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Do Homo Œconomicus ao Homo in Debitum: efeitos do neoliberalismo na educação

RESUMO

Neste artigo discute-se a dívida e o endividamento no mercado educacional como um dispositivo de controle biopolítico nos processos de subjetivação da lógica neoliberal estabelecido pelo gradiente do Homo œconomicus, fazendo com que o consumo educacional seja o investimento na constituição do capital humano. De modo que a produção do sujeito endividado transpõe a subjetividade do modelo do Homo œconomicus para a figura do Homo in debitum, constituindo o efeito desse dispositivo biopolítico. Por fim, aponta-se que o controle que se instaura na vida endividada, no próprio jogo biopolítico, pode provocar resistência para a invenção de outros regimes de verdade que produzam outras subjetividades que não sejam governadas pela dívida.

Palavras-chave
Neoliberalismo; Educação; Dívida; Capital Humano; Privatização

ABSTRACT

In this paper debt and indebtedness in the educational market is under discussion, which puts in operation a biopolitical control device in the subjectivization processes of the neoliberal logic established by the gradient of Homo œconomicus, making educational consumption an investment in the constitution of human capital. So, the production of the indebted subject transposes the subjectivity of the Homo œconomicus model to the form of Homo in debitum, which constitutes the effect of the biopolitical device. Finally, the paper points out that the control introduced in the indebted life, in the own biopolitical game, can provoke a resistance toward the invention of different truths that would produce other subjectivities not governed by debt.

Keywords
Neoliberalism; Education; Debt; Human Capital; Privatization

Introdução

No curso da vida contemporânea dos indivíduos – dimensionados em populações, objeto da biopolítica neoliberal –, a constituição do capital humano entra no jogo do investimento educacional, no qual um dos elementos que mais se ressalta é a formação escolar. A partir dessa constatação, trata-se de discutir a dívida, mais especificamente, o endividamento operado na vida dos indivíduos, que são levados à compra de produtos disponíveis no mercado educacional ou mesmo à aquisição de crédito para a compra desses produtos.

O crédito efetivado por meio de empréstimo para o consumo educacional, por sua vez, não é outra coisa senão a contração de dívida que ocorre para a consubstanciação da constante busca pela qualificação através da formação, o que funciona como um dispositivo nos processos de subjetivação, tanto individual, como social que, na lógica neoliberal, é estabelecido pelo gradiente do Homo œconomicus na racionalização das condutas, fazendo com que o consumo seja entendido como investimento na constituição do capital humano.

Desse modo, na busca de formação que possa configurar o capital humano, por meio da escolarização, os indivíduos, ao assumirem um certo empreendedorismo e empresariamento de si, são instados à contração de dívidas que funcionam como técnicas de governo. Tais técnicas conduzem conduta dos indivíduos nessa busca pela qualificação e os leva ao endividamento, que tem como efeito a produção do sujeito endividado, transpondo a subjetividade do modelo do Homo œconomicus para a figura do Homo in debitum.

Para pôr em destaque essa questão da dívida e do endividamento, o que será aqui discutido é o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) que é um programa do Ministério da Educação destinado a financiar cursos de graduação para alunos matriculados em instituições de ensino superior privadas, mediante determinados critérios que permitem ao estudante adquirir o empréstimo para o custeio de sua formação. A análise dos efeitos desse programa na vida dos estudantes como um dispositivo de governo de suas condutas é ancorada em noções desenvolvidas por Michel Foucault na genealogia da arte neoliberal de governo.

Veridição do Mercado e Dívida na Sociedade Empresarial

Na primeira aula do curso Nascimento da Biopolítica, em 10 de janeiro de 1979, Michel Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. introduz o problema do governo na contemporaneidade, especificamente o regime geral da razão governamental do liberalismo, sob o argumento de que a análise da biopolítica só é possível mediante a compreensão do regime liberal como questão de verdade, sobretudo, como verdade econômica que informa a racionalidade desse regime de governo. De sorte que ele aponta que a economia política introduz na arte de governar, em meados do século XVIII, de um lado, a possibilidade de limitação do governo e, de outro, a questão da verdade, o que, para Foucault, significa a entrada em uma época capital na qual um governo nunca sabe o quanto de risco corre ao governar demais, da mesma forma que nunca sabe, ao certo, como governar somente o bastante. Estabelece-se, então, um determinado regime de verdade que, de modo preciso, caracteriza o que Foucault chama de “era da política” (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 25), tempo no qual se instaura o jogo entre o verdadeiro e o falso na articulação de discursos com séries de práticas que se dão no plano da realidade.

A economia política introduz na arte de governar moderna o princípio da verdade como vetor que indica menos ou mais governo, já que nenhum governo sabe exatamente o quanto governar e como governar apenas o suficiente. Foucault chama a atenção para isso, alertando que não se trata do triunfo da verdade na política, nem tampouco da chegada a um limiar de saber que pudesse conferir cientificidade à arte de governar:

Quero dizer que esse momento […] é marcado pela articulação, em uma série de práticas, de um certo tipo de discurso que, de um lado, o constitui como um conjunto ligado por um vínculo inteligível e, de outro, legisla e pode legislar sobre essas práticas em termos de verdadeiro ou falso

(Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 25).

Ou seja, o que Foucault diz é que esse momento histórico, situado no meado do século XVIII, é marcado pela articulação entre discursos constituídos por uma inteligibilidade coerente, pensada e racionalizada e por práticas diversas, assim como aos efeitos dessas práticas diversas, o que permite avaliar se tais práticas são boas ou ruins, não em virtude de uma lei ou de uma moralidade, mas em relação à demarcação do verdadeiro e do falso. O que Foucault quer mostrar1 1 Foucault, nesse sentido, trata do regime de verdade que se instaura como princípio de autolimitação do governo. De certa forma, a operação que ele realiza é a mesma de quando estuda a loucura, a delinquência e a sexualidade, uma vez que não trata de mostrar como esses objetos ficaram ocultos antes de serem descobertos ou ainda como tais objetos não são mais que ilusões ou produções ideológicas a serem desveladas pela razão que os descobre. O que Foucault faz é mostrar por que interferências em uma série de práticas, ao serem alinhadas em um regime de verdade, fizeram com que aquilo que não existia (loucura, delinquência, sexualidade) passasse a existir na realidade. é que um novo regime de verdade é instaurado para a legitimidade da nova arte de governar. O que ele quer

[…] é mostrar como o par ‘série de práticas/regime de verdade’ forma um dispositivo de saber-poder que marca efetivamente no real o que não existe e submete-o legitimamente à demarcação do verdadeiro e do falso

(Foucault, 2008, p. 27).

No atual contexto neoliberal brasileiro, é possível dizer que o mercado, no seu modo de estabelecer a veridição, informa a verdade pelos mecanismos da troca que acabam por prescrever o preço das coisas que enformam a sociedade, especialmente no que diz respeito à sua vinculação à política econômica. Por outro lado, também é possível dizer que emerge um modo de funcionamento social calcado no mercado, a ponto de suas lógicas de valor, troca, investimento, lucro, cálculos de risco e de perigo serem estendidas para praticamente todas as esferas da vida, configurando uma sociedade empresarial modulada pela concorrência, típica da economia de mercado. Funcionamento tal que se encontra em um franco processo de privatização da sociedade e do indivíduo, já que a privatização não se restringe àquilo que corresponde ao mero pagamento por serviços adquiridos pelo indivíduo. Isto seria uma privatização stricto sensu. Foucault observa que a ideia da privatização, restando ao indivíduo proteger-se dos riscos através de reservas próprias por meio de sociedades de ajuda mútua, era algo perceptível nas ações políticas francesas do final da década de 1970, momento em que o curso Nascimento da Biopolítica estava sendo desenvolvido. É essa a tendência: a política social privatizada (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 199).

Ou seja, a privatização neoliberal atravessa as relações sociais e as subjetividades, atribuindo, individualmente aos sujeitos, a garantia contra riscos e perigos, de maneira que cada um deva fazer a gestão dos próprios riscos, calcular suas ações para se proteger, sem que possa reivindicar à sociedade inteira, ou mesmo à economia, para que dê a cobertura dos riscos que o ameaçam e expõem aos perigos. Em poucas palavras, há uma responsabilização do indivíduo por tudo que possa lhe acontecer, transferindo aquilo que seria da esfera das políticas sociais para o campo da responsabilidade individual, quase que para o foro íntimo, já que toda e qualquer ação acaba passando pelo filtro da liberdade de escolha. Logo, responsabiliza-se o sujeito pela escolha feita, individualizando o social, ao mesmo tempo em que se privatiza as escolhas, as responsabilidades.

Foucault (2008) analisa o uso que o neoliberalismo faz da economia de mercado, especialmente de seu gradiente analítico para a decifração de fenômenos sociais que, embora possam ter relações indiretas com a economia, não pertencem estritamente a esse campo. Trata-se da aplicação da grade de inteligibilidade econômica ou de uma análise economista, na expressão do filósofo, para o entendimento de objetos, campos e condutas que não são mercantis, que não estão propriamente vinculados ao mercado, à economia. Ou, em outras palavras, trata-se da economização da sociedade. Por exemplo, aplica-se a lógica mercantil para decifrar o campo da educação, da formação dos filhos, da família, da escolarização, que não são fenômenos adstritos a relações econômicas propriamente.

Essa aplicação do gradiente econômico a fenômenos que não são estritamente ligados a processos e estruturas mercantis acaba por caracterizar a inversão das relações da dimensão social com a econômica e corresponde à política de sociedade, que, por sua vez, se encarrega da generalização da forma empresa no corpo social, de tal sorte que esse corpo social seja desdobrado de acordo com a lógica empresarial. A existência do indivíduo, nessa perspectiva, não se inscreve em uma grande empresa que seria, afinal, o próprio Estado, mas em um múltiplo complexo empresarial que emaranha suas escolhas e suas ações. Além disso, a própria existência do indivíduo deve se tornar uma empresa múltipla e permanente, que, de certo modo, o privatiza na medida em que todos os gestos, todas as ações, todos os esforços, acabam por resvalar na dimensão individual. Assim, com vistas a fazer de sua existência um campo de empreendimento e de constante inovação, o descola de todo o contexto político-econômico para o habilitar à competição com os outros, que também devem se comportar como empresas no mercado comum da vida humana neoliberalizada.

O que se configura, portanto, é o estabelecimento de uma forma de vida que é o desdobramento do modelo econômico na existência dos indivíduos. Veiga-Neto (2011)VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidades, Neoliberalismo e Educação. In: BRANCO, Guilherme Castelo; VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). Foucault: filosofia & política. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. argumenta, nesse sentido, que nos cursos desenvolvidos por Foucault, a partir da segunda metade da década de 1970, está bem claro que, ao contrário de se compreender o liberalismo e o neoliberalismo respectivamente como fundamentação e justificativa do capitalismo e do capitalismo avançado,

[…] é mais produtivo compreendê-los como modo de vida, como ethos, como maneira de ser e de estar no mundo. Em termos educacionais, isso é da maior importância, na medida em que, ao invés de a escola ser vista como um lugar onde se ensinam e se aprendem ideologias, ela, bem mais que isso, passa a ser entendida como uma instituição encarregada de fabricar novas subjetividades

(Veiga-Neto, 2011VEIGA-NETO, Alfredo. Governamentalidades, Neoliberalismo e Educação. In: BRANCO, Guilherme Castelo; VEIGA-NETO, Alfredo (Org.). Foucault: filosofia & política. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 38).

Nessa fabricação de novas subjetividades, se generalizam mecanismos biopolíticos cuja operação se dá em torno da oferta, da procura, do custo, do investimento, do risco, do perigo, do lucro; enfim, das perdas e ganhos na vida do indivíduo e, do indivíduo, na vida da sociedade, de tal modo que o modelo econômico se torna paradigmático das relações sociais, da formação, das subjetividades individuais e coletivas, consubstanciando “[…] um modelo da existência, uma forma de relação do indivíduo consigo mesmo, com o tempo, com seu círculo, com o futuro, com o grupo, com a família” (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 332).

Ou seja, a generalização do modelo empresarial traz implicações para a existência dos indivíduos, de maneira que se constituem pontos de ancoragem em torno de suas vidas, pontos que são concretos e que constituem a política da vida. Assim, o mercado acaba por provocar efeitos de existência nesse modo de vida da sociedade empresarial, prescrevendo comportamentos, atitudes, ações e condutas. O que entra em jogo, nesse modelo de sociedade empresarial engendrada segundo regras da economia de mercado, é o sujeito individual, na medida em que seu comportamento é tomado do ponto de vista econômico, ou seja, seu comportamento é analisado pela grade de inteligibilidade da economia, já que a generalização da forma econômica do mercado faz esse gradiente funcionar como princípio de decifração das relações sociais e dos comportamentos individuais.

Logo, o sujeito é tomado para análise de sua inserção na sociedade (empresarial) sem se levar em conta conteúdos de tipo sociológico, psicológico ou antropológico, mas apenas aquilo que pode torná-lo governamentalizável, o que quer dizer que só se pode exercer qualquer ação sobre ele, que o poder recai sobre ele apenas na medida em que esse indivíduo é Homo œconomicus. “Ou seja, a superfície de contato entre o indivíduo e o poder que se exerce sobre ele, por conseguinte o princípio de regulação do poder sobre o indivíduo, vai ser essa espécie de grade do Homo œconomicus” (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 345-346).

Pode-se dizer, assim, que, nessa grade de inteligibilidade do Homo œconomicus, instaura-se um regime de verdade que compõe, com determinadas práticas, um dispositivo de saber-poder no meio educacional, provocando uma série de efeitos: de discurso, poder, existência, enfim. Embora Foucault observe que aquilo que os neoliberais denominam investimentos educacionais – tratando-se daquilo que constitui o capital humano na formação da competência-máquina – não se restringe à escolarização ou à aprendizagem profissional, é possível afirmar que a educação ou, em termos menos abrangentes, as práticas escolares, na configuração de uma sociedade empresarial, estão diretamente implicadas e submetidas às grades da inteligibilidade neoliberal.

Em outras palavras, mesmo a escola e a escolarização não pertencendo estritamente ao campo da economia, acabam sendo, por um lado, decifradas pelo esquema do gradiente econômico e, por outro, sendo um fenômeno social que interage no meio neoliberal. O aparelho escolar é, ele próprio, um mecanismo de biorregulação social. Então, a partir dessa perspectiva da grade de inteligibilidade neoliberal, é possível afirmar que a educação escolar, em seu funcionamento nesse modelo social, configura-se como uma educação empresarial que consubstancia práticas e produz indivíduos que se correlacionam com o modo de vida empresarial.

No regime de verdade instaurado pelas coordenadas neoliberais para a composição do capital humano no âmbito da sociedade empresarial, o indivíduo, imbuído do senso de empreendedorismo, enxerga na educação, de modo geral, e na escolarização, em particular, um modo de compor adequadamente o seu capital humano. É assim, pela aquisição de competências, pelo domínio do aprender-a-aprender, pelo aperfeiçoamento de técnicas, pela aprendizagem de novos saberes, pela certificação, pela posse de um diploma após o outro, que, na sociedade do conhecimento encampada pela sociedade empresarial, o Homo œconomicus, como um sujeito em constante formação e como um aluno perpétuo, torna-se o correlato do Homo discentis, “[…] um Homo aprendiz permanente, definido por sua condição de ser um aprendiz ao longo de sua vida, ou melhor, um Homo que, para ser tal, deve aprender permanentemente” (Nogueira-Ramírez, 2011NOGUEIRA-RAMÍREZ, Carlos Ernesto. Pedagogia e Governamentalidade ou da Modernidade como uma Sociedade Educativa. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., p. 17).

Ou seja, no cruzamento entre a lógica empresarial e a aprendizagem vitalícia, entre o empreendimento individual do modelo de homem econômico e os mecanismos que o fixam nos lineamentos da sociedade do conhecimento2 2 A sociedade do conhecimento, também chamada de sociedade da aprendizagem, sociedade educativa ou mesmo sociedade educativa, caracteriza-se como o espaço e o tempo em que a aprendizagem deve ser constante e por toda a vida, em uma espécie de inflação educativa por todo o corpo social e em todas as fases da vida dos indivíduos, tornando-se uma formação infindável, fazendo do habitante dessa sociedade um aprendiz permanente, dado que sua formação deve ser vitalícia, em um processo sem interrupção. Para uma discussão mais detalhada a esse respeito, consultar Resende (2018). , se interpõe o mercado, não só como lugar da verdade, mas também como espaço de práticas que se vinculam às verdades instauradas pelo seu regime discursivo. Ora, se o mercado com sua verdade é lugar de oferta, de procura, de demanda, de compra, de venda, de crédito, de débito, de investimento; é também de dívida e de endividamento. Logo, na sociedade do conhecimento, a educação passa a ser uma mercadoria necessária no investimento do capital humano, podendo ser adquirida a crédito, como qualquer outro produto disponível no mercado para o livre consumo daqueles providos de poder de compra ou que possuem crédito.

É nesse ponto que a dívida surge não apenas como um mecanismo de mercado, mas também como uma tecnologia de governo3 3 A noção de governo é ampliada para além da ideia de gestão política do Estado, perfazendo um sentido bem mais amplo e que diz respeito à condução de condutas, a modos através dos quais opera-se a gestão do comportamento dos indivíduos, de maneira que se trata do conjunto de táticas discursivas e não-discursivas utilizadas para a garantia do domínio. “Governar é conduzir os comportamentos de uma população, de uma multiplicidade que é necessário vigiar, como um pastor com seu rebanho, para maximizar o potencial e orientar a liberdade” (Comitê invisível, 2016, p. 80). Para Foucault (1995, p. 244), “Governar é estruturar o eventual campo de ação dos outros”. na biorregulação da educação, uma vez que, no afã do empreendedorismo, para angariar insumos para o investimento de sua formação de capital humano, o indivíduo é levado a contrair dívidas para a aquisição de qualificação por meio de mais educação, de mais escolarização, de mais formação. A noção de governo, então, é ampliada para além da ideia de gestão política do Estado, perfazendo um sentido bem mais amplo e que diz respeito à condução de condutas, a modos através dos quais opera-se a gestão do comportamento dos indivíduos, de maneira que se trata do conjunto de táticas discursivas e não-discursivas utilizadas para a garantia do domínio. “Governar é conduzir os comportamentos de uma população, de uma multiplicidade que é necessário vigiar, como um pastor com seu rebanho, para maximizar o potencial e orientar a liberdade” (Comitê Invisível, 2016COMITÊ INVISÍVEL. Aos Nossos Amigos: crise e insurreição. Tradução: Edições Antipáticas. São Paulo: n-1 edições, 2016., p. 80). Para Foucault (1995, p. 244)FOUCAULT, Michel. O sujeito e o Poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica – para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995., “Governar é estruturar o eventual campo de ação dos outros”.

Negri e Hardt (2016)NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Declaração – isto não é um manifesto. São Paulo: n-1 edições, 2016. observam que o trinfo do neoliberalismo provocou mudanças não só na economia e na política, mas também efetuou modificações sociais e antropológicas, ao fabricar novas figuras subjetivas, sendo uma delas a figura do endividado, aquele indivíduo cuja vida é marcada e demarcada pelo endividamento constante e crescente. O que acaba por estabelecer um modo de vida endividado, em que o sujeito vive se endividando e sobrevive sob o jugo da dívida e da responsabilidade de ter que algum dia saldá-la.

Atualmente ter dívidas está se tornando a condição geral da vida social. É quase impossível viver sem contrair dívidas: crédito educativo para a faculdade, hipoteca para a casa, financiamento para o carro, seguro para a saúde etc. A rede de segurança social passou de um sistema de bem-estar social para um de endividamento, pois empréstimos se tronaram o principal meio de satisfazer as necessidades sociais

(Negri; Hardt, 2016NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Declaração – isto não é um manifesto. São Paulo: n-1 edições, 2016., p. 22).

A constituição da subjetividade do indivíduo neoliberal, do Homo discentis, como sujeito que compõe seu capital educacional é calcada na dívida, o que, nesse aspecto, o torna governamentalizável. Trata-se do que Lazzarato (2015)LAZZARATO, Maurizio. O Governo do Homem Endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017. designa como o governo do homem endividado, de tal modo que a dívida constitui uma técnica de governo na produção do sujeito neoliberal.

A dívida é a técnica mais adequada para a produção do homo [sic] œconomicus neoliberal. O estudante não apenas se considera ele mesmo um capital humano, o que ele deve valorizar para seus próprios investimentos (os créditos que ele contrai para estudar), mas ele se sente obrigado, além disso, a agir, pensar e se comportar como se ele fosse uma empresa individual

(Lazzarato, 2017LAZZARATO, Maurizio. O Governo do Homem Endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 67).

Estudante Empreendedor, Estudante Endividado

Com a noção de desenvolvimento atrelada ao capital humano e, ao mesmo tempo, tendo no horizonte de reflexão a segurança e a liberdade, Foucault põe em análise a generalização da forma empresa no corpo social, de maneira que esse corpo social se desdobre não pela vida de cada indivíduo, mas pela empresa, ancorando-se em um regime de verdade que sustenta a ideia de que o indivíduo deve ser o gestor de si mesmo, como capital humano. Ou seja, o indivíduo não vai inscrever sua vida no âmbito de uma grande empresa que, no limite, seria o Estado, como assinalado anteriormente, mas deve inscrevê-la em uma numerosa diversidade de empresas que se encaixam e que se entrelaçam. A própria vida do indivíduo, naquilo tudo que envolve suas relações com família, escolarização, emprego, remuneração, aposentadoria, deve fazer com que ele seja uma espécie de empresa permanente e múltipla, capaz de gerir a si mesmo como tal.

Tendo em vista esse empresariamento que materializa a dinâmica de composição do capital humano na racionalidade e nas práticas neoliberais, as políticas, particularmente as educacionais, são encaminhadas nesse sentido. “É para esse lado, de fato, que se vê claramente que se orientam as políticas econômicas, mas também as políticas sociais, mas também as políticas culturais, as políticas educacionais de todos os países desenvolvidos” (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 319).

A política educacional brasileira conta com o Fies, que tem como enunciado de seus objetivos a inclusão social e a democratização do ensino superior (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Educação. Programa de Financiamento Estudantil: FIES, 2019. Disponível em: http://fies.mec.gov.br/. Acesso em: 22 set. 2019.
http://fies.mec.gov.br/...
). Trata-se de um programa do Ministério da Educação que se destina a financiar cursos de graduação de estudantes matriculados em cursos superiores de instituições privadas que tenham tido avaliação positiva em processos conduzidos pelo próprio Ministério da Educação.

Esse programa financia até 100% do valor dos encargos educacionais cobrados pelas instituições de ensino com adesão ao fundo, a depender de cálculos da renda familiar mensal bruta e do comprometimento com os custos da mensalidade. O Fies é um fundo que se destina, prioritariamente, a estudantes que não tenham concluído o ensino superior e não tenham sido beneficiados pelo financiamento estudantil, sendo vedada a concessão de novo financiamento a estudante inadimplente com o Fies ou com o Programa de Crédito Educativo (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Educação. Programa de Financiamento Estudantil: FIES, 2019. Disponível em: http://fies.mec.gov.br/. Acesso em: 22 set. 2019.
http://fies.mec.gov.br/...
).

Segundo dados do SISFIES4 4 O SISFIES é o sistema informatizado do Fies, uma plataforma disponível na internet que tem a função de sistematizar todo os processos desse Fundo. É através dele que são feitas as adesões de entidades mantenedoras, a inscrição de estudantes, assim como também a execução, o gerenciamento e o controle dos ativos e passivos do Fies (Brasil, 2023). , em 2010, o programa passou a funcionar em um formato em que a taxa de juros do financiamento foi fixada em 3,4% ao ano, o período de carência passou para 18 meses e o período de amortização para 3 vezes o período de duração regular do curso, acrescido de 12 meses (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Educação. Sistema do Programa de Financiamento Estudantil: O que é o FIES? Brasília: MEC, 2023. Disponível em: http://sisfiesportal.mec.gov.br/index.php?pagina=fies. Acesso em: 23 set. 2019.
http://sisfiesportal.mec.gov.br/index.ph...
). O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a partir daquele ano, passou a ser o Agente Operador do programa para contratos formalizados. Além disso, o percentual de financiamento subiu para até 100%, e as inscrições passaram a ser feitas em fluxo contínuo, permitindo ao estudante solicitar o financiamento em qualquer período do ano. A partir do segundo semestre de 2015, os financiamentos concedidos com recursos do Fies passaram a ter taxa de juros de 6,5% ao ano, tendo em vista a sustentabilidade do programa (Brasil, 2019BRASIL. Ministério da Educação. Programa de Financiamento Estudantil: FIES, 2019. Disponível em: http://fies.mec.gov.br/. Acesso em: 22 set. 2019.
http://fies.mec.gov.br/...
). O intuito, ainda de acordo com o site, era de realizar um realinhamento entre a taxa de juros, as condições existentes no ao cenário econômico e a necessidade de ajuste fiscal.

O FNDE (2017)FNDE - Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Financiamento: FIES. Brasília: FNDE, 2017. Disponível em: https://www.fnde.gov.br/financiamento/fies-graduacao. Acesso em: 22 set. 2019.
https://www.fnde.gov.br/financiamento/fi...
, o agente operador do programa de crédito, em sua página de apresentação, traz o argumento de que o Fies “[…] é um modelo de financiamento estudantil moderno, voltado para quem mais precisa, com taxas de juros reais zero e parcelas que cabem no bolso do estudante”. Recomenda que, “[…] para a conquista da sonhada formação profissional, o estudante-devedor, deve manter o seu Fies em dia e com atenção aos valores e às datas de vencimento das parcelas”. Ainda, deixa a dica de que o planejamento financeiro é, de especial importância para “[…] os estudantes na fase de formação profissional” com a recomendação da leitura do Caderno de Educação Financeira (BCB, 2013BCB. Banco Central do Brasil. Caderno de Educação Financeira: gestão de finanças pessoais. Brasília: BCB, 2013. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/pre/pef/port/caderno_cidadania_financeira.pdf. Acesso em: 22 set. 2019.
https://www.bcb.gov.br/pre/pef/port/cade...
) que, de acordo com as prescrições do site, proverá “[…] conhecimentos e informações sobre os comportamentos básicos para melhorar a gestão financeira”.

Por sua vez, o site da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES) apresenta dados apontando que a taxa de inadimplência com o Fies foi crescente nos últimos anos: 42% em 2015, 47% em 2016, 52% em 2017 e 58% em 2018 (Atraso…, 2019ATRASO no FIES bate recorde, e Dívida chega a R$ 13 Bilhões. Abmes, Brasília, 26 abr. 2019. Disponível em: https://abmes.org.br/noticias/detalhe/3280/atraso-no-fies-bate-recorde-e-divida-chega-a-r-13-bilhoes. Acesso em: 22 set. 2019.
https://abmes.org.br/noticias/detalhe/32...
). Esses dados mostram não só alguns índices da dívida e do endividamento na busca por formação educacional, mas também indicam a que custo se efetiva a constituição do Homo œconomicus ou, mais especificamente, acompanhando a denominação de Nogueira-Ramirez (2011)NOGUEIRA-RAMÍREZ, Carlos Ernesto. Pedagogia e Governamentalidade ou da Modernidade como uma Sociedade Educativa. Belo Horizonte: Autêntica, 2011., do Homo discentis, de modo que essa vida, vivida a crédito, produza um tipo bem específico de subjetividade, como apontado anteriormente.

O estudante, ao contratar o empréstimo por uma vontade guiada pela imperiosa necessidade de, como uma empresa, empreender sua qualificação para lidar com as variáveis do meio em que se encontra, também projeta sobre si mesmo mecanismos de controle e de coerção que, ao contrário da disciplina, não são operacionalizados em um espaço fechado como o da própria instituição escolar, por exemplo, e nem vêm de dispositivos exteriores. O controle do sujeito pela dívida é exercido sobre si mesmo em um espaço e em um tempo que são dilatados no interior da própria vida do estudante devedor.

O tempo de quitação da dívida dura anos a fio, até mesmo décadas, tempo em que se supõe que o devedor, essa empresa ambulante, deve se organizar de modo autônomo para a administração eficaz de sua vida, tendo no horizonte a quitação do saldo devedor. Em certo sentido, o diário de sua vida assume a forma de um livro-caixa, posto que vai se comportar como o contador de sua própria vida, o que é consubstanciado na mensagem inicial do Caderno de Educação Financeira (BCB, 2013BCB. Banco Central do Brasil. Caderno de Educação Financeira: gestão de finanças pessoais. Brasília: BCB, 2013. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/pre/pef/port/caderno_cidadania_financeira.pdf. Acesso em: 22 set. 2019.
https://www.bcb.gov.br/pre/pef/port/cade...
), que diz que “Todo cidadão pode desenvolver habilidades para melhorar sua qualidade de vida […], a partir de atitudes comportamentais e de conhecimentos básicos sobre gestão de finanças pessoais aplicados no seu dia a dia”.

Nesse sentido, Lazzarato diz que “A dívida impõe um aprendizado de comportamento, de regras de contabilidade e de princípios de organização usualmente colocados em funcionamento no seio de uma empresa para pessoas que ainda não entraram no mercado de trabalho” (Lazzarato, 2017LAZZARATO, Maurizio. O Governo do Homem Endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 67). A aprendizagem sobre a dívida e pela dívida configura um importante aspecto da formação do homem neoliberal, naquilo que o constitui como sujeito de empreendimento em suas práticas no mercado de trabalho, na produtividade, na formação, na empregabilidade, conferindo-lhe a introjeção de hábitos e atitudes que o conformam adequadamente ao sistema de operação das práticas empresariais. A respeito disso, Lazzarato pergunta:

Que preparação melhor para a lógica do capital e para suas regras de rentabilidade, de produtividade e de culpa do que entrar no mercado de trabalho endividado? Imprimindo no corpo e nos espíritos a lógica dos credores, a educação pela dívida não é a iniciação ideal aos ritos do capital?

(Lazzarato, 2017LAZZARATO, Maurizio. O Governo do Homem Endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017., p. 63).

Para Lazzarato, o tempo e sua duração se situam no coração da dívida, especialmente o tempo futuro, uma vez que não se contabiliza somente o tempo da vida e do trabalho, mas, sobretudo, o tempo que está por vir. A dívida, ao conectar o presente com o futuro, faz desse futuro uma prática de governo, hipotecando os comportamentos, os salários, quando eles existem, e toda a projeção de rendimentos e consumos, em uma espécie de sequestro do porvir.

Embora na contração da dívida se aloje a promessa de futuro, de liberdade no futuro, o estudante endividado se aprisiona no cotidiano presente da dívida que se alonga por boa parte de sua vida. Nessa perspectiva da dívida no tempo e do tempo da dívida, do tempo endividado, Bauman (2010, p. 29)BAUMAN, Zygmunt. Vida a Crédito. Tradução: Alexandre Werneck. Rio de Janeiro: Zahar, 2010., ao argumentar sobre a vida a crédito, afirma que

[…] todo ‘depois’, cedo ou tarde, se transformará em ‘agora’ – os empréstimos terão que ser pagos; e o pagamento dos empréstimos, contraídos para afastar a espera do desejo e atender prontamente as velhas aspirações, tornará ainda mais difícil satisfazer os novos anseios. O pagamento desses empréstimos separa ‘espera’ de ‘querer’, e atender prontamente seus desejos atuais torna ainda mais difícil satisfazer seus desejos futuros.

Conclusão

Na busca de uma formação que possa consubstanciar o capital humano, por meio da escolarização, os estudantes, ao assumirem um certo empreendedorismo e empresariamento de suas vidas, são instados à contração de dívidas que funcionam como técnicas de governo. Essas tecnologias conduzem à conduta dos estudantes em função de se qualificarem, sendo levados a um estado de permanente endividamento que tem como efeito a produção do sujeito endividado, transpondo a subjetividade do modelo do Homo œconomicus para a figura do Homo in debitum, aquele indivíduo cuja vida é governada pela dívida. Ao fazer de sua existência um empreendimento rentável por meio da formação educacional como forma de compor seu capital humano, o sujeito é governado e conduzido pela dívida, tendo sua liberdade orientada pelas lógicas do empresariamento. Seu modo de pensar, seu modo de agir, seus desejos, seus medos, todo o seu comportamento é regulado e modelado pela ânsia empreendedora de si, fazendo com que a dívida funcione como essa tecnologia de governo. É o empresariamento invadindo os processos da vida pelas sendas do campo educacional.

O estudo que Foucault desenvolveu sobre as artes liberais de governo, como Lemke argumenta, também leva a formas de resistência e a práticas de liberdade que bem podem compor estratégias biopolíticas.

O poder que se estende aos processos da vida e procura regulá-los provoca resistência, a qual faz reivindicações e demanda reconhecimento em torno do corpo e da vida. A expansão e a intensificação do controle sobre a vida torna-a concomitantemente alvo das lutas sociais

(Lemke, 2018LEMKE, Thomas. Biopolítica: críticas, debates e perspectivas. Tradução: Eduardo Altheman Camargo Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2018., p. 75).

Ou seja, disciplinamento e regulação, indivíduo e massa, dois polos interligados por inúmeros feixes de relações que estabelecem a normatização da existência, nesse caso especifico, pela dívida. Porém, ao mesmo tempo em que indivíduo e população são alvo de tecnologias de governo que os submete à disciplina e à regulação, configurando, no corpo social, determinado tipo de subjetivação, também é possível a fundação de outros modos de existência, de novas formas de lutas políticas e de resistências que estejam ligadas ao reforço e às reivindicações de direitos e de manutenção de direitos. No horizonte da luta e da resistência está a invenção de outras subjetividades possíveis. Talvez a invenção de um sujeito que negue a viver a vida a crédito ou a prestação, um sujeito que não queira ser governado pela dívida – e queira viver a vida à vista! Ou, ainda mais, o que está no horizonte da luta, da rebeldia, das insurgências como práticas de liberdade talvez seja a invenção de outro regime de verdade, que possa instaurar outros modos de governo, outras formas de vida, outras subjetividades, já que

O problema não é mudar a “consciência” das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade.

Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder […] mas de desvincular o poder da verdade das formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela funciona no momento.

Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade

(Foucault, 1992FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução: Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1992., p. 14).

Notas

  • 1
    Foucault, nesse sentido, trata do regime de verdade que se instaura como princípio de autolimitação do governo. De certa forma, a operação que ele realiza é a mesma de quando estuda a loucura, a delinquência e a sexualidade, uma vez que não trata de mostrar como esses objetos ficaram ocultos antes de serem descobertos ou ainda como tais objetos não são mais que ilusões ou produções ideológicas a serem desveladas pela razão que os descobre. O que Foucault faz é mostrar por que interferências em uma série de práticas, ao serem alinhadas em um regime de verdade, fizeram com que aquilo que não existia (loucura, delinquência, sexualidade) passasse a existir na realidade.
  • 2
    A sociedade do conhecimento, também chamada de sociedade da aprendizagem, sociedade educativa ou mesmo sociedade educativa, caracteriza-se como o espaço e o tempo em que a aprendizagem deve ser constante e por toda a vida, em uma espécie de inflação educativa por todo o corpo social e em todas as fases da vida dos indivíduos, tornando-se uma formação infindável, fazendo do habitante dessa sociedade um aprendiz permanente, dado que sua formação deve ser vitalícia, em um processo sem interrupção. Para uma discussão mais detalhada a esse respeito, consultar Resende (2018)RESENDE, Haroldo de. A Educação por Toda a Vida como Estratégia de Biorregulação Neoliberal. In: RESENDE, Haroldo de (Org.). Michel Foucault: a arte neoliberal de governar e a educação. São Paulo: Intermeios, 2018..
  • 3
    A noção de governo é ampliada para além da ideia de gestão política do Estado, perfazendo um sentido bem mais amplo e que diz respeito à condução de condutas, a modos através dos quais opera-se a gestão do comportamento dos indivíduos, de maneira que se trata do conjunto de táticas discursivas e não-discursivas utilizadas para a garantia do domínio. “Governar é conduzir os comportamentos de uma população, de uma multiplicidade que é necessário vigiar, como um pastor com seu rebanho, para maximizar o potencial e orientar a liberdade” (Comitê invisível, 2016COMITÊ INVISÍVEL. Aos Nossos Amigos: crise e insurreição. Tradução: Edições Antipáticas. São Paulo: n-1 edições, 2016., p. 80). Para Foucault (1995, p. 244)FOUCAULT, Michel. O sujeito e o Poder. In: RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica – para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução: Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995., “Governar é estruturar o eventual campo de ação dos outros”.
  • 4
    O SISFIES é o sistema informatizado do Fies, uma plataforma disponível na internet que tem a função de sistematizar todo os processos desse Fundo. É através dele que são feitas as adesões de entidades mantenedoras, a inscrição de estudantes, assim como também a execução, o gerenciamento e o controle dos ativos e passivos do Fies (Brasil, 2023BRASIL. Ministério da Educação. Sistema do Programa de Financiamento Estudantil: O que é o FIES? Brasília: MEC, 2023. Disponível em: http://sisfiesportal.mec.gov.br/index.php?pagina=fies. Acesso em: 23 set. 2019.
    http://sisfiesportal.mec.gov.br/index.ph...
    ).

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Editado por

Editor responsável: Luís Armando Gandin

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2020
  • Aceito
    07 Fev 2023
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