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O fim da memória

The end of memory

ARTIGOS

O fim da memória

The end of memory

Eugenia Meyer

RESUMO

Este artigo, conferência de abertura do XV Congresso da Associação Internacional de História Oral em 2008, discute o contexto político e acadêmico de transformações por que passou o campo historiográfico nas últimas décadas do século XX, para situar a emergência e a afirmação de uma nova metodologia: a história oral. As relações entre as "novas formas de historiar" e os procedimentos da história oral são analisados através da experiência pessoal da autora, que torna sua trajetória profissional uma estratégia para pensar os caminhos percorridos pelos "historiadores orais".

Palavras-chave: memória, história oral, entrevistador e depoente

ABSTRACT

This article, originally the opening conference at the XV Conference of the International Oral History Association in 2008, analyzes the emergence of oral history as a new methodology in a context of political and academic transformations in the last decades of the 20th century. By focusing in the author own professional experience as a strategy to investigate the oral historians trajectory, the article focuses particularly in the relations between the "new forms of historical narratives" and the specific procedures of this methodology.

Key words: memory, oral history, interviewer and interviewed

RÉSUMÉ

Le texte de la conférence d'ouverture du XVème Congrès de l'Association Internationale d'Histoire Orale, qui a eu lieu en 2008, reprend le contexte politique et académique des transformations subies par le champs historiographique aux dernières décennies du XXème siècle, pour situer l'émergence et l'affirmation d'une nouvelle méthodogie: celle de l'histoire orale. Les rapports entre les "nouvelles façons de faire l'histoire" et les procédés de l'histoire orale sont analysés par référence à l'expérience personnelle de l'auteur, qui fait de sa propre histoire professionnelle une stratégie pour penser les chemins parcourus par les "historiens oraux".

Mots-clés: mémoire, histoire orale, interviewer et déposant

Há 40 anos, a vida de muitos de nós se transformou profundamente. Os movimentos estudantis em diversas partes do mundo tornaram obrigatória a reflexão coletiva e a redefinição de valores. Quer fosse em Paris, Praga, Berkeley ou México, com maior ou menor violência, as estruturas do poder foram abaladas, o que impulsionou as novas gerações, pouco inseridas nos processos nacionais, a assumir desafios e definir situações e condições, além de propor um passado diferente.

Comprometido pelas circunstâncias, o discurso histórico teve que mudar, e isso, paradoxalmente, nos faz lembrar do planejamento aristotélico em A retórica, que advertia sobre os três elementos constituintes do discurso: pathos, ligado à emoção, aos sentimentos; logos, à lógica e à razão; e ethos, à ética e à moral.

Desde então nós, os historiadores novatos, formados em tempos infelizes, tivemos que assumir o desafio de redefinir formas e normas já estabelecidas para revolucionar o status quo a partir de palavras de ordem como "É proibido proibir" e "A imaginação no poder". As circunstâncias, a violência e talvez a sensação inicial de derrota frente à brutal repressão obrigaram-nos a buscar caminhos diferentes, e também novos objetivos, dos quais não estivessem ausentes a emoção, a razão e, sobretudo, a ética.

Foram derrubados, também, sem grande alarde, certos princípios incólumes e até estéreis, como o da objetividade, da imparcialidade e, ouso acrescentar, do respeito quase dogmático por formas de historiar que, em última instância, nos pareciam razão fundamental da desumanização da história e dos historiadores, sob a premissa positivista que pretendia deixar de lado os sentimentos, a lógica e até a própria moral para aproximar-se com pinças, lupa e luvas estéreis do objeto histórico.

Não em vão, desde o começo dos anos 1970, muitos historiadores já consagrados fizeram tábua rasa do passado e se lançaram do zero aos oceanos do desconhecido, com a finalidade de dar uma razão de ser à nossa profissão e de reafirmar nosso compromisso social. Já não se tratava de buscar a verdade, mas de atender, escutar e observar as diferentes verdades que provocavam o anseio de compreender a nós mesmos, em nosso duplo desempenho como historiadores e protagonistas.

Assim, com toda a bagagem das teorias e da filosofia da história, além da plêiade heurística, com o desconcerto que nos produzia a enorme e, talvez, caótica produção historiográfica de toda espécie e cor, confundidos pelos "ismos", vimos a imperiosa necessidade de buscar novas formas de estudar o passado, talvez de maneira menos vaidosa, menos ambiciosa; no entanto, mais próxima da compreensão, que, sem deixar de ser "rigorosa e científica", tentasse, pelo menos, ser mais acessível e, por que não, também mais livre.

Todo o sentido de transcendência de que estava dotada a história esquecia, talvez, que o ente histórico é mutável, que se transforma ao longo de sua vida, e que por isso sua forma de ser vai se moldando. Sem outra alternativa, acreditamos que nossas histórias são sempre mutáveis, uma vez que estão submissas a alterações fora de nosso controle, a causas e efeitos determinados por circunstâncias que, mesmo que não nos sejam alheias, certamente não podemos controlar. Por isso, a necessidade de não esquecer fundamentos empíricos que reafirmem, assegurem e justifiquem as pesquisas exaustivas. Trata-se, portanto, de um tipo de revelação que nos permite usar como apoio nossa experiência vital como historiadores.

O historiador precisa de imaginação e inventividade; caso contrário, estará vencido antes mesmo de começar a cruzada. Motivo pelo qual, desde a segunda metade do século passado, com ousadia e coragem, um bom número de aventureiros da história, de forma pontual, gradual, mas nem por isso menos apaixonada e arriscada, nos lançamos à conquista da memória, com o objetivo de abater o esquecimento. Porque de fato, trata-se sempre disso, do esforço de uns e outros, seja nas comemorações, nas celebrações ou nos ritos impostos pelas políticas dominantes. Por isso, também os esforços impetuosos dos governantes para riscar, esquecer, confundir ou manchar parte das histórias que lhes são inconvenientes na construção de seus discursos e suas ideologias.

E o combate pela história obrigou-nos a reconhecer na memória um verdadeiro desafio. Lembrar, evocar, recapitular, fazer presente, trazer à vista as lembranças, o passado longínquo ou próximo, se traduz em armas primordiais contra o esquecimento, nesse esforço fundamental de lutar contra os espectros que sustentam a memória impedida, que tão bem descreveu Fellini em Amarcord.

Ao recuperar essas vivências, podemos analisá-las, interpretá-las e compreendê-las; talvez até perdoá-las. O que não podemos, não devemos, é ignorar as histórias, esquivar-nos do passado, relegar os mortos e seguir caminhando em frente, sem remorsos, livres de toda culpa. Estivemos dispostos a enfrentar empecilhos e surpresas, vencer obstáculos, infâmias, fracassos, venturas e desventuras, para valer-nos de novas formas de ver o mundo, de entender nosso passado e construir o presente.

E na verdade, como dizia Victor Hugo, a vida é um labirinto em que devemos transitar até encontrar a saída. A memória, às vezes, nos trai. Aparentemente não registra ou não quer registrar o que ocorreu, mas vai construindo uma ideia aproximada desse acontecer. Com isso se recuperam formas primitivas da história, como são o mito, com sua própria lógica interna, e a crônica, cuja propriedade, nem sempre a qualidade, relata os fatos do ponto de vista de interesses concretos ou específicos.

E nesse combate permanente, para não esquecer, nos valemos de todo tipo de recursos, inclusive os inventamos, de tal forma que a memória esteja presente e viva para seguir construindo histórias diversas e plurais. A isso é preciso acrescentar a permanente dúvida: qual é a responsabilidade política do historiador? Desentranhar os discursos que têm influência no espaço público e contribuir assim para a democratização das regras narrativas com as quais construímos nossas identidades coletivas?

Simples assim, a isso se resume, em boa medida, a razão pela qual muitos de nós optamos há tanto tempo pelos emissários da história oral. Em cada um dos congressos, seminários ou oficinas em que nos reunimos, em nível internacional, nacional ou local, trazemos ao debate nossas experiências, a forma como aderimos e nos comprometemos com a teoria e a aplicação da metodologia, cujo propósito final é o resgate das verdades múltiplas, parciais e manipuladas, mas, apesar de tudo, genuínas.

Quero hoje, no dia em que recebi a honradíssima incumbência de abrir esta jornada, inverter as formas. Isto é, não vou me ocupar das testemunhas, de suas revelações, dos recursos com os quais trabalhamos e nos empenhamos em reconstruir o passado. Ao contrário, mesmo que pareça pouco usual, vou me ocupar dos outros protagonistas na reconstrução dessas memórias, dessas vivências: de nós, os historiadores, que confrontamos, escutamos, com admiração ou desencanto, antes de proceder à análise e interpretação de tempos loucos.

Pretendo, ou tentarei, elucidar, por meio da experiência pessoal, o que sucede a nós, do outro lado da mesa, atentos ao falar dos entrevistados, às avalanches de dados e de emoções que recebemos - às vezes, sem sequer esperá-las; outras, de supetão -, ou que nos desconcertam, nos fazem mudar as formas de pensar, e também têm modificado nossas próprias vidas.

Há apenas alguns meses, na apresentação de um livro tardio que finalmente recuperou a experiência que vivi em Cuba ao resgatar a história de vida de oito mulheres daquele país, uma das apresentadoras, amiga e colega querida, me encaminhou a uma profunda reflexão. Ela comentou que, assim como eu tinha acrescentado um epílogo às histórias de cada uma daquelas mulheres, intitulado "E o depois...", seria conveniente que em uma próxima reedição eu considerasse igualmente escrever o que aprendi com minha vida de historiadora, de protagonista, depois de perambular com o gravador na mão, de escutar, indagar, perguntar, questionar e procurar saber de mim mesma qual o verdadeiro sentido da tarefa histórica. Ou seja, experimentar um pouquinho do meu próprio remédio, e tentar fazer uma valoração intimista, no afã de entrevistadora e no afazer de historiadora. Isto é, começar a fazer uma prestação de contas, uma confissão sem confessionário nem divã de psicanalista. Para isso, tomo a liberdade e a confiança da generosa paciência e cumplicidade de todos os presentes.

Devo começar pelo princípio, e este me localiza precisamente nos últimos anos da década de 60 e princípios da de 70, quando, junto com Alicia Olivera de Bonfil, comecei a planejar e maquinar de que maneira poderíamos formular um projeto de resgate de testemunhos diretos dos velhos revolucionários a partir da metodologia da história oral. Tratava-se de um propósito bastante arriscado, porque estávamos trabalhando em uma instituição do Estado mexicano, e o que queríamos era exatamente esboçar a possibilidade de uma história diferente e até antagônica à "oficial". Ou seja, depois de mais de cinco décadas de governos surgidos da Revolução, o que pretendíamos era escutar os revolucionários em primeira pessoa, e não a interpretação de suas histórias, ou a história confeccionada sob medida para sustentar a ideologia do partido que se havia autonomeado herdeiro do movimento armado, beneficiário dessa primeira grande revolução social do século XX.

Para nossa grande surpresa, apesar das vicissitudes temporárias, das constantes brincadeiras e comentários grosseiros e indecorosos de boa parte de nossos colegas, especialmente homens, pela oralidade da história e seus nexos conscientes ou inconscientes com questões freudianas, recebemos apoio e começamos a organizar o arquivo sonoro, depois arquivo da palavra do Instituto Nacional de Antropologia e História.

O que aconteceu é parte de outro conto que não vem ao caso e que muitos dos colegas aqui presentes conhecem. No entanto, a experiência que tivemos desde as primeiras entrevistas, de nos reencontrar literalmente com a história e as histórias, cada uma delas muito surpreendente e comovente, na sua justa e própria dimensão, é algo que vale a pena recriar. Vale a pena voltar a elas para nos reencontrarmos conosco, como personagens nesse resgate heroico.

Desde o nosso começo como entrevistadoras, ávidas por informação, sentimos que a vida nos tinha presenteado com a oportunidade de questionar, escutar e atender os outros. Mas também foi, e continua sendo, o fato de que, deixando de lado toda a teoria, a heurística e até a hermenêutica, nós começamos a reconhecer e a identificar emoções e sensações. Foi talvez a descoberta de um mundo diferente, de óticas diversas, que nos enriqueceram e nos forçaram a amadurecer intelectualmente.

Como explicar-me? No final das contas, nem os livros, nem os documentos podiam transmitir os sentimentos, as impressões e aflições, os silêncios que serviam de contenção temporária à cascata incontida de lágrimas de uns e outros, ou os suspiros, as iras e arrependimentos súbitos, assim como também algo que com o tempo cheguei a apreciar e de que sinto saudade: compartilhar as lembranças, contribuir para resgatar a memória, revalorizar a vida vivida; ser cúmplice de profundas catarses e recuperar o passado, revalorizá-lo e compreender, em cada caso, o quanto tinha valido a pena o percurso já remoto.

Por isso, talvez, em tantas ocasiões parava o gravador, considerava sua afetividade, suspendia a entrevista, recolhia meus pertences, saía do lugar em que tinha acontecido o encontro e me sentia perdida em um mar de sensações, certamente desconhecidas. Porque, muitas dessas vezes, a verdade daqueles homens e mulheres pouco tinha a ver com a verdade imposta pelas versões oficiais dos fatos; menos ainda com o que os textos me diziam. Porque, também, reconheço agora, eram verdades tão distantes das minhas que eu levava algum tempo para entendê-las.

Foi então que compreendi a enorme importância de considerar, respeitar e aprender outras formas de pensar e atuar, valorizando cada um daqueles indivíduos que generosamente compartilharam seu passado conosco da maneira como queriam recordá-lo, assim, como o tempo e a distância tinham ditado, sem obstáculos, sem adornos, sem rodeios. E sim, muitas vezes, senti que não cheguei a resgatar comentários que ficavam na ponta da língua e que eles resistiam em compartilhar. Também compreendi que o processo de recuperar suas lembranças, de desenterrá-las, de apreciá-las à distância, os obrigava a reflexões que não tinham sido colocadas previamente, fossem elas afáveis e serenas ou duras e amargas.

E foi nesse momento que também comecei a entender de outra maneira os indivíduos, que não como objetos da história. Não com a ingenuidade e a entrega total, pensando que eles diziam a verdade absoluta e completa. Ao contrário, passei a escutá-los com atenção e cuidado, acolhendo suas observações, pausas, interpretações, e tratando de entender os porquês.

Lembro vividamente a experiência singular de entrevistar um médico acostumado a diagnosticar, instruir e ordenar o que seus pacientes tinham que fazer. Com ressalvas e bastante displicência, ele aceitou que eu o entrevistasse. Então, cheguei no dia e hora marcados, instalei sobre a escrivaninha dele meu gravador e descobri que ele não funcionava. Tive que abri-lo e trocar um fusível sob o olhar impaciente do homem, que, além disso, me pressionava, dizendo que não tinha o dia todo para observar minhas rudimentares manobras eletromecânicas, que certamente me tomaram apenas cinco minutos.

Com fúria reprimida, o olhei de frente e, um pouco tensa, lhe disse que eu não era eletricista, e sim historiadora e que, de maneira imprevista e imprevisível, um dos fusíveis tinha queimado e precisava trocá-lo. Ele ficou em silêncio, talvez surpreso com a minha atitude, tão diferente da submissão de seus pacientes, e talvez também pasmo com o fato de que não havia conseguido me amedrontar.

Então, acomodei-me diante dele e lhe fiz a primeira pergunta, que como sempre se referia a seus dados biográficos essenciais. Respondeu de imediato, dizendo que era desnecessário perder aquele tempo, que ele já tinha escrito tudo o que queria dizer e que, portanto, eu poderia ler. Para seu espanto, parei o gravador e, com firmeza, lhe disse que não fazia sentido continuar, que havia lhe explicado previamente com muita clareza o propósito de registrar sua história de vida usando a metodologia da história oral e que, se ela lhe parecia improcedente ou ele não estava de acordo, o mais conveniente era que eu me retirasse. Com uma cara que com dificuldade ocultava tanto sua surpresa quanto sua raiva, depois de resmungar, deixou de lado seus papéis, e também o charuto que tinha acendido, e já quase com resignação começou a responder às minhas perguntas.

O resultado final foi formidável. O homem que, além de ser um inteligente cientista, tinha desempenhado um papel de liderança no movimento médico, tinha tanto a dizer, eram tão interessantes suas referências e suas reflexões sobre a medicina mexicana, que aquilo acabou em uma verdadeira festa, e nós, em bons termos. Ele deixou de me examinar com o olhar, de me dar ordens e me agredir, e entendeu que estávamos em posição de iguais: eu respeitava seu testemunho e ele respeitava meu tempo e trabalho. Não é preciso dizer que acabei esgotada em todos os sentidos e, efetivamente, hoje posso afirmar que foi uma lição de vida. Talvez para os dois.

Parafraseando Michel de Certeaux, que diz que passamos o tempo vendo no visível o que não sabemos que vemos, eu acrescentaria que passamos o tempo escutando no silêncio o que não sabemos que escutamos, ou o que não queremos saber. Consequentemente, levamos muito tempo para aprender a escutar e a observar, para depois analisar e interpretar os passados individuais e também, por que não, a partir deles, nossas vivências pessoais.

Hoje penso que tive, tivemos, uma aprendizagem forçosa e forçada, na contracorrente, que fomos aprendendo enquanto falávamos com nossos entrevistados. Escutar suas histórias finalmente nos ajudou a construir as nossas pessoais, e, sobretudo, a participar da fantástica aventura de histórias na contracorrente.

Como esquecer os sentimentos de solidariedade, de empatia, de confronto e até de indignação que eu tinha ao reparar na forma como cada testemunho conseguia desfazer os nós do complexo emaranhado que se constroi a partir da memória e dos usos do esquecimento... Homens e mulheres que se arriscam a compartilhar suas lembranças dividem conosco a cumplicidade da recuperação do passado, contra a passagem inexorável do tempo, para contradizer o ditado popular que sua passagem apaga tudo.

E permitam-me que me estenda a respeito: como nos contos, começo com aquilo que aconteceu há muitos, muitíssimos anos, quando descobri um formidável entrevistado. Era também um médico, a quem casualmente havia conhecido em uma reunião acadêmica. De idade avançada, formador de muitas gerações, muitíssimo prezado pelos seus colegas e seus pacientes, com um enorme senso de humor, dizia que tinha um consultório, não para praticar a medicina, mas para o lazer, ao mesmo tempo que preparava um tratado sobre a breguice - a mexicana, é claro. Naquela época, ele estava profundamente envolvido na análise de conteúdo das canções de Agustín Lara. Sem dúvida, não lhe faltava razão para exemplificar o caso mexicano a partir das letras das canções do "Flaco de oro"1 1 . "Magro de ouro"(n.t.). que tantas e tão complexas contribuições linguísticas e gramaticais trouxe ao espanhol, como aquela dos "párvulos besos",2 2 . "Pequenos beijos" (n.t.). que não sabemos ainda se é adjetivo, substantivo ou verbo: "yo parvulo, tú parvulas"3 3 . Não há tradução para o português, pois o uso desta palavra verbo é uma invenção do autor. Seria equivalente a "eu pequeno, tu pequenas" ou algo semelhante. O adjetivo "párvulo", no espanhol, deriva da palavra latina parvulus, diminutivo de parvus, que significava "pequeno" (n.t.). etc.

Enfim, o caso é que nos comprometemos com a aventura de reconstruir sua história de vida. Depois de meses e meses de sessões semanais, com o ritual de nos encontrarmos, conversarmos, esperarmos que sua esposa saísse de cena, ou seja, do quarto contíguo, onde ela se sentava para escutar toda a "confissão", passávamos horas maravilhosas na busca de suas lembranças, suas emoções e, por que não, de sua sabedoria. Ao longo de um ano, gravávamos enquanto as transcritoras registravam essa história de vida. Quando finalmente tive a versão escrita e a levei até ele, como sofria de um sério transtorno visual, pediu que eu lesse as quase duas mil páginas de sua narrativa. Incapaz de esquivar-me, começamos a estabelecer uma nova rotina: por longas semanas realizamos a leitura, confrontamos nomes, datas etc. Quando finalmente terminamos, o homem, muito triste, me disse que não podíamos concluir, porque percebera que tinha se esquecido de narrar muitíssimos detalhes e havia sérias omissões no texto. Muito surpresa, olhei para ele; estava inquieto, buscando explicações e razões para não romper a relação que finalmente lhe dava uma razão de vida: compartilhar aquele passado.

Ao me dar conta da situação, me vi obrigada refletir sobre o significado que tudo isso tivera para mim: que conotação tinha essa afinidade não procurada, surgida de improviso, que eu tinha alimentado e desfrutado tanto como ele? Tive que assumir o imperativo de seguir adiante e crescer; assim aconteceu. Vimo-nos em uma série de ocasiões para praticar a "ociologia". Logo morreu e, com a passagem dos anos, surgiu a oportunidade de fazer um livro sobre sua narrativa de vida. Ao percorrer aquelas páginas, pude reconstruir a experiência passada, confirmar o muito que tinha me influenciado e o muito que aprendi com aquele homem.

E, sim, reconheço que, por mais teoria e metodologias que se aprenda, vão se deixando de lado as lições, pois esquecemos de seguir ao pé da letra as regras, as leis, as normas, para, como protagonistas, encontrar caminhos de identificação, de empatia e até de transferência, o que supostamente nos é proibido. E inclusive assumo que tudo isso complicou e mudou minha vida com essas outras histórias e me fez confabular com cada um dos homens e mulheres com os quais ao longo de tantos anos cheguei a me relacionar. Por isso também surgiu uma verdadeira necessidade de buscar novos caminhos, de usar novos instrumentos de trabalho para realizar a análise e a interpretação propriamente históricas.

Mas também devo insistir que, além da tarefa histórica, me deparei com uma realidade repentina: o fato de ter que aceitar a categoria complementar de protagonista. Porque, afinal de contas, não é possível você se desfazer da sua ideologia, da sua forma de pensar e atuar, de uma educação, dos parâmetros sociais em que se formou, daquela ética a que se referiam os clássicos e não-clássicos, já que tudo conta, faz parte com clareza desse objetivo, sempre inalcançável, de chegar às verdades.

Mas, além dessas emoções, tive que conviver com os erros na entrevista, descobrir casos certamente comuns a todos nós, como na vez em que o gravador não funcionou, porque as pilhas tinham acabado fazia tempo. Além disso, tive que aprender a escutar e observar, saber como agir diante das pausas, dos silêncios, das tristezas e das injúrias. E, sobretudo, estar atenta, não interromper, respeitar a pessoa que temos à nossa frente e que está disposta a compartilhar conosco seu passado.

É ali que está o verdadeiro desafio para nós, historiadores, porque no final ficam muitos resquícios de cada história, que se torna um objeto de estudo e de análise e, naturalmente, um confronto com nosso próprio eu.

Se a história se define sobre os modelos da escritura, os fatos que a motivam podem ser apreendidos das mais diversas formas. Nesse sentido, a história oral recolhe o fator testemunho como uma constante da presença humana, tanto nos eventos históricos como nos processos cotidianos, redescobrindo a alteridade.

Certamente, o testemunho individual é, por definição, subjetivo; não escapa à nossa atenção que, por isso, ele é também parcial, em algumas ocasiões até partidarista e volúvel. Igualmente, isso requer de antemão a cautela com que deve ser conduzido esse material: o esquecimento voluntário ou involuntário, a dificílima reconstrução de certos fatos passados, que constituem elementos cuja natureza é conveniente estudar com discrição e prudência.

Aprendi muito ao longo das décadas, a partir do que me disseram, me confessaram ou me ocultaram, e também com o que pude depois descobrir ou supor. Certamente, o que fazemos, ao concluir o registro dessas histórias, é desconstruí-las, para entendê-las na sua totalidade, com as distorções, as resistências, os falsos começos, ou o esforço comovente que fazem os entrevistados para nos agradar, contando sua versão da história. Afinal de contas, enfrentamos uma batalha permanente para não amputar, aniquilar, e menos ainda suprimir o passado dos outros e o de nós mesmos.

Esse adestramento permanente me levou a entender as histórias dos outros e também a minha própria. E, talvez sem ter essa intenção, em mais de uma ocasião me perguntei o que eu teria feito no lugar da pessoa entrevistada. E isso enriqueceu o meu trabalho, porque, ao me colocar na posição do outro, entendi o comportamento subjetivo, sempre surpreendente, de cada um.

Cada história de vida me serviu de conhecimento, no qual me inspirei para preparar meu caminho pessoal, como mulher, como historiadora. Insisto: prepará-lo, não apagá-lo ou ignorá-lo. E sim, certamente, agradeço a todos eles pela capacidade de me surpreender, por receber ensinamentos inesquecíveis, e por terem contribuído, talvez involuntária ou inconscientemente, para mudar minha própria vida, minha percepção das coisas e, sobretudo, minha apreciação da história.

Existe uma relação complexa entre a "história vivida", ou seja, a história natural, mesmo que não objetiva, da humanidade, e o esforço científico para descrevê-la, pensá-la e explicá-la. Não se trata, sem dúvida, de estudar esse passado para resolver o futuro. Não há vínculo algum com a futurologia. Estou convencida de que a história, finalmente não deve, não pode ter uma projeção utilitária ou pragmática. Quando a história procura respostas para olhar para o futuro perde talvez seu caráter científico. Tentamos conquistar e alcançar uma história de realidades, de representações, de ideologias e de mentalidades. Uma história, inclusive, da imaginação. Efetivamente, para cada caso existe a possibilidade concreta de falsificação. Nosso desafio final é o de conhecê-las e entendê-las antes de avaliá-las e interpretá-las.

Desse modo, fortalece-se e complica-se o compromisso do historiador. Trabalhar com documentos diversos, biblio-hemerografias sisudas, que nos iluminam sobre o passado e o comportamento humano, é totalmente diferente de ter a história viva diante de si e ter também a possibilidade maravilhosa de questioná-la.

Por isso mesmo, reitero que cada entrevista foi uma lição de vida. Certamente, trabalhar com veteranos de movimentos sociais, ou de experiências fundamentais na história do meu país e da América Latina, foi muito mais simples que lançar-me na estruturação de histórias mais recentes, mais próximas dos meus tempos.

Do mesmo modo, trabalhar com mulheres tem implicações diferentes de trabalhar com homens. Não se trata de uma questão ideológica, mas de gênero. A forma de responder ao estímulo de uma pergunta, as expectativas que como entrevistadas têm que ser compreendidas, inclusive, a sutil expectativa do entendimento e a empatia. Nisso tudo, produz-se um interessante processo de sedução que é muito diferente do que geralmente praticam os homens, que em muitas ocasiões veem a entrevista como um desafio à sua hombridade, e, por isso, têm uma verdadeira necessidade de nos assombrar, de nos convencer e nos tornar seus cúmplices, a partir do fato de que eles estão certos que nós acreditamos neles e aprovamos toda a sua história. Mas é justo reconhecer também que em algumas ocasiões as mulheres podem ser muito mais receosas e até distantes, incapazes de compartilhar sua intimidade com outra mulher, isto é, conosco, já que nos consideram como rivais ou inimigas, indignas de receber a dádiva de suas lembranças.

Penso ainda na cara de surpresa, de dor, que devo ter feito quando ouvi os detalhes de torturas sofridas por presos políticos em diferentes lugares, tempos ou circunstâncias ou perante o desencanto daqueles velhos marginalizados da sociedade, abandonados pela vida, que não recebiam atenção nem eram ouvidos por ninguém e que, de repente, ao nos atrevermos a ouvi-los, mudamos sua vida, porque finalmente, de forma quase inconsciente, contribuímos para proporcionar-lhes uma razão de permanência. Eles assumiam a missão de recuperar sua história, de compartilhá-la, porque reconheciam que, finalmente, havia valido a pena tudo o tinham vivido.

Um dia, sem pensar ou planejar, me deparei com a sorte e talvez também com a complexidade de entrevistar uma mulher da mesma idade que eu, com a mesma profissão, que tinha se formado na então República Democrática Alemã e vivia na sua terra natal, Cuba, absolutamente convencida de que a revolução era a resposta definitiva à história de seu país. Aquilo foi um convite e uma tentadora armadilha.

De repente me encontrei fazendo perguntas que realmente não eram dirigidas a ela, mas a mim, porque de forma inconsciente eu estava imersa na introspecção e na proibidíssima transferência. Suas respostas não me amedrontaram; ao contrário, me incentivaram e me impulsionaram a seguir adiante. Não eram questões meramente profissionais, mas notoriamente pessoais, de identidade, de gênero.

Enfim, depois de muitas horas de gravação, de ler e entender o conteúdo de seu testemunho, descobri que tinha sido um ajuste de contas, digamos um balanço coletivo de nossas vidas, tão diferentes e ao mesmo tempo tão semelhantes. Anos depois, muitos anos depois, quando ela leu a versão que seria publicada, reconheceu que não entendia como tinha dito as coisas que disse, menos ainda como eu tinha conseguido "fazer com que soltasse o verbo". E, claro, acrescentou que em alguns momentos se sentiu diante de um tribunal de justiça que estava decidindo sua culpa ou absolvição.

Quando volto a olhar para esse passado, tão perigoso quanto interessante, com o propósito de recuperar do esquecimento a memória das pessoas, noto que recupero a minha memória pessoal, porque, como uma vez me disse alguém próximo para me bajular, eu tinha a habilidade de fazer até as pedras falarem.

Na verdade, do que eu era capaz então, e que espero ter desenvolvido, era de escutar os outros e, depois, escutar a mim mesma, manter um diálogo permanente em meu interior, sempre em função do que os outros me contam, compartilham comigo, de tal maneira que eu possa recuperar em meu eu interno a emoção, a lógica e, talvez, também a razão.

Sinto que recebi de mãos cheias, com enorme generosidade, histórias completas, sem restrições, sem reticências; e os generosos entrevistados não percebiam sequer como enriqueciam meu conhecimento e minha forma de pensar.

Retomo a experiência única de ter entrevistado pessoas que, sem saber nada, ou quase nada sobre mim, tiveram a confiança e a abertura para narrar e expressar opiniões muito importantes com relação a um processo e um protagonista que me eram próximos. Os julgamentos de valor, os comentários que saíam à queima-roupa, davam conta de opiniões que não requeriam elaboração alguma, sem cautela, sem maquiagem. Eram simplesmente expressões de ideias e conceitos bem amadurecidos, bem pensados; foi assim que descobri variantes de identidade e formas de ser até então desconhecidas do meu pai.

Escutar tudo isso transformou radicalmente a percepção que eu tinha a partir da cotidianidade no ambiente familiar. O indivíduo vai se formando e se adequando à imagem da pessoa mais próxima, como se fosse um jogo de espelhos que refletem o que queremos ver, ao mesmo tempo que supomos com ingenuidade, e talvez com bons olhos, que os outros observam as mesmas imagens e recriam as mesmas sensações. Mas a realidade é outra, os pontos de vista variam de acordo com condições, emoções e sentimentos.

E o que posso dizer das ocasiões em que me transformei em sujeito da entrevista, em que me senti tão desconfortável e tão fora de lugar, tão pressionada para "abrir a boca", tão incomodada por essa atitude intrometida de algum jovem historiador que quer toda a verdade e nada mais que a verdade sobre minha vida, verdade que nem eu mesma consegui alcançar. Se, efetivamente, como se diz, a verdade e a mentira são só categorias epistemológicas, é preciso reconhecer que as histórias de vida constituem sistemas de representação cultural que expressam sentimentos, identidades, lealdades e sentidos de pertencimento.

Cada um de nós tem um relato para contar e compartilhar; só assim venceremos o esquecimento. O conjunto deles enriquece as histórias. Já não podemos pensar na "História" com letra maiúscula, única, objetiva, científica e positiva. Teríamos, finalmente, que recorrer àquela maravilhosa sentença que Julio Cortázar coloca na boca de seu protagonista, O perseguidor, quando assegura, contundentemente, que "ninguém sabe nada de ninguém"!

É então que recorremos à simbologia que determina nosso trabalho e permitimos que os imaginários temporários sejam substituídos por realidades transcendentes que, enquanto se configuram nossos espaços e nossos tempos, sejam pessoais, sociais ou coletivas.

Como disse uma vez Edmundo O'Gorman, professor de muitas gerações de historiadores mexicanos, tememos os fantasmas do essencialismo, da causalidade e da desconfiança na imaginação. Como ele, eu também ambiciono uma história imprevisível, suscetível de surpresas e acidentes, de venturas e desventuras, uma história de voos arriscados.

O fim, o objetivo da memória, da história, é dar sentido às nossas vidas. Consequentemente, trata-se permanentemente de lutar contra o esquecimento, para impedir que a memória chegue a um fim, a um término, à sua conclusão, e que percamos o rumo.

Artigo recebido em 9 de outubro de 2008 e aprovado para publicação em 9 de janeiro de 2009.

Eugenia Meyer é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional Autônoma do México (emclio@servidor.unam.mx)

Nota da autora: Cátedra magistral pronunciada na inauguração do XV Congresso Internacional de Historia Oral, Guadalajara, Jalisco, México, em 23 de setembro de 2008. Tradução de Óscar Curros M. e revisão de Bartira Costa Neves e Luciana Tanoue.

Nota dos editores: Em meados dos anos 1970, quando o CPDOC implantou seu Programa de História Oral, o uso dessa metodologia era uma grande novidade no Brasil, em especial entre os historiadores. Esse programa, portanto, em muito se beneficiou de experiências internacionais já em curso, particularmente a do México, trazida a nós por Eugenia Meyer, do Instituto Mora, que então trabalhava com a elite militar envolvida na Revolução Mexicana. Assim, a contribuição dessa acadêmica faz parte da história do CPDOC/FGV, e é uma feliz oportunidade poder publicar seu artigo.

  • 1
    . "Magro de ouro"(n.t.).
  • 2
    . "Pequenos beijos" (n.t.).
  • 3
    . Não há tradução para o português, pois o uso desta palavra verbo é uma invenção do autor. Seria equivalente a "eu pequeno, tu pequenas" ou algo semelhante. O adjetivo "párvulo", no espanhol, deriva da palavra latina parvulus, diminutivo de
    parvus, que significava "pequeno" (n.t.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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