, de desprezo pelo trabalho. Ele importa na medida em que dá manutenção ao organismo e, assim, a possibilidade de sustentação da obra e da ação, o que faz com que Arendt (2016)ARENDT, Hannah (2016). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária. o tome como um princípio da Vita Activa. O núcleo de sua crítica aponta, isso sim, ao fato de que, “embora nos tenhamos tornado excelentes na atividade do trabalho que realizamos em público, a nossa capacidade de ação e de discurso perdeu muito de seu antigo caráter desde que a ascendência do domínio social baniu estes últimos para a esfera do íntimo e do privado” (Arendt, 2016ARENDT, Hannah (2016). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 60). A ascensão do social, assim, reduz a esfera política.

Estamos diante, pois, de um problema que fala do mundo e que Arendt (2016)ARENDT, Hannah (2016). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária. conceituará como

aquilo que adentramos ao nascer e deixamos para trás quando morremos. Transcende a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro, preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência nele. É isso o que temos em comum não só com aqueles que vivem conosco, mas também com aqueles que aqui estiveram antes e com aqueles que virão depois de nós (Arendt, 2016ARENDT, Hannah (2016). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 68).

Este mundo, para Arendt (1979)ARENDT, Hannah (2016). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária., não é, contudo, estático. É o que afirma em A crise na educação, quando escreve que

estamos sempre educando para um mundo que ou já está fora dos eixos ou para aí caminha, pois é essa a situação humana básica, em que mundo é criado por mãos mortais e serve de lar aos mortais durante tempo limitado. O mundo, visto que feito por mortais, se desgasta, e, dado que seus habitantes mudam continuamente, corre o risco de tornar-se mortal como eles. Para preservar o mundo contra a mortalidade de seus criadores e habitantes, ele deve ser, continuamente, posto em ordem. O problema é simplesmente educar de tal modo que um por-em-ordem continue sendo efetivamente possível, ainda que não possa nunca, é claro, ser assegurado. Nossa esperança está pendente sempre do novo que cada geração aporta; precisamente por basearmos nossa esperança apenas nisso, porém, é que tudo destruímos se tentarmos controlar os novos de tal modo que nós, os velhos, possamos ditar sua aparência futura. Exatamente em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora; ela deve preservar essa novidade e introduzi-la como algo novo em um mundo velho, que, por mais revolucionário que possa ser em suas ações, é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, obsoleto e rente à destruição (Arendt, 1979ARENDT, Hannah (1979). A crise na educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 221-247., p. 243).

A educação coloca-se, portanto, como tensão. Ao mesmo tempo que deve apresentar o mundo em sua tradição, é ela também possibilidade de, ao conservá-lo, transformá-lo, na medida em que a criança, ao nascer para o mundo e não para a vida orgânica, coloca a virtualidade do novo a partir de sua imprevisibilidade. A educação guarda, então, a tensão entre a conservação do passado e a aposta no futuro, na qual o vindouro pode ser almejado na medida em que um conhecimento comum sobre o mundo se conserva. É a partir dessa problemática que Arendt (1979)ARENDT, Hannah (2016). A condição humana. Tradução de Roberto Raposo e Adriano Correia. Rio de Janeiro: Forense Universitária. propõe o conceito de natalidade, pensando na virtualidade do novo que poderia emergir no bojo da educação. É no contexto deste problema, contudo, que se coloca uma dimensão ética inerente àquele que escolhe para si a profissão de ensinar: assumir a responsabilidade pela manutenção do mundo, ainda que essa responsabilidade busque romper com qualquer esquema teleológico e se coloque, no lugar, como uma aposta naquilo que pode vir a ser. Talvez não seja exagerado deslocarmos o argumento da autora para pensarmos, então, como o novo pode nascer, em sua virtualidade, também pela literatura. É a esta pergunta — pela possibilidade de nascimento do novo, que se coloca como uma dimensão ética assumida pela poesia contemporânea ao tomar a linguagem como teatralização (Glenadel, 2018GLENADEL, Paula (2018). Mínimos teatros: poesia contemporânea e ética. Outra Travessia, Florianópolis, n. 25, p. 6-16. https://doi.org/10.5007/2176-8552.2018n25p5
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; Scramim, 2018SCRAMIM, Susana (2018). Teatralidades da linguagem e poesia contemporânea. Outra Travessia, Florianópolis, n. 25, p. 17-30. https://doi.org/10.5007/2176-8552.2018n25p17
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) — que as páginas a seguir se dedicam, questionando às obras de Paula Glenadel e de Elvira Vigna o que guardam de uma agoridade (Jetztzeit) da literatura.

II

O movimento de emergência do novo pela tensão entre conservação da tradição e virtualidade do vindouro expressa-se em uma série de poemas de A fábrica do feminino, de Glenadel (2008)GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras.. A tradição ali se faz presente, como possibilidade de conservação de um mundo do sentido comum, daquilo que pode ser compartilhado, ao mesmo tempo que indica seus limites, almejando um novo que dessa tradição possa nascer. A questão deixa-se ver no poema “Sereia”:

Os homens que amei

levei ao reino das Mães

uns voltaram do portão

já outros, adoeceram

um foi lá e ficou rico

mas esse era marinheiro (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 21).

O poema alegoriza o Canto XII da Odisseia de Homero e, mais que isso, pela referência à imagem daquele que era marinheiro e enriqueceu, Ulisses, pode ser pensado com base na leitura que fazem Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1985)ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar. quando encontram na passagem em questão uma primeira elaboração da dialética do esclarecimento: ao identificarem um Ulisses que ordena ser amarrado para que possa desfrutar do canto das sereias, ao passo que os marinheiros deveriam tapar seus ouvidos com cera, coloca-se uma cisão entre proprietário e proletário mas, sobretudo, “a oposição do ego sobrevivente às múltiplas peripécias do destino [que] exprime a oposição do esclarecimento ao mito” (Adorno; Horkheimer, 1985ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar., p. 49). Antes de cotejar o poema de Glenadel com o argumento elaborado no primeiro excurso ao primeiro capítulo da Dialética do Esclarecimento interessa mais, por ora, seguirmos pensando com Arendt (1979)ARENDT, Hannah (1979). A crise na educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 221-247.. Se se nota, no poema, uma tensão pela emergência da tradição, que pode até mesmo ganhar feição crítica no corpo do livro por dar forma poética a uma série de estereótipos históricos sobre as imagens do feminino, esse tensionamento dá-se, precisamente, como forma de emergência do novo; ou seja, não se trata de um abandono da tradição, e sim da possibilidade de sua presença pela elaboração crítica e pelo almejar do que está por vir. O poema “Três”, compilado na segunda parte de A fábrica do feminino, “A cidade dos homens, expressa-o:

No museu de cera e cultura

um vândalo um dia talvez corte

a cabeça do homem no escritório

degole a dona-de-casa

sobre o seu fogão

jogue fora o bebê

com a água do banho (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 42).

Já não pela presença de um objeto da alta cultura, a obra de Homero, e sim pela inversão que faz do ditado popular em seus dois últimos versos, a tradição faz-se presente. Mas essa tradição é posta sob tensão: não se trata de abandoná-la, mas de cuidar para que, junto com o supérfluo — a água do banho — não se jogue fora também o importante — o bebê que, em si, carrega a virtualidade do novo. A problemática é imageticamente construída pelo museu, que se coloca em uma dialética entre aquilo que deveria permanecer — a cultura — e aquilo que não — a cera, como metáfora da barbárie que, próxima ao calor do fogão, derreteria. Na dialética entre civilização e barbárie, em um respingo daquilo que fora proposto por Walter Benjamin (2019)BENJAMIN, Walter (2019). Sobre o conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 9-20. em suas teses Sobre o conceito da História, ecoa em Glenadel a aposta de Arendt: a natalidade como algo que se dá no quadro da conservação do mundo como sentido compartilhado por aqueles que nele habitam; um vindouro que nasce em sua sedimentação no pretérito. O novo em Glenadel, a natalidade pela poesia, merece atenção.

A imprevisibilidade do novo, em Arendt (1979)ARENDT, Hannah (1979). A crise na educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 221-247., relaciona-se à ideia de infância. Esta, contudo, recebe tratamento peculiar. A autora busca situá-la como um estágio da vida humana; não o do desenvolvimento cognitivo, mas o de uma apreensão do mundo, o que a leva a sugerir que a infância deveria ter um fim marcado, para que não reverberasse na infantilização dos adultos. A infância como momento de apreensão do mundo seria, pois, aquele no qual a criança conhece do mundo em que se encontra para, depois, poder ocupa-lo em pé de igualdade (é a aposta de Arendt) com os outros seres humanos ao adentrar na política: a

retenção da criança é artificial porque extingue o relacionamento natural entre adultos e crianças, o qual, entre outras coisas, consiste do ensino e da aprendizagem, e porque oculta ao mesmo tempo o fato de que a criança é um ser humano em desenvolvimento, de que a infância é uma etapa temporária, uma preparação para a condição adulta (Arendt, 1979ARENDT, Hannah (1979). A crise na educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 1979. p. 221-247., p. 233).

A educação, portanto, precisa ter um ponto limite para que a criança possa, depois, se colocar na Vita Activa.

A posição é bastante divergente em teóricos que se dedicaram com mais força à Estética e à Filosofia da Arte, problema filosófico menos discutido pela grande politóloga — ainda que a relação de Arendt com a Estética venha sendo estudada por Daiane Eccel (2019)ECCEL, Daiane (2019). Franz Kafka lido por Hannah Arendt: cultura, formação e política. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 31, n. 52, p. 304-322. https://doi.org/10.7213/1980.5934.31.052.A001
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. Lembrando de Agamben (2005)AGAMBEN, Giorgio (2005). Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG., a infância coloca-se não como um momento da vida, mas como in-fância, ou seja, como possibilidade de uma experiência ligada aos sentidos e não ao conceito, que pode ter sua expressão em momentos dos mais variados do desenvolvimento humano. O tema, a bem dizer, é pressuposto desde Baudelaire quando sugere uma recepção infantil, que poderia se surpreender com o mundo, em detrimento da recepção do sábio, que estaria, em vocabulário benjaminiano, amortecida pelos choques, o que resultaria em uma recepção dos estímulos pela consciência, reduzindo, com isso, a faculdade mnemônica em sua esfera involuntária.

Falando em Benjamin, também em sua obra a infância é acessada pelos sentidos do adulto que provocam a memória. É o que se nota nos fragmentos e aforismos que dão forma a Rua de mão única e Infância berlinense: 1900 (Benjamin, 2017aBENJAMIN, Walter (2017a). Rua de mão única / Infância em Berlim: 1900. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica.), nos quais o autor se vale das imagens da infância para tematizar, de forma não conceitual, um tópico caro à sua obra: o conceito de mímesis. Glenadel, leitora de Benjamin, tem-no em conta na escrita dos poemas que compõem A fábrica do feminino. A questão é perceptível em “A náusea”, dedicado a Walter, mas é em “Espelho” que mais se evidencia:

Como é que se separa

imagem de semelhança

um tempo para cada coisa

vacas magras e vacas gordas

ruminando dietas capas cartazes

sonhando celulose e superfície

mulheres de papel sem celulite

parcelando plásticas

mastigando críticas

maquinando máscaras

maquiando cílios (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 22).

No poema, a tensão entre imagem e semelhança aponta aos desdobramentos do conceito de mímesis. Se a pergunta que a voz nos faz é sobre a possibilidade de se separar imagem de semelhança, não é demais supor que os versos coloquem em crise a ideia de representação. A mímesis, em sentido aristotélico, refere-se mais à construção de uma estrutura verossímil do que à potência de contornar, mesmo que de forma não verossímil, um objeto. Nesse sentido a mímesis, em Aristóteles (2015)ARISTÓTELES (2015). Poética. Tradução de Paulo Pinheiro. São Paulo: 34., fala de um regime de imitação expresso pela possibilidade de o texto dar forma a algo que, ainda que não acontecido, pudesse acontecer, já que o central na discussão é a verossimilhança que aquela guardaria no procedimento de imitação da vida. Nesta chave de leitura da mímesis temos uma imagem. Mas o que Glenadel propõe em seu verso é a separação entre imagem e semelhança. No ensaio Doutrina das semelhanças, Benjamin (2018a)BENJAMIN, Walter (2018a). Doutrina das semelhanças. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica). Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 47-52. discute a questão ao pensar em como a mímesis, que poderia parecer como que reduzida na modernidade, estaria, na verdade, guardada no pressuposto da linguagem, ainda que de forma não-sensível. A isso Benjamin (2018a)BENJAMIN, Walter (2018a). Doutrina das semelhanças. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica). Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 47-52. irá acrescentar a ideia de uma impossibilidade de fixação:

A hora do nascimento que aqui é decisiva não passa, porém, de um instante. E isso chama-nos a atenção para uma outra particularidade na esfera da semelhança. E atrai o olhar para uma outra singularidade nessa esfera. A sua percepção está sempre ligada a uma aparição súbita. Ela passa, veloz, talvez seja recuperável, mas não podemos fixá-la, como acontece com outras percepções. Oferece-se ao olhar de forma tão fugidia e passageira como uma constelação. A percepção das semelhanças parece, assim, estar ligada a um momento no tempo. Como se um terceiro, o astrólogo, viesse juntar-se à conjunção de dois astros que quer apreender num instante. Em contrapartida, e apesar de toda a precisão dos seus instrumentos de observação, o astrônomo nunca consegue os mesmos resultados (Benjamin, 2018aBENJAMIN, Walter (2018a). Doutrina das semelhanças. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica). Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 47-52., p. 49).

Benjamin afasta-se de qualquer realismo ligado à imitação, colocando em seu lugar a noção de um agora que não pode ser fixado. A semelhança, assim, afirma-se no processo de representação (Darstellung), como apresentar novamente, no qual, mesmo que se valendo dos melhores instrumentos, nunca chegaria a imitar o real que busca mimetizar. Talvez o melhor dos instrumentos, a mimese, seja a imanência; e seu resultado, em vez da imagem verossímil que desejara Aristóteles (2015)ARISTÓTELES (2015). Poética. Tradução de Paulo Pinheiro. São Paulo: 34., passa a ser o mimetismo, a possibilidade de apreensão não conceitual do mundo.

Também no livro sobre o barroco alemão, Benjamin (2016)BENJAMIN, Walter (2016). Origem do drama trágico alemão. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. efetua uma ruptura com a formulação aristotélica à mímesis. Se “os jogos atléticos, o direito e a tragédia [formam] a grande tríade agônica da vida grega” (Benjamin, 2016BENJAMIN, Walter (2016). Origem do drama trágico alemão. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica., p. 118), uma das rupturas do Drama trágico tangencia o conceito de catarse: “enquanto a tragédia termina com uma decisão, por mais incerta que seja, ressoa na essência do drama trágico e na da sua morte um apelo próprio dos mártires” (Benjamin, 2016BENJAMIN, Walter (2016). Origem do drama trágico alemão. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica., p. 141). Ora, a catarse dá-se, para Aristóteles (2015)ARISTÓTELES (2015). Poética. Tradução de Paulo Pinheiro. São Paulo: 34., a partir do desencadeamento verossímil do discurso imitativo, mas, com o declínio da catarse no Drama trágico, a própria estrutura de verossimilhança, na modernidade, vê-se afetada. É o que se depreende da leitura que, partindo de Benjamin, Jacques Rancière (2021)RANCIÈRE, Jacques (2021). Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: 34. leva a cabo em Aisthesis. Ao comentar a mudança que o enredo teatral sofre a partir do século XVIII, Rancière (2021)RANCIÈRE, Jacques (2021). Aisthesis: cenas do regime estético da arte. Tradução de Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: 34. sublinha a recusa do desencadeamento causal das ações, característico do modelo aristotélico, apontando então para uma forma de exterioridade que poderia expressar o drama que ocupa o protagonista. Por isso o autor aponta a um teatro imóvel, já que não se trata de uma sequência de desenvolvimento causal por meio da fala, senão da transfusão de um inquietamento do interior (do sujeito) aos objetos exteriores (que ocupam o palco). Em Glenadel, o mimetismo dessa recusa é legível no poema “Mole”. Escrito em prosa em bloco único, na sua última frase lemos: “A Virgem Maria era mãe, santa e virgem, de onde se conclui, primeiramente, que toda mulher é vagabunda, e depois, que toda loura é burra” (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 12).

A relação causal entre a maternidade da Virgem Maria, sua santidade e a suposta burrice das loiras é nula. Pela estrutura do poema, Glenadel afasta-se da estrutura mimética aristotélica e dá um passo em direção à benjaminiana, ao apontar para um mimetismo, no verso, de uma estrutura de pensamento masculinista que produz estereótipos do feminino. Mas não foi apenas Benjamin quem tematizou a questão nas primeiras décadas do século passado. Também Antonin Artaud (2019)ARTAUD, Antonin (2019). Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM., em sua teorização sobre o teatro da crueldade, recusa o sujeito psicológico, marcado pela estrutura (da razão) da linguagem que está na base da verossimilhança aristotélica, e sugere, em seu lugar, a ênfase nas experiências corporais. É o que se nota na diferenciação que o dramaturgo faz entre o que seriam os teatros ocidental e oriental. O primeiro, para Artaud (2019)ARTAUD, Antonin (2019). Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM., é problemático na medida em que, ao focalizar a fala e tomá-la como força de desenvolvimento da ação, recai na convencionalidade do signo, posição à qual, como Benjamin, se opõe. O alemão escreve no mesmo ensaio sobre a mímesis que “se a linguagem, como é evidente para os mais perspicazes pesquisadores, não é um sistema convencional de signos, então todos os seus esforços para nos aproximarmos do que lhe é mais próprio irão sempre resultar em ideias como as que encontramos nas explicações onomatopaicas na sua forma mais rude e primitiva” (Benjamin, 2018aBENJAMIN, Walter (2018a). Doutrina das semelhanças. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica). Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 47-52., p. 49). O teatro oriental, por sua vez, teria para Artaud (2019)ARTAUD, Antonin (2019). Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM. essa potência que Benjamin encontra na linguagem onomatopaica, pois se dá a partir das experiências corporais, recusando então a racionalização da fala conceitual e dando vazão, no lugar, aos sentidos, ligados sobretudo à ordem fonética. A isso se junta a importância do mito, também presente no teatro oriental. Mas o oriente e o mito, para Artaud (2019)ARTAUD, Antonin (2019). Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM., não se colocam como desejo de retorno ao pré-moderno, e sim como possibilidade de que algo que se sabe de impossível materialização seja colocado como sensibilidade capaz de mobilizar o contemporâneo. É o que aponta Susan Sontag, ao assinalar que, para Artaud, “lo relevante es que la otra cultura sea genuinamente otra; es decir, no occidental y no contemporáneas. (...). Las otras civilizaciones están siendo empleadas como modelos, como estímulos para la imaginación precisamente porque no son accesibles” (Sontag, 2015SONTAG, Susan (2015). Una aproximación a Artaud. In: SONTAG, Susan. Bajo el signo de Saturno. Tradução de Juan Trejo. Barcelona: Debolsillo. p. 21-80., p. 53-54). O mito, assim, está ligado àquilo que se sabe inatualizável, mas que teria a força de provocar o contemporâneo. Daí que o autor insista em uma mimética pujante, ao recursar a ênfase atribuída pelo teatro ocidental à palavra e sugerir, em seu lugar, uma potência sonora e corporal.

Um dos mecanismos que encontra para expressar a recusa do sentido lógico da linguagem é a fragilidade do convencionalismo do conceito:

Está pressuposto que uma mulher bonita tem uma voz harmoniosa; se desde o começo dos tempos ouvíssemos todas as mulheres bonitas nos chamar a toques de cometa e nos saudar com mugidos, teríamos pela eternidade associado a ideia de mugido à de uma bela mulher, e uma parte de nossa visão interna do mundo se teria transformado radicalmente.

Isso nos ajuda a entender como a poesia é anárquica, na medida em que coloca em questão todas as relações de objeto a objeto e de formas com seus significados (Artaud, 2019ARTAUD, Antonin (2019). Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM., p. 83).

A potência da poesia dá-se, para Artaud (2019)ARTAUD, Antonin (2019). Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM., pelo negativo do signo linguístico, que logra pôr sob questão as convenções da linguagem. Em uma carta de Benjamin (2017b)BENJAMIN, Walter (2017b). Sobre el origen [Problemas de la sociología del lenguaje]. In: BENJAMIN, Walter. La tarea del crítico. Tradução de Ariel Magnus. Buenos Aires: Eterna Cadencia. p. 221-255. destinada a Werner Kraft, que tematiza a resenha Problemas da sociologia da linguagem, compilada por Mariana Dimópulos em tradução recente ao espanhol, lemos:

Respecto a su comentario sobre mi exposición sobre la teoría del lenguaje, cuyos limites estuvieron prescritos por la forma: nada prejuzga sobre una ‘metafísica’ del lenguaje. Y ha sido armado por mí, aunque no de manera manifiesta, de modo tal que conduzca al punto donde comienza mi propia teoría del lenguaje, que plasmé en Ibiza hace varios años en un muy breve apunte programático [chamado Sobre a faculdade mimética ou A doutrina das semelhanças, variações de um mesmo texto] (Benjamin, 2017bBENJAMIN, Walter (2017b). Sobre el origen [Problemas de la sociología del lenguaje]. In: BENJAMIN, Walter. La tarea del crítico. Tradução de Ariel Magnus. Buenos Aires: Eterna Cadencia. p. 221-255., p. 221).

Nota-se no comentário de Benjamin (2017b)BENJAMIN, Walter (2017b). Sobre el origen [Problemas de la sociología del lenguaje]. In: BENJAMIN, Walter. La tarea del crítico. Tradução de Ariel Magnus. Buenos Aires: Eterna Cadencia. p. 221-255. uma oposição à metafísica da linguagem. Essa oposição, contudo, não coloca a convenção como alternativa, antes seu contrário. No corpo do texto, é do conceito de arbitrariedade que o autor se vale para se opor à convenção. Ao sublinhar que, na linguística de começos do século XX, nota-se uma postura reacionária de afinidades a atitudes políticas que pouco o atraem — ou seja, o fascismo —, Benjamin (2017b)BENJAMIN, Walter (2017b). Sobre el origen [Problemas de la sociología del lenguaje]. In: BENJAMIN, Walter. La tarea del crítico. Tradução de Ariel Magnus. Buenos Aires: Eterna Cadencia. p. 221-255. comentará sobre a obra de Schmidt-Rohr que

Esto se pone de manifiesto mediante ese irracionalismo que es norma en la literatura de corte nacionalista. Impone al autor una filosofía voluntarista del lenguaje, en la cual la arbitrariedad y el destino ingresan como salvadores de emergencia, antes de que el conocimiento proveniente del estudio de la vida lingüística histórica se haya preparado para las tareas de una auténtica filosofía de ese objeto (Benjamin, 2017bBENJAMIN, Walter (2017b). Sobre el origen [Problemas de la sociología del lenguaje]. In: BENJAMIN, Walter. La tarea del crítico. Tradução de Ariel Magnus. Buenos Aires: Eterna Cadencia. p. 221-255., p. 244).

Ou seja, ao mesmo tempo que Benjamin se opõe a uma metafísica da linguagem, que poderia apontar para uma essência extramundana que ganha forma ordinária em sua expressão na matéria, ele opõe-se igualmente à ideia de arbitrariedade, como se o desenvolvimento das línguas fosse pura convenção, destino. Não é contraditório, contudo, o seu movimento analítico, e se lembrarmos das semelhanças não-sensíveis que ele comenta em Doutrina das semelhanças podemos nelas encontrar um ponto de tensão:

A chave que pode tornar essa tese verdadeiramente clara está escondida no conceito da semelhança não-sensível. Imaginemos palavras de diferentes línguas com a mesma significação ordenadas em torno do seu centro, que é o seu significado, e procuremos investigar de que modo todas elas — que muitas vezes não têm a menor semelhança entre si — se assemelham àquele significado que está no centro (Benjamin, 2018aBENJAMIN, Walter (2018a). Doutrina das semelhanças. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica). Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 47-52., p. 50).

Em mão dupla, vê-se por um lado a crítica à arbitrariedade — como convenção — e, por outro, a defesa de um caráter arbitrário de elaboração, por meio das semelhanças não-sensíveis que, antes de um arbítrio puro, produzem expressões diferentes em diferentes línguas, mas, em todas, ligadas a uma forma mimética de aproximação ao objeto, um mimetismo. Nesse sentido, a linguagem é arbitrária, mas arbitrária na medida em que se aproxima do objeto que mimetiza, de forma imanente.

O modo como Glenadel busca dar forma à crítica à convencionalidade da linguagem é por meio de um procedimento que, não tanto pela recusa da sintaxe e pela emergência de uma semântica fonética, como sugere Sontag em sua leitura de Artaud e que se encontra também da discussão de Benjamin sobre as onomatopeias, coloca a polissemia como força construtora dos poemas de A fábrica do feminino. Já no primeiro ali compilado, “Pedra”, novamente escrito em prosa, lemos: “Fabricou uma fêmea. Esculpida. Há muito tempo. De pedra. Mármore, talvez. Ou então é de marfim. Uma marfêmea. O cara é um artista, tira leite de pedra” (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 11). Especialmente no último sintagma, há uma proposital imprecisão da formulação da imagem que nos faz recuar ante a imprecisão da semântica do poema. Ao mesmo tempo que o ato de fabricar uma fêmea de uma pedra sugere que o labor para a produção da obra fora tamanho, o que possibilita que o sintagma se refira ao esforço daquele que produz o objeto como uma escultura, é possível ler, também, que a constituição de uma esfera da feminilidade se refere a uma artificialidade tamanha que o objeto produzido da pedra, o feminino, pode ser tomado como algo que, ao adentrar os estereótipos sobre ele construídos, ganharia realidade ao ponto de reproduzir a espécie e, então, amamentar.

Ainda que o faça por mecanismos mais racionalizados que os adotados por Artaud (2019)ARTAUD, Antonin (2019). Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM., é pela imprecisão de uma linguagem que coloca — pela ironia e pela polissemia — seus códigos sob tensão que a poesia de Glenadel se imbui da crítica à convencionalidade, por meio da recusa ao fechamento do conceito. Mas é que, para lembrarmos novamente da Rua de mão única de Benjamin (2017a)BENJAMIN, Walter (2017a). Rua de mão única / Infância em Berlim: 1900. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica., o próprio movimento de fechamento do conceito é tomado como violência: “Livros e prostitutas: ambos têm aquela espécie de homens que vivem deles e os maltratam. No caso dos livros, os críticos” (Benjamin, 2017aBENJAMIN, Walter (2017a). Rua de mão única / Infância em Berlim: 1900. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica., p. 31). Se o trabalho do crítico, por meio da produção de conceitos sobre o objeto ao qual se dedica, é posto como movimento que maltrata esse objeto, ou seja, como violência, o que Glenadel faz em sua poesia é uma tentativa alterna a isso, por meio de uma linguagem que se desgruda do significante e põe, pela polissemia irônica, a possibilidade de nascimento do novo, a natalidade pela poesia.

Voltamos, então, à questão da natalidade. Um dos movimentos que produzem o novo, na poética de Glenadel, é o da profanação. Não tanto, porém, no sentido que o pensara Benjamin, ao indicar a retirada do objeto de seu valor de exposição e de pô-lo em uso, senão em algo que assume a potencialidade de desconfiança da Bíblia, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. A questão já se mostrara em poema recém-visto, no qual se nota a recusa da causalidade aristotélica no que se refere à Virgem Maria, mas aparece também no poema “Hora”, no qual o título se configura como verso:

Hora

após hora,

ora (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 28).

Se o último verso pode indicar a palavra “ora” como interjeição, pode também, por meio da morfologia de flexão verbal, significar prática religiosa de adoração. Ou seja, pela possibilidade gráfica da palavra — e novamente Benjamin (2018a)BENJAMIN, Walter (2018a). Doutrina das semelhanças. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica). Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 47-52. lembra de como as semelhanças não-sensíveis se expressam, também, na passagem da palavra oralizada à sua forma gráfica —, a escrita de hora (como tempo, como horário) ou de ora (como interjeição ou verbo) pode colocar sob questão a convencionalidade do signo linguístico em sua versão escrita — não há diferença fonológica nas palavras; pode assim tensionar, então, a tradição ocidental que, tendo um de seus pés fincado em Homero, coloca o outro deles, como estudou Erich Auerbach (1998)AUERBACH, Erich (1998). Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard. São Paulo: Perspectiva., no Antigo Testamento — que, no Brasil, ganha mais força em sua versão cristã, cuja imagem é precisamente adotada por Glenadel, a Virgem Maria.

Na verdade, a aposta em uma estética da imprecisão vai marcando todos os poemas de A fábrica do feminino. Nota-se, por exemplo, em “Cortar cabelo”: “a minha filha cortou o meu cabelo, uma droga, eu também cortava o das minhas bonecas” (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 24). No verso em prosa, a indefinição confunde o referente, quando a mãe, ao fazer uma analogia, acaba possibilitando também a leitura de que ela seria uma boneca de sua filha. E embora nesse poema não surja referência bíblica, em outros seguimos encontrando possíveis polissemias com elementos de ordem religiosa, como em “Entre espécies”: “Eu era uma fêmea e você o meu filhote, tínhamos que fugir agachadas dos caçadores, eram caçadores de órgãos. Gelada de pavor, eu consegui achar uma passagem pelo meio do lamaçal, senti o cheiro do caminho” (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 18).

Novamente, o poema é semanticamente impreciso. Ainda que os órgãos referidos possam indicar uma rede de tráfico internacional — cuja hipótese não é sustentada por nenhum elemento do poema —, talvez não seja exagero cogitar que a referência ao órgão, antes de falar da vida orgânica do sujeito, se refira aos órgãos de igrejas católicas, instrumentos produtores de som. O poema anterior a “Entre espécies”, intitulado “Bárbara”, ajuda a pensar:

Uma fêmea foi fabricada, lentamente. Foi fabricada, mas também fabrica. A feiticeira, parteira por proximidade, por concorrência foi afastada da função e acusada de fazer feitiços maléficos, de extrair forma do informe, de dar festas furiosas e de infernizar a vizinha. Fabrica malefícios, cultiva barbaridades, transforma palavra em coisa, coisa em palavra. É uma usina, uma mina, uma turbina. Que máquina! Lua cheia, lua nova, lua crescente, lua minguante, uma para cada efeito; fora da cidade, nua na floresta, a feiticeira fala com as feras e fareja as folhas (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 17).

Neste poema — novamente marcado pela polissemia do título, “Bárbara”, que pode ser nome próprio ou referência à barbárie —, o fora da cidade coloca elemento que nos ajuda a pensar sobre “Entre espécies”. Se é nesse espaço do afastamento geográfico, como que em fuga já que fora apartada de sua vizinhança por conta das práticas mágicas, que o não cristianismo de “Bárbara” se dá, é também na ambientação da floresta que os caçadores de órgãos buscam a fêmea e seu filhote, o que pode ter o efeito, se fizermos uma leitura espelhada, de que o catolicismo buscaria o bárbaro na floresta para o catequizar. Não importa tanto, contudo, a assertiva temática (tratar-se de tráfico de órgãos humanos ou de controle corporal efetuado pela ordem religiosa), e sim o fato de que o poema produz um inapreensibilidade conceitual. Como observa Susana Scramim (2018SCRAMIM, Susana (2018). Teatralidades da linguagem e poesia contemporânea. Outra Travessia, Florianópolis, n. 25, p. 17-30. https://doi.org/10.5007/2176-8552.2018n25p17
https://doi.org/10.5007/2176-8552.2018n2...
, p. 22) sobre o poema “Teatro”, compilado no mesmo livro, a poesia de Glenadel executa um procedimento de desgaste dos termos, no qual “o poema vai lentamente apontando os deslocamentos de que são feitas suas frases. Esses deslocamentos atuam como ‘tormentas’ que atingem todo o sentido histórico da língua, em suas corrosivas situações de fala, promovendo um novo ‘uso’ deslocado”. Ora, ainda que Glenadel se valha de mecanismos mais racionalizados do que os de Artaud (2019)ARTAUD, Antonin (2019). Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM., há uma imprecisão semântica na constituição dos poemas que produz um efeito de abertura à possibilidade do novo.

Ao mesmo tempo que o novo aparece, também uma série de poemas e imagens de ordem irônica salta das páginas do compilado, pondo sob tensão as imagens pré-concebidas do feminino, como se lê em poema sem título que se encontra na segunda parte do livro, “A cidade dos homens”:

Mulher no volante,

perigo constante.

Mulher na direção,

perene amolação.

Mulher guiando,

eu saio voando.

Mulher quando se pinta,

vai a três vezes trinta.

Madame motorista,

narinas de cadáver.

Mulher chofer,

melhor Lúcifer (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 55).

O poema vale-se da ironia para plasmar rimas pejorativas sobre as imagens do feminino naquilo que se refere à direção automobilística. É notável, por um lado, que seja à segunda parte do livro, “A cidade dos homens”, que ele esteja acoplado, como se sugerisse que a reprodução desses estigmas é expressão de uma posição masculinista. Mas como já se haverá notado, são na poesia de Glenadel constantes as referências a um não aprisionamento das posições. “Uma fêmea foi fabricada, lentamente. Foi fabricada, mas também fabrica” é o início de “Bárbara”, acima citado. Longe de cair em essencialismo, a poesia vai, ao contrário, dando vazão a uma série de problemas do contemporâneo, sem aprisionar posições de vítimas e algozes. Também formalmente a cisão se quebra. No compilado, encontramos em cada uma de suas três partes (além de “A fábrica do feminino” e “A cidade dos homens”, há uma final intitulada “A cidade fantasma”) fotografias de Sérgio Brenner com a boneca Barbie em diferentes posições: refletindo no espelho, como que caída de ponta-cabeça, dançando. Essas imagens, que, em primeira leitura, poderiam aproximar a obra ao kitsch ou ao camp, cobram, parece, outro efeito. Em Diante da dor dos outros, Sontag (2010)SONTAG, Susan (2010). Ante el dolor de los demás. Tradução de Aurelio Major. Barcelona: Debolsillo. discutirá aquilo que considera um dos limites das imagens no contemporâneo: o congelamento que engendram do mundo. A ensaísta, afeita que era à fotografia, não despreza as imagens como recurso estético, mas busca elaborar uma crítica política ao ter em conta que, quando comparadas com a prosa, as imagens expressariam um congelamento que as retiraria do plano da continuidade, característico da narrativa, e que, por isso, os usos (não propriamente o material) dos instantâneos poderiam ser politicamente manipulados com maior facilidade, já que seriam mais impactantes do que aquilo que pudesse ter uma continuidade, como a prosa. A crítica de Sontag volta-se à imobilidade das imagens, privação de movimento que se nota no poema acima compilado e que funciona, novamente, como mimetismo dos discursos degradantes sobre o feminino, chave de leitura que nos possibilita pensar, também, nas imagens das bonecas Barbie como construção artificial, desde a infância, de uma feminilidade.

Para lembrarmos de Benjamin, também o crítico aponta à problemática do congelamento, não tanto em sua reflexão sobre a fotografia, e sim naquela que dedica aos brinquedos infantis. Em sua História cultural do brinquedo, Benjamin (2002)BENJAMIN, Walter (2002). História cultural do brinquedo. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: 34. p. 89-94. empreende uma discussão sobre os instrumentos de brincar (Spielzeugen) e a faculdade da imaginação por parte das crianças. Ao colocar como problema da década de 1920 o fato de os brinquedos serem cada vez mais acabados, mesmo que revestidos por uma suposta capa de simplicidade, o autor aponta que “ninguém é mais casto em relação aos materiais do que crianças: um simples pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha reúnem na solidez, no monolitismo de sua matéria, uma exuberância das mais diferentes figuras” (Benjamin, 2002BENJAMIN, Walter (2002). História cultural do brinquedo. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: 34. p. 89-94., p. 92). O que está em jogo é, pois, a possibilidade da imaginação, que pode ser depreendida pela criança daquele objeto cujo significado não é fechado em si, mas que pode ser elaborado mentalmente pelo brincante. Daí que Benjamin (2002BENJAMIN, Walter (2002). História cultural do brinquedo. In: BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. Tradução de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: 34. p. 89-94., p. 93) conclua:

Hoje talvez se possa esperar uma superação efetiva daquele equívoco básico que acreditava ser a brincadeira da criança determinada pelo conteúdo imaginário do brinquedo, quando, na verdade, dá-se o contrário. A criança quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se bandido ou guarda. Conhecemos muito bem alguns instrumentos de brincar arcaicos, que desprezam toda máscara imaginária (possivelmente vinculados na época a rituais): bola, arco, roda de penas, pipa — autênticos brinquedos, “tanto mais autênticos quanto menos o parecem aos adultos”. Pois quanto mais atraentes, no sentido corrente, são os brinquedos, mais de distanciam dos instrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva. Características nesse sentido são as várias casas de boneca que Gröber apresenta. A imitação — assim se poderia formular — é familiar ao jogo, e não ao brinquedo.

O crítico aponta ao caráter de clausura da imaginação pelo acabamento do brinquedo em sua imitação realista, sugerindo em seu lugar que a possibilidade da infância se dê antes pelo jogo com os instrumentos de brincar como artifícios que demandam a presença da imaginação, ou, se quisermos, da mímesis: comenta Alexandre Fernandez Vaz (2005)VAZ, Alexandre Fernandez (2005). Subjetividade, memória e experiência: sobre a infância em alguns escritos de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Educação em Revista, Marília, n. 6, p. 51-66. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/educacaoemrevista/article/view/598/481. Acesso em: 2 out. 2023.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
que, pela ideia de instrumentos de brincar, é o próprio corpo o que se coloca como primeiro brinquedo do infante, a potência mimética como jogo infantil. Daí que as bonecas Barbie, nas páginas de Glenadel, expressem duplo congelamento: congelam o movimento, pela fotografia; congelam a imaginação, por serem um brinquedo que impossibilita a mímesis e o jogo. Ainda mais um congelamento: dão forma ao estereótipo do feminino idealizado.

Ao mesmo tempo que Glenadel se vale de recursos poéticos e gráficos que logram dar forma à cristalização das imagens do feminino no Ocidente, a autora não se furta de tensionar conceitos capazes de provocar o contemporâneo. Um desses temas é a linguagem. Relembrando outra vez Rancière (2021)FLORES, Maria Bernardete Ramos (2017). Xul Solar e Ismael Nery entre outros místicos modernos: sobre o revival espiritual. Campinas: Mercado de Letras., o crítico sugere que a palavra, como fechamento conceitual, se situe em um arquétipo masculino ligado ao conceito, àquilo que ganha forma pela abstração do pensamento, ao passo em que a linguagem, por ele entendida como pertencente ao arquétipo do feminino, teria uma relação maior com a sonoridade, ou seja, com a possibilidade de um mimetismo. É curioso, então, que no recém-visto poema “Entre espécies” seja pelo cheiro que a voz dos versos sinta o caminho pelo qual deveria fugir do caçador; ou seja, os sentidos — o olfato — como aquilo que se afasta do masculino do conceito e que coloca a possibilidade mimética da gestualidade do poema. E a questão se expressa, também, em “Arquetípico”, no qual a ênfase recai na convencionalidade dos gêneros da língua:

o sol

a lua

a sol

o lua

entre (duas) línguas

um horizonte neutro

o animus da anima

a anima do animus

aqui o fábrica engasga (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 29).

Além de apontar para o engasgo “do” fábrica, utilizando artigo masculino em substantivo feminino, o poema dá forma mais acentuada a uma preocupação que encontramos em diversos daqueles que ali estão compilados: o tema da fabricação do feminino, que se dá de forma relacional a uma ideia de masculino. É o que se lê no poema “0x0”: “eles também sofrem com a fabricação, fingem que não. Solo pátria e língua materna” (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 33). O que diz Glenadel com o verso escrito em prosa é que a fabricação, para além da construção de um estereótipo sobre o feminino, se coloca, na verdade, como um problema do mundo. Talvez não seja demais entender que o que se expressa no poema, antes de um reforço da binaridade arquetípica, é a imposição de uma violência que ganha forma desde o Antigo Testamento e que é atualizada com as constantes reclamações, ao longo do compilado, sobre a tradição dele derivada, com especial referência à ambientação cristã. Daí que a autora encontre na androginia uma forma de nascimento do novo; é o que se lê em “Ave”:

Olha essa: mais uma fêmea fabricada. Uma fêmea cover, uma fêmea over, uma fêmea digna de ver. Quantas plumas! E canta? Às vezes. Muitas dançam também... Por arte do travesti, ser de artifício, bem-te-vi no espelho, mais sedutor do que a própria sedução, figura do que queremos ver, revela-se o feminino como miragem, inclusive na fêmea. Ave traveca, Eva moleca! (Glenadel, 2008GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras., p. 13).

O jogo de espelhamentos no corpo do poema produz efeito dos mais interessantes. Ave, termo polissêmico, pode se referir ao animal que voa, mas também produzir o efeito imemorial de expressões populares como Ave Maria, em sedimentação religiosa que se expressa no espelho da última frase, Ave/Eva, em referência ao Gênesis. Mas deixemos a questão por um momento e enfoquemos a fabricação do feminino pela travestilidade, que reverbera a própria fêmea como miragem: o que se produz é a ruptura com a imagem do nascimento do organismo, como estava no poema “Instantâneo” e em sua aproximação à ideia de Zoé. Aqui emerge a fabricação como algo que se dá no mundo, por meio de uma simbólica do corpo que rompe com o registro orgânico e coloca, em seu lugar, uma possibilidade da política, não tanto em plano normativo, e sim pelo apontamento da artificialidade da construção do feminino. A androginia, marcada por uma passagem do masculino ao feminino sem fixar um conceito fechado, denota um duplo espaço, tanto de desconfiança da linguagem como produtora de uma vida meramente vivente, ao evocar sua possibilidade de construção da obra, de fabricação do mundo, quanto pelo intento de, ao ter-se em conta a artificialidade da construção, se apontar para um novo que está por vir e que pode se colocar entre.

III

Mais do que um excurso, há um livro recente de Elvira Vigna (2016)VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras. que, ainda que se valendo de forma romanesca e, também por isso, resultando em preocupação imediata bastante diversa daquela adotada pela poeta, nos possibilita o diálogo com a obra de Glenadel (2008)GLENADEL, Paula (2008). A fábrica do feminino. Rio de Janeiro: 7Letras.. Em Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, último romance da também carioca, podemos encontrar uma sedimentação histórica capaz de imprimir camada analítica que põe a androginia como questão e que nos auxilia a pensar o nascimento do novo.

A história narrada no romance pode ser rudimentarmente tomada como a de um homem que conta a uma conhecida suas investidas com prostitutas. Esse quadro, contudo, mais do que mostrar algo da narrativa, serve para obliterá-la. Esse parece ser o movimento do qual se vale Vigna (2016)VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., ligado a uma imanência que faz com que o texto vá se expressando como o palimpsesto que o nomeia. Enquanto a primeira camada à qual temos acesso é a acima descrita, a prosa empreende um complexo movimento de imprecisões, que torna sua reconstituição quase que inviabilizada e que nos deixa apenas com a impressão de poder sobre ela falar, já que a reverberação de hipóteses, por parte da narradora, resulta em uma inapreensibilidade da história que conta.

Todavia, para começarmos por algum lado, tomemos como primeira camada os encontros de João, o protagonista, com prostitutas. O movimento ecoa Além do princípio do prazer, de Freud (2010a)FREUD, Sigmund (2010a). Além do princípio do prazer. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 14. p. 161-239., não tanto pela provocação lexical da narradora ao se referir à compulsão e à repetição ao expressar sua visão do personagem, mas pela compulsão à repetição, o conceito freudiano, como aquilo que se coloca para analisarmos a vida sexual de João. Casado com Lola, ele relaciona-se sexualmente, quando de suas viagens a trabalho, com prostitutas; ainda que em sua busca jamais logre retornar a um estágio inicial de não movimento — no qual a angústia poderia ser aplacada pela morte, pelo retorno à matéria puramente orgânica —, segue tentando atualizar algo que estaria antes e que, pela narrativa, se localiza na primeira experiência com uma prostituta quando, sem dinheiro, se relacionara sexualmente com ela ainda que sem ser cobrado por isso. Talvez a busca escondida no movimento seja, então, a de se sentir desejado; mas, no lugar de Eros, essa repetição compulsiva aponta à pulsão de morte, na qual João, antes de se fortalecer como sujeito do desejo, empreende um processo de regressão que o leva à repetição de um gozo podre.

Durante todo o romance, porém, as imprecisões que se colocam nessa repetição palimpsêstica permitem-nos esboçar a temporalidade da prosa. Logo na abertura sabemos que o ato sexual pelo qual ele não pagara se dera quando “a TV [era] em preto e branco” (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 14). Longe de afirmar um agora da narrativa, que permanece tenso ao longo de todo o texto, a narradora libera como que um vestígio, em princípio insignificante, mas que nos permite ter em conta que a primeira investida sexual do protagonista (anterior ao casamento com Lola) com prostitutas se dera antes de 1972, momento no qual as televisões passam a ser em cores no Brasil. Pela mesma estrutura enunciativa, recebemos páginas depois outra pista da temporalidade dos casos extraconjugais de João: “Brasília não pode ser tão chata” (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 21). A passagem, que se refere a um João já casado, aponta para uma espacialidade, e não para uma temporalidade; mas a fundação de Brasília em 1960 situa o começo das investidas sexuais de João, entre a aparição da televisão em cores e a fundação da nova Capital Federal, como datada durante a ditadura que assolara o país a partir de 1964 — tema que é, novamente, enunciado por meio de uma ausência de afirmativa direta: em Brasília há um “acampamento militar, botas do lado de fora” (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 23). Ora, para pensarmos em termos de método, o romance de Vigna, que como de costume, apresenta uma morte que não podemos precisar se foi suicídio, acidente ou assassinato, demanda-nos um protocolo de leitura elaborado por Carlo Ginzburg (2013)GINZBURG, Carlo (2013). Raíces de un paradigma de inferencias indiciales. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e indícios: morfología e historia. Tradução de Verónica Trentini. Buenos Aires: Prometeo. p. 171-221.: em seu paradigma indiciário, é pelos lapsos da Psicanálise, pelo traço das falsificações de obras de arte e pelas pistas do romance policial que se dá uma possibilidade analítica da modernidade. Talvez devamos ler Como se estivéssemos em palimpsesto de putas como uma novela policial.

É ainda de um palimpsesto que estamos falando. Embora essas duas temporalidades existam na narrativa, a pré-televisão em cores e a pós-fundação de Brasília, nenhuma delas se coloca como seu agora. Se o que vimos é uma espécie de origem das investidas sexuais de João com prostitutas, elas são elaboradas por um duplo mecanismo da memória, o primeiro sendo aquele empreendido pelo personagem ao contar à conhecida suas histórias com putas; o segundo como o próprio mecanismo da narradora, que, pelo retalho das memórias que escuta, inventa hipóteses que possam complementar aquilo que João fala, “porque João fala um pouco da [cerveja] mini-saia [sic], quase nada da garota [de programa] gordinha, e depois emenda um de seus assuntos favoritos, nesse dia e em outros, que é a maravilha que ele é” (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 31). Ora, João “fala mais do que está em torno do programa com as garotas de programa do que do programa em si” (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 28). É com base nessa tensão de um tema que sempre retorna, mas que o faz sem ganhar forma, que a narradora vai construindo uma prosa que acaba deixando vestígios, também, de si. É por meio de um deles que encontramos já muito tardiamente, na página 79, a primeira (são apenas duas) menção nominativa da ditadura civil-militar:

Eu achava que na [rua] Marquês de Olinda, que era fora de tudo, que era uma rua que precisava de muitas coisas e nenhuma delas era uma livraria, bem lá é que me seria possível ficar fora das consequências duradouras de uma ditadura e das consequências instantâneas de uma reforma econômica, ambas desastrosas (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 79-80).

Ou seja, o que se coloca na passagem é uma temporalidade no pós-ditadura, já que se vivem suas consequências; mas se é nesse momento que a narradora escuta as histórias de João, é porque é ao tempo antecessor, a ditadura, ao qual as histórias se referem, e as repetições regressivas que marcam a vida sexual do protagonista se associam ao período ditatorial.

A temporalidade imprecisa denota, também, a imprecisão da própria narrativa. Em dado momento, é-nos apresentada a hipótese de que não seria João, aquele que por mais tempo aparece no livro, o seu protagonista, senão Lola, a esposa: “Porque é isso que faço agora: estabeleço uma autoria. Não a minha. Nem a de João./ De Lola, a grande ausente, a de quem não falávamos. A que estava fora de tudo./ É sobre ela, isso” (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 42). Na passagem, a narradora sugere que é a ausência o que se coloca como protocolo de leitura da obra. Mas se ela nos dá a possibilidade de jogarmos com esses cacos, talvez não seja demais supormos, então, que o protagonismo está em uma ausência que não é sequer alçada à possibilidade do protagonismo: o nó se guarda no fato de que, embora reconheça que o protagonista da narrativa, João, na verdade não o é, indicando em seu lugar que o posto caberia a Lola, a esposa, ao fim nenhum deles parece, na verdade, ocupar a posição.

Uma primeira leitura desse outro protagonismo mostra-se pelo silêncio. Lola, vimos, é a grande ausente porque silenciada, mas, na verdade, a/o grande ausente do livro, por conta do silêncio, é Lurien. Esta/este personagem, que aparece no começo da narrativa como vizinha/vizinho da narradora — ainda que logo saibamos que se trata de um apartamento que ela venderá a João —, emerge pela primeira vez para logo sumir do texto: “e nessa dívida que tenho com ela, incluo Lola e Lurien, os silêncios de todos nós” (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 59), um nome que cintila qual faísca antes de ao nada retornar. Mas a emergência inicial é relevante à economia narrativa por jogar, pela primeira vez, o nome Lurien, que acaba por reaparecer de forma indireta, pela sonoridade, no momento mais entrevado do romance:

Ele brocha.

Lorean não é só a cara da Eliana, como também tem o mesmo jeito decidido dela. Ao sentar (embora uma simples volta na mesa a poria no lugar vago ao lado de João), faz questão de passar se espremendo por cima dele, se espremendo mesmo, entre as coxas dele e o que mais houvesse entre as coxas dele, e a mesa.

Se espreme em cima dele. Se ele vem muito aqui. Se tudo bem de ela pedir uma vodca. Se ele tem o suficiente para o programa e para o hotel, em dinheiro vivo.

Tudo certo e eles vão.

No quarto, a mesma coisa. Primeiro isso, depois aquilo, sons correspondentes, e por que mesmo João está demorando tanto?

A garota parece ter pressa. A garota fica impaciente.

João diz que tudo bem, que deixa estar. Ensaia tornar a vestir a roupa.

Ela se toma de brios profissionais e começa tudo de novo, caprichando mais, dessa vez, nas expressões de admiração para com os dotes físicos dele, no momento praticamente inexistentes.

Acabam assim num mais ou menos. Um meio fim que já estava lá desde um começo que não o era, pois tinha começado bem antes, em um João quase adolescente. Um presente que era um passado.

O filme foi lançado em 1985 nos Estados Unidos, eu pesquisei.

“Que ano foi, esse filme?”

“Tipo meados de 1980, por aí.”

E esses algarismos ficam boiando no escritório que escurece, sem lugar para pousar, sem que adquiram sentido. O filme é famoso até hoje. Tanto fazia (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 119-120).

O nó que a passagem indica é a desconfiança da narradora no que se refere à data. O filme em questão é De volta para o futuro, de 1985, no qual há um carro chamado DeLorean, o que faz com que João diga que o nome da garota de programa com a qual se relacionou, ainda que o ato sexual não tenha sido consumado, seja Lorean. O problema é que João diz que essa fora uma das primeiras de suas investidas com garotas de programa, o que deixa a narradora duvidosa. Vacila empiricamente, já que não vê em João a possibilidade da rememoração de um nome; e titubeia cronologicamente, já que, como vimos, os primeiros encontros sexuais remontam ao período ditatorial.

A presença do ano 1985 provoca, então, um questionamento duplo. A primeira etapa pode ser pensada como a condição que leva João a assumir à narradora o fato de que sofrera de impotência sexual. No ano que marca o retorno de um civil à Presidência da República, João assume, por primeira vez, a própria impotência. É pela associação dos fatos que o texto se mostra marcado pelo estado de exceção, para além de suas duas breves referências. A primeira vimos acima, a segunda aparece cem páginas depois: “e não só pelo rufar dos tambores, aliás inexistentes desde o fim da ditadura, os reais, e desde o fim do auge de sua vida na Kilt, os imaginários” (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 178) — congregando em uma mesma imagem, então, a ditadura e a vida sexual de João, já que a última se dera sobretudo na Kilt, uma casa noturna de prostituição na Rua Augusta, em São Paulo. Mas a segunda provocação de 1985 dá-se por conta da sonoridade: Lorean, foneticamente, recorda Lurien.

Para pensarmos em termos de uma linguagem onomatopaica, os dois nomes mantêm a mesma estrutura consonantal, mas, de forma anagramática, as vogais que ocupam Lorean passam à vogal subsequente, produzindo Lurien (passagem de o-u, e-i, a-e). O que a associação fonética nos permite pensar é no fracasso da memória de João. Novamente, a estrutura indiciária de enunciação oferece-nos a temporalidade: “não existem ainda celulares que tiram foto, nessa época. Eles são ainda uma espécie de tijolo. Fazem ligações de voz, mal, e aceitam mensagens tecladas com grande esforço em teclados numéricos, precários” (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 156). É, pois, pelo vestígio tecnológico que a narrativa se situa na década de 1990; e é este o momento no qual João conta a passagem acima vista, sobre Lorean, como uma de suas primeiras investidas sexuais com prostitutas. Mas o interessante nessa aproximação é, contudo, a possibilidade de pensarmos que a memória de João lhe prega peças e que esse almejado ano de 1985 seja ilusão perpetrada pelo pretérito. Como ensina Freud (2011FREUD, Sigmund (2011). O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Penguin-Companhia., p. 15), “a conservação de todos os estágios anteriores, ao lado da configuração definitiva, é possível apenas no âmbito psíquico, e não temos como representar visualmente esse fenômeno” de sobreposição dos tempos no inconsciente. A não representação dos fenômenos dá-se, precisamente, à causa de sua condição palimpsêstica, ou seja, o fato de que a camada subsequente pode se sujar pela antecessora, produzindo uma impossibilidade de delimitação de um estágio como o momento originário. No jogo de imprecisões da memória de João, a ditadura funciona como espécie de vazio: se fora em seus primórdios que se vira fadado à regressão e à compulsão à repetição, é em seu fim, contudo, que afirma que se dera o que em verdade acontecera no prelúdio. Ao passo que obnubila os anos de chumbo em sua deformação como sujeito, ao fim da ditadura logra elaborar uma memória encobridora que lhe dá a possibilidade da impotência, como se não precisasse responder mais ao elogio masculinista que tanto o ocupara durante os anos pretéritos — vide a constante competição de João e seus amigos quando dos encontros com prostitutas, para ficarmos em um exemplo.

Em vez de reconstruir as cenas do masculinismo ditatorial, interessa mais nos concentrarmos no efeito que Lurien cobra no corpo da narrativa. Como Glenadel, que aponta ao desconforto da convencionalidade dos artigos da língua, também Vigna o expressa, por meio de Lurien:

Algumas das coisas que não são faladas, porque não precisa.

No tema da liberdade, da transgressão, coisas que João buscava para ele mesmo através de suas garotas de programa, Lurien deve ter sido um banho de água fria. Transgressão é a de Lurien. E é a de ser ele mesmo. A de não se submeter a formatação. Sequer a dos dois gêneros disponíveis na língua latina que lhe coube. Nos coube.

Lurien nunca se importou com os eles/elas dirigidos à sua pessoa.

Tanto faz.

Ele (sempre o chamei de ele) sempre soube quem é. O problema é da língua, não dele. O problema é dos outros. Insuficientes, inadequados e errados são os outros.

Ser ele mesmo. Isso deve ter calado a boca de João, no quesito transgressão (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 113-114).

Mesmo que a narradora mantenha o artigo definido masculino para se referir à/ao Lurien, coloca-se na passagem uma ruptura com a ideia de masculino e feminino, já que pode dar forma, em um único corpo, a uma imprecisão assemelhável ao embaralhamento andrógino, que ganha potência no corpo do texto. Já ao final da narrativa, em seu agora, os anos 1990, João, separado de Lola, muda-se ao apartamento que comprara da narradora e passa a nele residir. É então que passa a se relacionar, em um namoro, com Lurien, momento no qual pode cortar com a compulsão à repetição que caracterizava suas investidas com prostitutas. Este é o último nível de leitura conteudista da narrativa, mas não deve ser pensado como o último nível do romance.

Desde as primeiras páginas, a narradora apresenta-nos, de forma fragmentária, seu desejo pela ilustração. Ainda que se mostre pela forma de projetos arquitetônicos no começo, isso empreende uma ambientação ligada às artes plásticas, questão que se tornará evidente nas penúltimas páginas do romance:

Explico para mim mesma.

E tantas vezes.

Desenho-os, e é esse o momento importante. O importante é o momento do próprio desenho. Faça os homens através de um espelho, sempre. Ou seja, fico eu e o cara, ao lado um do outro. E o vejo através de um espelho colocado na nossa frente. Então o homem que está sendo desenhado se vê traduzido pelo meu traço na hora em que o traduzo com o meu traço. E eu já vejo, desde o início, como uma representação dele, e o contrário dele mesmo, é um espelho (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 210-211).

O que há de importante nesse gesto — para além da desconfiança do traço que se pretende representativo, mas que se expressa como um espelhamento que dá forma pelo oposto, ou seja, pelo reflexo — é a postura da narradora sobre aquilo que representa: o que está sendo representado é a imagem de uma barriga, mas não qualquer barriga, e sim aquela que desperta o interesse sexual da desenhista:

Preciso dizer uma coisa a meu respeito.

Tenho gosto por um tipo específico de barriga masculina. Não tem como eu não olhar.

Não a barriga tanquinho. Pelo amor de deus, não tanquinho. Mas com aquele V acentuado que nasce em cima do osso do quadril e cujo vértice é no sexo. Me amarro num vértice, acabo de notar. E a barriga que ocupa a parte de dentro desse vértice, no caso João, é lisa mas não musculosa, e aceito a possibilidade de uma linha de pelos apontando para o umbigo.

Nunca vi (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 52-53).

Nem João, tampouco Lola e ainda menos Lurien: a passagem denota que o Eu da narrativa, que a todo tempo tenta se colocar como oposto a João, também ele se constrói desse outro que despreza e, no movimento, acaba sendo pertencente a ele o protagonismo do romance: a narradora que, ao mesmo tempo que se faz constantemente presente, já que é quem descrimina sobre o que é narrado e o que não é, acaba por ser a grande ausência da história — ausência que se denota pela falta que se faz presente no momento em que se constitui como sujeito em oposição ao protagonista oficial, João. Mas esta presença coloca-se na tensão ausente-presente, na medida em que está ausente já que, como voz narrativa, busca se anular e, ao contrário, faz-se presente na medida em que se reconhece como aquilo que deseja o que é oposto a si, ou seja, deseja aquilo que rechaça, a barriga em V de João.

IV

Abandonando o exercício interno de leitura de Vigna, ainda Freud (2010b)FREUD, Sigmund (2010b). O inquietante. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 14. p. 328-376., desta vez em O infamiliar, pode nos ajudar. Como mostra no ensaio sobre O homem de areia, de E. T. A. Hoffmann, o infamiliar (Unheimliche) carrega em sua própria grafia a ideia de familiar como parte que lhe é constitutiva. Assim, há algo de familiaridade que vai se expressando e mobilizando o sujeito, não propriamente como retorno compulsivo ao pretérito, mas como desconfortável latência que não cessa. Em uma sentença à guisa de conclusão, Freud (2010bFREUD, Sigmund (2010b). O inquietante. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 14. p. 328-376., p. 371, grifo original) escreve que “o inquietante das vivências se produz quando complexos infantis reprimidos são novamente avivados, ou quando crenças primitivas superadas parecem novamente confirmadas”. E, ao pensar nas possibilidades do infamiliar na literatura, prossegue:

A situação é outra quando o escritor, aparentemente, move-se no âmbito da realidade comum. Então ele também aceita as condições todas que valem para a gênese da sensação inquietante nas vivências reais, e tudo o que produz efeitos inquietantes na vida também os produz na obra literária. Mas nesse caso o escritor pode exacerbar e multiplicar o inquietante muito além do que é possível nas vivências, ao fazer sobrevir acontecimentos que jamais — ou muito raramente — encontramos na realidade. Ele como que denuncia a superstição que ainda abrigamos e acreditávamos superada, ele nos engana, ao prometer-nos a realidade comum e depois ultrapassá-la. Nós reagimos a suas ficções tal como reagiríamos a nossas próprias vivências; ao notarmos o engano, é tarde demais, o autor atingiu seu propósito, mas afirmo que não alcançou pleno êxito. Fica-nos um sentimento de insatisfação, uma espécie de desgosto pelo malogro tentado (...). Mas o escritor tem ainda um meio com o qual pode escapar a esse nosso protesto e, ao mesmo tempo, melhorar as condições para atingir seu propósito. Consiste em não nos deixar perceber, durante muito tempo, que premissas escolheu para o mundo por ele suposto, ou em retardar até o fim, com astúcia e engenho, tal esclarecimento decisivo. No geral, porém, cumpre-se aí o que enunciamos: a ficção cria novas possibilidades de sensação inquietante, que não se acham na vida (Freud, 2010bFREUD, Sigmund (2010b). O inquietante. In: FREUD, Sigmund. Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. v. 14. p. 328-376., p. 373-374).

A passagem demonstra que o infamiliar, na literatura, ao ligar-se ao plano do insólito, pode criar sensações que não se acham na vida. Não deve ser demais supor que o romance de Vigna se coloque como forma de produção deste infamiliar, pelo estranhamento que a retardação da narrativa produz. É infamiliar na medida em que, se em um primeiro movimento, coloca a deformação da subjetividade como pertencente ao Outro, aquele que é constituído como oposto ao Eu, o movimento que alça a narradora ao papel de protagonista do livro mostra como é também interno ao Eu o que por primeira vez estava colocado como externo, tornando-se forma de percepção de si aquilo que se apresentara como recalcado. Não se trata, aqui, de buscar encontrar elementos biográficos da autora que poderiam explicar sua obra, e sim do fato de que, na própria economia narrativa, fica denunciado o lugar de repetição por meio das ilustrações na qual afirma se expor e que dão contorno, na verdade, àquilo que, pelo menos em ordem conceitual, tentara construir como oposto a si, João. Ou seja, trata-se do infamiliar na medida em que se encontra uma forma que dá vazão ao recalcado, pela sua antípoda, a sublimação, apontando para como também é sua a subjetividade danificada.

Com ambiência diversa à de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, há um livro de 2004 no qual não encontramos textos de Vigna, e sim ilustrações. Em Aporias de Astérion (2004)VIGNA, Elvira; BRANDÃO, Ruth Silviano (2004). Aporias de Astérion. Rio de Janeiro: Lamparina., no qual estão compilados nus masculinos por ela desenhados e que motivaram a escrita de minicontos por Ruth Silviano Brandão, chama atenção o fato de que são as barrigas em V, cujo vértice se encontra no sexo, o tema. Neles, contudo, não parece ser tanto o falo que João projetara para si o que é ilustrado, senão pênis flácidos, encolhidos, sem potência. Daí que seja interessante a forma como, não em uma leitura biográfica e sim pelas obsessões de uma autora, encontramos sob o nome de aporia aquilo que se distingue e é mesmo o aposto do que João afirmava sobre si.

Contudo, a aporia fala, por definição, de uma impossibilidade; e é a impossibilidade o que se tematiza em Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, ao se apresentar a androginia de Diadorim:

E aí ganhei uma herança. Nem tanto herança. Um tio latifundiário, solteiro e provavelmente gay, embora essa hipótese não fosse aventada. Chicotes, chapéus de couro, bois, cavalos e jagunços, noites e noites ao relento embolados no meio do campo, eis uma enumeração reduzida à sua forma literal. Coisa de homem.

Na minha família, Diadorim, conhecido fosse, seria uma impossibilidade ôntica.

Diadorim, uma impossibilidade narrativa.

“A única coisa a nos garantir que Diadorim não é de fato um homem é a palavra de Riobaldo e, convenhamos, ele não nos diria nada de diferente.”

Um professor meu, inesquecível (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 68).

Se a androginia de Diadorim se coloca como impossibilidade ontológica, também a de Astérion aponta algo sobre aquilo que é impossível/imaterializável, e, na leitura de Diadorim/Astérion, ambas as formas, ainda que masculinas, afastam-se do elogio masculinista que marcara a construção de João, mas também do tio fazendeiro da narradora. Em seu estudo sobre os andróginos de Ismael Nery, Maria Bernardete Ramos Flores (2017)FLORES, Maria Bernardete Ramos (2017). Xul Solar e Ismael Nery entre outros místicos modernos: sobre o revival espiritual. Campinas: Mercado de Letras. aponta como os traços do artista, por mais que assumam sua feição corporal, não assumem efeito autobiográfico: “reconhecemos Ismael e Adalgisa entre os amantes representados iconograficamente, mas descobrimos que funciona apenas como figuras alegóricas e nunca como representação de um estado de ânimo do casal Ismael/Adalgisa” (Flores, 2017FLORES, Maria Bernardete Ramos (2017). Xul Solar e Ismael Nery entre outros místicos modernos: sobre o revival espiritual. Campinas: Mercado de Letras., p. 145). Mesmo que se valendo de uma forma que guarda marcas do masculino, pela indecisão do traço, que se assemelha também aos de sua esposa, Adalgisa, há em Nery, diz Flores (2017)FLORES, Maria Bernardete Ramos (2017). Xul Solar e Ismael Nery entre outros místicos modernos: sobre o revival espiritual. Campinas: Mercado de Letras., uma ambiguidade proposital.

Essa ambiguidade, que ganha forma plástica, apresenta-se também em verso, como notável no poema “Eu”, de 1933:

Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas

Eu sou o que não existe entre o que existe.

Eu sou tudo sem ser coisa alguma.

Eu sou o amor entre os esposos.

Eu sou o marido e a mulher.

Eu sou a unidade infinita.

Eu sou um deus com princípio.

Eu sou o poeta! (Nery [1933] in Flores, 2017FLORES, Maria Bernardete Ramos (2017). Xul Solar e Ismael Nery entre outros místicos modernos: sobre o revival espiritual. Campinas: Mercado de Letras., p. 193).

Nota-se a passagem constante do Outro ao Eu. Formas opostas que produzem a existência, a voz lírica indica a sua, contudo, naquilo que não há, mas que pode ser encontrado entre o existente. Daí que a androginia seja aporia, como impossibilidade de resolução que poderia gerar um termo estável, e fica, no lugar, a flutuar entre. O andrógino flerta, assim, com o mito, e é no Gênesis, livro que abre o Antigo Testamento, que, ainda segundo Flores (2017)FLORES, Maria Bernardete Ramos (2017). Xul Solar e Ismael Nery entre outros místicos modernos: sobre o revival espiritual. Campinas: Mercado de Letras., podemos encontrar a sua origem, pela afirmação de um Deus que teria feito, à sua imagem e semelhança, macho e fêmea. Sendo ambos são semelhantes ao mesmo criador, não há sustentação, no mito, de uma separação entre masculino e feminino.

Se antes se mencionou o estudo de Auerbach (1998)AUERBACH, Erich (1998). Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard. São Paulo: Perspectiva. e se buscou ressaltar como há elementos da Odisseia e do Antigo Testamento em Glenadel, é hora de voltarmos à análise que ele faz dos fundamentos do Ocidente com base nos dois objetos. O crítico mostra como, em Homero, há um constante movimento de presentificação do pretérito, “que não conhece segundos planos. O que ele nos narra é sempre e somente presente, e preenche completamente a cena e a consciência do leitor” (Auerbach, 1998AUERBACH, Erich (1998). Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard. São Paulo: Perspectiva., p. 3). Ou seja, há um movimento formal no qual, ao presentificar, Homero acaba por “representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais” (Auerbach, 1998AUERBACH, Erich (1998). Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard. São Paulo: Perspectiva., p. 4). O movimento narrativo empreendido no Antigo Testamento é o oposto. Marcado por uma impressão de vazio e por um relato no qual as personagens ocupam polos diferentes, cuja ampliação de uma tensão opressiva se coloca, “na história de Isaac não é somente a intervenção de Deus no princípio e no fim, mas também, os elementos fatuais e psicológicos no seu interior que permanecem obscuros, tocados apenas de leve, carregados de segundo plano”, o que leva Auerbach (1998AUERBACH, Erich (1998). Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Tradução de George Bernard. São Paulo: Perspectiva., p. 12) a concluir: “e é justamente por isso que não só precisam de investigação profunda e interpretação, mas até o exigem”.

O que o Velho Testamento demanda, então, é interpretação, já que sua escrita não logra fechar um signo, ao contrário, abre-se à imprecisão. Ou seja, como potência mítica que vem do Antigo Testamento e se coloca como sensibilidade moderna não pelo desejo do retorno, mas pela demanda de uma nova camada interpretativa, a androginia é precisamente uma abertura de sentido que pode provocar o presente. Ainda que não se trate do mesmo procedimento de Artaud (2019)ARTAUD, Antonin (2019). Escritos de Antonin Artaud. Tradução de Cláudio Willer. Porto Alegre: L&PM., há ecos de sua preocupação na retomada da androginia na segunda metade do século XX. Não deve ser casual, então, que Sontag, que teorizara sobre a obra do francês, apresentará a esfera andrógina da estética camp:

Como gosto pelas pessoas, o camp reage sobretudo ao que é marcantemente atenuado e ao que é intensamente exagerado. O andrógino é, sem dúvida, uma das grandes imagens da sensibilidade camp. Exemplos: as figuras esguias, sinuosas, desfalecendo, da pintura e da poesia pré-rafaelitas; os corpos finos, fluidos, assexuados nas gravuras e cartazes art nouveau apresentados em relevo em abajures e cinzeiros; o fantasmagórico vazio andrógino por trás da beleza de Greta Garbo. Aqui, o gosto camp se funda num aspecto real e verdadeiro do gosto, que geralmente passa despercebido: a forma mais refinada de atração sexual (bem como a forma mais refinada de prazer sexual) consiste em ir a contrapelos de seu próprio sexo. O que é mais bonito nos homens viris é algo feminino; o que é mais bonito nas mulheres femininas é algo masculino... Aliado ao gosto camp pelo andrógino, há algo que parece totalmente diferente, mas não é: o prazer pelo exagero das características sexuais e dos maneirismos de personalidade. Por razoes óbvias, os melhores exemplos que podem ser citados são de artistas de cinema (Sontag, 2020SONTAG, Susan (2020). Notas sobre o camp. In: SONTAG, Susan. Contra a interpretação e outros ensaios. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras. p. 346-367., p. 351).

Há algo da artificialidade camp nas obras de Glenadel e de Vigna, que se expressa sobretudo pela ideia de artifício, tanto como léxico empregado pela primeira no poema “Ave” quanto pela referência constante, no romance da segunda, ao apreço de Lurien por seu quimono japonês legítimo. Ambas as imagens, artifício e textura/composição, são centrais à análise de Sontag sobre o camp. O mais interessante nessa leitura da esfera andrógina do camp é, contudo, como o tema retorna não apenas nas vanguardas das primeiras décadas do XX, mas se coloca, junto com o travestismo, como força que mobiliza a segunda metade do mesmo século, até mesmo como força para falar da última ditadura nacional. Um dos ecos do camp encontra-se em Stella Manhattan, romance de Silviano Santiago (2017)SANTIAGO, Silviano (2017). Stella Manhattan. São Paulo: Companhia das Letras., publicado em 1985, que se constitui na dualidade da/do protagonista, Eduardo/Stella, assim como na das personagens que compõem a obra. O autor, porém, furtando-se de qualquer esquematismo que poderia agradar à década de 1980, produz nesse jogo de dualidades personagens que nutrem certa simpatia pela ditadura, o que se nota não apenas em Eduardo/Stella, mas também no Coronel Vianna/Viúva Negra, adido militar ligado ao BDSM que representa o Brasil totalitário na embaixada nos Estados Unidos da América, assim como em Paco/Lacucaracha, vizinha/vizinho cubana/cubano que se coloca em constante oposição ao regime de Fidel Castro. Ou seja, sua prosa faz um constante movimento de ruptura com o esperado de um livro que tratasse da homossexualidade na década de 1980, apontando à possibilidade de sua verve conservadora, de apoio à ditadura, e o faz por meio de uma cisão da vida psíquica das personagens, que nos são apresentadas, aliás, com dois nomes próprios cada. Na obra de Santiago (2017)SANTIAGO, Silviano (2017). Stella Manhattan. São Paulo: Companhia das Letras., ainda, esse travestismo, algo camp mas nada andrógino, vale-se de uma série de exagerações dos artifícios do feminino, aproximando-se mesmo dos excessos tão expressivos de um autor como Copi.

O próprio Copi (2010)COPI (2010). La guerra de las mariconas. Tradução de Margarita Martínez. Buenos Aires: El Cuenco de Plata., em La guerra de las mariconas (romance de 1982), vale-se do Brasil como tema. Em prosa que se passa na década de 1970, entre a França e a Lua, um grupo de amazonas hermafroditas travestis bissexuais brasileiras (cada uma delas sendo tudo isso, como característico dos velozes desdobramentos de Copi que sempre exigem mais) encontra-se em fuga em Paris, após ter cometido um atentado incendiário no Rio Grande do Sul (e, depois, orquestrar outros em diversas cidades do mundo, incluindo Paris e Brasília). A prosa não se refere diretamente à ditadura de 1964, mas situa o travestismo de Conceiçao (sic) do Mundo e de Vinicia/Vinicio da Luna no tempo. Realiza-o, contudo, por meio da recorrência ao hermafroditismo, ou seja, Zoé, condição orgânica do corpo, que acaba por indicar, em sua construção simbólica, Bíos, não propriamente a androginia (Vinicia/Vinicio, personagem que assume a perversão, apresenta a estrutura de cisão nominal que está também em Santiago, 2017SANTIAGO, Silviano (2017). Stella Manhattan. São Paulo: Companhia das Letras.), senão o travestismo, presente em toda obra e que ganha forma nominal pela recorrência ao termo travas para indicar as amazonas hermafroditas. Novamente, não se trata de uma esfera andrógina. Ainda que se note um embaralhamento dos sexos pelo hermafroditismo, em sua construção simbólica estamos diante de uma estética travesti e não da androginia.

Ora, se pode haver uma esfera andrógina na estética camp, isso não quer dizer que o andrógino necessariamente o seja. Como lembra Sontag, são a artificialidade, o excesso, a composição, a textura, algumas de suas marcas — do camp de Copi (2010)COPI (2010). La guerra de las mariconas. Tradução de Margarita Martínez. Buenos Aires: El Cuenco de Plata. e Santiago (2017)SANTIAGO, Silviano (2017). Stella Manhattan. São Paulo: Companhia das Letras., não da androginia. Daí que Beatriz Sarlo (1996)SARLO, Beatriz (1996). Instantáneas: medios, ciudades y costumbres en el fin del siglo. Buenos Aires: Ariel., conhecedora da obra de Sontag, pense em uma peleja sobre as imagens que dão forma ao travestismo:

De la frase [de Bakhtin], me interesa sobre todo la idea del carnaval como futuro incompleto, no previsto por la ley, ni controlado por las instituciones. El disfraz usa los vestidos contradiciendo su función social y así convierte a todas las cosas en algo provisorio. Los vestidos son parte de un juego abierto y enigmático, que no habla sólo de preferencias libres sino, muchas veces, de sumisiones o de prestigios insoportables. El vestido es un homenaje y una competencia, una amenaza y una imitación tranquilizadora. Los travestis son un avatar de ese juego cuando, por ejemplo, imitan a las vedettes del show-business. Su impacto es tan fuerte que obliga a sus modelos a responder a la estética del travestismo, en un campo de reflejos que se confirman mutuamente (Sarlo, 1996SARLO, Beatriz (1996). Instantáneas: medios, ciudades y costumbres en el fin del siglo. Buenos Aires: Ariel., p. 29).

Se essa estética do travestismo se aproxima sobretudo à obra de Copi (2010)COPI (2010). La guerra de las mariconas. Tradução de Margarita Martínez. Buenos Aires: El Cuenco de Plata. e Santiago (2017)SANTIAGO, Silviano (2017). Stella Manhattan. São Paulo: Companhia das Letras., Sarlo (1996)SARLO, Beatriz (1996). Instantáneas: medios, ciudades y costumbres en el fin del siglo. Buenos Aires: Ariel. encontrará, contudo, um ponto diverso a ela:

Así vestida, Marlene [Dietrich] pronuncia un monólogo silencioso que dice varias cosas al mismo tiempo: soy Marlene Dietrich (su cara es naturalmente inconfundible), la imagen erotizada de la mujer tal como quedó establecida para siempre después de El ángel azul. Pero, precisamente porque soy Marlene Dietrich, también soy este cuerpo que lleva un traje de hombre. Atraigo a los hombres vestida de hombre, sabiendo que mi atracción es confusa y que mi sexo no pertenece del todo a ninguna parte. Soy una mujer vestida de hombre que no parece ni a un hombre ni una mujer (Sarlo, 1996SARLO, Beatriz (1996). Instantáneas: medios, ciudades y costumbres en el fin del siglo. Buenos Aires: Ariel., p. 31).

Ainda que Sarlo (1996)SARLO, Beatriz (1996). Instantáneas: medios, ciudades y costumbres en el fin del siglo. Buenos Aires: Ariel. não o nomeie como andrógino, parece ser este o conceito que sua descrição da atriz alemã engloba. É mais nessa direção que se encontram as obras de Vigna e Glenadel. Marcadas ambas pela imprecisão do gênero e pela possibilidade de construção do corpo por meio da mescla, nelas encontramos, antes de uma afirmação do sujeito na ordem identitária — ainda que cindida, como na nomeação de Copi (2010)COPI (2010). La guerra de las mariconas. Tradução de Margarita Martínez. Buenos Aires: El Cuenco de Plata. e Santiago (2017)SANTIAGO, Silviano (2017). Stella Manhattan. São Paulo: Companhia das Letras. —, sobretudo um movimento constante de passagem do Outro ao Eu. A androginia assume, na obra das autoras, um componente mais mítico, que guarda inerente a si a possibilidade da alteridade.

V

É nisso que se revela a importância de entendermos o componente infamiliar da prosa de Vigna (2016)VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras.. A narradora empreende, durante todo o romance, um movimento de oposição a João, mas acaba por denunciar, pelos vestígios formais ali presentes, que ele, longe de ser um Outro que ao Eu nada fala, é, isso sim, aquele que denuncia a dessubjetivação da própria narradora. Vigna constrói continuamente um simulacro de cisão que, na verdade, serve para obliterar o fato de que também a narradora se vê sob o Estado de exceção que levara João à repetição compulsiva com prostitutas. E a forma que encontra para expressar esse impacto que recai também no Eu é a descrição do próprio corpo:

É fim de ano, verão, portanto, no Rio de Janeiro, e o lado de fora é Botafogo. Marquês de Olinda. Que é uma rua com um absurdo intrínseco. Muito larga, embora quase sem carros. Nenhuma árvore, nenhuma sombra. O calor é insuportável. E no escritório tem ar-condicionado e uísque caubóis no copinho de plástico. Luminosidade amena e um quase silêncio, se se considerar a voz de João como ruído de fundo. Além disso, o sofá de couro adquire rápido o jeito apropriado para minha posição favorita: pernas esticadas, a bunda tocando a pontinha do assento, cabeça apoiada no encosto, os olhos voltados para a ponta das minhas botas.

O copinho de plástico fica equilibrado na barriga. Respiro pouco, quase nada.

Digo que é por causa do copinho de plástico (Vigna, 2016VIGNA, Elvira (2016). Como se estivéssemos em palimpsesto de putas. São Paulo: Companhia das Letras., p. 44-45).

O que mais chama a atenção na prosa de Vigna é, então, como a deformação das subjetividades se coloca em um procedimento que faz a passagem do Outro ao Eu como forma de constituição de uma crítica à política contemporânea. Isso se dá porque não se trata apenas do corpo de João — como fadado à compulsão à repetição, o que é, no entanto, tematizado —, mas também da própria imobilidade da narradora que, sentada na ponta de um sofá, resta imóvel em pretensa defesa de um copo de plástico com uísque. Ora, a presença da política não se coloca, portanto, por meio do resquício da representatividade, e sim por um mecanismo formal que aponta ao recalcamento que a narradora empreende por meio da contenção de seu próprio corpo na forma em que se posiciona no sofá. É exatamente o recalcamento das práticas corporais que Adorno e Horkheimer (1985)ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar. tematizam, na Dialética do esclarecimento, ao discutirem o antissemitismo como limite do Iluminismo:

No modo de produção burguês, a indelével herança mimética de toda prática é abandonada ao esquecimento. Os homens obcecados pela civilização só se apercebem de seus próprios traços miméticos, que se tornaram tabus, em certos gestos e comportamentos que encontram nos outros e que se destacam em seu mundo racionalizado como resíduos isolados e traços rudimentares verdadeiramente vergonhosos. O que repele por sua estranheza é, na verdade, demasiado familiar. São os gestos contagiosos dos contatos diretos reprimidos pela civilização: tocar, aconchegar-se, aplacar, induzir. O escandaloso, hoje, é o caráter extemporâneo desses impulsos. Eles parecem retraduzir as relações humanas reificadas em relações pessoais de poderio, amolecendo o comprador com lisonjas, o devedor com ameaças, o credor com súplicas. Finalmente, todo impulso em geral produz um efeito penoso, a excitação parecendo menos penosa. Toda expressão não manipulada se parece com a careta que sempre foi a expressão manipulada — no cinema, no linchamento, no discurso do Führer. A mímica indisciplinada é o ferrete da antiga dominação, impresso na substância viva dos dominados e, graças a um inconsciente processo de imitação, transmitida na mais tenra infância de geração em geração, do belchior judeu ao banqueiro. Essa mímica provoca a fúria porque, em face das novas relações de produção, ela põe à mostra o antigo medo que foi preciso esquecer para nelas poder sobreviver. É ao elemento compulsivo, à fúria do verdugo e à fúria do torturado, que reaparecem indiferenciadas na careta, que reage à fúria do civilizado. À aparência impotente responde a realidade letal; ao fingimento, a seriedade (Adorno; Horkheimer, 1985ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar., p. 150).

O que se destaca na passagem em questão é o recalcamento das práticas miméticas como postura do indivíduo sob o nacional-socialismo. No parágrafo, que faz referência implícita à dialética entre civilização e barbárie desenvolvida por Benjamin anos antes — e ainda anteriormente por Freud e por Nietzsche —, os autores mostram como a falsa mímesis, no fascismo, se relaciona com a dominação. Também o conceito de mímesis como instância formativa do sujeito, como imageticamente elaborado por Benjamin, toma a dominação em conta, como se nota no aforismo “Caça a borboletas”: “quanto mais eu me confundia com o animal em todas as minhas fibras, quanto mais eu me tornava borboleta no meu íntimo, tanto mais aquela borboleta se tornava humana em tudo o que fazia, até que, finalmente, era como se a sua captura fosse o único preço que me permitia recuperar a minha condição humana” (Benjamin, 2017aBENJAMIN, Walter (2017a). Rua de mão única / Infância em Berlim: 1900. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica., p. 77). É evidente que há, na passagem, uma instância de dominação do objeto, ao enganá-lo para poder capturá-lo. Mas aponta-se, como contraponto ao processo de dominação ali presente, a permanência dos sentidos como força mimética de apreensão do mundo. Possibilita-se então uma reconciliação do sujeito com o objeto, na medida em que o empreendimento só pode ser alcançado uma vez que o objeto seja alçado também à posição de sujeito e, apenas ao compreender o movimento desse Outro como sujeito, pode o Eu apreender sua gestualidade. É o contrário da falsa mímesis que, na identificação primária do nacional-socialismo, se coloca como impossibilidade, já que o reconhecimento do Outro e de si, como sujeitos, se vê obliterado; ora, diferentemente da identificação nazista, há na caça à borboleta algo ligado à apreensão do movimento do objeto que busca capturar, efetivando assim um processamento mimético no qual o Eu se constitui em uma relação, ainda que perpassada pela dominação, de alteridade com o Outro; na qual o Eu assume o Outro como parte integrante de si, de sua própria gestualidade. Daí que, sobre outro aforismo do mesmo livro, “A despensa”, Vaz (2005VAZ, Alexandre Fernandez (2005). Subjetividade, memória e experiência: sobre a infância em alguns escritos de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Educação em Revista, Marília, n. 6, p. 51-66. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/educacaoemrevista/article/view/598/481. Acesso em: 2 out. 2023.
https://revistas.marilia.unesp.br/index....
, p. 57) comente que

Esse domínio contém um elemento esclarecido, racional, que coexiste com outro que, como no sexo, é lúdico, mimético, de aproximar-se do objeto, respeitando-lhe a grandeza, de misturar-se a ele, dissolver-se com autonomia e com vontade e prazer na sedução dos sentidos experienciados. Trata-se da mimesis como representação (Darstellung), tão importante para Benjamin nos textos sobre os brinquedos e jogos e sobre o caráter “mágico” da linguagem. A relação da criança que vai furtivamente até os doces, sentindo-lhes a calda e a doçura, não apenas com o gosto, mas também com o tato, é de ordem mimética. Nela, o sujeito/criança não se exclui nem se enrijece em relação ao objeto/doce, mas antes se permite impregnar por ele, misturando-se para poder absorvê-lo, para deixar-se por ele absorver.

Nota-se na elaboração das imagens de Benjamin uma postura que se coloca em oposição ao aniquilamento do sujeito pelo nacional-socialismo, sugerindo no lugar do recalcamento empreendido pelo fascismo uma aposta nas práticas miméticas. É por isso que há uma proximidade entre os aforismos sobre a infância e as cartas compiladas por Benjamin (2020)BENJAMIN, Walter (2020). Gente Alemã. Tradução de Daniel Martineschen. Florianópolis: Nave. em Gente Alemã, cujo conjunto buscava reapresentar à Alemanha de então a possibilidade da formação do sujeito esclarecido. Como aponta Scramim (2020bSCRAMIM, Susana (2020b). Cartas ao humanismo. In: BENJAMIN, Walter. Gente Alemã. Florianópolis: Nave. p. 243-263., p. 260) ao destacar a proximidade entre os objetos, há aí um “procedimento (...) [que] parte desse princípio de que no lugar de ‘narrar’ a fase do declínio da ‘metamorfose’ da burguesia alemã, ele compõe um teatro em que a escrita do passado encena os problemas do futuro uma vez que se está atento aos procedimentos que residem na língua”. Ora, é pela potência mimética, que ganha forma privilegiada nas semelhanças não-sensíveis da linguagem, mas também na gestualidade corporal que perpassa o próprio corpo como instrumento de brincar, que se poderia pensar, então, no desrecalcamento desse corpo que, diziam Adorno e Horkheimer (1985)ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar., sob o nacional-socialismo, se vê tabutizado. Há consequências disso na poesia de Glenadel. É o que se nota em alguns dos poemas compilados em Quase uma arte, originalmente lançado em 2005, obra que antecede A fábrica do feminino. Em “A pele da jiboia” lemos:

algumas sementes da Austrália

preveem o fogo

e se preparam para sobreviver

o fogo está em seus planos,

se é que os têm

ele vem abri-las para que germinem

na floresta devastada

então podem crescer sem disputar

o sol com as enormes árvores

e a terra com as grossas raízes

isto me disse alguém uma vez

era suíço

estava leibniziano (Glenadel, 2011GLENADE, Paula (2011). Casi un arte. Tradução de Rodrigo Labriola. Bahía Blanca: VOX., p. 55).

Que a recorrência a Leibniz é provocativa não resta dúvida. Conceito central na epistemologia que Benjamin desenvolve na tese sobre o Barroco, a mônada retorna, como potencial política messiânica, nas teses Sobre o conceito da História:

A historiografia materialista, por seu lado, assenta sobre um princípio construtivo. Do pensar faz parte não apenas o movimento dos pensamentos, mas também sua paragem. Quando o pensar se suspende subitamente, numa constelação carregada de tensões, provoca nele um choque através do qual ele cristaliza e se transforma numa monada. O materialista histórico ocupa-se de um objeto histórico apenas quando este se lhe apresenta como uma tal monada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma paragem messiânica do acontecer ou, por outras palavras, o sinal de uma oportunidade na luta pelo passado reprimido (Benjamin, 2019BENJAMIN, Walter (2019). Sobre o conceito da História. In: BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 9-20., p. 19).

A mônada guarda, em si, uma visão abreviada do mundo que se relaciona ao conceito de agoridade (Jetztzeit). Ao partir da saturação dos extremos e congelá-los em uma imagem, possibilita a formação de constelações que, na medida em que logram romper com um presente estático, colocam em seu lugar uma temporalidade messiânica que, qual relampejo, faz do passado parte sensível do presente — enquanto atualização dos mortos da história, que se coloca como futuro do pretérito — que pode almejar o vindouro. Nesse sentido, a mônada imprime um agora como exigência: é em seu aparecimento fugaz que as constelações históricas podem chegar à cognoscibilidade do crítico materialista que a elas volta o olhar. Esse movimento se encontra no poema de Glenadel. As sementes da Austrália que se preparam para sobreviver ao fogo que pode trazer o novo no qual germinarão demandam um agora no qual esse gesto possa acontecer. O fogo, em sua emergência abrupta, aponta para o lugar da destruição, mas, ao mesmo tempo, é ele que logra fazer com que as sementes se abram para que possam, na floresta devastada, germinar. Como se em uma agoridade, o agora dos desastres que a modernidade reincide em nomear de exceções, mas que são sua parte constitutiva, é que fosse passível que, saturado deste agora, o passado chegasse à sua cognoscibilidade na medida em que, qual fagulha de uma constelação histórica, pudesse despertar.

O que se demanda neste agora se encontra em outro poema de Glenadel (2011)GLENADE, Paula (2011). Casi un arte. Tradução de Rodrigo Labriola. Bahía Blanca: VOX. pertencente ao mesmo livro, “O outro, o mesmo”:

é do outro, ventríloqua

a voz que articulo mal

flui de mim, vampirizada

uma seiva que não volta

em lugar da epifania

entra a aparição

sobe ao palco

o outro, o indesejado

nem vivo nem morto

vestido com minha pele

mesmerizada (Glenadel, 2011GLENADE, Paula (2011). Casi un arte. Tradução de Rodrigo Labriola. Bahía Blanca: VOX., p. 61).

O poema retoma a já vista discussão benjaminiana do mimetismo como alteridade. É da voz que vem do Outro que a própria pode ser articulada, assim como pertence ao Eu a pele que o Outro veste. Nota-se no poema aquilo que Scramim (2020a)SCRAMIM, Susana (2020a). Antología y traducción. Pensamiento y política. In: ROCA, Agustina (org.). Tejer y destejer: 7 poetas contemporáneas del Brasil. Caba: Bajolaluna. p. 7-16. observa sobre a poesia de algumas poetas brasileiras contemporâneas, entre elas Glenadel, marcadas ambas pelo desgaste da linguagem e pela recusa de sua metafísica: “enfrentándose al mundo del realismo de la modernidad, que es autónomo en relación al conocimiento de las cosas, incluídos ahí el ‘yo’ y el ‘outro’, la poesía escrita por mujeres desea y practica otro tipo de conocimiento” (Scramim, 2020aSCRAMIM, Susana (2020a). Antología y traducción. Pensamiento y política. In: ROCA, Agustina (org.). Tejer y destejer: 7 poetas contemporáneas del Brasil. Caba: Bajolaluna. p. 7-16., p. 15) — um conhecimento mimético que logra superar a cisão entre sujeito e objeto e alçar, em seu lugar, os gestos corporais como pressuposto da escritura, um desejo de produzir experiências sensíveis (Scramim, 2018SCRAMIM, Susana (2018). Teatralidades da linguagem e poesia contemporânea. Outra Travessia, Florianópolis, n. 25, p. 17-30. https://doi.org/10.5007/2176-8552.2018n25p17
https://doi.org/10.5007/2176-8552.2018n2...
). Esse movimento se coloca, também, na prosa de Vigna. Em um livro infantil escrito em coautoria com Roseana Murray, O silêncio dos descobrimentos, encontramos compilada uma citação de Benjamin: “A experiência que se transmite boca a boca é a fonte de que se serviram todos os narradores” (Benjamin in Vigna; Murray, 2000VIGNA, Elvira; MURRAY, Roseana (2000). O silêncio dos descobrimentos. São Paulo: Paulus., p. 73). A frase, não por casualidade, advém do ensaio sobre Leskov (Benjamin, 2018bBENJAMIN, Walter (2018b). O contador de histórias: reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica). Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica. p. 139-166.), no qual o crítico busca plasmar sua teoria da experiência que, ainda que seja tomada como que em declínio na modernidade, não aponta para seu fim, senão para um diagnóstico de época que pode marcar o contraponto com a emergência do romance moderno, burguês. Mas é no conceito de experiência que a alteridade cobra espaço, na medida em que o narrador arcaico assume para si a ideia de uma continuidade da narração que, antes de denunciar uma autoria individual, se situa em uma espacialidade, aquela das corporações artesanais nas quais o marinheiro viajante e o camponês sedentário se encontram. No espaço, são as práticas miméticas que colocam as experiências corporais como possibilidade de apreensão do mundo por meio do Outro, afastando-se então do meramente vivido, mas alçando à experiência também aquilo que fora processado pelo olhar, audição, tato, olfato — pelos sentidos do próprio corpo ao ouvir o que narra o Outro. É essa a ambientação da experiência, cobrada por Vigna também para si — para além da referência direta a Benjamin, são frequentes em suas obras as passagens em que narradoras afirmam escrever sobre aquilo que viveram, mas também que viram e que ouviram (o léxico aqui é da própria Vigna) —, o que se encontra em um último poema de Glenadel (2011)GLENADE, Paula (2011). Casi un arte. Tradução de Rodrigo Labriola. Bahía Blanca: VOX., “Cão e lobo”:

Andar como se diz

no fio da navalha

entre cão e lobo

o não e o sim entrelaçados

do coração às vísceras

impermanentes e putrescíveis

inaproveitáveis para a eternidade

a vertigem dá o tom

íntimo carrossel onde cavalgo

atrás e adiante

não há paz

só guerra à guerra:

amor (Glenadel, 2011GLENADE, Paula (2011). Casi un arte. Tradução de Rodrigo Labriola. Bahía Blanca: VOX., p. 66).

O que há no movimento da alteridade provocado pela experiência corporal é, então, a superação da dicotomia sujeito/objeto. É o que se nota no corpo do poema, ao referir-se ao Outro e ao Eu, por meio daquilo que se situa entre cão e lobo, mas também nas imagens que quedam entre o pretérito e o porvir, como se observa na sedimentação daquilo que não pode ser permanente e que é inaproveitável à eternidade, marcado ainda pelo jogo entre atrás (antes) e adiante (depois). Trata-se mais que nada de uma passagem, de um entre, o que o poema expressa.

E, em sua última estrofe, uma referência a Benjamin. Na já vista edição de Dimópulos às resenhas do autor, deparamo-nos com o comentário “Teorias do fascismo alemão” sob o título “Guerra a la guerra”, o mesmo sintagma do qual se vale Glenadel. Benjamin (2017c)BENJAMIN, Walter (2017c). Guerra a la guerra [Teorías del fascismo alemán]. In: BENJAMIN, Walter. La tarea del crítico. Tradução de Ariel Magnus. Buenos Aires: Eterna Cadencia. p. 159-175. assinalará, apoiado nos ensaios compilados por Ernst Jünger, como na guerra se nota um duplo movimento marcado, por um lado, pelo alto desenvolvimento técnico e, por outro, pelo declínio do esclarecimento, pela regressão do sujeito. A guerra, assim, liga-se a um conceito que, ainda que não empregado por Benjamin, será desenvolvido posteriormente por Adorno e Horkheimer (1985)ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar., o de racionalidade instrumental:

Con regueros de fuego y trincheras de protección, la técnica quiso subrayar los rasgos heroicos en el semblante del idealismo alemán. Se equivocó. Pues los que ella tomó por heroicos fueron los hipocráticos, los rasgos de la muerte. Así es cómo acuño, profundamente atravesada por su propia infamia, el semblante apocalíptico de la naturaleza y la hizo enmudecer, cuando en realidad era la fuerza que debería haberle dado un lenguaje. La guerra, en la abstracción metafísica que le profesa el nuevo nacionalismo, no es otra cosa que el intento de resolver en la técnica, de manera mística e inmediata, el secreto de una naturaleza entendida de manera idealista, en lugar de usarla y esclarecerla mediante el rodeo de la creación de cosas humanas (Benjamin, 2017cBENJAMIN, Walter (2017c). Guerra a la guerra [Teorías del fascismo alemán]. In: BENJAMIN, Walter. La tarea del crítico. Tradução de Ariel Magnus. Buenos Aires: Eterna Cadencia. p. 159-175., p. 171).

Se, como se nota, no lugar do recalcamento inerente à falsa reconciliação entre sujeito e objeto, Benjamin oferece potência à técnica por meio da sublimação, não estranha que seja então na linguagem e na razão que buscará uma nova potência:

Lo que sí hay que hacer es dirigir toda la luz que aún siguen dimanando el lenguaje y la razón hacia aquella “vivencia primigenia”, de cuya sorda oscuridad asoma arrastrándose esta mística de la muerte mundial con sus mil insignificantes patitas conceptuales. La guerra que queda descubierto con esta luz no es la “eterna”, a la que rezan estos nuevos alemanes, ni tampoco la “último” por la que suspiran los pacifistas. Es en realidad solo esto: la oportunidad única, horrible, última, de corregir la incapacidad de los pueblos para ordenar las relaciones entre sí de acuerdo a la que tienen con la naturaleza por media de su técnica (Benjamin, 2017cBENJAMIN, Walter (2017c). Guerra a la guerra [Teorías del fascismo alemán]. In: BENJAMIN, Walter. La tarea del crítico. Tradução de Ariel Magnus. Buenos Aires: Eterna Cadencia. p. 159-175., p. 174).

A aposta de Benjamin como alternativa à guerra é, então, nas práticas miméticas e na razão. Não são, contudo, antípodas conceituais, senão seu contrário, como mostram Adorno e Horkheimer (1985)ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar.: trata-se de uma dialética que pode fazer com que, pela presença mimética, a razão venha a banir de si seu componente bárbaro, instrumental. Mas esse mimetismo, tantas vezes o dissemos, coloca-se em uma esfera entre. É esse entre, que logra burlar as fronteiras entre Outro e Eu, que se coloca como agoridade na poesia de Paula Glenadel e na narrativa de Elvira Vigna.

AGRADECIMENTO

Susana Scramim discutiu versões anteriores do texto. A ela expressamos nosso agradecimento pela atenta leitura. A responsabilidade, evidentemente, é nossa.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2023
  • Aceito
    12 Mar 2024
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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