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ASSOCIATIVISMO FEMININO E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: UM ESTUDO SOBRE AS BASES SOCIAIS DE APOIO À DITADURA MILITAR EM CURITIBA (1964-1985)

Female associativity and political participation: a study on the social bases of support for the military dictatorship in Curitiba (1964-1985)

Asociativismo femenino y participación política: un estudio sobre las bases sociales de apoyo a la dictadura militar en Curitiba (1964-1985)

Resumo

O presente artigo analisa as bases sociais de apoio à ditadura militar no Brasil (1964-1985). Partiu da hipótese de que a ditadura foi possível porque encontrou grupos e indivíduos dispostos a colaborar com o poder estabelecido a partir de 1964. O estudo deu ênfase à participação política das mulheres organizadas em associações femininas de caráter religioso, cultural e cívico. Importante atuação foi a da União Cívica Feminina Paranaense na preparação e articulação das mulheres a favor da intervenção das Forças Armadas. Elas realizaram atividades cívicas com o objetivo de fortalecer a ideia da presença dos militares como necessária para a manutenção da ordem e da preservação dos valores morais e cristãos.

Palavras-chave:
Associativismo feminino; Ditadura militar; Civismo

Abstract

The present article analyses the social bases of support for the military dictatorship in Brazil (1964-1985). It started from the hypothesis that the dictatorship was possible because it found groups and individuals willing to collaborate with the established power, from 1964. The study emphasized the political participation of women organized in female associations of religious, cultural and civic character. Important performance was that of the União Cívica Feminina Paranaense in the preparation and articulation of women in favour of the intervention of the armed forces. They performed civic activities with the objective of strengthening the idea of the presence of the military as necessary for the maintenance of order and the preservation of the moral and Christian values.

Keywords:
Female associativity; Military dictatorship; Civics

Resumen

Este artículo analiza las bases sociales de apoyo a la dictadura militar en Brasil (1964-1985). Surgió de la hipótesis de que la dictadura fue posible porque encontró grupos e individuos dispuestos a colaborar con el poder establecido, a partir de 1964. El estudio dio énfasis a la participación política de las mujeres organizadas en asociaciones femeninas de carácter religioso, cultural y cívico. Importante actuación fue la de la União Cívica Feminina Paranaense en la preparación y articulación de las mujeres a favor de la intervención de las Fuerzas Armadas. Realizaron actividades cívicas con el objetivo de fortalecer la idea de la presencia de los militares como necesaria para el mantenimiento del orden y de la preservación de los valores morales y cristianos.

Palabras clave:
Asociativismo femenino; Dictadura militar; Civismo

Introdução

A historiografia especializada em ditadura militar, sobretudo a que surgiu após a abertura política, caracterizou-se pela produção de estudos com ênfase no binômio dominação/resistência, uma chave de leitura sobre o período ditatorial brasileiro que deu pouca atenção aos segmentos da sociedade que colaboraram com as Forças Armadas. O fato está ligado à política de anistia e ao processo de redemocratização do Brasil a partir do final da década de 1970.

O ambiente político propiciado pela redemocratização projetou no horizonte do país um modelo de sociedade democrática centrado na hegemonia do discurso coletivo e do consenso social (Teles, 2009TELES, Edson. Políticas do silêncio e interditos da memória na transição do consenso. In: SANTOS, Cecília Macdowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de Almeida (Org.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2009. v. II.). Como resultado, prevaleceram, nas pesquisas produzidas durante essa época, as temáticas “revolução” e “revolta”, fomentando uma literatura voltada para o sistema repressivo e as resistências (Falcon, 1997FALCON, Francisco. História e poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da história: ensaios de teoria e de metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.). Nesse momento, a resistência tornou-se o tema recorrente nos estudos sobre a ditadura e passou a significar aqueles que se impuseram contra os grupos dominantes, agora ligados a um denominador comum: a construção da nova república.

O elemento silenciado do período militar, que foi o apoio da sociedade civil à ditadura, deve ser compreendido dentro desse projeto de conciliação e esquecimento durante o processo de redemocratização do Brasil. Entretanto, lembramos um dos estudos pioneiros no tema, o de René Dreifuss (1981)DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981., dedicado à análise da participação de civis, mais especificamente das elites sociais e políticas, na preparação e na execução do Golpe. Nos últimos anos, novas pesquisas acadêmicas surgiram com o intuito de problematizar essa visão e mostrar o quão complexa era a relação entre a sociedade e a ditadura. Destacamos o trabalho de Maria José de Resende (2001RESENDE, Maria José de. A ditadura militar: repressão e pretensão de legitimidade 1964-1985. Londrina: UEL, 2001.) sobre os mecanismos de legitimação social durante a ditadura militar, e a publicação de Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat (2010ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz(Org.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.) acerca do apoio e da participação de civis, e de organizações sociais, na preparação do Golpe de 1964, bem como na consolidação do regime militar.

Esses estudos encontram-se amparados em Pierre Laborie (2010LABORIE, Pierre. 1940-1944: os franceses do pensar-duplo. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Europa, volume I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.), para quem a atitude e o comportamento de indivíduos e grupos são marcados por ações ambivalentes e por situações simultâneas de proximidade e distanciamento de acordo com as circunstâncias históricas do momento, configurando-se como uma “zona cinzenta”, ou o pensar duplo. Nessa perspectiva, os estudos sobre a colaboração, o consentimento e o apoio na política buscaram entender as atitudes de personagens situados nesses espaços nebulosos de apoio aos regimes autoritários.

No quadro da produção historiográfica sobre o período ditatorial, outros trabalhos demonstraram que a ditadura não se sustentou apenas pela habilidade dos militares e dos políticos que os apoiaram. Tais análises enfatizaram que o processo político de 1964 não foi um Golpe arquitetado apenas pelas Forças Armadas, mas contou com a participação de civis e com o amplo apoio da sociedade. Lucia Grinberg (2009GRINBERG, Lucia. Partido político ou bode expiatório: um estudo sobre a Aliança Renovadora Nacional (Arena), 1965-1979. Rio de Janeiro: Mauad X, 2009., 2010GRINBERG, Lucia. “Saudações arenistas”: a correspondência entre partidários da Aliança Renovadora Nacional (Arena), 1966-1979. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Europa, volume I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.), por exemplo, chamou a atenção para a posição política e as contradições que caracterizaram o Aliança Renovadora Nacional (Arena), entre 1965 e o fim da década de 1970, quando havia apenas dois partidos na legalidade. O outro era o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), um partido de oposição à ditadura.

Nesse trabalho, a autora criticou a tese de que o Arena teria sido formado por antigos membros da União Democrática Nacional (UDN) e sustentou a ideia de que o partido canalizou os elementos mais conservadores da sociedade brasileira. Evidenciou, por meio de análises das correspondências entre os arenistas, que havia uma ampla participação de mulheres e de homens, nos vários municípios do território nacional, mobilizada pelo partido. Muitos desses correligionários exaltavam o discurso anticomunista, perseguiam e denunciavam aqueles considerados comunistas e diziam ser a “revolução de 1964” o marco fundador do Arena.

É oportuno dizer que essa produção historiográfica lançou luz a outros modos de interpretar o período ditatorial brasileiro. Podemos observar um sinal dessa mudança nos debates em torno da terminologia e de conceitos usados para pensar esse que foi um dos períodos mais sombrios da recente história brasileira. Golpe militar, golpe civil-militar, ditadura militar, ditadura civil-militar, regime militar, regime civil-militar estão no quadro das tipologias recorrentes entre alguns pesquisadores da área. Estudos como os de Daniel Aarão Reis (2014REIS, Daniel Aarão. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.) consideraram a presença de civis e o apoio destes aos militares quando do Golpe que derrubou o presidente João Goulart, donde a opção pelo termo Golpe civil-militar. Para Carlos Fico (2017FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 5-75, jan./abr. 2017.), o Golpe, de fato, foi civil-militar, no entanto, com os dispositivos de controle, criados e aprimorados a partir de 1967, o regime passou a ser controlado inteiramente pelos militares. Foi esse o momento em que, para Adriano Nervo Codato (2004CODATO, Adriano Nervo. OLIVEIRA, Marcos Roberto de. A marcha, o terço e o livro: catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 271-302, 2004.: 12-13), o Golpe político-militar, de 1964, concretiza-se como regime ditatorial-militar em 1968, com o Ato Institucional no 5 (AI-5).

No que diz respeito à historiografia que trata da participação política feminina, é interessante chamar a atenção para o fato de que, ao se referirem aos movimentos de mulheres, esses estudos deram atenção às mobilizações de grande repercussão política, como foi o caso das “Marchas da Família com Deus pela Liberdade”, no início dos anos 1960 (Simões, 1985SIMÕES, Solange de Deus. Deus, pátria e família: as mulheres no golpe de 1964. Petrópolis: Vozes, 1985.; Sestini, 2008SESTINI, Dharana Pérola. A “mulher brasileira” em ação: motivações e imperativos para o golpe militar de 1964. 2008. 132 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.; Cordeiro, 2009CORDEIRO, Janaina Martins. Direitas em movimento: a campanha da mulher pela democracia e a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2009.; Presot, 2010PRESOT, Aline. Celebrando a “Revolução”: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de 1964. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.). Evidenciaram o importante papel que as mulheres tiveram nas ações que levaram à derrocada do governo de João Goulart e sua mobilização política nas organizações de base.

Boa parte das associações femininas pesquisadas por essas historiadoras teve seu nascimento nos principais centros urbanos do Brasil e no contexto de radicalização das posições políticas durante o governo de João Goulart. Para Dharana Pérola Sestini (2008SESTINI, Dharana Pérola. A “mulher brasileira” em ação: motivações e imperativos para o golpe militar de 1964. 2008. 132 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.), organizações como a União Cívica Feminina de São Paulo (UCF-SP), a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), do Rio de Janeiro, e a Liga da Mulher Democrática (Limde), de Belo Horizonte, foram organizadas e patrocinadas pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) com o intuito de desestabilizar o governo de João Goulart. Essas associações tiveram o apoio da Igreja Católica, do setor empresarial, de políticos e dos militares. Inspiradas na Doutrina de Segurança Nacional, criada pela Escola Superior de Guerra (ESG), essas associações fizeram uma forte campanha anticomunista, levantaram a bandeira dos valores cristãos da família, da pátria e da nação. A primeira Marcha foi em São Paulo e, depois dela, outras manifestações ocorreram em todo o país com o mesmo propósito (Presot, 2010PRESOT, Aline. Celebrando a “Revolução”: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o golpe de 1964. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.). Em Curitiba, ao contrário da maioria dessas manifestações, como veremos, a mobilização teve como mote o ensino.

Ao analisarmos essa historiografia, percebemos que a participação das mulheres deu-se, de forma mais intensa, no momento pré-Golpe e apenas nos primeiros anos da ditadura militar. Já a relação entre as associações femininas e o governo militar, durante a ditadura, foi pouco pesquisada.

Neste artigo, propomos a ampliação do foco de análise das associações femininas e sua relação com o regime militar. Nossa intenção é demonstrar que o apoio dessas associações aos militares se deu no momento do Golpe, em 1964, com as mobilizações em grande escala, e continuou com a promoção de atividades como o civismo. A mudança de estratégia tinha a intenção de consolidar as bases de apoio social para a manutenção da ditadura militar. Neste artigo, analisaremos a participação política da União Cívica Feminina Paranaense (UCF-PR) e suas estratégias, ao longo da ditadura, para a promoção de valores morais e cívicos em consonância com a ditadura militar.

A UCF e a promoção do civismo

Em novembro de 1963, uma reunião de mulheres, em Curitiba, decidiu pela criação da UCF-PR, inspirada na UCF-SP. Um de seus princípios, segundo o estatuto da instituição, era promover a educação cultural, moral e cívica da sociedade dentro das normas da civilização cristã.1 1 Estatuto da União Cívica Feminina Paranaense. Curitiba, 1963. A UCF-PR reuniu mulheres das classes mais abastadas de Curitiba e foi dirigida por Rosy Pinheiro Lima e Dalila de Castro Lacerda.

Rosy Pinheiro Lima (1914-2002) nasceu em Paris, França. Em Curitiba, estudou no Ginásio Paranaense e no Colégio Nossa Senhora de Lurdes, uma importante instituição católica de formação das elites curitibanas (Nicolas, 1954NICOLAS, Maria. Cem anos de vida parlamentar: deputados provinciais e estaduais do Paraná. Curitiba: [S.l.], 1954.: 459). Formou-se em bacharel em direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e fundou, em 1933, o Centro Paranaense Feminino de Cultura (CPFC), importante espaço de participação política e social feminina que contava com a presença de mulheres da elite de Curitiba.

As participantes do CPFC eram esposas de líderes políticos, de oficiais militares, de empresários e industriais. É interessante notar que o Centro investia no processo de emancipação intelectual, artística e moral da mulher ao mesmo tempo que fortalecia o modelo de feminilidade e de mulher devotada à família e ao lar (Seixas, 2011SEIXAS, Larissa Selhorst. “O feminismo no bom sentido”: o Centro Paranaense Feminino de Cultura e o lugar das mulheres no mundo público (Curitiba, 1933-1958). 2011. 141 f. Dissertação (Mestrado em História) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.). Eram mulheres que dominavam as letras e divulgavam sua produção intelectual em revistas criadas pela própria associação para dar base a seus conhecimentos. Boa parte dessa produção abordava a história da cidade, elementos que exaltavam os símbolos nacionais, como a bandeira, e o papel das mulheres na educação dos filhos e na condução da família.2 2 CPFC. Panorama Cultural. Comemoração de seu Jubileu de Ouro 1933-1983. Curitiba, 1983. p. 8.

Rosy Pinheiro Lima, além de doutorar-se em direito,3 3 A tese “A mãe e o direito civil” foi publicada pelo Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, em 1937. atuou como advogada na área do direito civil da família e assumiu, em 1945, a secretaria da UDN e o Departamento Social do partido, em Curitiba. Pela UDN, foi eleita para a Assembleia Legislativa, tornando-se a primeira mulher a assumir um cargo de deputada estadual. Nos anos 1960, como representante da Camde, fundou associações cívicas femininas no Paraná, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Organizou as manifestações públicas contra João Goulart e articulou as associações femininas e cristãs para apoiarem os militares. Para Rosy Pinheiro Lima, a Marcha realizada em Curitiba, diferentemente das que ocorreram em São Paulo, foi contra a tentativa de intervenção do governo, com a implantação de livros nas escolas públicas e privadas.

Dalila de Castro Lacerda (1909-2004) era filha de militar e membro de uma tradicional família paranaense. Ela nasceu em Ponta Grossa (PR) e foi casada com Flávio Suplicy de Lacerda. Na década de 1960, o esposo assumiu a reitoria da UFPR e, logo após o Golpe, foi nomeado ministro da Educação e ficou conhecido como o defensor do ensino de moral e civismo nas escolas. Em 1953, a convite do bispo de Curitiba, Dalila participou da criação da Liga das Senhoras Católicas (LSC). Essa associação surgiu no contexto de crescimento urbano e industrial e de expansão do comunismo. Por essa razão, a Igreja incentivou a criação de grupos de mulheres com o intuito de fortalecer os ideais cristãos e combater o avanço das ideologias revolucionárias e as mudanças da vida moderna. O medo do comunismo fez a Igreja defender a política da ordem, da sociedade perfeita, do não radicalismo e da obediência. Por isso, convocou as mulheres para formarem associações femininas cristãs.

A UCF-PR foi o ponto de interseção entre as mulheres que participavam do CFPC e da LSC, arregimentando mulheres dessas associações e de outras associações cristãs. Elas organizavam seu tempo, entre o trabalho e o lar, para realizarem atividades de natureza filantrópica. Tinham capacidade de mobilizar seus pares, principalmente as lideranças políticas, para captar recursos que financiavam a maior parte das atividades que realizavam. Durante a ditadura militar, uma parcela desses recursos provinha dos parlamentares paranaenses em Brasília.4 4 Ofício do Gabinete do 4o secretário da Câmara dos Deputados. Centro Paranaense Feminino de Cultura. Deputado Alípio Carvalho. Brasília, 1971; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado Braga Ramos, 1978; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado federal Paulo Pimentel, 1988; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do Rio Branco 1717. Senador Afonso Camargo, 1982; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado Braga Ramos, 1979. A trajetória dessas mulheres foi marcada por uma firme inserção no espaço público, por seu desempenho intelectual e formador de opinião e, sem dúvida, pela defesa do comportamento moral, em particular aqueles referentes ao papel da mulher como esposa e mãe de família.

A UCF-PR atuou praticamente durante todo o período do regime militar e exerceu atividades públicas em diferentes áreas. Uma delas era a educação. Por meio dela, buscou-se formar cidadãos cumpridores das normas, das leis e aptos para o trabalho. As atividades voltadas para a formação profissional desejavam formar, além de mão de obra, bons pais, homens provedores da família e zelosos no cuidado com os filhos. Elas também afastavam os jovens do uso de entorpecentes. Como pano de fundo, a educação para o trabalho visava a indivíduos comprometidos com os laços familiares e cônscios dos deveres de cidadão.

Uma maneira de fortalecer esses valores era pela promoção do civismo com a valorização dos símbolos pátrios, sobretudo nas instituições públicas de ensino. Para as mulheres da UCF-PR, a escola, além de ser um importante instrumento de agregação social, era vista como um espaço propício para disseminar o sentimento patriótico. Nesse sentido, apoiar e promover atividades, entre os alunos, sobre a temática da pátria era a maneira segura de aproximá-los, cada vez mais, da vida militar. Era uma forma de criar um vínculo entre o Exército, o povo e a nação.

Foi essa a proposta do concurso de redação sobre o Dia do Soldado realizado nas escolas, promovido pelos militares da 5a RM/DI, em parceria com a UCF-PR.5 5 A 5a RM/DI foi o braço do Exército brasileiro no Paraná. Garantiu o sucesso do levante dos militares contra João Goulart na região Sul. Serviu como barreira às resistências que poderiam surgir a partir do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Objetivava incentivar na juventude o respeito e a celebração das datas cívicas nacionais.6 6 UCF-PR. 1o Concurso de redação sobre o Dia do Soldado. Curitiba, 1966. O evento contou com o apoio das secretarias de Educação e mobilizou os alunos para a produção de textos que expressassem a importância do Exército para o país. A estratégia pode ser entendida como uma maneira de distanciar os alunos dos problemas políticos do país usando conteúdos que valorizavam os símbolos nacionais e a idealização da nação. As datas cívicas, quando promovidas entre os mais jovens, articulavam vínculos sociais e reforçavam na memória o elo com o passado nacional.

As atividades organizadas pelas mulheres da UCF-PR também incluíam a distribuição, nas escolas, de símbolos nacionais e de livros com os conteúdos voltados para o mesmo tema. Entre estes, a bandeira nacional e cópias do Hino Nacional eram recorrentes por serem consagrados como as representações da identidade nacional.7 7 UCF-PR. Relatório de atividades. Curitiba. UCF, 1972. 3 p. A doação desse material era acompanhada de palestras instrutivas aos estudantes sobre o modo adequado de se comportar no ritual de hasteamento da bandeira e na hora de cantar o Hino Nacional. Uma formalidade que exigia do aluno reverência, postura corporal e disciplina.

Ao mesmo tempo que organizava essas atividades, a UCF-PR era convidada, pelo governo do Paraná, para compor a comissão organizadora dos eventos comemorativos do sesquicentenário da Independência. As mulheres organizaram vigílias em solenidade aos restos mortais de d. Pedro I, que esteve em passagem por Curitiba em 1972. O evento, em pleno momento de repressão e de censura, foi marcado pelo clima de comoção e de ufanismo. D. Pedro I era aclamado herói da Independência, e sua imagem, naquele momento, emergiu como configuração simbólica de valorização do sentimento cívico.

Uma das ações de maior destaque da UCF-PR foi, em 1964, a organização e a condução das manifestações públicas contra o Executivo federal. Arregimentou lideranças políticas, econômicas e religiosas, como os empresários da Associação Comercial do Paraná (Acopa), os religiosos da ala tradicional da Igreja Católica, os políticos da UDN e do Partido Democrático Cristão (PDC) para formar, juntamente com os militares, a oposição a João Goulart. A ação culminou em uma movimentação popular conhecida como “Marcha a Favor do Ensino Livre”.

Mulheres nas ruas: a Marcha a Favor do Ensino Livre

A conjuntura política de 1961 foi marcada por incertezas entre o setor empresarial. Na época, o diretor da Acopa, Oscar Schrape Sobrinho, que também era o proprietário das Impressões Paranaenses e o líder do Sindicato das Indústrias Gráficas, via com preocupação a posse do presidente João Goulart. O motivo era o receio que havia entre os empresários em relação às teorias marxistas sobre a produção. Para eles, a implantação dessa ideia no Brasil faria do Estado o árbitro dos negócios econômicos, travando a livre-iniciativa, a concorrência e a liberdade de pensamento. Por essa razão, a Associação Comercial fez campanhas contra o comunismo e deu apoio financeiro às atividades educativas de caráter anticomunista.

Essa ação aproximou a Acopa do Ipes. Cogitou-se a possibilidade de se criar uma sede do Instituto no Paraná para cuidar da formação dos empresários e abordar temáticas não somente sobre a dimensão econômica, mas também sobre questões políticas que naquele momento eram consideradas pelo setor como impasse para o desenvolvimento do país (Oliveira, 2004OLIVEIRA, Marcus Roberto de. A ofensiva conservadora na crise do populismo brasileiro: uma análise da coalizão anti-Goulart em Curitiba-PR (1961-1964). 2004. 78 f. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004.: 33). Com a liderança da UCF-PR, a associação organizou a Marcha a Favor do Ensino Livre, a versão, em Curitiba, da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. A partir da orientação liberal, o discurso da Acopa baseava-se na livre-iniciativa com a defesa das liberdades individuais, entre elas a liberdade religiosa e a de expressão, mas, como pano de fundo, estava em jogo o livre-mercado.

Na tarde do dia 24 de março de 1964, a multidão concentrou-se no centro da capital e dirigiu-se até o palácio do governo para protestar contra o “livro comunista” nas escolas. Provavelmente, era uma tarde fria e nublada, típica dos dias de outono, em Curitiba. Aproximadamente 30 mil pessoas reuniram-se munidas de cartazes, faixas com dizeres do tipo “Só queremos um livro - a Constituição do Brasil”.8 8 Povo e governo do Paraná: liberdade do ensino. Panorama, Curitiba, ano XIV, n. 142, mar. 1964. Com o terço e guarda-chuva nas mãos, mulheres, homens e jovens percorreram as ruas do centro da capital gritando palavras de ordem a favor da democracia, da família e contra João Goulart.

Diferentemente do que ocorreu em São Paulo, a Marcha em Curitiba tinha como mote a oposição ao projeto do Ministério da Educação (MEC) de criar um livro único nas escolas públicas e privadas. Sobre a manifestação, a imprensa expressou o seguinte:

Não foram, apenas, 30 mil pessoas [que] participaram da grande manifestação coletiva, defronte ao Palácio Iguaçu, contra a estatização do ensino e de livros didáticos passíveis de críticas democráticas. […] Entendemos, realmente, que toda a imagem [da] população da Capital esteve, indiretamente, tomando parte nesse acontecimento. Não fossem impedimentos pessoais de milhares de conterrâneos, certamente, o número seria, acentuadamente, elevado, porque a índole da gente desta cidade se inclinou, batendo palmas, à iniciativa oportuna e meritória. Os curitibanos não se expressaram, tão somente, contra a encampação dos colégios particulares e contra o livro único. Rebelaram-se, notadamente, contra o sentido dessas medidas, que representam forma de garrotear a liberdade, num de seus pontos mais sensíveis: a formação cultural da mocidade. Com uma só escola, encampada que fossem os estabelecimentos, não teríamos direito de opção, de escola, mas aprenderiam as gerações jovens, somente, o que fosse do interesse dos senhores do Estado. Seria a precipitação pelos caminhos diversos de nossa índole e a desassistência integral aos nossos pendores cristãos, pelo que, visivelmente, chegaria num futuro bem próximo.9 9 A passeata. Gazeta do Povo, Curitiba, 25 mar. 1964.

Como podemos notar, a matéria dá ênfase nos principais elementos da pauta da UCF-PR e das instituições cívicas envolvidas nas manifestações públicas. Entre esses grupos, havia o receio da estatização. O avanço da agenda reformista do governo causou certa insegurança em alguns segmentos da sociedade, uma vez que vislumbraram em tais propostas mecanismos de controle por parte do Estado. O processo seria, para os segmentos mais conservadores, impasse para a livre-concorrência no mercado. O medo da estatização decorria também do fato de o Estado poder interferir na vida dos indivíduos, comprometer a organização familiar e orientar a sociedade para a laicidade total.

Outro elemento que estava em pauta era a liberdade. Essa era uma ideia atrelada à leitura do liberalismo clássico feita por esses movimentos. Defendiam-se, no caso, as liberdades individual e religiosa. Em um país em que a história fora profundamente marcada pela tradição religiosa arraigada no catolicismo, era inconcebível por parte das associações civis femininas a ideia de não poder expressar um credo, uma vez que se acreditava que o comunista não professava nenhuma crença e não respeitava os valores do catolicismo referentes à família e à ordem.

Outro receio das elites era a encampação das escolas privadas. Acreditavam que o governo federal iria se apossar das instituições privadas de ensino, fazendo delas um ponto de ensino e de ideologização comunista.10 10 Reforma sim, mas não subversão: a palavra do episcopado do Paraná. Gazeta do Povo, 21 mar. 1964. O fato desagradou não somente os pais de alunos, que, na ocasião, organizaram-se nas associações de pais e mestres, como o chefe da Igreja na capital, o arcebispo d. Manuel da Silveira d’Elboux. O arcebispo não tardou em incentivar as instituições da Igreja a engrossarem o coro dos descontes, que, juntamente com as mulheres da UCF-PR, saíram às ruas da cidade.

Também para o mercado gráfico, a proposta do governo causaria problemas. Esse era o segmento econômico mais interessado em que o projeto do MEC sobre o livro didático não fosse aprovado pela população. A Revista Panorama, de propriedade do empresário Oscar Schrape Sobrinho, publicou uma matéria sobre a “encampação”, abordando aspectos que considerava nocivos à juventude. Segundo a matéria:

Encampadas as escolas virá a doutrinação. Virão os livros únicos, os professores autômatos, a juventude teleguiada - feita manada, massa amorfa. Disto está convencida a opinião pública que repele e repudia os propósitos e as manobras comunizantes do ensino em nossas escolas. É lamentável que o Ministério da Educação, de quem depende a formação da nossa juventude, aprove e favoreça tais propósitos, inclusive divulgando e mandando adotar como livro único de História um compêndio em que a figura imortal de Caxias aparece como “defensor de oligarquias e latifúndio”.11 11 Povo e governo do Paraná: liberdade do ensino. Op. cit.

Cabe salientar que, em Curitiba, boa parcela das escolas privadas pertencia às instituições católicas. Era uma rede de ensino responsável pela formação dos jovens filhos da classe média e das elites curitibanas. Há indícios de que as manifestações públicas contrárias a João Goulart eram também encabeçadas pelas associações de pais e ex-alunos dessas escolas, em concordância com as lideranças religiosas e com apoio do arcebispo. O medo era de que o Estado pudesse controlar essas instituições e iniciar um processo de ideologização com a inculcação de valores contrários ao catolicismo. Mais ainda, colocava-se em risco, de acordo com o que se pensava na época, a autonomia das escolas privadas e se causariam problemas para o mercado da área.

Fica clara a recusa à noção de interferência do Estado quando este afetava os interesses econômicos na área da educação e da indústria gráfica. Isso foi feito de maneira que as pessoas percebessem as consequências dos erros como fruto do próprio governo. Por essa razão, sua análise não aprofundada dos fatos parte do pressuposto da ameaça e do medo, como se toda a sociedade, a partir da inserção do Estado na vida cotidiana, pudesse se tornar a instância máxima para responder às necessidades impostas pelo governo.

Outros jornais também discutiam o assunto ao seguir duas frentes. Uma se preocupava em relação ao conteúdo, considerado ideologicamente a favor do governo, e outra levava em conta os custos da educação, que limitavam o acesso dos alunos mais pobres ao ensino:

A medida é considerada, com justa razão, como de cunho nitidamente comuno-nazifascista. […] o decreto é perigoso de ser aplicado porque a comissão encarregada de editá-los deverá preparar os textos com a posição ideológica dominante no governo, como ocorrido com outras comissões que editam livros oficiais.

[…] se a comissão resolver editar os livros com o único objetivo de levar aos alunos conhecimento e colocar um ponto final nos preços elevados, proibitivos a muitos e promover o barateamento do ensino proibindo a substituição dos livros adotados, então o governo terá alcançado uma vitória […].12 12 Livros didáticos: decreto do governo. Voz do Paraná, Curitiba, 1o mar. 1964.

As críticas eram direcionadas à comissão criada pelo governo de João Goulart para analisar e selecionar os livros didáticos. Nota-se que havia uma preocupação em relação aos conteúdos que seriam ensinados aos estudantes das instituições escolares, pois eles refletiam questões de caráter ideológico e político. No entanto, as críticas deixam transparecer a situação da educação e do ensino no Brasil em razão dos altos custos e da falta de acesso de muitos jovens ao ensino, que privilegiava apenas alguns setores e garantia o lucro da indústria gráfica.

Para sanar essa desigualdade, o governo de Goulart promoveu a democratização do livro didático, que foi incluído no projeto de reforma do ensino apresentado no 1o Plano Nacional de Educação, elaborado em 1962 por Anísio Teixeira. Visava, entre outros fatores, a enfrentar os problemas na educação. Seu foco era o do aumento dos investimentos na área para ampliar o número de matrículas e o acesso das crianças à escola, garantir aos jovens o acesso ao ensino profissional e qualificar tanto as instituições de ensino quanto os professores em sala de aula.

Essa perspectiva provocou reações entre as elites, os grupos conservadores e os setores da área do ensino privado. Sobre o “livro único”, vale uma ressalva. O livro de história fora escrito por Nelson Werneck Sodré, provavelmente a partir de seus cursos no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Recontava o processo de formação da sociedade brasileira contrariando os mitos da história tradicional. Tal história pautava-se por uma perspectiva linear de tempo, em que os grandes nomes emergiam como ilustres figuras construtoras da identidade nacional.

A proposta de Sodré era a de apresentar as transformações políticas e econômicas da sociedade brasileira. Deslocou, de forma didática, o olhar para os problemas brasileiros, priorizando uma visão materialista, com ênfase na perspectiva econômica. Nela, os grupos hegemônicos e as oligarquias representavam um impasse para o desenvolvimento social do país. Por isso sua crítica às grandes figuras da história do país.

Ao deslocar a análise para uma base materialista, os processos e as tensões eram o foco da análise do historiador. Não diferente da visão tradicional de história, também estabeleceu uma temporalidade linear para a história do Brasil, com processos que começavam com a colonização, o Império, até chegar ao período republicano. Nessa lógica, o olhar para o escravo, para o colonizado e para o trabalhador lutando contra as grandes forças hegemônicas importava mais nessa concepção de história.

Os protestos contra o “livro único” foram uma das estratégias das elites para desviar a atenção e evitar os debates públicos para o problema mais amplo da educação brasileira. O país tinha índices baixíssimos de matrículas para crianças em idade escolar, e a maioria dos jovens estava fora do ensino médio.13 13 Na época, de acordo com os dados da FGV Cpdoc, apenas 46% das crianças até 11 anos de idade estavam matriculadas. O índice de analfabetismo era grande, sem contar o ensino superior: apenas 1% da população frequentava os bancos das universidades.

As associações cívicas femininas, para quem a valorização dos símbolos da pátria e da nação era formas de agregar os cidadãos, entenderam a proposta de história como uma afronta aos símbolos, heróis e espaços responsáveis pela consolidação da história nacional. Dessa maneira, entende-se a reação da UCF-PR quando os nomes consagrados da história oficial, como os da princesa Isabel, de Duque de Caxias e do marechal Deodoro, foram “profanados” e retirados do panteão dos heróis.

A ascensão dos militares ao poder significou alívio para as associações responsáveis pela organização das Marchas. A princípio, respondeu aos interesses das elites empresariais e políticas, das classes médias urbanas atuantes nas mobilizações públicas. A intervenção das Forças Armadas foi saudada por esses segmentos, e a imprensa não tardou em publicar matérias com a participação da população, mas com destaque para a liderança das mulheres, importante para a efetivação do Golpe. O jornal católico Voz do Paraná publicou a seguinte matéria:

Aquele mar humano formou-se espontaneamente, pelo natural desembocar de afluentes vários, surgidos nas mais diversas fontes. E formou-se de súbito, quase por milagre, ao simples apelo de um grupo de mulheres e organizações femininas que percebiam com extrema argúcia o sentimento do povo.14 14 A resposta do povo. Voz do Paraná, Curitiba, domingo, n. 402, 29 mar. 1964.

É interessante notar que a matéria apresenta o ato público da Marcha como um evento espontâneo, quase de inspiração divina, como milagre, uma espécie de ação transcendente que denota aprovação espiritual. Uma maneira de dizer que Deus estava a favor do povo nas ruas; portanto, uma forma legítima de ação. Embora considerasse o papel das mulheres importante, a referência que faz ao apelo delas pelo movimento deixa expressa a ideia de que sua ação caracterizou-se como algo sem pretensões, no sentido do desprendimento.

Aqui, acreditamos ser possível fazer uma ligação com a visão da mulher como portadora de elementos considerados intrínsecos à natureza feminina, como o cuidado e a sensibilidade diante dos problemas causadores de sofrimento, valores disseminados pela tradição católica. A Marcha apenas consagrou tais sentimentos (Sestini, 2008SESTINI, Dharana Pérola. A “mulher brasileira” em ação: motivações e imperativos para o golpe militar de 1964. 2008. 132 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.). As mulheres estavam cientes de suas obrigações para com o lar, contribuindo para o desenvolvimento da nação sem, contudo, ameaçar a ordem familiar ou perder as virtudes e os papéis sociais a ela atribuídos.

As mulheres da UCF-PR e a consolidação da ditadura militar

Logo após o Golpe, a preocupação da UCF-PR mudou para a promoção de atividades informativas e de esclarecimento sobre a intervenção das Forças Armadas. A associação, em solidariedade com os demais movimentos femininos, enviou uma nota favorável à escolha do general Humberto de Alencar Castelo Branco à Presidência da República. Do mesmo modo, não tardou em solicitar a aprovação de leis para combater, com eficácia, o comunismo. Foi mobilizando a imagem da família como núcleo formador da sociedade, o valor moral feminino como reduto da bondade, o apego aos sentimentos pátrios de amor à nação e a seus símbolos que as mulheres conseguiram adesão e apoio da população a seu movimento.

Os setores da sociedade dos quais emergiram os protestos anti-Goulart tinham a consciência desses aspectos políticos do país. Em particular as mulheres, que, movidas por um sentimento de amor e de proteção, sentiram-se responsáveis pela condução dos rumos da nação. Munidas de um patriotismo, muitas vezes alavancado pelo apego aos símbolos nacionais, e de um sentimento religioso católico arraigado em uma concepção tradicional de família, as mulheres dividiam suas ações entre o espaço do lar e o da ação política. As mulheres, em muitos casos irmãs, esposas ou filhas de lideranças políticas, de militares ou de representantes do setor empresarial, assumiram a frente das manifestações públicas, conseguindo a participação de um número grande de pessoas, unidas pelo símbolo religioso do rosário.

Elas transportaram para a vida pública os cuidados considerados próprios do espaço privado da família e do lar. Nessa perspectiva, uma das motivações refere-se à convicção religiosa. Consolidou-se um sentimento de patriotismo que fortaleceu, pela via do símbolo religioso do rosário, um mecanismo de defesa, de proteção ou de cuidado, sentimentos associados ao universo feminino.

Não há dúvidas de que a tomada do poder pelos militares fora recebida com entusiasmo pelas associações cívicas femininas. Elas se empenharam na mobilização da população por meio de passeatas e de marchas, em defesa da família, pelas ruas das cidades do país. O intuito não era outro senão a desestabilização do governo do presidente João Goulart para abrir caminhos à intervenção das Forças Armadas na política com o Golpe já arquitetado pelos militares e pelas lideranças civis dos partidos políticos, como a UDN, pela grande imprensa e pelo segmento empresarial.

Para tanto, uma série de atividades, palestras e ações públicas foi realizada, objetivando o esclarecimento das pessoas acerca da importância do papel dos militares no processo de regeneração da nação. Em Curitiba, a UCF-PR promoveu debates, conferências cívicas e palestras proferidas por líderes políticos e parlamentares conhecidos por seu anticomunismo e seu combate às esquerdas. Um desses convidados foi o deputado federal pelo Partido Social Democrático (PSD), Armando Falcão. À época, o parlamentar declarou-se abertamente contrário à posse de João Goulart na Presidência da República, além de ter sido um importante aliado dos militares. Segundo o relatório da UCF-PR:

No seu primeiro ano de existência atuou intensamente a favor do Governo Revolucionário, ora reunindo as entidades democráticas do Paraná para um apelo a uma ação conjunta, ora promovendo conferências cívicas no grande auditório em fase de construção do Teatro Guaíra (lotado), trazendo oradores como os então deputados Armando Falcão e João Calmon. O atual ministro Ney Braga era governador do estado, e Ivo Arzúa Pereira, o prefeito, ambos a dar-lhe inteiro apoio.15 15 UCF Paranaense. Paranaense: o que é o que faz?. Diário do Paraná, Curitiba, 14 nov. 1975.

Nas conferências, Armando Falcão exortava a ação dos militares na defesa de uma nação que se achava à beira do abismo com o governo de Goulart. Enalteceu a atitude das Forças Armadas, julgando-a necessária para levar adiante a revolução que salvaria o país do caos e da anarquia, promovidos pelos agentes internos comunistas presentes em toda a sociedade. Além disso, defendeu a prisão dos subversivos - para ele, os verdadeiros inimigos da democracia - como solução para preservar os interesses da nação e as instituições políticas.

A visão de que o país caminhava mesmo para um abismo, pela decadência política e moral, era compartilhada pelas lideranças religiosas mais conservadoras da Igreja Católica, por alguns políticos e, mais ainda, pelas mulheres da UCF-PR, que insistiam, assim como fazia a grande imprensa, na presença de comunistas nas diferentes esferas do governo, corrompendo o país e causando danos às liberdades democráticas (Napolitano, 2014NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.). Com a intenção de eliminar da administração pública e do governo esse perigo, a União Cívica enviou uma nota de expurgo ao presidente da República em exercício, Ranieri Mazzili, que, naquele momento, era deputado federal pelo PSD paulista.

Em 1964, Mazzili presidia a Câmara dos Deputados federais e, de acordo com a Constituição, era o próximo na linha de sucessão para assumir a Presidência da República. Na madrugada do dia 2 de abril de 1964, após João Goulart ter sido deposto, Mazzili assumiu interinamente o cargo de presidente da República. No entanto, seu poder era apenas formal, pois o controle do país estava, na verdade, nas mãos do autodenominado Comando Supremo da Revolução. Respeitando a burocracia política e a hierarquia na sucessão do poder, as mulheres enviaram a nota, apoiada por outras associações femininas de Curitiba, que cobrava das autoridades a eliminação dos comunistas do Brasil. O texto afirmava que:

Nesta hora de grave e dramática do Brasil, recolocados pelas gloriosas Forças Armadas no caminho das liberdades fundamentais, espera de Vossa Excelência no sentido de prosseguir incansavelmente expurgo postos e cargos administrativos todos os maus brasileiros comprometidos com a corrupção e comunismo. Lembramos a Vossa Excelência, ainda, escolha os seus auxiliares e ministros processar-se comum acordo com as forças responsáveis pela volta do Brasil à liberdade e da democracia.16 16 CPFC Livro de Ouro (1968-1991). Relatos, fotografias, recortes de jornais e revistas. [19-], [s.p.].

O discurso enfatizava a necessidade de o governo agir com maior rigidez em relação a seus opositores. A nota também reforçava a crença na capacidade das Forças Armadas em regenerar a sociedade e estabelecer a ordem social, conforme se pensava na época. Cobrava-se uma espécie de limpeza moral e política, começando pela identificação, perseguição e detenção das pessoas consideradas subversivas. Vale ressaltar que as mulheres acreditavam que esse seria o caminho viável para evitar o aprofundamento da crise política, econômica e moral pela qual passava o Brasil nos anos iniciais da década de 1960.

Junta-se a isso a preocupação com a presença dos comunistas, que achavam estar infiltrados no governo e na sociedade, de modo geral. Para tanto, somando-se às associações cívicas de São Paulo e Rio de Janeiro, elas engrossaram o apoio do general Castelo Branco à eleição para a Presidência da República. Cobravam, do mesmo modo, medidas para apressar a aprovação de projetos que condenavam as práticas identificadas como subversivas.

Com esse intuito, enviou-se uma nota ao Congresso Nacional, em nome das mulheres e de toda a sociedade paranaense, a favor dos militares e se posicionando favorável ao combate do comunismo. No texto, elas apoiavam,

[…] incondicionalmente manifestos da União Cívica Feminina Paulista (UCF-SP), a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), apelam ao Congresso Nacional pela eleição do íntegro general Humberto Castelo Branco para a presidência da República assim como pedem urgência na aprovação do projeto de Mendes Morais sobre a repressão ao comunismo.17 17 Ibidem.

Podemos observar que havia, para alguns setores da sociedade, uma reação ou repúdio às forças políticas e morais que afetavam o funcionamento e a ordem no país. Partiam, portanto, do pressuposto de que o problema seria solucionado na medida em que esse mal fosse, pela repressão, expurgado do Brasil. O próprio termo “expurgar” denotava não somente uma ideia de eliminação, mesmo pelo uso da violência; fazia uma referência negativa àquele que, dotado de impureza, precisava ser removido do convívio social para preservar a pureza do grupo. Tal postura fica evidente quando outra imagem, positiva e possuidora de integridade, era oferecida agora na figura de um militar como alternativa para o enfrentamento do mal.

O texto demonstra ainda que os militares dificilmente encontrariam obstáculos, em alguns segmentos da sociedade no que se refere à intervenção. As notas de apoio enviadas ao Congresso Nacional e aos militares deixavam claro o apoio às Forças Armadas. Desejavam, inclusive, que o governo promulgasse leis capazes de frear o avanço de grupos ou pessoas considerados nocivos à sociedade.

Observa-se tal visão na defesa da censura nas artes. Embora outras formas de cerceamento tivessem ocorrido na imprensa, por exemplo, as mulheres da UCF-PR centraram sua ação no combate ao que consideravam imoralidade no teatro, sobretudo no momento em que os textos dramáticos passaram a abordar e a tomar como referência a crítica aos padrões de comportamento aceitos como normas pela sociedade.

Para as mulheres, o teatro nacional estava se tornando um veículo inicial e condutor da desagregação pela institucionalização, pela arte cênica, da pornografia e da lascívia.18 18 Ibidem. Por isso, fizeram campanhas na imprensa para proibir a apresentação de peças e de espetáculos considerados nocivos à sociedade e à família.19 19 Censura corta os imorais. Gazeta do Povo, nov. 1967. Na ótica das mulheres, a pornografia não passava de um sintoma de subversão social, sendo o fator responsável pela degeneração cultural do Brasil.

Para elas, a tarefa do Estado não seria outra senão a de tomar todas as medidas necessárias para que fossem preservados os valores de matriz católica, a democracia, o direito, a lei. Somente dessa maneira seria possível a consolidação de uma nação saudável, harmônica e de respeito às instituições sociais. Nota-se a manifestação do desejo de se prolongar, de forma mais rígida e eficaz, o processo de limpeza política e moral iniciado em 1964. As associações cívicas femininas foram favoráveis a esse processo, dele participando vigilantes, com apreço pela ordem social.

O regime deve continuar: as mulheres, o silêncio sobre a violência e a distensão política

A intervenção militar foi necessária para salvaguardar a democracia e a nação, protegendo-as daqueles que tentavam usurpá-las. Tal tendência traçou uma compreensão dos grupos que apoiaram os militares apenas como agentes mobilizadores das massas, o caso das “Marchas” - importantes porque se configuraram em campos de disputas simbólicas e de visões políticas pautadas por uma postura conservadora de mundo -, e não levou em consideração o fato de esses segmentos sociais e indivíduos, de forma espontânea, terem, no decorrer da ditadura, uma participação política mais ativa em prol da defesa do governo militar.

Uma dessas práticas pode ser observada quando o país dava os primeiros sinais de abertura política. Preocupada com o futuro do regime, Dalila de Castro Lacerda divulgou uma circular às mulheres da União Cívica, convocando-as, mais uma vez, a apoiarem o regime militar. Eis o conteúdo da carta:

Ao comemorarmos o Ano Internacional da Mulher, é justo que levantemos nossas vozes em defesa da Família, da qual somos parte insubstituível.

A hora presente é grave para toda a humanidade. E, embora desfrutemos em nosso País um clima de aparente tranquilidade, não podemos deixar de expressar a nossa grande preocupação diante dos acontecimentos que se sucedem.

Como decorrência da crise internacional, vemos e sentimos o reflexo na economia dos nossos lares, o que propicia justificada aflição a todos quantos dependem do seu trabalho para o sustento de suas famílias, mormente os de menor poder aquisitivo.

O próximo dia 31 de março registra o 12o aniversário da Revolução Brasileira, resultante da reação popular contra a subversão e a improbidade implantadas no País, estimuladas e alimentadas pelo governo de então.

Nos idos de 1964 saímos às ruas, em quase todas as cidades brasileiras, em protesto ao descalabro, clamando aos Céus pela salvação do Brasil que caminhava precipitadamente para o caos.

A memória popular é efêmera e o seu juízo complacente. Daí, porque, [sic] decorridos 12 anos, caírem no esquecimento os erros, os crimes perpetrados contra o povo, os quais determinaram o movimento revolucionário de 1964.

Bastou o Governo acenar com o processo de distensão e os abusos se evidenciam por todos os rincões da Pátria.

Porque desejamos a Nação realmente livre, para ser desfrutada por todos os compatriotas indistintamente, valemo-nos da oportunidade em que comemoramos o 12o aniversário da Revolução Brasileira, para conclamar todos a unir esforços em favor do bem comum. Por isso, solicitamos a todas as Congêneres da União cívica Feminina Paranaense que promovam campanhas de âmbito municipal, estadual e federal, de modo a reavivar nas mentes de todos os que assistiram o quase desmoronamento da nacionalidade, bem como alertem aos mais jovens, que na época não tinham ainda condições para avaliar a ameaça de que fomos alvo, para se unirem em torno do legítimo representante da Revolução, que é o General Ernesto Geisel, ínclito Presidente da República.

Sugerimos, a exemplo do que já estamos realizando, um trabalho de esclarecimento da população, através das mulheres de todos os níveis sociais e culturais, para [que] se mantenham fiéis aos princípios cristãos que nortearam e orientaram a Revolução de 1964.

Nosso apelo encontra eco no lema adotado este ano pela Igreja para a Campanha da Fraternidade: “Caminhar Juntos”.

Sim, caminharemos juntos, todos os brasileiros sem distinção de credo, sob a proteção de Deus, para construirmos já um país verdadeiramente livre e profundamente humano.

Para tanto, é mister que nos congreguemos dentro desse espírito de união fraterna, repelindo ideologias estranhas, que não condizem com os nossos anseios e Nação independente, democrática e cristã.

Pela União Cívica Feminina Paranaense.

Dalila de Castro Lacerda. (Lacerda, 1976LACERDA, Dalila de Castro. Da União Cívica Paranaense às suas congêneres de todo o Brasil. Curitiba: CPFC, mar. 1976.)

Doze anos após o Golpe, o medo era o de que as forças subversivas pudessem retornar ao país e ameaçar as crenças que tanto preservaram e pelas quais saíram às ruas naqueles dias nebulosos. Havia, segundo Cowan (2014COWAN, Benjamim Arthur. “Nosso terreno”: crise moral, política evangélica e a formação da “nova direita” brasileira. Varia História, Belo Horizonte, v. 30, n. 52, p. 101-125, jan./abr. 2014.), a partir da segunda metade da década de 1970, discursos que circulavam entre alguns segmentos religiosos e políticos da época que diziam que o país estaria entrando em uma espécie de crise de moralidade e que, por isso, era preciso criar mecanismos para barrar os avanços que poderiam surgir com as promessas democráticas.

O documento faz também menção ao general Ernesto Geisel. Lançado como candidato à Presidência em 18 de junho de 1973, Geisel assumiu, um ano depois, a chefia do Executivo federal, no qual permaneceu até 1979. Para Marcos Napolitano (2014NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.: 229-254), seu governo foi marcado por ambiguidades. Anticomunista convicto, fez uso da censura para controlar a oposição. Perseguia opositores de esquerda ao mesmo tempo que patrocinou a indústria cultural, em que uma parte da cultura de esquerda obteve espaço. Durante seu governo, ocorreram mortes violentas de militantes de esquerda, cassações de mandatos políticos e o fechamento do Congresso. Estima-se que 39 opositores do regime foram desaparecidos e 42 foram mortos pela repressão.

A crescente violência do Estado e a limitação à participação política faziam também crescer a oposição ao arbítrio do Estado. Em diferentes setores da sociedade, movimentos políticos organizavam-se, exigindo maior participação política e a retomada do processo democrático. Essa participação de setores da sociedade cobrando liberdade e democracia também elevou a preocupação dos segmentos mais conservadores, que enxergaram no processo os fatores de risco para a manutenção da ordem e da harmonia social, que, para tais setores, haviam sido conquistados a partir de 1964. A carta da senhora Dalila se situa nesse ambiente político nacional, marcado pelo desejo de redemocratização. Novamente, a UCF-PR pretende ser o movimento catalisador das energias que motivaram a participação das mulheres: defesa da família e da pátria sob os cuidados de Deus.

A imagem de Geisel, na lógica da UCF-PR, estava dissociada do arbítrio e da violência que era praticada, na ditadura militar, contra a sociedade. Menciona-se a crise econômica mundial como fator de desarranjo financeiro no país e nas famílias brasileiras, mas não como algo também decorrente do modelo econômico assumido pelos militares, que acelerou o consumo apenas de um setor da sociedade. O fato de não haver referência à violência política não significa que as mulheres das associações, em algum nível, não tinham conhecimento sobre a censura ou sobre a repressão aos opositores da ditadura. Acreditamos que as mulheres da UCF-PR não estavam alheias a essas questões. É possível dizer que, em algum nível, elas conheciam o que estava acontecendo no país em relação à violência praticada pelo Estado.

Um documento encontrado nos arquivos do CPFC é um indício de que algumas informações, no âmbito da política, circulavam entre essas mulheres. Como vimos, elas estabeleciam vínculos com diferentes associações femininas e compartilhavam o mesmo espaço público. O documento contém o discurso proferido pelo líder do MDB, Freitas Nobre, na Câmara dos Deputados Federais, um ano após a cassação do mandato do deputado Alencar Furtado, em 30 de julho de 1977, pelos militares. Esse político exerceu, por três vezes, o mandato de deputado pelo Paraná. Foi também um dos poucos do MDB, partido de oposição à ditadura, a destacar-se como doador de recursos financeiros às associações femininas. Em um telegrama, enviado a uma dessas associações, Alencar Furtado agradeceu o apoio que recebeu em virtude de sua escolha como o líder da bancada de seu partido no Congresso.20 20 Telegrama Centro Paranaense Feminino de Curitiba. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado Alencar Furtado, 1974.

Em relação ao documento, as questões que gostaríamos de destacar referem-se ao processo de cassação de políticos, à violência agravada pela promulgação do AI-5 e à censura política. Ao referir-se a Alencar Furtado, o líder do MDB, Freitas Nobre declarou:

Nascido, politicamente, na esquerda democrática que se organizara à margem da UDN, Alencar Furtado fez de toda sua vida pública um exemplo que não será apagado.

O golpe do AI-5 consagrou-o perante o povo, e os levantamentos de opinião pública realizados por fontes insuspeitas que manuseamos reafirmam o conceito popular e democrático de sua luta.

Não o vemos apenas hoje, como líder sacrificado, mas procuramos nas tradições melhores de nossa história pública. […] Arrancar um líder de suas funções, especialmente numa estrutura bipartidária, é arrancar o coração, a peça nobre, o centro propulsor da nossa vida parlamentar.21 21 Freitas Nobre. Câmara dos Deputados, 1978.

O texto é elucidativo no que diz respeito às configurações políticas do período ditatorial brasileiro. Configurando-se dentro dos inúmeros protestos feitos à opinião pública contra a violência, apresenta uma leitura dos males que as leis arbitrárias como o AI-5 causaram à sociedade e à liberdade de expressão. Como se tratava de uma das associações apoiadas pelo deputado Alencar Furtado, a informação de sua cassação foi do conhecimento das mulheres. Também tiveram notícia do processo de censura que pesava sobre alguns meios de comunicação e a repressão contra os movimentos políticos contrários aos militares.

Janaína Martins Cordeiro (2009CORDEIRO, Janaina Martins. Direitas em movimento: a campanha da mulher pela democracia e a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2009.: 152-164), ao analisar a memória elaborada pelas mulheres da Camde, uma associação que se caracterizou pelo apoio ao Golpe e à ditadura, demonstrou que, a partir das crescentes denúncias sobre a repressão e a violência praticadas contra os opositores do regime, houve uma desilusão, por parte das mulheres dessa associação, com os rumos tomados pela “Revolução de 1964” e um distanciamento delas em relação aos militares. Em seguida, construiu-se outra memória no sentido de desvincular a adesão dessas mulheres aos governos militares.

No caso da UCF-PR, essa relação não se deu apenas em um momento específico durante a ditadura militar. Mesmo após as denúncias de violência e repressão, a União Cívica não deixou de apoiar os militares. Esse apoio à ditadura permaneceu de diferentes maneiras, pelo menos até a década de 1970. Isso ficou perceptível no desejo de mobilização, entre as mulheres da UCF-PR, com o intuito de preservar a presença dos militares no comando do país para evitar a anarquia, o caos e a crise moral. A abertura política representava esse risco.

Conclusão

A formação de associações cívicas foi um desses meios em que a presença das mulheres foi decisiva. No início da década de 1960, surgiram por todo o país uniões cívicas formadas por mulheres de classe média e alta com o intuito de arregimentar mulheres, esposas e mães de família dedicadas para a prática do civismo a partir da promoção do sentimento patriótico. O civismo foi um campo de atuação política das mulheres e um instrumento de ação contra o governo de João Goulart. A retórica da democracia e o discurso da defesa do lar foram um dos elementos, aqui já mencionados, para dar sentido às manifestações públicas das Marchas. Nesse sentido, o civismo apresentou-se como uma arma, um escudo em defesa da nação contra o comunismo.

Outra questão importante foi demonstrada pela análise da documentação. Ela ampliou o olhar sobre a participação das associações femininas para além das mobilizações de mulheres na política em grande escala, tendo sua relevância ao apontar que a relação entre as associações femininas e a ditadura militar deu-se em distintas modalidades. Estas foram motivadas por interesses variados, fossem eles relacionados com a proteção da família e da pátria, fossem eles atrelados à preservação dos valores morais contra todos os comportamentos imorais. As mulheres demonstraram confiança nos militares apoiando um modelo de governo mais centralizador e capaz de impor a ordem.

Por fim, estudar a participação das associações femininas na política durante o contexto da ditadura militar significa entender que ela se deu segundo interesses e visões de mundo compartilhados pelas mulheres. A defesa da família, da religião cristã e da democracia pode ser lida como símbolo mobilizador e catalisador de energia política que deu força aos movimentos que eclodiram na primeira metade da década de 1960 e às ações que reforçaram o apoio aos militares durante a existência do período de exceção no Brasil. Portanto, sua participação foi ativa e dinâmica na medida em que avançava institucionalmente a ditadura militar.

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  • 1
    Estatuto da União Cívica Feminina Paranaense. Curitiba, 1963.
  • 2
    CPFC. Panorama Cultural. Comemoração de seu Jubileu de Ouro 1933-1983. Curitiba, 1983. p. 8.
  • 3
    A tese “A mãe e o direito civil” foi publicada pelo Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, em 1937.
  • 4
    Ofício do Gabinete do 4o secretário da Câmara dos Deputados. Centro Paranaense Feminino de Cultura. Deputado Alípio Carvalho. Brasília, 1971; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado Braga Ramos, 1978; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado federal Paulo Pimentel, 1988; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do Rio Branco 1717. Senador Afonso Camargo, 1982; Telegrama Centro Paranaense Feminino de Cultura. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado Braga Ramos, 1979.
  • 5
    A 5a RM/DI foi o braço do Exército brasileiro no Paraná. Garantiu o sucesso do levante dos militares contra João Goulart na região Sul. Serviu como barreira às resistências que poderiam surgir a partir do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.
  • 6
    UCF-PR. 1o Concurso de redação sobre o Dia do Soldado. Curitiba, 1966.
  • 7
    UCF-PR. Relatório de atividades. Curitiba. UCF, 1972. 3 p.
  • 8
    Povo e governo do Paraná: liberdade do ensino. Panorama, Curitiba, ano XIV, n. 142, mar. 1964.
  • 9
    A passeata. Gazeta do Povo, Curitiba, 25 mar. 1964.
  • 10
    Reforma sim, mas não subversão: a palavra do episcopado do Paraná. Gazeta do Povo, 21 mar. 1964.
  • 11
    Povo e governo do Paraná: liberdade do ensino. Op. cit.
  • 12
    Livros didáticos: decreto do governo. Voz do Paraná, Curitiba, 1o mar. 1964.
  • 13
    Na época, de acordo com os dados da FGV Cpdoc, apenas 46% das crianças até 11 anos de idade estavam matriculadas.
  • 14
    A resposta do povo. Voz do Paraná, Curitiba, domingo, n. 402, 29 mar. 1964.
  • 15
    UCF Paranaense. Paranaense: o que é o que faz?. Diário do Paraná, Curitiba, 14 nov. 1975.
  • 16
    CPFC Livro de Ouro (1968-1991). Relatos, fotografias, recortes de jornais e revistas. [19-], [s.p.].
  • 17
    Ibidem.
  • 18
    Ibidem.
  • 19
    Censura corta os imorais. Gazeta do Povo, nov. 1967.
  • 20
    Telegrama Centro Paranaense Feminino de Curitiba. Visconde do Rio Branco 1717. Deputado Alencar Furtado, 1974.
  • 21
    Freitas Nobre. Câmara dos Deputados, 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Jun 2018
  • Aceito
    10 Set 2018
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