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Gradismo e Cladismo no Ensino em uma Análise Foucaultiana

RESUMO

O percurso analítico deste texto se dirige aos espaços de constituição dos saberes e vislumbra relações de força que problematizam questões atinentes aos sistemas de classificação biológica e ao ensino, objetivando tornar visível as instâncias em que a Sistemática Evolutiva pode representar descontinuidade em relação à Sistemática Lineana. Contemporaneamente, o discurso filogenético posiciona-se como saber mais adequado ao estabelecimento das relações evolutivas, contudo, nos espaços de ensino ele sofre interdições o que permite supor que a formação de professores não lida satisfatoriamente com a dinâmica de algumas construções cientificas. Assim, pensa-se a produção do conhecimento científico para além da simples aceitação de uma verdade.

Palavras-chave
Biologia; Cladismo-Gradismo; Epistemologia; Michel Foucault; Ensino

ABSTRACT

The analytical course of this text is directed to the spaces of knowledge constitution and glimpses power relations that problematize issues related to biological classification systems and teaching, aiming to make visible the instances in which Evolutionary Systematics can represent a discontinuity concerning the Linean Systematics. At the same time, the phylogenetic discourse is positioned as the most adequate knowledge for the establishment of evolutionary relationships, however, in teaching spaces it suffers interdictions, which allows us to suppose that teacher training does not satisfactorily deal with the dynamics of some scientific constructions. Thus, the production of scientific knowledge goes beyond the simple acceptance of truth.

Keywords
Biology; Cladism-Gradism; Epistemology; Michel Foucault; Teaching

Introdução

As ciências biológicas1 1 O artigo é baseado em dados presentes no capítulo Ser Classificado da tese de doutoramento intitulada Ser vivo, ser espécie, ser classificado: epistemes, dispositivos e subjetivações no ensino de Ciências e Biologia com ampliações e atualizações (Vieira, 2013). fazem parte da obra do filósofo Michel Foucault, problematizadas em um campo em movimento no qual se disputa o poder de significar a vida, os viventes e suas formas de classificação. Assim, seu ensino é produto desse movimento e também desses saberes em disputa, o que suscita a necessidade de pensarmos a educação em ciências biológicas como algo que deve ser questionado nas práticas sociais, para além dos manuais e para além do que filtra discursos. Araujo e Araujo (2014)ARAUJO, Leonardo Augusto Luvson; ARAUJO, Aldo Mellender de. Michel Foucault e as Condições de Possibilidade do Evolucionismo de Darwin. Filosofia e História da Biologia, São Paulo, USP, v. 9, n. 2, 2014. afirmam o intenso interesse de Foucault pela história da biologia, pontuando episódios emblemáticos como a sua aula inaugural no Collège de France, destacando aspectos do trabalho de Mendel; o reconhecimento dos estudos históricos de François Jacob, apresentados em a Lógica da Vida: Uma História da Hereditariedade (La logique du vivant: une histoire de l´herédité) e a defesa de sua tese doutoral orientada por Georges Canguilhem, um dos mais eminentes epistemólogos das ciências biológicas no século XX. Perguntas como “a disciplina biologia se desenvolve em determinada direção? Qual?” surgem no cenário do ensino de ciências, no intuito de sabermos como e o que se deve ensinar, ou seja, quais conteúdos curriculares e quais práticas são legitimadas.

Um início possível para algum empreendimento epistemológico nesse sentido pode ser vislumbrado em Terra (2010)TERRA, Paulo. O Triunfo da Cladística: análise do embate teórico ocorrido na sistemática biológica na segunda metade do século XX. In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA, 4., 2010, Ilhéus. Anais […]. Ilhéus: UESC, 2010. Disponível em http://www.uesc.br/eventos/ivseminariohfc/resumos/otriunfodacladistica.pdf. Acesso em: 6 ago. 2020.
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, referente a análise do embate teórico ocorrido na sistemática biológica, na segunda metade do século XX, feita a partir do modelo de transformações proposto por Thomas Kuhn. Segundo o autor, a extensão do ato de reescrever manuais de botânica e zoologia observada nos anos 1990 possibilita afirmar a ocorrência de uma revolução científica polarizada em diferentes escolas de classificação ou sistemática. A dispersão dessas escolas, contudo, não implica admitir que paradigmas sejam substituídos ou que desapareçam. Assim, o fato de uma escola cronologicamente mais recente apontar os “erros” de sua antecessora não elimina o seu discurso, tampouco, os seus efeitos – não existe nesse viés “quebra de paradigma”, e sim, convivências, lutas e confrontos epistemológicos que fabricam sujeição e resistência para além dos locais de produção das ciências

Os discursos tornam-se inteligíveis, compreensíveis e possíveis, porém, não são necessariamente contínuos ou substituídos uns pelos outros. Estudos contemporâneos contrapõem esses saberes e possibilitam localizá-los “apenas” como discursos distintos. Em outra perspectiva, admitir que a Sistemática Gradista ou Evolutiva e a Sistemática Cladista ou Filogenética são estruturas de conhecimento capazes de dirigir-se à verdade – embora se refiram, ou construam para si, um mesmo tema, qual seja: “a organização da vida”. As escolas sistemáticas resumidamente engendram saberes que são expressões de vontade de poder (Terra, 2010TERRA, Paulo. O Triunfo da Cladística: análise do embate teórico ocorrido na sistemática biológica na segunda metade do século XX. In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA, 4., 2010, Ilhéus. Anais […]. Ilhéus: UESC, 2010. Disponível em http://www.uesc.br/eventos/ivseminariohfc/resumos/otriunfodacladistica.pdf. Acesso em: 6 ago. 2020.
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).

Bosquejos de força são constituídos e vislumbrados nas análises de seus efeitos, ao encontro do convite que Michel Foucault nos lança. Segundo Oksala (2011)OKSALA, Johanna. Como ler Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2011., podemos afirmar que, em As Palavras e as Coisas (Les Most et Les Choses), Foucault (2016)FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Tradução: Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2016. torna possível entender a “vida” como algo associado ao desenvolvimento histórico, uma vez que os objetos empíricos passaram a ser definidos não mais em seu lugar de um sistema atemporal de classificação, mas por seu lugar na história. Dessa forma, as mudanças mais profundas em relação aos conceitos científicos não podem ser mais induzidas por cientistas isolados em seu tempo. Admite-se, nesses termos, que tais mudanças são antes o resultado de múltiplas causas, por vezes inumeráveis, e assim, Foucault “[…] quis estudar a história da ciência como um campo relativamente autônomo de unidades discursivas, regularidades e transformações, sem estudar o sujeito intencional – o cientista – como principal fator […]” (Oksala, 2011OKSALA, Johanna. Como ler Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2011., p. 38).

Nessa perspectiva, Foucault convida a tomar parte em empreendimentos que possibilitam dessujeitar os saberes históricos para torná-los livres, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso científico, para o qual compete questionar em caráter permanente sobre: “[…] quais tipos de saber vocês querem desqualificar no momento em que vocês dizem ser este saber uma ciência?” (Foucault, 2005FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 15).

O saber científico da biologia moderna constituído por proposições anteriores à emergência da cladística tem sofrido desqualificações por meio de movimentos que cortam e limitam ao invés de perpetuar algum caminho esperado. Terra (2010)TERRA, Paulo. O Triunfo da Cladística: análise do embate teórico ocorrido na sistemática biológica na segunda metade do século XX. In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA, 4., 2010, Ilhéus. Anais […]. Ilhéus: UESC, 2010. Disponível em http://www.uesc.br/eventos/ivseminariohfc/resumos/otriunfodacladistica.pdf. Acesso em: 6 ago. 2020.
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refere a sistemática biológica como objeto cujo estudo possibilita “ilustrar” um cenário de discursividade científica, dinâmico e circulante no qual se percebe a transitoriedade das maneiras de fazer ciência. Assim, o autor expõe uma parte das discursividades científicas, de seus acordos e de seus efeitos na própria comunidade científica e a partir de textos produzidos em seu meio ou de suas recomendações, referindo as escolas sistemáticas como empreendimentos de mudanças bruscas. A discussão intencionada não levanta bandeiras de apoio aos modelos adotados, evidenciados ou esquecidos na discursividade científica. Antes, a intenção é discutir suas tensas relações e que irremediavelmente culminam em abandono e em adoção de um paradigma por outro.

Popkewitz (2011)POPKEWITZ, Thomas. História do Currículo, Regulação Social e Poder. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. Rio de Janeiro: Vozes, 2011. afirma que razão e racionalidade são centrais aos esforços sociais de melhoria das condições humanas, contudo, tais esforços são sistemas historicamente contingentes de relações, cujos efeitos produzem poder e, nessa perspectiva, disputas entre saberes. É possível afirmar que muitos biólogos estiveram/estão diante de uma contingência, cujo darwinismo parece não interditar – de Karl Von Linné a Robert Whittaker temos classificações biológicas que organizam as formas de vida em critérios morfológicos e fisiológicos em detrimento de critérios moleculares.

Amorim (2009, p. 92)AMORIM, Dalton de Souza. Fundamentos de Sistemática Filogenética. Ribeirão Preto: Holos Editora, 2009. considera a existência de diversas escolas de sistemática nas quais é possível encontrar “[…] visões diferentes para o significado dos táxons e dos métodos de construí-los”, contemporaneamente, destacando-se para a discussão pretendida a “Escola Lineana”, a “Sistemática Gradista” e a “Sistemática Cladística”.

A Escola Lineana considera classificações baseadas em conhecimento taxonômico, agrupando os seres de acordo com suas diferenças e semelhanças, que originou outros sistemas eminentemente técnicos. A perspectiva Lineana é comumente imbrincada ao sistema de nomenclatura binominal proposto e aprimorado por Linné entre os anos de 1735 e 1770. Nesses termos, deve-se considerar que as regras taxonômicas permanecem nas formas de nominar e comunicar a existência das espécies, sem, contudo, incidir nos sistemas de classificação baseados no pensamento evolutivo (Polaszek, 2010POLASZEK, Andrew. Systema Naturae 250 - The Linnaean Ark. Boca Raton: CRC Press, 2010.).

As denominadas escolas evolutivas podem ser dividias em gradista e cladística. O gradismo considera a história filogenética e as características adaptativas para a elaboração dos “grados” que podem ser definidos como expressões dos graus da história evolutiva de cada grupo, enquanto o cladismo forma grupos considerando relações de parentesco a partir de um ancestral comum, reivindicando maior precisão metodológica pelo fato de manter a dúvida em caso de impossibilidade na obtenção de uma filogenia completa (Amorim, 2009AMORIM, Dalton de Souza. Fundamentos de Sistemática Filogenética. Ribeirão Preto: Holos Editora, 2009.).

Seriam concebidas, em um curso histórico destituído de conflitos, a existência de paradigmas e a substituição de uma escola por outra, na direção de aproximar a verdade dos olhos dos cientistas; entretanto, a permanência de determinadas escolas denota a resistência de determinados saberes ou a falta de condições de possibilidade para que determinados discursos tenham visibilidade. Quadrúpedes, aves, anfíbios, peixes e outros seres vivos dispostos em tabelas lineanas2 2 Referência às categorias propostas por Linné no Systema Naturae, 1735, na qual é possível visualizar nomes e características dispostos em tabela. Original digitalizado pode ser acessado no seguinte link: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Carl_linne_1735_systema_naturae_s1.jpg. são construções que se apresentam na forma/morfologia e na continuidade de suas utilizações como critérios basais para pensá-los. Nesses termos, objetiva-se compreender em que instância as sistemáticas evolutivas podem representar uma descontinuidade em relação à perspectiva lineana, tarefa tal que pode lançar mão de análises que remetem a exercícios epistemológicos na biologia moderna e que são capazes de subsidiar discussões que incidem nas possibilidades e interdições de uma perspectiva filogenética aos espaços de ensino que assumem compromissos com aspectos gerais das ciências biológicas na contemporaneidade.

Procedimentos Metodológicos

O presente trabalho trata de uma pesquisa de cunho qualitativo apoiada na análise do discurso vinculada às teorizações de Michel Foucault. Compreende-se que os discursos das ciências biológicas ou da biologia aparecem no programa de uma instituição com elementos que podem justificar ou negar determinadas práticas, opções, produções. Foucault literalmente registra uma certidão de nascimento da biologia, examinando o que permite distinguir o biólogo do naturalista, a disciplina biologia da história natural (Vieira, 2020VIEIRA, Eduardo Paiva de Pontes. A Biologia ante a História Natural ou um Lugar de Lamarck em Foucault. In: FERREIRA, Marcia Serra; CHAVES, Silvia Nogueira; AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de; GASTAL, Maria Luiza de Araújo; BASTOS, Sandra Nazaré Dias (Org.). Vidas que ensinam o Ensino da Vida. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2020. (Volume 1). P. 180-190.). Assim, pode ser considerado um epistemólogo das ciências da vida, pensando-a ao seu modo e convidando-nos (biólogos, principalmente) a maneiras de ver essa vida que se inscreveu e continua a se inscrever em formas de falar e ensinar. Para tanto, a compreensão das relações entre enunciados e discursos mostra-se fundamental para a utilização das ferramentas teóricas presentes em sua obra.

Os enunciados são concebidos nesse movimento como o que “[…] pertence a uma formação discursiva, como uma frase pertence a um texto, e uma proposição a um conjunto dedutivo” e cuja lei (dos enunciados) “[…] e o fato de pertencerem à formação discursiva constituem uma única e mesma coisa” (Foucault, 2008bFOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008b., p. 32). A análise dos enunciados que se deseja realizar “[…] situa-se, de fato, no nível do diz-se – e isso” (Foucault, 2008bFOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008b., p. 138). O exercício a ser feito é uma questão de saber que efeitos de poder circulam entre enunciados científicos e quais são seus regimes interiores de poder, além disso, de como em certos momentos, ele se modifica (Foucault, 2008cFOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008c.). Assim, considera-se que a busca por um método mais rigoroso de classificação dos viventes alçou a cladística a um lugar de maior visibilidade, nas últimas décadas, tornando-se o método preferido para as classificações atuais, alterando as relações entre as diferentes formas ou métodos de estudo dos seres vivos.

A escola cladística seguiu muitos princípios formulados pelo entomólogo Willi Hennig (1913-1976) que publicou, em 1950, um livro de fundamentos para a Sistemática Filogenética, além de outros trabalhos nos quais empregava seu método filogenético. A revisão e tradução de sua obra do alemão para o inglês em 1966 fez com que Hennig e seus métodos ficassem amplamente conhecidos, creditando-o como principal proponente da Sistemática Filogenética.

No entendimento de Foucault (2008a)FOUCAULT, Michel. A Posição de Cuvier na História da Biologia. In: MOTTA, Manoel Barros (Org.). Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Tradução: Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008a. P. 192-230. (Coleção Ditos & Escritos, Volume II)., os discursos precisam ser pensados como práticas discursivas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Nesses termos, Fischer (2001)FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault e a Análise do Discurso em Educação.Cadernos de Pesquisa, São Paulo, FCG, v. 114, p. 197-223, 2001., ressalta que analisar o discurso é dar conta das relações históricas e das práticas concretas presentes no interior do discurso ou dar conta das múltiplas práticas discursivas manifestadas nas/pelas diferentes instituições. Nesse sentido, é possível entender como formação discursiva o princípio de dispersão e de repartição dos enunciados apoiados num mesmo sistema de formação e é por meio da formação discursiva que se sabe o que pode e o que deve ser dito ou não dentro de determinado espaço e de acordo com a posição que se ocupa neste espaço/tempo (Fischer, 2012FISCHER, Rosa Maria Bueno.Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.).

As proposições de Linné se alocam em um nicho estável da discursividade biológica contemporânea, por seu valor histórico e prático no sistema de nomenclatura binominal, engendra uma forma de ensinar a classificação dos viventes inteligível, mas, insuficiente para a teorização evolutiva. Nesses termos, buscamos exercitar as diferentes perspectivas sistemáticas em seus locais de emergência e circulação lançando-se ao ideário foucaultiano, sobretudo, para ampliar a visibilidade desses saberes e o entendimento sobre sua existência, interlocução e relações de poder nos espaços de ensino e de formação docente.

Tabelas, Grados e Clados

Foi no século XVIII que os classificadores estabeleceram o caráter pela comparação de estruturas visíveis, relacionando elementos que eram homogêneos e capazes de representar a todos. A ruptura que fez acontecer a biologia ante a história natural ocorreu na medida em que os princípios de organização passaram a ser relacionados às funções essenciais dos seres vivos e em relações de importância que já não procederiam apenas da descrição. Lamarck, dentre outros, viabiliza a utilização do conceito de organização, fundando uma ordem para a natureza, definindo o seu espaço e possibilitando um método de caracterização que subordinou caracteres, interligando funções internas e externas (Foucault, 2016FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Tradução: Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2016.).

No século XVIII, o conjunto dos seres vivos se dispunha em uma hierarquia de cinco níveis: Reino, Classe, Ordem, Gênero e Espécie, formada pela reunião das variedades, cuja diversidade provinha de uma causa acidental devida ao clima, ao terreno, ao calor, aos ventos e cuja “[…] ordem em que se articulam as essências dos seres é aquela que a natureza, e não a razão, dita” (Jacob, 2001JACOB, François. A Lógica da Vida. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001., p.57). A boa consciência do naturalista instauraria os critérios de classificação dos seres vivos e os preceitos evolutivos, apesar de incipientes já circulavam, estabelecendo proximidades ou parentescos, ainda que por decisão de um criador.

Foucault (2016)FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. Tradução: Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2016. afirma que o debate acerca do evolucionismo teria sido aberto bem antes de Darwin e bem antes de Lamarck por trabalhos como os de Benoit de Maillet (1656-1738) e Denis Diderot (1713-1784) que contestaram a cronologia bíblica e propuseram associações entre as transformações dos organismos e as relações de tais mudanças com o habitat. Para o autor, foi no século XVIII que os classificadores estabeleceram o caráter pela comparação de estruturas visíveis, relacionando elementos que eram homogêneos e capazes de representar a todos.

As organizações fundadas na existência de funções essenciais aos seres vivos e em suas relações de importância já não procederiam apenas da descrição. Darwin (2004, p. 445)DARWIN, Charles Robert. (1872). The Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. Tradução: Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. manteve algo desse fundamento epistemológico buscando eleger caracteres que estivessem presentes “[…] num vasto grupo de seres dotados de costumes diferentes” o que “[…] segundo a teoria da descendência, de que estes caracteres foram herdados de um ancestral comum”, o que teria um valor especial na classificação. Mas qual o critério para estabelecer esses caracteres? O método empregado também será o de observação das estruturas, ainda que fossem utilizados embriões e fósseis, eram os caracteres morfológicos aqueles a serem destacados. Quando Darwin refere o plano geral de organização dos seres vivos e a homologia dos órgãos afirma que “Todo o assunto está incluído no termo geral da morfologia. Constitui uma das partes mais interessantes da história natural, da qual pode ser quase considerada a alma” (Darwin, 2004DARWIN, Charles Robert. (1872). The Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. Tradução: Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004., p. 455).

A fisiologia existe na medida em que está intrinsicamente relacionada à estrutura, é uma fisiologia de história natural, ou seja, em um tempo no qual o saber é limitado pelas representações possíveis em um mundo visível e empírico. Ainda que o saber possível em A Origem das Espécies modifique a maneira de conceber o surgimento da vida e a possibilidade de explicar o surgimento dos diversos grupos de seres vivos, o panorama geral da classificação permanece em sua estrutura taxonômica. Tais classificações são narradas de maneira linear por Margulis e Schwartz (2001)MARGULIS, Lynn; SCHWARTZ, Karlene. Cinco Reinos: um guia ilustrado dos filos da vida na Terra. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001., que iniciam em Linné a referência mor para as formas de nomear e de estabelecer os grupos de seres vivos (táxons), passando por Darwin, cuja contribuição evolucionista culminou na criação das filogenias (ainda em um campo morfofisiológico) e alcançando o século XX, no qual os avanços tecnológicos em áreas como a biologia do desenvolvimento e a bioquímica passaram a fornecer novas ferramentas aos taxonomistas.

A classificação em cinco reinos feita por Whittaker (1969)WHITTAKER, Robert Harding. New Concepts of Kingdoms of Organisms: evolutionary relations are better represented by new classifications than by the traditional two kingdoms. Science, v. 168, p. 150-160, 1969. propôs inicialmente a organização celular e os modos de nutrição como critérios úteis. As ferramentas disponíveis no século XX auxiliaram em descrições mais precisas das células e dos mecanismos bioquímicos relacionados aos processos nutricionais. Com efeito, poucas modificações foram sugeridas no sistema, inalterando sua estrutura e seus preceitos originais. O sistema de Whittaker não recebeu contribuições da biologia molecular em níveis de estudo no qual se operam na contemporaneidade, sobre isso, é possível desenvolver o argumento de que ao invés de contribuição deve haver disputa, nesta perspectiva, a única ameaça a qualquer dos esquemas de cinco reinos é o sistema de três domínios que utiliza critérios moleculares (Margulis; Schwartz, 2001MARGULIS, Lynn; SCHWARTZ, Karlene. Cinco Reinos: um guia ilustrado dos filos da vida na Terra. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001.).

A Escola Evolutiva ou Gradista construirá grupos em diagramas com formas de árvores, apresentando relações de parentesco entre linhagens e taxas de divergência morfológica, seguindo à risca a proposição de Darwin (Santos; Klassa, 2012SANTOS, Charles Morphy Dias; KLASSA, Bruna. Sistemática Filogenética Hennigiana: revolução ou mudança no interior de um paradigma? Scientiae Studia, v. 10, n. 3, p. 93-612, 2012.). Segundo Santos (2008)SANTOS, Charles Morphy Dias. Os Dinossauros de Hennig: sobre a importância do monofiletismo para a sistemática biológica. Scientiae Studia, v. 6, n. 2, p. 179-200, 2008., isso pode resultar em uma prática classificatória de construção de cenários demasiadamente elaborados sobre a evolução de determinados grupos, baseado mais na autoridade de um pesquisador sobre determinada área do que em um método passível de repetição, com efeito, deve-se pontuar que tal preterição também tem uma base epistêmica sólida na dinâmica acadêmica, uma vez que a autoridade do pesquisador é basilar na produtividade científica.

A Escola Cladística, que seguiu muitos princípios formulados pelo entomólogo Willi Hennig, basicamente sustenta que as classificações devam expressar as relações de ramificação entre as espécies, não importando o grau de diferença ou de similaridade (Hennig, 1966HENNIG, Willi. Phylogenetic Systematics. Urbana: University of Illinois Press, 1966.; Futuyma, 1997FUTUYMA, Douglas. Biologia Evolutiva. Ribeirão Preto: Sociedade Brasileira de Genética/CNPQ, 1997.). A classificação cladística deve ser estritamente monofilética, ou seja, admitindo que cada grupo de seres vivos deva ter surgido a partir de um único ramo evolutivo. Na sistemática filogenética as relações genealógicas só devem ser obtidas a partir da análise de similaridades especiais, chamadas de caracteres derivados, atributos necessariamente homólogos entre os grupos taxonômicos considerados, ou seja, que representam características que podem (ou não) ser morfologicamente semelhantes e que tenham surgido em um ancestral comum, modificando-se com o passar das gerações (Santos, 2008SANTOS, Charles Morphy Dias. Os Dinossauros de Hennig: sobre a importância do monofiletismo para a sistemática biológica. Scientiae Studia, v. 6, n. 2, p. 179-200, 2008.).

A busca por um método rigoroso alçou a cladística a um lugar de maior visibilidade em pouco tempo (o espaço de aproximadamente duas décadas) tornando-se o método preferido para as classificações atuais. Gradistas e Cladistas, contudo, seguem disputando sobre o status metodológico mais apropriado para organizar a vida, com os filogeneticistas ganhando maior aceitação na comunidade científica atualmente.

Os espaços de ensino serão preciosos para a circulação dos discursos e, nesse campo de saberes em disputa, os discursos conciliadores serão escassos. Ao invés disso, muitos movimentos de desautorização aparecerão, descredenciando, sobretudo, a sistemática evolutiva de sua condição científica, destacando sua incapacidade de ser precisa e, com efeito, afirmando-a como um método obscuro diante de um método claro (Figura 1).

Figura 1
(a) representa um cladograma e (b) um diagrama gradista

Além disso, inferências e idiomáticas cladísticas serão possibilitadas em grande medida pela utilização de informações construídas na biologia molecular e trabalhadas em programas computacionais e este será um forte argumento para filiar-se a um discurso e sujeitar outro. As técnicas moleculares trouxeram vastos conjuntos independentes de dados e tem havido contínuos avanços na extração do DNA, sequenciamento de genes, alinhamento de sequências e no desenvolvimento de programas computacionais para adequada interpretação dos dados. Em consequência da crescente disponibilidade desses métodos, os sistematas têm tido a oportunidade de incorporar aos seus estudos as abordagens macromoleculares, que não mais ocupam um domínio separado, mas passam a constituir parte integrante das ferramentas utilizadas em sistemática (Pirani, 2005PIRANI, José Rubens. Sistemática: tendências e desenvolvimento, incluindo impedimentos para o avanço do conhecimento na área. Brasília: CGEE, 2005. Disponível em: https://www.cgee.org.br/documents/10195/734063/1.7.3_997.pdf/134241f0-ad63-40df-b55c-e48c675a2057?version=1.0. Acesso em: 6 ago. 2020.
https://www.cgee.org.br/documents/10195/...
).

O final do século XX apresenta um espaço fértil de possibilidades e nesse contexto, Woese, Kandler e Wheelis (1990)WOESE, Carl; KANDLER, Otto; WHEELIS, Mark. Towards a Natural System of Organisms: proposal for the domains Archaea, Bacteria, and Eucarya. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, v. 87, n. 12, p. 4576-4579, 1990. indicaram novos direcionamentos classificatórios no artigo intitulado Towards a Natural System of Organisms: proposal for the domains Archea, Bacteria, and Eucarya. O texto, cuja parte inicial apresenta a necessidade de se reestruturar a sistemática, lança mão das informações/interpretações moleculares para eleger o critério da classificação ou as bases para uma reestruturação mais apropriada ao mundo vivo, nesse caso, sequências nucleotídicas de RNA ribossômico. O número de diferenças nas sequências é a base para inferir sobre as relações evolutivas e demarcar os domínios da vida e não mais em reinos. Embora tenha sido criticado no início, a proposta de três domínios ocorre em um espaço de crise taxonômica e da forma referida por Margulis e Schwartz (2001)MARGULIS, Lynn; SCHWARTZ, Karlene. Cinco Reinos: um guia ilustrado dos filos da vida na Terra. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2001. naquele contexto – como uma ameaça, ou seja, como um novo saber que poderia descredenciar a autoridade acadêmica de inúmeros taxonomistas e sistematas gradistas.

Ensinar

A confusão biológica percorrida por docentes que ensinam biologia ou nas formações iniciais em licenciaturas da área, sobretudo, no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, não foram simploriamente explicadas como mudança de conteúdo, entendida como “refutação de erros antigos e nascimento de novas verdades” e nem por uma alteração da forma teórica no sentido de uma “renovação de paradigma ou na modificação dos conjuntos sistemáticos” (Foucault, 2008cFOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008c., p. 04). Não havia uma autoridade personificada estabelecendo o melhor saber, não havia um livro atual assertivamente mais apropriado que um livro tradicional. As mudanças da biologia no século XX decorriam de múltiplas áreas, possivelmente de múltiplas bases epistemológicas e que imputavam adesões.

Sobre tais movimentos podemos pensar que “[…] a grande imagem biológica de uma maturação da ciência ainda alimenta muitas análises históricas […]. Entretanto, a biologia não é constituída por, ‘simplesmente’ novas descobertas; ela acontece em um novo ‘regime’ no discurso e no saber” (Foucault, 2008cFOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2008c., p. 3). Assim, a questão em evidência é o que rege enunciados e a forma como esses enunciados se regem para construir as proposições cientificamente aceitáveis e suscetíveis de serem verificadas ou infirmadas como procedimentos científicos. O lugar e o argumento das Archaebacterias não estava em 19773 3 A separação entre os domínios Bacteria e Archaea deu-se na década de 1970, quando o microbiólogo Carl Woese (1928-2012) verificou a possibilidade da separação após comparar sequências de RNA ribossómico de várias espécies, suas proposições foram publicadas em 1977 em um artigo intitulado Phylogenetic structure of the prokaryotic domain: the primary kingdoms. como esteve em 1990. Quatro, cinco ou seis reinos muito diferem dos três domínios, assim como os critérios de similaridade calcados no número de células, na presença de um núcleo celular organizado ou em formas de nutrição que não serão melhorados ou aprimorados pelo critério genealógico de análise sequencial de nucleotídeos.

A associação entre os estudos moleculares e as práticas de classificação no final do século XX não serão apresentadas de maneira conciliatória, haverá uma ruptura. As ciências biológicas enunciam o abandono de uma linguagem ou de uma forma de representar o objeto vivo. Não existem tipos ou relações entre tipos, o que passa a existir é o curso de um filme evolutivo com atores que mudam o tempo todo, as relações estão, não mais são, existirá mutabilidade, transformação, instabilidade e movimento. Não é/será o tempo de superar a sistemática evolutiva, mas de se admitir que as ferramentas e o modus operandi da construção de genealogias gradistas não representou um rompimento da episteme clássica, pela incapacidade de seus praticantes em decidir, assim como os lineanos, o que era natural, o que era mais relevante, o que era ou deveria ser considerado diante de tantas coisas a se considerar.

Para uma geração de biólogos, tanto as categorias de Linné como as formas de representar genealogias na sistemática gradista ou evolutiva podem ser apresentadas em termos definidos por Foucault ao se referir aos “saberes sujeitados”, entendidos como uma série de saberes que estavam desqualificados e insuficientemente elaborados, que eram/seriam “[…] saberes ingênuos, saberes hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do nível do conhecimento ou da cientificidade adquiridos” (Foucault, 2005FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 12).

Essa sujeição de saberes ocorre por um discurso que estabelece um novo campo de possibilidades, não se tratando de um novo paradigma ou de um aprimoramento, ao menos em determinada perspectiva na qual podemos vislumbrar uma descontinuidade na discursividade da biologia moderna, algo que aparece ante o olhar do naturalista e emerge noutro espaço de saber, no qual “[…] as autoridades semi-subjetivas em Sistemática foram suplantadas por equipes empregando métodos analíticos em acelerado desenvolvimento e computadores habilitados a empregá-los mais e mais eficientemente” (Pirani, 2005PIRANI, José Rubens. Sistemática: tendências e desenvolvimento, incluindo impedimentos para o avanço do conhecimento na área. Brasília: CGEE, 2005. Disponível em: https://www.cgee.org.br/documents/10195/734063/1.7.3_997.pdf/134241f0-ad63-40df-b55c-e48c675a2057?version=1.0. Acesso em: 6 ago. 2020.
https://www.cgee.org.br/documents/10195/...
, p. 3).

Outra racionalidade estabelecerá o saber que deve ser adjetivado como científico. Não se trata, nesses termos, de se questionar a metanarrativa darwinista, mas de tornar visíveis interdições, sujeições e produtividades. Haverá, nesse tempo, o que é desejável e o que é ultrapassado, uma prática condenada e outra prática aceita, e, desse campo em disputa, as resistências aparecem, e outros locais para os saberes sujeitados são delimitados. Estabelecer reinos e relacionar características morfofisiológicas às classes será algo considerado fundamental ou básico no ensino de ciências/biologia, talvez um desejo para a formação inicial se faça presente – antes de sabermos sobre genoma temos que saber sobre o tipo de respiração, a forma do coração ou a quantidade de vitelo no ovo.

Essa constatação não é crítica ou proposição de mudança, antes, deve ser pensada como o dispositivo que faz a biologia funcionar nas escolas, nos livros didáticos e nos exames nacionais de admissão nas universidades. Até esse ponto, não se deve esperar conflito e sim o estabelecimento de uma visão da biologia que seja naturalística, morfológica, empírica em um senso comum que reconhece formas e ratifica enunciados.

A inserção do conteúdo filogênese é indicada na contemporaneidade como algo necessário à melhoria do ensino de biologia. Em uma pesquisa, Lopes e Vasconcelos (2012)LOPES, Welinton Ribamar; VASCONCELOS, Simão Dias. Representação de Distorções Conceituais do Conteúdo “Filogenia” em Livros Didáticos de Biologia do Ensino Médio. Ensaio – Pesquisa em Educação em Ciências, Pampulha, UFMG, v. 14, n. 3, p. 49-165, 2012. analisaram 13 coleções didáticas de biologia e constataram termos imprecisos ou conceitualmente distorcidos em relação aos discursos hegemônicos que tratam das formas de classificar e estabelecer relações evolutivas. No âmbito dessa discussão, o erro conceitual não é o foco e sim as compreensões e representações possíveis em epistemes. Segundo Carvalho (2007)CARVALHO, Alexandre Filordi de. História e Subjetividade no Pensamento de Michel Foucault. 2007. 242 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., as transformações atinentes ao campo epistemológico podem ser apreendidas e demonstradas pelo entendimento das diferentes maneiras e abordagens dispensadas a uma série de empreendimentos históricos, cujo cerne é o da descontinuidade e isto é algo importante na educação e no ensino de ciências. Questões relacionadas aos regimes de constituição dos saberes são subjacentes aos processos de aprendizagem das ciências, pois modificam nossa visão e nossa relação sobre o saber científico.

A educação pode ser pensada como algo que deve dirigir-se aos conflitos, aos campos heterogêneos e, sobretudo, ao entendimento de que pensar com o conhecimento é diferente de simplesmente acatá-lo. Nesses termos, como apontam Joaquim e El-Hani (2010)JOAQUIM, Leyla Mariane; EL-HANI, Charbel Niño. A Genética em Transformação: crise e revisão do conceito de gene. Scientiae Studia, v. 8, p. 93-128, 2010, um conceito como o de gene pode ser mais bem explorado na educação a partir de sua multiplicidade do que de sua pretensa unicidade, assim como as definições de espécie biológica que sugerem uma compreensibilidade mais efetiva ao serem discutidas em seus diferentes contextos históricos (Vieira; Chaves, 2014VIEIRA, Eduardo Paiva de Pontes; CHAVES, Silvia Nogueira. Espécies que ensinamos aos da Nossa Espécie: digressões focaultianas no ensino de biologia. Revista da SBEnBio, n. 7, out. 2014.). Não existirá, em um recorte amplo do que denominamos biologia, mais certezas do que dúvidas. É uma plataforma repleta de fissuras – se olhássemos o quadro da biologia de certa altura é o que veríamos.

Os percursos seculares na biologia não são capazes de borrar seus descaminhos, embora haja um desejo de traçar verdades, aprimoramentos e prescrições, e, para ditames dessta ordem, outras questões podem ser produzidas. Em dado momento, o que entra e o que saí do espaço de ensino? Quais episódios de uma história continuada serão discutidos? E quais serão esquecidos? Certamente algo será recortado ou ajustado, pois nem tudo caberá no tempo de uma disciplina escolar. As formas de pensar o ensino baseadas em prescrições tem lugar destacado na discursividade relacionada à educação/educação em ciências.

Não é função deste texto desaboná-las, antes, sua intenção é a de convidar a pensar com outras ferramentas. Há anos leem-se textos que explicam o equívoco conceitual presente durante décadas na educação básica, que contrapõem Darwin a Lamarck, não mencionando que muitas proposições darwinistas tiveram condições de possibilidade na aceitação de que características adquiridas eram hereditárias (Bizzo, 1988BIZZO, Nelio Marco Vincenzo. A Biologia numa Perspectiva Histórica: o darwinismo em questão. In: BIZZO, Nelio Marco Vincenzo. Ensino de Biologia: dos fundamentos à prática. Volume 1. Sergipe: CENP, 1988.), entretanto, podemos nos dirigir a qualquer livro didático nesse início de século para encontrar quadros com girafas e textos falando de um Darwin certo e um Lamarck errado.

Prescrever verdades e técnicas ou lançar mão de ensinar meia dúzia de palavras que consideramos capazes de ordenar as ciências biológicas trará efeitos. Quem viveu a verdade da escola gradista, viverá nos próximos anos a assertividade da escola cladística; quem viveu a mentira da transmissão de caracteres adquiridos terá que repensar nos acertos da epigenética. É necessário, nesse tempo, lidar com a dinâmica cientifica e a efemeridade de algumas verdades.

Compreender… jamais negar

A transitoriedade cientifica é um objeto de estudo secular, a crítica direcionada ao ensino dogmático de uma ciência neutra não deve ser proposta como algo que corrobore a negação da ciência. Gaston Bachelard, Georges Canguilhem, Michel Foucault, entre outros, são autores capazes de promover o entendimento do empreendimento científico, de suas nuances e mudanças e não da negação de seus resultados.

As classificações biológicas, divergentes em suas bases epistêmicas, sejam fixistas ou evolutivas e dentro do evolucionismo gradistas ou filogenéticas não são convites para a negação da existência do objeto vivo. O exercício crítico na formação científica e docente, daqueles que ensinam ciências, são imprescindíveis para a compreensão do fazer científico e consequentemente do seu entendimento. A ideia evolucionista, por exemplo, terá sistemas de escolhas distintos e que operam em epistemes igualmente distintas. As escolas gradista e filogenética podem ser afirmadas como pertencentes a um mesmo “paradigma kuhniano”, como referem Santos e Klassa (2012)SANTOS, Charles Morphy Dias; KLASSA, Bruna. Sistemática Filogenética Hennigiana: revolução ou mudança no interior de um paradigma? Scientiae Studia, v. 10, n. 3, p. 93-612, 2012.. Contudo, na perspectiva foucaultiana, o que permite individualizar um discurso é o fato de que se possa atribuir-lhe uma existência independente, sendo insuficiente procurar em uma opção teórica o fundamento geral de um discurso e a forma global de sua identidade histórica, “[…] pois uma mesma opção pode reaparecer em dois tipos de discursos; e um só discurso pode dar lugar a várias opções diferentes” (Foucault, 2008aFOUCAULT, Michel. A Posição de Cuvier na História da Biologia. In: MOTTA, Manoel Barros (Org.). Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Tradução: Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008a. P. 192-230. (Coleção Ditos & Escritos, Volume II)., p. 105).

Ainda que a observação de várias biologias não seja algo incomum em discussões relacionadas ao ensino, a unicidade questionada no cômpito deste texto não se refere exclusivamente aos assuntos, conteúdos, disciplinas ou pesquisadores. Para além disso, descreve um campo em movimento e que disputa o poder de significar a ideia de vida, neste caso específico, a de classificar os viventes, produzindo um ensino que é fruto desses saberes em disputa, discutido a partir de espaços ou campos de possibilidade de saberes – epistemes.

As discussões que encontramos entre as escolas sistemáticas suscitam a possibilidade de posicioná-las como saberes complementares ou antagônicos. Isso ocorre porque entre esses discursos existem intersecções, cuja análise, ao nível de suas formações discursivas, implicam necessariamente em desconsiderar tais discursos em sua ordenação sistemática, passando a considerá-los não mais como o estado ou a fase final de uma elaboração relacionada à língua, pensamento, experiência empírica, contingência dos acontecimentos etc. (Foucault, 2008aFOUCAULT, Michel. A Posição de Cuvier na História da Biologia. In: MOTTA, Manoel Barros (Org.). Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Tradução: Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008a. P. 192-230. (Coleção Ditos & Escritos, Volume II).). Há uma necessidade de ver as ciências biológicas e o seu ensino como campo em movimento, instável o suficiente para que nele se assentem estruturas ou, como afirma Foucault (2008b, p. 62)FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008b., “[…] o estudo dos seres vivos não é o jogo de conceitos que vemos aparecer, não obedece a condições tão rigorosas: sua história não é, pedra por pedra, a construção de um edifício”. Tal compreensão dirige-se ao encontro de uma compreensão que admite a não pulverização ou desintegração de um sistema de pensamento completamente – elementos de sua possibilidade continuarão dispersos nos espaços de saber.

A possibilidade de descrever um jogo de relações entre os acontecimentos e os outros sistemas que lhe são exteriores não deve ser tomada como remediação para os problemas do ensino de ciências, ainda assim, muitos trajetos investigativos possibilitam concluir, de certa forma, que esse tipo de discussão possibilita ver a defasagem enunciativa na posição dos sujeitos que classificam ou que elencam os critérios mais relevantes a serem utilizados na classificação (ora o naturalista de campo/ ora o geneticista no laboratório).

Michel Foucault, por vezes apresentado como crítico da verdade, suscita saber sobre as verdades e sobre pensar as coisas como estão em vez de como sempre foram ou sempre serão. Assim, os conceitos aqui investigados podem ocupar espaços e subjetivações distintas e em todos esses casos, produzindo uma ciência que é espaço e campo em movimento, com discursos capazes de disputar sobre o poder de ordenar seus objetos – seu ensino é produto desse movimento e é produto desses saberes em disputa. Isso se torna o não dito de uma biologia que já é ensinada assim. Compreendê-la é necessário, negá-la jamais.

Considerações Finais

Neste ensaio, buscamos compreender em que instancia a sistemática evolutiva pode representar uma descontinuidade em relação à sistemática lineana à luz dos pressupostos teóricos e epistemológicos do filósofo Michel Foucault. Exercícios epistemológicos na biologia/ciência são movimentos importantes para os profissionais da área do ensino de ciências, em destaque ao professor, uma vez que podem servir como ferramenta auxiliadora em debates curriculares, planejamento de estratégias didáticas e planos de aula, entre outros elementos que circundam o universo das salas de aula.

A sistemática biológica constitui um palco de disputa de poder, no qual discursos da sistemática gradista ou evolutiva e a sistemática cladista ou filogenética ditam verdades, o que pode ser dito e o que deve ser silenciado. Análises históricas, sociais, tecnológicas, entre outras, possibilitam compreensões e representações possíveis em epistemes. Esse dinamismo no meio científico influencia o ensino desses conteúdos.

Por fim, fomentamos a reflexão de uma abordagem para essas teorias que possibilite um pensar do conhecimento para além da simples aceitação de uma verdade; na percepção de que as teorias não possuem uma continuidade e que o surgimento de uma vertente não substitui ou anula a outra, mas sim a existência de condições que permitem o surgimento e aceitação delas. Assim, convidamos, especialmente os professores de biologia/ciências, a embarcar nesse exercício epistemológico de forma crítica e reflexiva para que as provocações aqui feitas possam incentivar que esse caminho se torne frutífero e – quem sabe – transformador na Formação de Professores e no Ensino de Ciências.

Notas

  • 1
    O artigo é baseado em dados presentes no capítulo Ser Classificado da tese de doutoramento intitulada Ser vivo, ser espécie, ser classificado: epistemes, dispositivos e subjetivações no ensino de Ciências e Biologia com ampliações e atualizações (Vieira, 2013VIEIRA, Eduardo Paiva de Pontes. Ser Vivo, Ser Espécie, Ser Classificado: epistemes, dispositivos e subjetivações no ensino de Ciências e Biologia. 2013. 126 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemáticas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2013.).
  • 2
    Referência às categorias propostas por Linné no Systema Naturae, 1735, na qual é possível visualizar nomes e características dispostos em tabela. Original digitalizado pode ser acessado no seguinte link: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Carl_linne_1735_systema_naturae_s1.jpg.
  • 3
    A separação entre os domínios Bacteria e Archaea deu-se na década de 1970, quando o microbiólogo Carl Woese (1928-2012) verificou a possibilidade da separação após comparar sequências de RNA ribossómico de várias espécies, suas proposições foram publicadas em 1977 em um artigo intitulado Phylogenetic structure of the prokaryotic domain: the primary kingdoms.

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Editado por

Editores responsáveis: Luís Henrique Sacchi dos Santos; Leandro Belinaso Guimarães; Daniela Ripoll

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2022
  • Aceito
    12 Jan 2023
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