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Aprendizagem, Inteligência e Meio Social: concepções epistemológicas

RESUMO

O texto relata a análise das questões 12-14, dentre as 24 da pesquisa Epistemologia do Professor de Matemática (Becker, 2012b), cujos dados provêm de entrevistas a 17 docentes de Matemática do Peru, Chile e Uruguai. O objetivo geral é o de identificar as concepções epistemológicas que fundam o ensino de Matemática; o específico é saber como os docentes explicam as capacidades de aprendizagem de alunos de diferentes meios sociais e se pensam que inteligência é herdada. Os docentes revelam epistemologias empiristas ou aprioristas, não construtivistas; creem que nascemos com capacidades inteligentes e o meio as diferencia; sua concepção de aprendizagem não valoriza a ação do sujeito. A referência teórica é a Epistemologia Genética.

Palavras-chave
Epistemologia do Professor de Matemática; Capacidade de Aprendizagem; Função do Meio Social; Inteligência Herdada; Interacionismo Construtivista

ABSTRACT

The text analyses questions 12-14 of the 24 included in the research entitled Epistemology of the Mathematics Teacher (Becker, 2012b), based on interviews with 17 teachers from Peru, Chile and Uruguay. The general aim is to identify the epistemological conceptions underlying mathematics teaching, specifically to learn how teachers explain the learning abilities of students from different social backgrounds and if they think intelligence is inherited. Teachers: display empiricist or aprioristic, rather than constructivist epistemologies; believe intellectual abilities are inherited and differentiated by the environment; and undervalue the action of the subject. The theoretical reference is Genetic Epistemology.

Keywords
Epistemology of the Mathematics Teacher; Learning Ability; The Role of Social Environment; Inherited Intelligence; Constructivist Interactionism

Introdução

O projeto de pesquisa, em fase de análise dos dados, intitula-se: Epistemologia Subjacente ao Trabalho Docente; a docência de Matemática. Ele tem por objetivo geral saber se os problemas epistemológicos, que comprometem o ensino brasileiro de Matemática, aparecem também fora do Brasil: domínio amplo da concepção empirista; sustentação desse empirismo pelo apriorismo; esporádicas intuições interacionistas ou construtivistas, mas sem sustentação teórica necessária para embasar pedagogias ativas. Esses problemas foram levantados por duas pesquisas anteriores, realizadas no Brasil e publicadas em livros (Becker, 2022BECKER, Fernando. A Epistemologia do Professor: o cotidiano da escola. Petrópolis: Vozes, 2022.; 2012bBECKER, Fernando. Epistemologia do Professor de Matemática. Petrópolis: Vozes, 2012b.). Os dados desta pesquisa foram coletados mediante entrevistas semiestruturadas, de duração aproximada de uma hora, presenciais, com 24 questões com desdobramentos, feitas a 17 docentes. Gravadas em espanhol, as entrevistas foram transcritas para o português por duas bolsistas de iniciação científica, uma graduada e outra formanda em Letras – a primeira transcreveu e a segunda revisou toda a transcrição; ambas com domínio da língua espanhola. Ordenados por ordem alfabética, os docentes serão referidos pelo número, que coube a cada um nessa ordem, precedido de P (Professor): dez universitários (U), cinco de ensino médio (M), três de ensino fundamental (F), um deles leciona nos dois níveis da educação básica; cinco uruguaios, cinco chilenos e sete peruanos; nove professoras e oito professores, de instituições educacionais públicas e privadas que atendem a diferentes estratos sociais, desde escola de periferia urbana a centros universitários que atendem predominantemente classe média. (Um ou outro docente pode não aparecer numa ou noutra parte da análise porque, ou não respondeu à pergunta ou fabulou sobre o assunto). Embora realizando essa modalidade de pesquisa há bastante tempo, continua-se considerando pesquisa exploratória. A seleção dos entrevistados obedeceu às seguintes exigências: docentes de, pelo menos, dois países, diversificação ao máximo dos níveis de ensino, docentes de instituições que atendem a alunos de diferentes estratos sociais; as duas últimas exigências minimamente atingidas.

Já a análise que este texto apresenta busca as concepções epistemológicas subjacentes às respostas dos entrevistados às questões 12-14, dentre as 24 da pesquisa. As duas primeiras análises (respostas às questões 1-3 e 4-8) foram publicadas pelo BOLEMA – Boletim de Educação Matemática (Becker, 2019BECKER, Fernando. Construção do Conhecimento Matemático: natureza, transmissão e gênese. Bolema – Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 33, n. 65, p. 963-987, dez. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/bolema. Acesso em: 1 jan. 2022.
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; 2021BECKER, Fernando. Gênese de Noções Matemáticas Elementares: concepções epistemológicas subjacentes às respostas de docentes de Matemática de três países sul-americanos. Bolema: Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 35, n. 70, p. 588-613, ago. 2021. Disponível em: http://www.scielo.br/bolema. Acesso em: 1 jan. 2022.
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); e a terceira (respostas às questões 9-11) submetida a outra revista de educação matemática.

O texto analisa as respostas dos entrevistados às questões:

  1. a criança que nasce e cresce na periferia urbana, ou na favela, aprende matemática do mesmo modo que uma criança de classe média ou alta?

  2. A criança do meio rural aprende matemática do mesmo modo que a do meio urbano?

  3. Se os pais forem inteligentes, a criança também será?

A análise foi realizada à base da Epistemologia Genética, em especial: a teoria de aprendizagem (Piaget; Gréco, 1974aPIAGET, Jean; GRÉCO, Pierre. Aprendizagem e Conhecimento. Tradução: Equipe da Livraria Freitas Bastos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974a.), a gênese da inteligência e a crítica epistemológica (Piaget, 1978PIAGET, Jean. O Nascimento da Inteligência na Criança. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.), as relações entre ação e compreensão (Piaget, 1977bPIAGET, Jean. Fazer e compreender. Tradução: Christina Larroudé de Paula Leite. São Paulo: EDUSP/Melhoramentos, 1977b.), a interpretação do desenvolvimento das capacidades cognitivas pela abstração reflexionante (Piaget, 1995PIAGET, Jean. Abstração Reflexionante: relações lógico-aritmética e ordem das relações especiais. Tradução: Fernando Becker e Petronilha Beatriz da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.). Inicia-se a análise pelas respostas dos docentes a cada pergunta, o que possibilita apreender detalhes cuja riqueza nos leva à apreensão das concepções epistemológicas; em segundo lugar, agrupam-se essas concepções de acordo com as tendências epistemológicas (entendemos que, como pesquisa exploratória, o leitor precisa saber de onde foram extraídas as interpretações desta análise); em terceiro, interpretam-se essas tendências à luz da Epistemologia Genética em sua crítica às epistemologias clássicas – empirismo e apriorismo; em quarto, elabora-se uma crítica geral da parte analisada; e, no final do texto, faz-se uma interpretação epistemológica dos achados num todo interpretativo e crítico. Neste texto, as respostas dos docentes aparecem “purificadas” de repetições, cacoetes linguísticos, faltas de concordâncias gramaticais ou sintáticas etc., comuns na fala, mas incômodas na escrita; sempre com extremo cuidado para não modificar o significado. Utilizaremos colchetes, contendo três pontos para cortes de passagens das falas que não contribuem para a pesquisa, para acréscimo de palavra ou expressão para completar o significado ou, ainda, para sinalizar fragmentos de fala inaudíveis ou incompreensíveis nas gravações.

A Epistemologia Genética, baseada em pesquisas de mais de 100 diferentes temas (objeto, espaço, tempo, causalidade, identidade, acaso, movimento e velocidade, força, número, quantidades físicas, estruturas lógicas, relações lógico-aritméticas, função simbólica – imitação e brinquedo, representação, imagem mental etc.), realizadas ou coordenadas por Jean Piaget (1896-1980), atribui à ação do sujeito a gênese e o desenvolvimento do conhecimento ou capacidade cognitiva. Enquanto o empirismo atribui esse mérito à ação do meio, dos estímulos, tese amplamente desenvolvida pelos behaviorismos, e o apriorismo a atribui à herança genética, tese proposta pela teoria da Gestalt, por exemplo, a Epistemologia Genética mostra como a aquisição de cada pequeno ou micro avanço na constituição das capacidades cognitivas depende do que o sujeito faz; isto é, de como assimila o meio e como se refaz em função dessa assimilação. Nada acontece nesse nível independente da assimilação (trazer qualquer realidade exterior para dentro do sujeito), que se desdobra em acomodação (modificação do sujeito, pelo próprio sujeito, em função do que assimilou); em outras palavras, algo do meio só determina o sujeito se for assimilado por ele. Essa teoria da adaptação, pois o sujeito humano existe como um organismo que, ou assimila ou morre, foi “traduzida”, num dos últimos livros de Piaget, como processo de abstração reflexionante (Piaget, 1995PIAGET, Jean. Abstração Reflexionante: relações lógico-aritmética e ordem das relações especiais. Tradução: Fernando Becker e Petronilha Beatriz da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.): a teoria epigenética das funções cognitivas de Piaget “traduzida” para o mundo das trocas simbólicas humanas.

Lembrando, em primeiro lugar, que a assimilação biológica se diferencia, nos humanos, em assimilação psicológica e cognitiva ou lógico-matemática, sem deixar de ser biológica; esta, por sua vez, diferencia-se em numerosas formas de assimilação simbólica. Em segundo lugar, que “apriorismo”, diferente do sentido kantiano, refere-se às afirmações de docente de que herdamos, biologicamente, as condições de todo conhecimento, ou seja, as estruturas lógicas necessárias à cognição – é nesse sentido que o termo “apriorismo”, ou “apriorismo de tipo inatista”, será usado neste texto. Já, para Piaget, herdamos as condições orgânicas para construir estruturas cognitivas e não as próprias estruturas, que são construídas; temos, então, o apriorismo no sentido piagetiano; para este, as “formas” ou estruturas cognitivas “[…] são concebidas como algo que mergulha suas raízes no sistema nervoso ou, de modo geral, na estrutura pré-formada do organismo” (Piaget, 1978PIAGET, Jean. O Nascimento da Inteligência na Criança. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p. 352).

Fundado por 18 pesquisas sobre diferentes temas (abstrações lógico-aritméticas ou algébricas, relações espaciais e ordem das relações espaciais), Piaget afirma a insuficiência, não a desimportância, da abstração empírica. Ele explica como a abstração reflexionante vai configurando o processo cognitivo na medida em que usa, como “matéria prima” da construção de estruturas ou capacidades cognitivas, não os dados da experiência empírica, mas as qualidades das coordenações das ações ou operações, exercidas sobre o mundo empírico ou sobre coordenações anteriores. É com elas que o sujeito constrói novas capacidades cognitivas que, estas sim, organizam os dados da experiência empírica atribuindo significado a eles e destacando sua importância e imprescindibilidade.

Piaget nega a herança genética de capacidades cognitivas ou lógicas, e afirma a herança da capacidade de construí-las – o que nos diferencia dos demais mamíferos. Cognitivamente, tudo depende do que o sujeito faz; e do que ele faz com o que fez. Se a ação sensório-motor gera esquemas ou padrões de ação, que se consolidam por volta dos quatro a cinco meses de idade, o bebê pode retirar desses esquemas qualidades que, por volta dos 9-10 meses de idade, o levam a remover obstáculos para atingir objetivos, configurando a primeira noção de espaço objetivo ou de objeto permanente; e, por volta de um ano e meio de idade, a utilizar meios para atingir fins, inatingíveis diretamente, como puxar a toalha da mesa para pegar um objeto que seu bracinho esticado não conseguia atingir. Essas capacidades não existiam nas primeiras semanas pós-nascimento. Cada nova capacidade foi possibilitada pela anterior e possibilitou a seguinte. A evolução dessas capacidades, produzidas sempre pela ação do sujeito, que se diferencia progressivamente, faz emergir, por volta de um ano e meio a dois anos, a função simbólica que expande indefinidamente a capacidade de assimilação: da linguagem ambiente, de significados sociais da linguagem, de construção de imagens mentais, de distinção de significado e significante, de criação de significantes; e, finalmente, de constituição do pensamento. Essas capacidades possibilitam a iniciação à contagem que a criança exercerá como brinquedo e imitação; portanto, na dependência estrita da assimilação do entorno social.

Mesmo assim, essa evolução demandará mais cinco anos, aproximadamente, para construir a noção de número, na extensão da noção de quantidade, abrindo caminho para as operações aritméticas. E, ainda mais alguns anos, para realizar operações algébricas que serão possíveis apenas com a construção das operações formais – capacidade cognitiva de operar com formas aplicáveis a conteúdos quaisquer, de planejar o futuro, de criar teorias (verdadeiras ou falsas), de se colocar no lugar do outro agrupando-se com seus pares; essas capacidades cognitivas da adolescência a qualificam para o ingresso na vida adulta. “Ainda uma vez, a lógica não é estranha à vida; é apenas a expressão das coordenações operatórias necessárias à ação” (Inhelder; Piaget, 1976INHELDER, Bärbel; PIAGET, Jean. Da Lógica da Criança à Lógica do Adolescente. Tradução: Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Ed., 1976., p. 254).

O empirismo reduz todo esse processo à pressão do meio e o apriorismo o atribui ao a priori ou à herança genética.

Para Piaget e Gréco (1974a)PIAGET, Jean; GRÉCO, Pierre. Aprendizagem e Conhecimento. Tradução: Equipe da Livraria Freitas Bastos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974a., como acontece em vários outros escritos de Piaget sobre aprendizagem, não citados neste texto, essas construções progressivas de capacidades cognitivas é que possibilitam aprendizagens progressivamente complexas. Sem elas, as aprendizagens não superariam as de mamíferos como gatos, ratos, cachorros, cavalos. Tais aprendizagens seriam reduzidas às capacidades perceptivas, determinadas pelo processo de maturação. Ao contrário, é o processo de construção de capacidades cognitivas, realizadas pela ação do sujeito, e pelo que o sujeito faz com o que fez, que constitui a capacidade racional dos humanos. Essa capacidade não é determinada pelo meio (empirismo) ou pela herança genética (apriorismo), mas constituída pela ação do sujeito que dialetiza herança genética e meio, pelos processos de assimilação e acomodação; ou, melhor, pelos processos, entre si complementares, do reflexionamento e da reflexão (Piaget, 1995PIAGET, Jean. Abstração Reflexionante: relações lógico-aritmética e ordem das relações especiais. Tradução: Fernando Becker e Petronilha Beatriz da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.), que compõem o processo de abstração reflexionante. A inteligência humana é construída por um processo radicalmente interativo.

[…] as relações entre o sujeito e o seu meio consistem numa interação radical, de modo tal que a consciência não começa pelo conhecimento dos objetos nem pelo da atividade do sujeito, mas por um estado indiferenciado; e é desse estado que derivam dois movimentos complementares, um de incorporação das coisas ao sujeito, o outro de acomodação às próprias coisas

(Piaget, 1978PIAGET, Jean. O Nascimento da Inteligência na Criança. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1978., p. 386).

Finalmente, por que é importante saber as concepções epistemológicas dos professores? A concepção epistemológica do docente determina sua concepção psicológica sobre como os alunos aprendem, como conhecem, sobre quais as condições prévias que um aluno deve ter para aprender o que ele vai ensinar. Uma pedagogia, fundada no empirismo, superestima a função docente; ela considera que o aluno é tábula rasa frente a cada novo conhecimento, legitimando uma pedagogia centrada no professor. Uma pedagogia, fundada no apriorismo, subestima a função docente; ela crê que o aluno, já que herdou capacidades lógicas, pode aprender por si mesmo, legitimando uma pedagogia espontaneísta, centrada no aluno. Uma pedagogia, fundada numa concepção interacionista, construtivista, considera que o aluno aprenderá se conseguir mobilizar, desafiado pela docência, seu aparato cognitivo, sintetizado nas capacidades cognitivas que têm no momento. Essa concepção entende que docente e discente devem comparecer integralmente no processo pedagógico porque, se faltar, ou diminuir, a atividade de um ou de outro, a interação será descaracterizada, redundando em perda de qualidade do processo pedagógico.

Aprendizagem e Meio Social: concepções epistemológicas

Iniciamos expondo as respostas dos docentes às duas primeiras perguntas: “uma criança que nasce e cresce na periferia urbana ou na favela, aprende matemática da mesma forma que uma criança de classe média ou alta?” e “a criança do meio rural aprende matemática da mesma forma que a do meio urbano?”. Que concepção epistemológica subjaz às respostas dos docentes?

O que dizem os Docentes?

P5, professora universitária, pensa que as diferenças na capacidade de aprendizagem vêm da vivência em meios distintos. “Eu creio que [as crianças] poderiam aprender o mesmo”, não importando a origem social. Exemplifica com as deficiências da escola pública: “uma criança, em escola de classe média ou alta, tem laboratório, equipamentos, jogos […]. Esta é a única diferença”. Já a criança do meio rural “aprende pelo que está no seu entorno…”.

P7, professor de ensino fundamental de periferia urbana, diz: “[…] crianças de favela […] têm menos possibilidades que uma criança de classe média. Em primeiro lugar, porque não vai ter os materiais. Em segundo lugar, pela situação econômica […]”; isto é, os pais não conseguem garantir as condições necessárias para aprender, como: comprar livros, acessar informações. “Como elas conseguem, apesar das dificuldades?”, pergunta-se: “[…] lhe repito, são poucas as crianças que nascem com este dom, com essa qualidade de aprender, que gostam de estudar. Se possuem o apoio e o reforço dos adultos, basicamente da família, então vão se desenvolver mais”. Já as crianças do meio rural “[…] não têm a mesma possibilidade de se desenvolver como as crianças do meio urbano”. “Todas as crianças têm a mesma capacidade de aprender?”, pergunta-se. Ele responde: “Todas as crianças nascem com a mesma capacidade […], mas estas capacidades devem ser alimentadas e desenvolvidas com o reforço por parte do adulto. Porque, se não houver esse apoio, a criança não se desenvolverá”.

P11, professora universitária, afirma que há contextos sociais e culturais diferentes. “A criança que nasce em um lugar de baixos recursos econômicos não tem muitas oportunidades. Não só [n]a matemática”. Pensa que “[…] há uma pré-disposição genética […] que se transmite, às vezes do pai. Nos genes há uma pré-disposição, mas também depende um pouco do meio […]” que deve estimular para que “siga desenvolvendo esta capacidade que já tem”. “Isso é genético ou falta de estimulação?”. Responde sem hesitar: Falta de estimulação”. “Basta estimulação para elas acontecerem?”. Eu creio que sim. Que se um aluno ou uma pessoa tivesse uma riqueza em sua experiência poderia chegar a aprender a matemática de forma natural”. “A estimulação é suficiente ou precisa algo a mais?” Ela responde: “São necessários os estímulos, mas não suficientes, por que se teria que organizar […] experiências […]”. Já no meio rural circulam menos informações; por isso, as crianças mostram rendimento inferior às da cidade. “Mas também há exceções. Há crianças que, sendo do meio rural, se destacam em matemática, porque, às vezes, são autodidatas, gostam de ler, sozinhas [vão] fazendo conexões ou relações e assim permitindo que elas aprendam”.

P12, professora universitária, diz que a criança “de classe alta tem mais estímulo” do que a “de classe de periferia”. Nesta, “Os colégios, os professores não exigem muito. Então, se quiserem seguir, é por esforço próprio. […] Os de periferia têm que vender caramelo. […]. Ao contrário, os que vêm de classe alta, têm tecnologia”; têm estimulação. Enquanto no meio rural não há controle dos pais, como no meio urbano; com isso, o professor pode não ensinar tudo que deve.

P13, professora universitária, responde: “Sim, eu venho de uma classe muito baixa e a maioria dos matemáticos olímpicos (aqueles que saem representando [seu país] e trazem medalhas) […] são, geralmente, de classe baixa. Eu não vejo nenhum […] ‘branquinho’ que saiu para representar [seu país]”. Discorre sobre países sul-americanos melhor representados em evento internacional de matemática. E arremata: “Não importa onde estude, no colégio mais caro ou no mais pobre. Não importa. É o querer”. Pensa que professores de escolas particulares estão mais preparados que os de “escola longe da cidade” ou “escola pobre”.

P9, professor de ensino médio, diz que a diferença entre a aprendizagem da criança que está à margem, da criança de classe média alta, é que aquela só aprenderá matemática se responder às suas necessidades pessoais ou do seu entorno. Pensa que o acesso a uma variedade de objetos, de brinquedos, é importante para o desenvolvimento porque “o cérebro vai [poder] imaginar muitas coisas […]”. “É mais fácil aprender” na classe média. Se pai e mãe trabalham o dia todo, a mãe é lavadeira, delinquente ou usuária de drogas, a criança viverá um mundo reduzido; já a criança que tem bons pais, boa orientação, “pode conquistar o mundo”. Se o ensino estiver de acordo com o entorno da criança, seu querer, suas necessidades, ela aprenderá. Se a criança entender que, aprendendo matemática, vai sobreviver, ela aprenderá. Se entender que aprender matemática não vai ajudar sua vida, não aprenderá. Já as crianças do meio rural vão aprender mais rapidamente operações que dizem respeito ao que estão praticando; se estão arando a terra, elas podem imaginar linhas para representar os traçados dos sulcos do arado. Diz ele: “Então, o ensino, no campo, tem uma vantagem que não tem na zona urbana. A zona urbana está um pouco fechada, […] não pode perceber muito o mundo […]. O do campo não. Ele está mais no ar, na natureza. […]”.

P15, professora universitária, diz: “Em primeiro lugar, creio que 50% é o professor [que deve garantir], porque as capacidades são as mesmas, na cidade como na serra. […] as questões sociais influenciam um pouco, como o contexto socioeconômico”. Existem limitações para aprender, como alimentação inadequada, cansaço, que precisam ser administradas pois a Matemática, como qualquer ciência, está sendo mentalmente construída. Sobre o aluno do meio rural, “Existem estudos de que não aprendem igualmente. Porque na matemática os textos, os livros são feitos para a cidade, [onde] o contexto cultural é diferente”. Exemplifica dizendo que em sua cidade, no litoral, conhece-se o mar, mas a criança dos Andes, que nunca foi ao mar, [lê no livro]: “tomava banho no mar”. Ela não vai compreender, porque não conhece o mar – daí o atraso da criança do meio rural com relação à do meio urbano.

P2, professor universitário pensa que a criança da periferia tem a mesma capacidade que a de classe média ou alta. Diz que não faz diferença onde nasceu, quem é o pai ou a mãe, a capacidade é a mesma. “Então esta capacidade nasceu com ele?”, pergunta-se. Responde com convicção: “Sim. Pode ser que ela tenha uma situação complicada. […], mas capacidade ela tem, com certeza”. Exemplifica, dizendo que viu, no campo, uma criança genial, de 3 anos de idade, cujo pai era peão de estância. Ela respondia àquele jogo de memória – brinquedo no qual se colocam todas as figuras viradas para baixo. “Então, tem que fazer pares […], tira uma, tira outra, se acertou leva, não acertou, volta; vai jogando com outras. Um gênio incrível!”. “Tua compreensão é que nós nascemos matemáticos?”. “Sim, claro”.

P3, professor universitário, diz: “Não” aprendem do mesmo modo. “Por que?” “Há muitas razões, uma é o ambiente familiar”. Justifica, dizendo que é diferente uma criança ter que estudar em condições adversas, daquela que conta com a ajuda dos pais. Acontece que “nas classes mais baixas” se depositam essas condições nos professores e na escola, porque contam com pouco apoio em casa: “[…] parece muito mais difícil, para alguém de uma classe baixa, aprender do que para alguém de uma classe mais alta”.

P4, professor universitário, diz que não aprendem do mesmo jeito “[…] porque as experiências que uma criança tem, no meio rural ou na favela, são bastante diferentes; e não só as experiências”; também “[…] todo o ambiente, ou seja, o respaldo afetivo e o manejo da linguagem […]”. O domínio da linguagem é importante para a Matemática. Por isso, ele pensa que não será o mesmo aprender na favela ou no meio rural que na classe média ou no meio urbano.

P6, professor universitário, responde: “Não sei, mas acho que não” aprendem do mesmo modo. Por vários fatores. Um, psicológico, “[…] que tem a ver com os maus tratos familiares. Se não tem maus tratos familiares, mas vive numa favela, é maltratado pelo mundo que o fez viver lá”. E continua:

Da mesma maneira que não se pode correr […] do mesmo modo que um grande corredor, porque não tem força e não se desenvolveu, também não pode exercitar os neurônios e aprender como uma criança de classe média. […] É muito mais difícil [a]os que vivem nas favelas […] chegar ao mesmo nível dos que são de classe média.

Devido a esses fatores (alimentação deficitária, destrato psicológico, desmotivação, baixa autoestima, falta de objetivos), alunos provenientes da periferia não conseguem aprender do mesmo modo que os que vêm de classe média ou alta. Diz ele que conheceu uma professora, em seu país, que trabalhava numa escola em um ambiente equivalente ao das favelas brasileiras. Enquanto se ensinavam conceitos matemáticos básicos para crianças de classe média, ela ensinava, para crianças faveladas de mesma idade, modos de comportar-se no dia a dia, como escovar os dentes, respeitar horários, como o do recreio. Os objetivos que as pessoas têm refletem a base social em que vivem. “Uma das crianças da favela disse a essa professora: ‘eu tenho minha vida arranjada no futuro, porque meu pai tem um carrinho’”, uma charrete, puxada a cavalo. No seu mundo, “ter uma carroça é como ser um poderoso”.

P14, professor universitário, diz que “Aqui [em meu país], já ocorreu de sair, de um bairro marginal, uma criança genial que passa a ter educação regular”. Só que, para ela, as condições de aprendizagem são piores que para o comum das crianças escolarizadas: ambiente mais hostil, alimentação de menor qualidade, vai ter que cuidar dos seus irmãos, vai ter menos tempo de estudo. Já, para a criança do meio rural, as coisas são um tanto diferentes. Mas não existem meios rurais homogêneos; “[…] existem meios rurais ilhados e hostis e outros que estão muito conectados, com bibliotecas virtuais e internet”. Diria que a diferença, nas possibilidades de aprendizagem de matemática, entre meio rural e meio urbano, é menor do que entre favela e classes sociais, média ou alta. “Não tenho uma resposta, mas estou certo de que, na média, as condições [do meio rural] são um pouco mais vantajosas” do que as do meio urbano.

P16, professora de ensino fundamental, diz: “A capacidade é a mesma [na favela e nas classes média e alta]; agora, […] como eles aprendem é diferente. Por exemplo, este colégio é menor, comparado a outros colégios, temos menos recursos […]”; embora essas diferenças, ensina-se o mesmo que se ensina para “a criança rica, a criança que tem outro universo social”. O mesmo acontece com a criança do meio rural, com relação à do meio urbano. O conteúdo vai ser o mesmo, mas os exemplos vão ser diferentes porque a realidade é diferente”. É preciso falar da realidade do campo, sobre animais que a criança conhece. Importa que a criança seja estimulada, receba a atenção que merece, o apoio que necessita.

P17, professora de escola municipal situada nos limites da zona urbana e que atende também crianças provenientes do meio rural, afirma que: “Se a criança [da favela] tem vontade de aprender e tiver um professor bom, vai aprender exatamente igual [à de centro urbano]”. “A gana de aprender vem da motivação intrínseca da pessoa, ou seja; não é porque a criança é pobre que estará desmotivada. É mais provável que esteja motivada”. Isso em termos de probabilidade, “[…] porque crianças motivadas há em todos os setores escolares”. Mas, sobre a aprendizagem da criança do meio rural, ela diz: “Eu diria que não” aprende do mesmo modo que a do meio urbano. “[É] porque no campo as pessoas têm menos meios, as crianças saem para trabalhar de dia e só voltam à noite. Isso as prejudica. [Além disso], o nível de escolaridade do pai é muito baixo e a esperança de seguir estudando também…”. Pergunta-se: “Há diferença na capacidade de aprender de crianças indígenas1 1 A pergunta utiliza o nome da tribo indígena cujos descendentes são numerosos naquela região, inclusive na cidade onde se situa a escola; a professora responde utilizando também o nome desse grupo indígena. Substituímos esse nome pelo adjetivo “indígena” para preservar o anonimato da professora. com relação às outras?”, ela responde convicta: “Não há diferença. […] Aqui na oitava, meu melhor aluno é índio2 2 “Índio”, no lugar do nome do grupo indígena, para preservar o anonimato. . Tudo depende do ambiente, de como se dá a circunstância; mas, geneticamente, não há diferença. E tem que tratá-los como [a] todos os demais”.

P1, professora universitária, diz que aprendem melhor na classe alta, não por ter capacidade diferente, mas por receber, desde o início, mais atenção dos pais; enquanto nas famílias pobres não aconteceria o mesmo. Pergunta-se: “Pensas que este é o motivo?” Ela insiste: “Sim, mas não pela capacidade da criança”. Reafirma que todos são iguais quanto à capacidade. Mas, “[n]o meio rural, […] não há tanto estímulo matemático, talvez porque as pessoas não utilizem tanto. A cidade que está a seu entorno está mais familiarizada com as matemáticas e faz com que as pessoas também se familiarizem”.

Pergunta-se, então, “[…] se trocássemos de posição, as crianças do meio rural indo viver no meio urbano e as do meio urbano indo viver no meio rural, aconteceria o mesmo porque a capacidade é a mesma?” Ela responde peremptoriamente: “Sim, mas o meio que não” o é. Insiste-se: “Na matemática e na música existem coisas parecidas. A pessoa já vem com a capacidade e daí se dedica, ou é diferente?” Responde ela: “Existem pessoas que têm a capacidade nata, ou intuição matemática, traz uma facilidade [para a matemática]; ou nas letras. Igual na música…”. “Então, há crianças com maior facilidade desde que nasceram, para a matemática tanto quanto para a música?”. Responde ela: “Nascem com algo”.

P10, professor de sétimo e oitavo anos e do ensino médio, de colégio de classe média, afirma: “Muitas vezes depende; para mim qualquer pessoa pode aprender, independentemente da classe [social] que venha. Para mim o dinheiro não faz a pessoa”.

Sinto-me favorecido [na escola em que trabalho] porque, você mesmo viu3 3 Assisti a aula desse professor, dias antes da entrevista. , a disciplina com as crianças é muito boa e posso avançar e atingir muitos conteúdos e fazer com que o aluno pense bastante. Exige-se muito, mas sei que a exigência reverterá em benefício dos próprios alunos.

A escola que dispõe de mais recursos, que trabalha com educação qualificada e com número reduzido de alunos por turma, consegue resultados melhores. Alunos de escola de bairro pobre, em turmas de 45 alunos e com alunos que não querem estudar, não conseguem avançar. E reafirma o que acaba de dizer sobre as diferenças na aprendizagem de crianças provenientes de meios sociais diferentes:

Como está sendo a educação atualmente, no campo é diferente da cidade, porque no campo a educação não é tão exigente. […] [E o aluno] tem que caminhar quilômetros para chegar à escola, tem que andar na chuva para chegar ao colégio. […] Há muita diferença entre um estabelecimento rural e um urbano; mas, para mim, as pessoas são as mesmas. Todos podem aprender por igual.

Tendências Epistemológicas

A seguir, selecionaremos as respostas dos docentes, mas de forma condensada, e as reuniremos sob os critérios epistemológicos: empirismo, apriorismo, construtivismo.

Tendência Empirista

Consideramos que os docentes revelam, não um empirismo puro, mas uma tendência empirista; seu empirismo é sustentado por um apriorismo de tipo inatista, sem consciência da contradição ali implícita. Como se dissessem (alguns afirmam explicitamente): os humanos nascem com as estruturas lógico-matemáticas, mas o meio, inclusive o ensino, determina sua forma de ser. O que o sujeito faz não é levado em consideração. Vejamos as evidências.

O sujeito, o aluno, é determinado pelos estímulos. “Tudo depende do ambiente, de como se dá a circunstância” (P17), mas, geneticamente, não há diferença; criança de periferia “tem potencialidade como qualquer ser humano” (P15). Os “de classe alta tem mais estímulo” do que os “de periferia”; eles “têm tecnologia” (P12). As “crianças de favelas […] têm menos possibilidades que uma criança de classe média” (P07), elas “têm que ter superado muito mais obstáculos” (P06) e os professores exigem pouco; há, lá, “maus tratos familiares”, “ambiente familiar” hostil (P03); se não for isso, são “maltratado[s] pelo mundo que os fez viver lá” (P06), “se quiserem seguir, é por esforço próprio” (P07). Já os alunos de classe média ou alta “têm laboratório, equipamentos, jogos” (P05). Enquanto que os do meio rural são prejudicadas porque, nesse meio, eles têm que trabalhar o dia inteiro e “o nível de escolaridade do pai é muito baixo”; eles não têm expectativa de seguir estudando; lá, há pouco uso da matemática (P17) e pouco “estímulo matemático” e “a educação não é tão exigente”; além disso, para chegar à escola tem que vencer longas distâncias e, às vezes, mau tempo” (P10); além disso, “[…] os textos, os livros são feitos para a cidade, [onde] o contexto cultural é diferente” (P15). Tudo isso indica que “parece muito mais difícil, para alguém de uma classe baixa, aprender do que para alguém de uma classe mais alta” (P03). Afinal, “[…] as questões sociais influenciam um pouco, como o contexto socioeconômico” (P15).

Há, porém, quem atribui vantagem do meio rural sobre o meio urbano ou, ainda, ameniza as diferenças na aprendizagem de alunos provenientes desse meio, pela vinda da tecnologia. Na zona urbana, vive-se um ambiente “fechado”, enquanto no campo se “está mais no ar, na natureza” (P09); “[…] estou certo de que, na média, as condições [do meio rural] são um pouco mais vantajosas” em suas interconexões com o meio urbano, do que as condições da favela em relação às classes, média ou alta (P14). Mais, os que representam o País, “em olimpíadas de Matemática”, “são, geralmente, de classe baixa” (P13). Além disso, com o advento da internet e, com ela, dos cursos virtuais, “a criança do campo e a da cidade” (P06) aprendem de forma mais parecida.

Por que pensamos que essas manifestações denotam tendência empirista? Porque 11, dos 17 docentes, sem negar que se herdam capacidades inteligentes, atribuem sua determinação e desenvolvimento à ação do meio, ou do entorno social, escolar ou familiar. Os demais, apesar de atribuir mais peso à herança genética, também afirmam a determinação do meio, mesmo quando pensam que o meio rural e a classe baixa mostrariam vantagem sobre o meio urbano e as classes média ou alta, respectivamente. Como pensam que todos nascem iguais em capacidades, a diferença entre os indivíduos viria da influência do meio, da estimulação, às vezes de forma muito sutil e precoce. Como se vê, é um empirismo sem tábula rasa; diferentemente do empirismo radical de Locke, admite o inatismo das estruturas lógicas ou matemáticas. Não se encontram afirmações que depositam na ação do sujeito – o que o sujeito faz com o que é disponibilizado pelo meio – o êxito na aprendizagem, valorizando o meio e realizando suas possibilidades genômicas. O empirismo apaga o sujeito da aprendizagem; daí a preferência da pedagogia, que nasce de sua inspiração, pela cópia seguida de repetição, desvalorizando a criação e a invenção. Em vez de repetir porque compreendeu, aposta na repetição para compreender.

Tendência Apriorista

Classificamos, aqui, como tendência apriorista, as afirmações que garantem que há capacidades inteligentes que independem do meio e são anteriores à experiência, de tal modo que não se modificam sob a pressão do meio social. Diferentes, portanto, de uma tendência empirista, que afirma a determinação indivíduo pelo meio, e diversas de um interacionismo construtivista que afirma que o sujeito, ao assimilar o meio, produz transformações nas próprias capacidades cognitivas. Sigamos as falas dos docentes.

Docentes afirmam que “[…] são poucas as crianças que nascem com este dom [para a Matemática], com essa qualidade de aprender, que gostam de estudar” (P07); por isso, não importa que a criança viva “uma situação complicada. […] capacidade ela tem, com certeza”. “Sim, claro”, nós nascemos matemáticos (P02). “Existem pessoas que têm a capacidade nata, ou intuição matemática, traz uma facilidade [para a matemática]; elas “nascem com algo” (P01). Crianças de quaisquer classes sociais, “A capacidade é a mesma; […] geneticamente, não há diferença” (P17); “Todas as crianças nascem com a mesma capacidade…” (P07). “[…] qualquer pessoa pode aprender, independentemente da classe [social] que venha”, “[…] não há diferença entre os alunos do campo e os da cidade. […] os do campo e os da cidade vão aprender por igual […]. Todos podem aprender por igual” (P10). “[…] há uma pré-disposição genética […] que se transmite, às vezes do pai” (P11). A criança da favela “vai aprender exatamente igual” à de centro urbano (P11). A prova está que “[…] conhecemos história de gente que era muito pobre e que, no entanto, nasceu com certas habilidades, conseguiu se tornar boa em Matemática” (P11); e “[…] já ocorreu de sair, de um bairro marginal, uma criança genial” (P14); “A gana de aprender vem da motivação intrínseca da pessoa, ou seja; não é porque a criança é pobre que estará desmotivada” (P17). “Não importa onde estude, no colégio mais caro ou no mais pobre. Não importa. É o querer” (P13).

Por que pensamos que essas manifestações denotam uma tendência apriorista, de tipo inatista? Porque sem negar, mas relativizando a influência do meio, esses oito docentes afirmam que a origem dos conhecimentos matemáticos remonta ao genoma; não como possibilidades, mas como capacidades. Asseguram que há crianças gênios, que nascem com muito dom ou talento, distinguindo-se da criança comum a ponto de sozinha resolver problemas complexos, às vezes tão precoces que faz duvidar que a família possa ter exercido alguma influência; crianças geniais que podem chegar a resultados olímpicos (olimpíadas de Matemática). Acreditam que a inteligência é inata e que todos nascem inteligentes, só que em graus diferentes; alguns muito diferentes. É genética a herança de capacidades diferenciadas, de aprender certas coisas mais que outras. Todos nascem com capacidades cognitivas e condições de aprendizagem, embora diferentes. Sem abandonar esse inatismo, pois creem que todos nascem inteligentes, dois docentes desviam-se um pouco desse apriorismo de tipo inatista para afirmar a força de vontade, o querer: é fato que há alunos que aprendem rapidamente, que podem aprender em duas horas o que seus colegas levam quatro. Eles não devem isso à influência do meio, mas ao querer, à força de vontade, à disposição que têm de aprender; qualidades que também, segundo os docentes, fazem parte da herança genética.

Tênue Tendência Construtivista

Embora necessária, a estimulação não é suficiente para aprender, “porque se teria que organizar […] experiências” (P11); disponibilizar acesso a uma variedade de objetos, brinquedos, para o cérebro poder “imaginar muitas coisas […]” (P09); além disso, precisa-se equipar, em qualidade, as experiências pedagógicas com as da classe média ou alta para que elas sejam significativas para alunos da favela ou do meio rural: não só as experiências, mas também “[…] todo o ambiente, ou seja, o respaldo afetivo e o manejo da linguagem” para qualificar a aprendizagem (P04). O ensino administra o mesmo conteúdo, “[…] mas os exemplos [trazidos pelo ensino] vão ser diferentes porque a realidade é diferente” (P16). Deve-se contextualizar o que se ensina na realidade vivida pela criança, pois a do campo e a da cidade são igualmente inteligentes. Três, dentre esses quatro docentes, compareceram também nas tendências empirista e apriorista.

Encontramos essas poucas afirmações que sugerem a necessidade da ação do sujeito na realização da aprendizagem, mas que denotam antes intuições, surgidas na prática pedagógica, do que convicções elaboradas teoricamente. Portanto, tais afirmações não chegam a formar uma tendência construtivista visto que não dialetizam, ou não põem em interação, o genoma e o meio.

Ensaiando Interpretação Epistemológica

Embora com ênfases diferentes, todos os docentes afirmam que as diferenças nas aprendizagens das crianças são função do meio – físico e, sobretudo, social.

Tudo parece indicar que os professores pensam que os humanos nascem cognitivamente iguais, isto é, com iguais capacidades para conhecer e aprender, embora não para os mesmos níveis de aprendizagem; e que as diferenças nessas capacidades são resultantes da pressão do meio, da estimulação. Sintetizemos as demais afirmações dos entrevistados para verificar se elas confirmam essa conclusão provisória. Eles afirmam que alunos de classe média ou alta têm mais estímulo, mais tecnologia, professores qualificados com turmas pouco numerosas e escolas com alto nível de exigência; contam com apoio do ambiente familiar que possibilita e valoriza aprendizagens possibilitadoras de avanços; dispõem, se necessário, de aulas particulares e amplo acesso à internet; crianças dispõem de variedade de objetos, de brinquedos.

Alunos de periferia têm menos estímulos, escolas com turmas grandes, professores pouco exigentes, ambientes escolares complicados, com baixa valorização do ato de aprender; ali, não se aprende matemática ou linguagem, mas apenas a sobreviver. Eles apresentam todo tipo de dificuldades porque vivem experiências negativas no cotidiano, ambiente hostil, problemas psicológicos gerados por maus tratos familiares, vivem num meio linguístico precário, têm pai e mãe ausentes porque trabalham o dia todo, e convivem com delinquência e drogadição. No lugar de conteúdos cognitivos, escolas ensinam comportamentos, como ter bons modos, em vez de saberes técnicos ou científicos. Têm alimentação deficitária e responsabilidades precoces, como cuidar de irmãos mais novos. Dedicam pouco tempo ao estudo; se querem prosseguir, só conseguem por esforço próprio e vencendo muitos obstáculos. Não poucos deles apresentam alto índice de vulnerabilidade social e poucos dentre eles querem estudar. Os que querem estudar não conseguem avançar; são relegados ao esforço próprio e precisarão de muito mais esforços do que os de classes média ou alta para conseguir o mesmo que estes; alimentam sonhos de futuro modestos e só aproveitarão o ensino se ele responder às suas necessidades e às de seu entorno. Contam com menos possibilidades devido à difícil situação econômica, à falta de materiais e à precária alimentação. Se não houver reforço por parte do adulto, não se desenvolverão.

Os do meio rural, onde circulam menos informações, têm potencialidade como qualquer ser humano e poderão aprender os mesmos conteúdos que os demais; mas só aprenderão, se o ensino tratar de áreas, produtos ou animais do lugar em que vivem e relativos aos seus afazeres. Contam com novas oportunidades devido ao acesso à internet. Por outro lado, estão em desvantagem por falta de tempo porque os pais, com nível baixo de escolaridade, exigem que eles trabalhem e porque os textos, os livros são feitos para a cidade, onde o contexto cultural é diferente. Recebem pouco estímulo matemático. Com relação ao meio urbano, o meio rural leva vantagem pois o aluno está em contato com a natureza, podendo imaginar a realização de suas necessidades.

Mesmo os docentes que afirmam que crianças ou adolescentes do meio rural e de periferia urbana aprendem diferentemente das do meio urbano ou de classes média e alta, atribuem essa diferença à pressão do meio, sobretudo social, e não à construção de capacidades. Mesmo quando afirmam a existência de pré-disposição genética (“geneticamente, não há diferença”) para aprender matemática, ou de obstrução da atividade cerebral, impedindo essa aprendizagem, terminam por atribuir ao meio (“tudo depende do ambiente”), à falta de estimulação, à carência de organização de ricas experiências, a aprendizagem matemática (Piaget, 1974bPIAGET, Jean. Para onde vai a Educação. Tradução: Ivette Braga. Rio de Janeiro: Liv. J. Olympio Ed., 1974b.) deficitária. Isso acontece também quando um entrevistado manifesta um voluntarismo ao afirmar que “Não importa onde estude, no colégio mais caro ou no mais pobre. Não importa. É o querer”; ou quando outros explicitam um inatismo como este: “Existem pessoas que têm a capacidade inata, ou intuição matemática” e “[…] são poucas as crianças que nascem com este dom, com essa qualidade de aprender, que gostam de estudar”; ou quando um terceiro afirma um tipo de motivação: “A gana de aprender vem da motivação intrínseca da pessoa, ou seja, não é porque a criança é pobre que estará desmotivada”; ou quando um quarto afirma a existência de crianças que, naturalmente, “são muito rápidas”. Em todos esses casos, os docentes atribuem à atuação do meio, ou à sua omissão, a responsabilidade pela aprendizagem precária ou não-aprendizagem.

A ideia de construção de conhecimento, ou de capacidades cognitivas, responsável pela abertura de possibilidades para aprendizagens progressivamente complexas, não é ventilada. Tudo se reduz à crença de que os humanos nascem com capacidades lógicas, e até matemáticas, com as quais podem aprender qualquer coisa em qualquer idade; se aprendem, ou não, vai depender do meio, do ensino. Sem esquecer que se afirma que uns nascem com mais, outros com menos capacidade. Instaura-se, em nome de uma crença epistemológica, uma discriminação que tem causado não poucos estragos, como a baixa autoestima de alunos que dizem que não foram feitos para a matemática, que têm cabeça dura, que são burros para a matemática, que têm raiva ou que a odeiam; inclusive, que optam por cursos universitários que não têm matemática no seu currículo etc. Se não aprendem é porque ainda não amadureceram – confunde-se maturação biológica com desenvolvimento cognitivo – ou por falta de pré-requisitos; não se levanta a hipótese de que seja por falta de construção de estruturas ou capacidades cognitivas diferenciadas, condição de aprendizagens de conteúdos mais complexos; sem desconsiderar a função da maturação e dos pré-requisitos.

Inteligência e Herança Genética

Respostas à pergunta: “Se os pais são inteligentes, a criança também será?”

O que dizem os Docentes

P5, professora universitária, pensa que não há relação necessária entre inteligência dos pais e dos filhos. “Há um componente genético […], mas há casos em que os pais são brilhantes e o filho não [o] é. Então, eu creio que depende muito do meio, do estímulo […]”. “Mas só aprende matemática quem tem talento, e talento nasce com a pessoa. O que pensas disso?”

Bom, creio que as duas coisas. Há crianças que nascem com dom, ou talento, e sozinhas conseguem desenvolver problemas complicados […] e há crianças que necessitam de apoio para desenvolver. Creio que é a diferença [entre uma criança comum] e uma gênio – criança que nasce com muito talento para a matemática, que chega ao resultado muito facilmente. Chega a resultados olímpicos.

Ela pensa que há pessoas que sequer conseguem desenvolver a matemática que necessitam ou adquirir e desenvolver conhecimentos básicos necessários.

P7, professor de ensino fundamental de periferia urbana, afirma que a inteligência depende de fatores hereditários; mas acrescenta uma justificativa não genética ao afirmar que depende do apoio porque “[…] pais inteligentes sempre vão se preocupar que seu filho aprenda mais”.

P11, professora universitária, diz que a gente “[…] nasce com certa pré-disposição; mas, no caminho têm as experiências, que também determinam se vão desenvolver mais a inteligência ou não”.

P12, professora universitária, afirma que é “muito provável que sim” devido à estimulação porque aquilo que a criança vai escutar em casa vai estimulá-la a querer o mesmo.

P13, professora universitária de Cálculo, pensa que não há relação entre as inteligências de pais e filhos. “Eu creio que não tem nada a ver”. “É fato que há alunos que ‘captam mais rapidamente’”, que logo te respondem, que planejam, que podem aprender em duas horas o que outros levam quatro. Mas isso não se deve ao fato de terem pais inteligentes. A verdade é: eles “[…] aprendem se querem aprender. […]. Todos podem aprender”. E afirma com convicção: “O que vale um pai comprar o melhor livro? O que vale um pai contratar o melhor professor particular, se o filho não quiser aprender?”.

P9, professor de ensino médio, diz que seus pais “[…] foram somente trabalhadores, mas me deram a possibilidade de ser um profissional. […] e meus filhos […] terão um mundo diferente [do que meus pais tiveram]”.

P15, professora universitária que capacita docentes, responde convicta: “A inteligência é inata, todos são inteligentes”. E continua teorizando: “Porque inteligência é um processo cognitivo básico, assim como a atenção, memória, pensamento”. Pensa que a inteligência dos filhos não tem relação com a dos pais: “[…] a inteligência dos pais não tem nada a ver”. E faz uma ressalva: pais inteligentes “[…] podem, de repente, transmitir algo nos genes; mas é muito pequena [a possibilidade]”.

P2, professor universitário de matemática pura, é categórico: “Com certeza, sim”. Mas, em seguida, relativiza: “Depende dos pais, não sei. A genética tem muito a ver, claro, com certeza”. A seguir, fala de diferentes capacidades: “[…] algumas pessoas têm mais capacidade para aprender umas coisas que outras coisas. Isso aí […] eu acho que sim”, é genético. “Você pode ser muito inteligente para a matemática e burro na vida. Ser muito inteligente na vida e burro em matemática”. Finalmente confirma que inteligência e capacidade matemática se transmite geneticamente; mas, novamente, relativiza: “Um pai que é bom jogador de futebol é provável que o filho também seja bom jogador de futebol”.

P3, também professor universitário de matemática pura, começa dizendo que não sabe. E apresenta sua hipótese: “Se há uma parte inteligente que é genética, tem mais condições de desenvolver esta parte; mas eu diria que é algo muito [pouco] provável”.

P4, professor universitário de matemática pura, afirma: “Se os pais são inteligentes, se ocupam de seu filho […], o estimulam, acho que há boa chance de seu filho ser inteligente”. Aposta mais no desenvolvimento e na construção da inteligência: “Creio que quase todas são construídas e desenvolvidas”. Mas fica na dúvida: “Por outro lado, há exemplos de que há […], bem cedo, uma predileção pelos assuntos matemáticos […]; [e] uma influência sutil [do meio] que tenha despertado este interesse, esta pré-disposição”.

P6, professor universitário de matemática pura, diz: “Não necessariamente”. E acrescenta: “Porque há um componente de genética e de azar […] Creio que […] pais inteligentes têm mais probabilidade de ter um filho inteligente”. “Que capacidades a criança traz quando nasce?”, pergunta-se. “Não tenho ideia. Não sei. Seu cérebro é muito elementar quando nasce. Tem muito menos neurônios. A criança quando nasce, para mim, é como uma planta; [mas] termina, com o tempo, em um ser humano com infinitas complexidades”. E insiste na ideia de que “A criança é muito primitiva quando nasce. Quando peguei minha filha nos braços, quando recém-nascida, parecia se distinguir pouco de um bicho […]”.

P14, professor de matemática pura, diz que “[…] se sabe que, até certo ponto, a inteligência é um componente do cérebro”. E prossegue: isso “[…] não é determinante. Existe uma probabilidade, porque inteligência está vinculada a um grupo complexo de genes. Complexo de tal forma que existe interação com o ambiente”. E exemplifica: “Pais ricos, inteligentes e bonitos tem mais chance de ter filhos ricos, inteligentes e bonitos, mas é uma probabilidade, pois eles também podem ter um filho problemático”. E arremata dizendo que o assunto “é muito complexo para dar uma resposta”.

P16, professora de oitava série do ensino fundamental, diz que se a mãe “[…] não sabe ler, não pode ajudar seu filho por mais que tente […]”. Embora seu filho continue se desenvolvendo, enfrentará mais dificuldades que o comum das crianças. Acredita que o apoio, a ajuda, a palavra da mãe que diz “Tu podes”, é que determina a inteligência da criança; “a atitude dos pais tem que ser de mais estimulação”.

P17, professora de ensino médio, pensa que pais podem gerar filhos mais inteligentes, mas isso é “probabilidade”, não certeza. Há “condições” e “circunstâncias”, além de “fatores emocionais”, que interferem nesse jogo de probabilidades. “E se os pais forem deficientes mentais?”, pergunta-se. Diz ela que a genética é como uma “roleta russa”, pois: “De pais deficientes mentais podem nascer filhos iguais a eles, [com] alta probabilidade; [mas], também, podem nascer crianças normais, ou superinteligentes”.

P1, professora universitária, responde que “há probabilidades” de que sejam inteligentes. “E se os pais forem débeis mentais?”, pergunta-se. Pensa que não há relação direta porque “[…] se os pais são ruins [em Matemática], tem a ver com os estímulos que receberam desde pequenos. Se os pais são bons na Matemática, […] estimulam a criança, diferente dos pais que não conhecem [matemática]. Ela não aceita a afirmação de que filhos inteligentes são tais porque seus pais são inteligentes.

P10, professor de ensino fundamental e médio em escola privada, diz: “Em geral, as crianças que têm pais inteligentes, também são inteligentes” porque “[…] são pais capazes de se preocupar com seu filho, para que também aprenda e, em geral, quando os dois [pai e mãe] são inteligentes, tendem a ter filho inteligente”. “E pais débeis mentais?”, pergunta-se. Responde que, se há apoio e respeito, sempre vão aprender; mas, deve-se trabalhar com elas no nível cognitivo em que se encontram.

Concepções Epistemológicas

O que nos interessa não são as afirmações, positivas ou negativas, dos docentes à pergunta formulada, mas as concepções epistemológicas subjacentes às suas respostas.

Como não temos respostas de P8, trabalharemos com as respostas de 16 professores. Sete deles manifestam tendência empirista, outros sete tendência apriorista, nove remetem à probabilidade, maior ou menor, de se dever à genética a capacidade inteligente, um à força de vontade, e dois atribuem à experiência e à construção. Este total de 26 significa que o mesmo professor pode manifestar diferentes concepções epistemológicas, sem tomar consciência da contradição que isso implica.

Tendência Empirista

Recolhemos as afirmações de sete professores. Dizem eles que a inteligência depende muito do meio, da estimulação, das experiências, da formação dos pais e do apoio que a criança recebe deles. Pais inteligentes preocupam-se com a aprendizagem dos filhos; a criança quando nasce não se distingue muito de uma planta ou de um bicho, mas o meio pode transformá-la em ser humano com infinitas complexidades; mesmo quando parece ser genético, influências sutis do meio podem despertar o interesse ou a predisposição para a Matemática; pais bons em matemática estimulam os filhos para que também sejam bons em matemática; mas, o contrário acontece se não conhecem matemática; se a mãe não sabe ler é difícil que estimule o filho para que aprenda a ler. Os pais também são produtos da estimulação, então se pai e mãe são inteligentes e por isso estimulam o filho, ele terá alta chance de também o ser. Até débeis mentais, com apoio e respeito, podem aprender Matemática.

Tendência Apriorista

Recolhemos, aqui também, afirmações de sete professores. Dizem que há crianças que nascem com dom ou com muito talento e sozinhas conseguem desenvolver problemas complicados; diferenciam-se elas de outras crianças porque chegam a resultados muito rapidamente e com rapidez respondem a problemas que lhe são propostos; resolvem em duas horas o que outras crianças levam quatro; são elas que podem chegar a resultados olímpicos. A genética garante que todos podem aprender pois a inteligência é inata; é um processo cognitivo básico, como a memória e o pensamento, que todos herdam. Mas essa herança não é igual para todos; algumas pessoas herdam capacidades maiores para aprender certas coisas, e menores para aprender outras coisas; podemos ser muito bons em matemática, mas não com o cotidiano da vida, ou bons com as questões cotidianas, mas não para a matemática.

Três professores assumem posições divergentes. Dois deles afirmam que não há relação entre inteligência dos pais e dos filhos: “não tem nada a ver”, dizem eles. Dois remetem o aprender à vontade. Afirmam que alunos aprendem se querem aprender. O que vale um pai comprar o melhor livro ou contratar o melhor professor particular, se o filho não quiser aprender? Essas afirmações, assim nos parece, não escapam de um certo apriorismo.

Probabilidade ou Tendência de Superação de Empirismo e Apriorismo

Nove professores, sem necessariamente negar a influência do meio ou o papel da herança genética, assumem uma postura precavida, usando o raciocínio probabilístico. É apenas provável que filhos sejam inteligentes devido à estimulação; pais inteligentes provavelmente terão filhos inteligentes; é provável que pais transmitam algo aos filhos pelos seus genes; a inteligência depende de um grupo complexo de genes, a ponto de abrir caminho para a interação; é apenas provável que a beleza e a inteligência sejam transmitidas geneticamente; é provável que estimulação, fatores emocionais e circunstâncias interfiram na capacidade inteligente; é muito provável que pais débeis mentais possam gerar filhos com a mesma condição; mas, também, é provável que possam gerar filhos normais ou, até, superinteligentes. Portanto, o que esses docentes não aceitam, é a afirmação da relação direta: se pais inteligentes, então, por determinação genética, filhos inteligentes.

Ensaiando Interpretação Epistemológica

Diferentemente de em 1.0, deparamo-nos aqui com empate entre tendência empirista e apriorista e, em maior número, sinais de superação dessas tendências com a introdução do raciocínio probabilístico, manifestado por nove professores; e débeis sinais de aposta na experiência e na construção o que demandaria a atividade criativa e inventiva do aluno.

Por um lado, sete, de 16 docentes, afirmam que a ação do meio sobre o sujeito determina sua inteligência. Adultos, como pais inteligentes, que contam com boa formação, estimulam e apoiam os filhos; mas, se não forem inteligentes, os prejudicam. Apenas um docente revela um empirismo, próximo da tábula rasa de Locke, ao afirmar que o recém-nascido parece uma planta ou um bicho e o meio o transforma em infinitas complexidades; até débeis mentais, com apoio e respeito, evoluem cognitivamente. Por outro lado, também sete, de 16 docentes, afirmam a determinação do fator genético. A criança é inteligente porque nasce com talento a ponto de sozinha resolver problemas, e o fazer com rapidez, o que o comum das crianças não consegue. A genética garante que todos podem aprender, mas essa herança é diferenciada de duas diferentes formas: algumas crianças conseguem aprender melhor que a maioria e há as que aprendem melhor certas coisas, como Ciências em vez de Matemática, enquanto outras aprendem melhor outras coisas, como Matemática em vez de História. Três docentes afirmam que não existe relação entre inteligência dos pais e a dos filhos e remetem a qualidade da inteligência à força de vontade, ao querer.

O que surpreendeu nesta análise, com relação às anteriores, foi o aparecimento de sinais de não aceitação da crença de que a inteligência da criança é determinada pelo meio ou estimulação, por um lado e, por outro, pela herança genética. Os docentes, em número significativo, introduzem, sem deixar de afirmar a importância do meio e da herança genética, a probabilidade, relativizando as determinações do meio e do genoma – mas não chegam a propor a interação entre essas duas instâncias.

Penso que o raciocínio probabilístico os aproxima de um construtivismo, sem, no entanto, realizar o trânsito teórico ao interacionismo construtivista pela dialetização de herança genética e meio. Por isso acrescentamos aqui dois docentes que se aproximam um pouco mais de um construtivismo, sem, entretanto, criticar o apriorismo. Afirmam eles que filhos, que contam com os cuidados dos pais e têm certa pré-disposição genética, serão inteligentes porque no caminho tem as experiências que determinam o desenvolvimento maior ou menor da inteligência que é desenvolvida ou construída. Eles estão a um passo de um construtivismo; falta-lhes, porém, a fundamentação teórica.

Finalizando

Perseguimos nesta pesquisa as tendências epistemológicas dos professores ou, dito de outra forma, suas concepções epistemológicas. Lembrando que falamos em “tendências” porque nenhum docente manifesta concepção epistemológica pura. Os professores não podem ser classificados como: ou empiristas ou aprioristas; também não como construtivistas. Eles podem, nas respostas a uma pergunta manifestar uma concepção empirista, enquanto nas respostas a outra pergunta, manifestar um apriorismo de tipo inatista.

A compreensão predominante pode ser assim formulada: os docentes acreditam que as capacidades lógicas, condição de todo conhecimento, e matemáticas são inatas e que o meio as diferencia. Isto é, os humanos ao nascer já trariam essas capacidades. Por outro lado, pensam que as verdades matemáticas são evidentes por si mesmas, não precisam da experiência. No entanto, se é evidente que (2+3) +7 = 2+ (3+7), os humanos levam pelo menos 11/12 anos para ter as condições cognitivas necessárias para reconhecer essa evidência, não sem viver, antes, períodos de intensa empiria e construção simbólica (Nunes; Bryant, 1997NUNES, Terezinha; BRYANT, Peter. Crianças fazendo Matemática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.; Piaget; Szeminska, 1975PIAGET, Jean; SZEMINSKA, A. A Gênese do Número na Criança. Tradução: Cristiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.; Piaget, 1995PIAGET, Jean. Abstração Reflexionante: relações lógico-aritmética e ordem das relações especiais. Tradução: Fernando Becker e Petronilha Beatriz da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.).

Quando os docentes atribuem às contingências do meio os êxitos ou os fracassos na aprendizagem (Becker, 2012aBECKER, Fernando. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Penso, 2012a.) não estão errados, pois o meio interfere poderosamente (Piaget, 1973PIAGET, Jean. Problemas de Psicologia Genética. Rio de Janeiro: Forense, 1973.) na evolução dos processos cognitivos. O problema está em conceber que os humanos nascem todos com as capacidades cognitivas (lógicas) para aprender em geral, e, em particular, para aprender Matemática, e toda a responsabilidade dos êxitos ou fracassos nessa empreitada é do meio; exceção feita a algumas afirmações que a atribuem ao talento – criança que nasce com talento para a Matemática, o meio parece não ser empecilho. Ao pensar assim, os docentes estão professando um empirismo, sustentado por um apriorismo de tipo inatista.

Se bem interpretamos, essas manifestações denotam um empirismo, mas um empirismo sui generis, pois as capacidades cognitivas, sobre as quais o meio age, são herdadas. Explicitando mais, nossa interpretação é a de que as manifestações docentes trazem subjacente um empirismo, porém diferenciado do empirismo da tábula rasa de Locke – “[…] nada há na inteligência que primeiro não tenha passado pelos sentidos”. Diferenciado porque as concepções que recolhemos das entrevistas não atribuem simplesmente a origem das possibilidades de aprendizagem ao meio (“Tudo depende do ambiente […] geneticamente não há diferença”), mas ao meio agindo sobre capacidades cognitivas herdadas. Temos, epistemologicamente, um empirismo sustentado por um apriorismo; longe, portanto, de um construtivismo. Ao mesmo tempo, uma concepção distanciada da proposta da interação, como a da Epistemologia Genética, segundo a qual as capacidades cognitivas são geradas pela ação do sujeito sobre o meio, retirando qualidades dos objetos, mas, sobretudo, das coordenações das ações do sujeito com as quais ele constrói novas capacidades (Piaget, 1995PIAGET, Jean. Abstração Reflexionante: relações lógico-aritmética e ordem das relações especiais. Tradução: Fernando Becker e Petronilha Beatriz da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.; Becker, 2017BECKER, Fernando. Abstração Pseudo-Empírica: significado epistemológico e impacto metodológico. Educação & Realidade, Porto Alegre, FACED/UFRGS, v. 42, n. 1, p. 371-393, jan.-mar. 2017.; 2019BECKER, Fernando. Construção do Conhecimento Matemático: natureza, transmissão e gênese. Bolema – Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 33, n. 65, p. 963-987, dez. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/bolema. Acesso em: 1 jan. 2022.
http://www.scielo.br/bolema...
; 2021BECKER, Fernando. Gênese de Noções Matemáticas Elementares: concepções epistemológicas subjacentes às respostas de docentes de Matemática de três países sul-americanos. Bolema: Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 35, n. 70, p. 588-613, ago. 2021. Disponível em: http://www.scielo.br/bolema. Acesso em: 1 jan. 2022.
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); e que, antes dessa interação não há conhecimento, muito menos consciência (Piaget, 1977aPIAGET, Jean. A Tomada de Consciência. Tradução: Edson Braga de Souza. São Paulo: EDUSP/Melhoramentos, 1977a.; 1977b; 1995; Becker, 2016BECKER, Fernando. Tomada de Consciencia: del hacer al compreender. In: FRISANCHO HIDALGO, Susana. Ensayos Constructivistas. Lima: Fondo Editorial PUC, 2016. P. 77-90.) – condições sine qua non de aprendizagens, sobretudo de conteúdos formais. Isto é, segundo a Epistemologia Genética, os humanos não nascem com estruturas cognitivas, mas com a capacidade de construí-las; sua construção depende integralmente da assimilação do meio (Piaget, 1978PIAGET, Jean. O Nascimento da Inteligência na Criança. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.) e dos desdobramentos dessa ação assimiladora. Portanto, não se constata a superação de empirismo e apriorismo, já que os docentes pagam tributo às duas epistemologias ao mesmo tempo e quase nada demonstram de superação dessas duas determinações. Como já demonstramos alhures (Becker, 2012aBECKER, Fernando. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Penso, 2012a.; 2019BECKER, Fernando. Construção do Conhecimento Matemático: natureza, transmissão e gênese. Bolema – Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 33, n. 65, p. 963-987, dez. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/bolema. Acesso em: 1 jan. 2022.
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, 2021BECKER, Fernando. Gênese de Noções Matemáticas Elementares: concepções epistemológicas subjacentes às respostas de docentes de Matemática de três países sul-americanos. Bolema: Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 35, n. 70, p. 588-613, ago. 2021. Disponível em: http://www.scielo.br/bolema. Acesso em: 1 jan. 2022.
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), isso impacta o ensino determinando sua qualidade.

Não deixa de surpreender o fato de que mudando a pergunta mudam-se as concepções epistemológicas. As respostas às duas primeiras perguntas foram maciçamente empiristas, com pouca incidência de aprioristas; as da terceira pergunta, empirismo e apriorismo empataram, e a baixa incidência de ambas abriu um pequeno espaço ao pensamento probabilístico que relativiza essas concepções. Nossa hipótese é a de que se deixa amplo espaço, no ensino de Matemática, ao senso comum, empirista ou apriorista. E que a superação dessas concepções epistemológicas, na direção de um construtivismo interacionista, será possível pela instauração de ampla discussão epistemológica na formação docente. Do contrário, continuar-se-á a ensinar conhecimentos científicos, como os matemáticos, fundamentados em epistemologias de senso comum – o que configura um contrassenso.

Comparadas com resultados encontrados no Brasil, as concepções epistemológicas, abstraídas das respostas às duas primeiras perguntas, coincidem quanto à forte presença empirista, sustentada pelo apriorismo de tipo inatista, sem consciência da contradição; diferenciam-se por uma presença maior de apriorismo, nas respostas à terceira pergunta; e inovam nas respostas que trazem o pensamento probabilístico que, segundo pensamos, abre caminho para um interacionismo construtivista; mas ainda como intuição, não como expressão de construção teórica; portanto, insuficiente para modificar as práticas de ensino.

A maior generalização, sob o ponto de vista epistemológico, colhida das respostas dos docentes, parece ser esta: os seres humanos nascem todos com capacidades para a Matemática (apriorismo); cabe ao meio diferenciar essas qualidades (empirismo). Temos, pois, uma epistemologia empirista, diversa daquela da tábula rasa de Locke, que se funda num apriorismo de tipo inatista; longe de um interacionismo construtivista, salvo passageiras intuições, como a do pensamento probabilista e das afirmações que postulam a participação ativa do aluno, sua experiência, no processo de aprendizagem.

Numa época em que, talvez mais do que em qualquer outra, se insiste em práticas de pedagogias ativas, é preciso superar empirismo e apriorismo. É um contrassenso fundamentar uma pedagogia ativa, com tais concepções epistemológicas.

Para finalizar, duas observações. Primeira, várias contribuições dos docentes sobre a função da afetividade na aprendizagem, algumas preciosas como esta: “o que vale um pai contratar o melhor professor particular, se o filho não quiser aprender?”, não foram exploradas nesta análise. Segunda, esta pesquisa visou as concepções epistemológicas subjacentes às respostas dos docentes; entretanto, as respostas analisadas trazem muitas informações interessantes para uma análise sociológica, objetivo não visado por esta análise.

Notas

  • 1
    A pergunta utiliza o nome da tribo indígena cujos descendentes são numerosos naquela região, inclusive na cidade onde se situa a escola; a professora responde utilizando também o nome desse grupo indígena. Substituímos esse nome pelo adjetivo “indígena” para preservar o anonimato da professora.
  • 2
    “Índio”, no lugar do nome do grupo indígena, para preservar o anonimato.
  • 3
    Assisti a aula desse professor, dias antes da entrevista.

Disponibilidade dos dados da pesquisa

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Referencias

  • BECKER, Fernando. Educação e Construção do Conhecimento Porto Alegre: Penso, 2012a.
  • BECKER, Fernando. Epistemologia do Professor de Matemática Petrópolis: Vozes, 2012b.
  • BECKER, Fernando. Tomada de Consciencia: del hacer al compreender. In: FRISANCHO HIDALGO, Susana. Ensayos Constructivistas Lima: Fondo Editorial PUC, 2016. P. 77-90.
  • BECKER, Fernando. Abstração Pseudo-Empírica: significado epistemológico e impacto metodológico. Educação & Realidade, Porto Alegre, FACED/UFRGS, v. 42, n. 1, p. 371-393, jan.-mar. 2017.
  • BECKER, Fernando. Construção do Conhecimento Matemático: natureza, transmissão e gênese. Bolema – Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 33, n. 65, p. 963-987, dez. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/bolema Acesso em: 1 jan. 2022.
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  • BECKER, Fernando. Gênese de Noções Matemáticas Elementares: concepções epistemológicas subjacentes às respostas de docentes de Matemática de três países sul-americanos. Bolema: Boletim de Educação Matemática, Rio Claro, UNESP, v. 35, n. 70, p. 588-613, ago. 2021. Disponível em: http://www.scielo.br/bolema Acesso em: 1 jan. 2022.
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  • BECKER, Fernando. A Epistemologia do Professor: o cotidiano da escola. Petrópolis: Vozes, 2022.
  • INHELDER, Bärbel; PIAGET, Jean. Da Lógica da Criança à Lógica do Adolescente Tradução: Dante Moreira Leite. São Paulo: Livraria Pioneira Ed., 1976.
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  • PIAGET, Jean. Para onde vai a Educação Tradução: Ivette Braga. Rio de Janeiro: Liv. J. Olympio Ed., 1974b.
  • PIAGET, Jean. A Tomada de Consciência Tradução: Edson Braga de Souza. São Paulo: EDUSP/Melhoramentos, 1977a.
  • PIAGET, Jean. Fazer e compreender Tradução: Christina Larroudé de Paula Leite. São Paulo: EDUSP/Melhoramentos, 1977b.
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Editado por

Editor responsável: Luís Henrique Sacchi dos Santos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2022
  • Aceito
    01 Dez 2023
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