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História Natural e Educação Ambiental em Diálogo no Ensino de Ciências

RESUMO

O artigo analisa experiências pedagógicas de uma professora de Ciências que lecionou em uma escola pública municipal do Rio de Janeiro entre as décadas de 1960 e 1990. As vivências se relacionam a um singular trabalho pedagógico que se estruturou pela construção e manutenção de um zoológico escolar onde animais silvestres vivos eram mantidos e cuidados para serem usados em atividades didáticas sob perspectivas ecológico-evolutivas ou em ações em prol da conservação da fauna. Discute-se mudanças nas práticas de ensino da docente originadas por ressignificações de tradições naturalísticas, apropriadas durante sua formação inicial em História Natural, diante da influência cada vez maior do campo da Educação Ambiental ao longo dos anos.

Palavras-chave
História da Educação em Ciências; História de Vida; Currículo

ABSTRACT

This paper analyzes pedagogical experiences of a Science teacher who taught in a Rio de Janeiro’s public school between the 1960s and 1990s. Her experiences relate to a singular pedagogical action structured by building and maintaining a zoo where wild animals were protected and used in didactic activities under ecological-evolutionary perspectives and on behalf of the conservation of wild fauna. The paper discusses the changes in the teacher’s practices that was originated by re-significations of naturalistic traditions, appropriated during her initial formation in Natural History in the face of the increasing influence of the field of Environmental Education over the years.

Keywords
History of Science Education; Life History; Curriculum

Considerações Iniciais

Este artigo é fruto de uma pesquisa (Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021.)1 1 O artigo toma como base a tese de doutorado do primeiro autor, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. A investigação fez parte de um projeto de pesquisa mais amplo, intitulado Narrativas docentes e diálogos geracionais na construção da disciplina escolar Biologia, que conta com o fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). que buscou seguir e analisar os rastros do passado produzidos e preservados sobre a trajetória da professora Nilza Vieira, docente de Ciências que atuou na rede pública municipal carioca entre as décadas de 1960 e 1990 e lecionou durante a maior parte da carreira na Escola Camilo Castelo Branco (ECCB), situada no bairro do Jardim Botânico. Em trabalhos anteriores (Borba; Selles, 2020aBORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento; SELLES, Sandra Escovedo. Notas para pensar os Sujeitos Periféricos na História da Educação em Ciências. Educação em Revista, Belo Horizonte, UFMG, v. 36, p. 1-26, 2020a.; 2020b), apresentamos discussões pormenorizadas sobre a história de vida dessa professora e desdobramentos de suas práticas de ensino para os currículos de Ciências e Biologia, assim como discutimos as implicações dos estudos biográficos de sujeitos com determinados perfis ainda pouco explorados pela historiografia para a construção de outras versões e visões para a História da Educação em Ciências no Brasil.

Nessas produções, pudemos discutir a importância material e simbólica atribuída ao ensino de Ciências na ECCB durante o período de atuação de Nilza Vieira e de seu colega, amigo e compadre, o também professor de Ciências, Walter Veiga. Contudo, se nos dedicarmos a explorar diferentes faces dos saberes e fazeres docentes construídos cotidianamente por ambos profissionais, talvez possamos dizer que tradições naturalistas possam ter sido a maior marca da docência de Nilza. Isso não invalida as evidentes – e já previamente discutidas em outros trabalhos – afinidades dessas com as tradições de ensino experimentalistas que até então se firmavam nos currículos escolares por meio da valorização de aulas práticas para reforço do exercício pedagógico do método científico.

Conforme desenvolveremos neste artigo, o labor da professora ficou marcado por utilizar métodos de ensino práticos para o trabalho com a diversidade de seres vivos, que são uma das fortes tradições curriculares dentro do Ensino de Ciências e Biologia, herança da História Natural (Marandino; Selles; Ferreira, 2009MARANDINO, Martha; SELLES, Sandra Escovedo; FERREIRA, Márcia Serra. Ensino de Biologia: histórias e práticas em diferentes espaços educativos. São Paulo: Cortez Editora, 2009. (Volume 1).), evidenciando sua aproximação com abordagens didáticas que apostavam no trabalho em perspectiva ecológico-evolutiva para forjar sentidos e significados ao ensino que ela considerava como bom. Mais tarde, entre a segunda metade da década de 1980 e o início dos anos 1990, essa perspectiva seria ressignificada e se desdobraria em atividades de educação ambiental que fortaleceriam o nome de Nilza Vieira como uma figura pública ligada à educação e ao ambientalismo.

Por isso, temos como objetivos evidenciar e interpretar mudanças nas concepções pedagógicas e nas práticas curriculares da referida professora no que tange à abordagem da biodiversidade2 2 No intuito de facilitar a leitura do artigo, utilizamos o termo “biodiversidade” para nos referirmos, de modo geral, à variedade de espécies encontradas em um território durante determinado período devido à ampla circulação e assimilação desse conceito no tempo presente. Sabemos, entretanto, que o conceito de biodiversidade foi construído e legitimado pelos ecólogos apenas no final dos anos 1980 (Franco, 2013). Ou seja, antes disso, o conceito não estava estabelecido e não era acionável por Nilza Vieira em suas aulas. em suas aulas, assunto que lhe era caro por dialogar com a formação recebida no curso de História Natural da Universidade do Brasil no fim da década de 1950, marcada pela tradição naturalista. No decorrer do artigo, destacaremos questões e reflexões a respeito disso a partir de narrativas e de registros sobre um mini zoológico que funcionou na ECCB como fruto de um singular investimento pessoal e profissional de Nilza Vieira. Assim, nos debruçaremos sobre algumas práticas pedagógicas buscando indiciá-las a partir das fontes históricas e discutiremos as transformações na trajetória profissional da professora a fim de refletir sobre sua caminhada das tradições naturalistas rumo às ações voltadas ao fomento da preservação ambiental via ação educativa, mais alinhadas ao crescente campo da educação ambiental no país.

Cabe dizer que o artigo está organizado em cinco partes. Além desta primeira, em que é feita uma rápida introdução, o manuscrito conta também com uma seção para algumas elucidações de ordem teórico-metodológica e duas seções direcionadas às reflexões sobre os saberes e as práticas de Nilza Vieira tendo como pano de fundo lampejos da experiência por ela vivida durante a criação, o funcionamento e o fechamento do mini zoológico que existiu na ECCB sob sua coordenação. Por fim, encerramos o texto com algumas considerações à guisa de conclusão.

Dimensões Teórico-Metodológicas da Pesquisa

Na procura por registros e indícios históricos dos processos educacionais conduzidos por Nilza Vieira no que tange ao ensino de conteúdos relacionados à diversidade de seres vivos, acionamos entrevistas transcritas e fotografias como fontes. As entrevistas e suas transcrições foram produzidas seguindo-se os procedimentos inerentes à metodologia da história oral (Delgado, 2011DELGADO, Lucília. História Oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.; Portelli, 2010PORTELLI, Alessandro. Sempre existe uma Barreira: a arte multivocal da história oral. In: PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. P. 19-35.), enquanto o trabalho com fotografias foi operado tendo por base as reflexões construídas por Mauad (1996)MAUAD, Ana Maria. Através da Imagem: fotografia e história interfaces. Tempo, Niterói, EdUFF, v. 1, n. 2, 1996, p. 73-98. e Vidal e Abdala (2005)VIDAL, Diana Gonçalves; ABDALA, Raquel Duarte. A Fotografia como Fonte para a História da Educação: questões teórico-metodológicas e de pesquisa. Educação, Santa Maria, UFSM, v. 30, n. 2, p. 177-194, 2005.. As entrevistas trazidas foram realizadas com a própria Nilza Vieira em perspectiva autobiográfica, mas também com Verônica Vieira (ex-aluna, ex-estagiária e filha da docente), Irma Rizzini (ex-aluna de Nilza na ECCB) e com José Antônio dos Anjos (ex-aluno da ECCB e ex-colega de trabalho da professora) para o desenvolvimento da pesquisa (Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021.). As fotografias foram conseguidas no acervo pessoal de Nilza e disponibilizadas por ela.

É válido ressaltar que a entrevista com a professora Nilza Vieira foi realizada sob uma perspectiva narrativa, ou seja, com poucas intervenções do entrevistador e uma maior liberdade para a entrevistada relatar suas experiências e refletir sobre sua própria história de vida. Contudo, em alguns momentos, foram feitas perguntas para acionar suas lembranças ou provocar reflexões relacionadas, por exemplo, à origem social da professora, aos processos de formação docente vividos por ela ou às questões relacionadas à docência nos cotidianos escolares que balizavam suas práticas pedagógicas. Por outro lado, as entrevistas com Verônica Vieira, Irma Rizzini e José Antônio dos Anjos foram mais roteirizadas, realizadas de modo semiestruturado e mediadas por condução mais diretiva pelo entrevistador. Essa opção metodológica serviu para evitar que os entrevistados se afastassem da intencionalidade da entrevista, que se relacionava à compreensão de como o contato/convivência com Nilza Vieira e com seu ideário pedagógico peculiar atravessou as trajetórias sociais desses entrevistados e influenciou suas visões sobre os conhecimentos científicos, os processos educativos e o ensino de Ciências.

Optou-se por tratar metodologicamente cada fonte em interlocução com autores específicos ao longo de todo o texto como uma precaução teórico-metodológica: a utilização de diferentes métodos de pesquisa e fontes decorre da compreensão de que investigações de cunho histórico requerem a triangulação de diversas fontes. Além disso, compreendemos que as informações produzidas pelo historiador a partir das perguntas feitas a cada fonte devem ser problematizadas e tensionadas durante a construção da narrativa histórica, evitando interpretações ingênuas e explorando controvérsias e contradições inerentes aos processos educacionais pretéritos. Amparados por Nunes e Carvalho (2005)NUNES, Clarice; CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Historiografia da Educação e Fontes. In: GONDRA, José Gonçalves (Org.). Pesquisa em História da Educação no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. P. 17-62., compreendemos que as fontes históricas não falam por si só, nem são neutras, uma vez que o fato de terem sido conservadas ou produzidas já indica que não são despidas de quaisquer intencionalidades. Por isso, nas seções a seguir será perceptível um movimento para integração das análises teórico-metodológicas à empiria e seu desenvolvimento durante o texto.

Elementos Naturalísticos e Ambientalistas na Docência de Nilza Vieira

Durante a pesquisa mais ampla sobre a história de vida de Nilza Vieira, ficou cada vez mais evidente que a professora prezava por aulas de campo como oportunidades pedagógicas para ensinar a seus estudantes conteúdos ligados à biodiversidade, principalmente aqueles permeados por conhecimentos morfológicos, ecológicos e evolutivos de animais e plantas. Porém, com o passar dos anos, a aproximação, tanto física, quanto conceitual, dos discentes com a diversidade animal mediada pela professora passou a não ser restrita apenas às oportunidades produzidas pelas aulas de campo. A própria ECCB abrigou animais silvestres por anos, que eram utilizados em aulas de Ciências ou em ações de cunho ambientalista em outros espaços.

Assim sendo, além de ser reservado para a realização de aulas práticas, o laboratório da professora, por um período de tempo que não foi possível precisar, também foi lar de alguns animais mantidos em terrários ou aquários. Em alguns casos até mesmo a residência da professora abrigou espécimes vivos usados para aulas de Zoologia ou atividades de educação ambiental3 3 Segundo Magalhães, Massarani e Norberto Rocha (2021) indicam, o uso de animais vivos em aulas era bem aceito e incentivado nos anos 1960. Esse quadro passou a mudar na década seguinte até culminar no estabelecimento de legislações que vedaram totalmente tais práticas, como será abordado mais adiante. :

A gente criava animais na escola, mas alguns vinham pra minha casa porque não tinha lugar na escola. Por exemplo, esse macaquinho lindo aqui [a entrevistada apontava para uma fotografia]: ele não aguentava viver sozinho na escola. Aí vinha pra minha casa porque a Verônica [sua filha] também gostava de bichos, então foi criada desde pequena com eles. Uma marreca foi criada pela Verônica desde pequenininha e ela pensava que fosse um macho, ela tinha nome de macho. Um dia pôs ovo e ela me falou muito desconsolada no telefone ‘mãe, o fulano, o Nicolino, não sei, esqueci o nome, pôs um ovo’. Eu ri e disse ‘seu marreco não é um marreco, é uma marreca. Então como é o nome, Verônica?’ e ela disse ‘Matilde!’

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 154, grifo nosso).

Sobre essa convivência cotidiana com os animais na escola e, às vezes, dentro de sua própria casa, Verônica recordou a quantidade e a diversidade de espécies que circulavam pelo apartamento e o trabalho dispendido para mantê-las bem, inclusive quando os predadores ficavam próximos de suas presas:

A arrumação dos espaços da escola era à noite e já tinha bichos vivos lá. Nas férias, eles iam lá para casa. Cresci com lagarto, cobra-cipó, gambá, jiboia, sucuri, quati, tatu, codorna, periquito, papagaio, porquinho-da-índia, coelho, macaco. No final de semana, eles ficavam lá na escola, porque não tinha problema, mas nas férias eles iam lá pra casa. E eu convivi com essa bicharada toda, desde pequena […] E ficava tudo solto. Ninguém ficava preso. As cobras eram do laboratório, só iam nas férias e ficavam no banheiro da empregada. A empregada ficava louca às vezes. Porque não tinha empregada fixa, eram faxineiras. Imagina você chegar e ter uma cobra no seu banheiro?

(Verônica Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 155, grifo nosso).

Ao ser indagada sobre a prática de atribuir nomes humanos aos animais, Nilza respondeu que isso era algo comum e que todos eles tinham um nome próprio, enfatizando ser um modo afetuoso de se relacionar com eles, ainda que revelador de uma referência antropocêntrica nessas relações. Do mico-de-cheiro4 4 Os micos-de-cheiro (Saimirisp.) são primatas popularmente conhecidos pelo hábito de passarem urina pelo corpo, o que lhes confere um odor característico utilizado para comunicação via olfato e demarcação de território. Possuem pequeno porte, são pouco agressivos com outros macacos, costumam viver em grupo e têm dieta generalista. São considerados espécies invasoras em muitos locais, inclusive no fragmento de Mata Atlântica que se conecta ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o que traz impactos ambientais em decorrência da ação antrópica. Por suas características físicas e comportamentais, são alvo comum do tráfico de animais silvestres, o que muitas vezes resulta em posterior soltura em ambientes inadequados (Oliveira; Grelle, 2012). chamado Chico, ela recordou o sucesso que fazia com as crianças:

O Chico vivia aqui, ficava com uma correntinha. […] Passava comida pela mesa e ele ficava pedindo. Mas ele não aceitava qualquer coisa não. Ele gritava. Quando passava batata frita, bife, arroz e feijão, eu pegava uma batata frita e dava. Não era o que ele queria, ele pegava a batata e jogava no chão. Gritava porque não era o que ele queria e jogava no chão. A gente oferecia o arroz e não era o arroz. Oferecia o bife, aí ele pegava o bife. Depois ele ficava gritando e aí oferecia a batata, agora era a batata. Ele comia na ordem que ele queria. Ficava preso ali na cortina, com uma correia grande. A Veronica passava e ele pulava na cabeça dela, pegava os cabelos e prendia ela. Ela não conseguia andar e gritava ‘Mãe, tira esse macaco! Esse macaco não me deixa passar!’. Adorava ele, era uma graça

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 155).

Ademais, um certo uso disciplinador na gestão das aulas também pode ser notado na presença do mico em aulas, uma vez que as crianças fixavam sua atenção no animal e na explicação dada pela professora ao apresentá-lo, como ela observou ao apontar para a Figura 1: “As crianças ficavam encantadas” (Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 155):

Figura 1
Dois alunos de Nilza com o macaco Chico em aula no Jardim Botânico

A imagem parece evidenciar que, ao lidarem com o pequeno primata, os estudantes experienciaram um misto de sensações: um parecia se sentir tranquilo e confortável com ele em mãos, enquanto passava o animal para seu colega, com uma postura mais insegura e expressão facial apreensiva. Tal fotografia contribui para que relativizemos o tom de naturalidade incorporado a algumas narrativas que revisitam o hábito de Nilza de trabalhar com animais vivos. Ao entrarmos em contato com elas, pode ser incorporada uma impressão de que esses eram feitos tão banais e cotidianos que estudantes e familiares estariam sempre acostumados, sem que houvesse também estranhamentos.

No contexto sócio-histórico em que Nilza Vieira desenvolveu suas práticas educativas com os animais, ainda não estavam postas as considerações e as problematizações que circulam atualmente sobre as condições legais, os requisitos estruturais e as questões ambientais e veterinárias relacionadas à manutenção de espécimes silvestres em cativeiro, quer seja em espaços domésticos ou em instituições com fins de pesquisa e divulgação científica, tais como zoológicos. Apesar de termos consciência de que os conhecimentos científicos e os debates bioéticos em voga no tempo presente contrastam com as ações da professora no passado e dificultariam, por exemplo, que um mico-de-cheiro fosse mantido hoje sob as mesmas condições com as quais Chico era criado, não pretendemos apresentar um juízo de valor sob o risco de erigirmos considerações anacrônicas. Com isso, buscamos evitar que a narrativa histórica do trabalho se converta em um julgamento sobre a docência da professora Nilza.

Além da marreca Matilde e do macaco Chico, outro animal nominalmente recordado por Nilza foi o ouriço-cacheiro Loli (Figura 2). Ao falar sobre ele, a professora explicou como um conjunto de animais silvestres foi sendo assimilado ao seu dia a dia pedagógico:

Figura 2
Verônica Vieira mostrando o ouriço-cacheiro Loli para os alunos da mãe

O ouriço-cacheiro era o Loli. O Loli morava na minha casa também, mas aí nós fizemos o espaço na escola e eles puderam ir pra lá. Nem sei se foi bom ou ruim para eles, mas deu um conforto maior porque os viveiros eram do tamanho da minha sala. Eram bem grandes, com as casinhas de tijolinho, com porta, janela. Os meninos adoravam. E o Loli ia ser morto, uma menina o salvou. Iam matá-lo com pauladas porque tem aquela ideia de que eles jogam os espinhos. Ele apareceu lá no Jardim Botânico, aí ela o cercou dizendo ‘Não, não mata! A minha professora vai cuidar, vai criar, deixa ele pra lá!’. Tanto falou que deixaram, ele veio e ficou morando aqui. E como ele é noturno, ele passava o dia dormindo dentro do meu guarda-vestidos em cima de uma jaqueta minha e roía toda a gola da jaqueta. Para ele não foi bom ir pra lá [para a escola], por que ele ficou no viveiro junto com a quati e a quati é diurna e muito buliçosa, ficava mexendo com ele durante o dia. Ele queria dormir e ela não deixava. Aí ele fugiu e mataram ele a pauladas no Jardim Botânico. Umas meninas depois me contaram. Procuraram em tudo lá e souberam que fizeram isso

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 157).

A Figura 2 talvez seja a fotografia que melhor expressa o fascínio dos estudantes diante dos animais silvestres utilizados pela professora em suas atividades didáticas. Os olhares curiosos voltados para o animal e a expressão boquiaberta do aluno mais próximo dele, caracterizam certo encantamento pelas características morfológicas do mamífero acrescido da explicação da filha de Nilza. Enquanto segura-o pela cauda, Verônica fitava nos olhos um aluno mais distante, aparentemente explicando algo que atiçava o interesse dos seus interlocutores.

O espaço construído por Nilza com o auxílio de estudantes, o qual ela intitulou como sendo um “parque ecológico”, mas que alguns depoentes chamaram também de “mini zoológico”, evidencia o quanto os demais espaços ocupados pela equipe de Ciências da escola se tornaram insuficientes diante de seu desejo de construir um empreendimento mais ousado relacionado à lógica do “conhecer para preservar”:

Fizemos um parque ecológico. O quintal da escola foi todo cercado com telas bonitas e fizemos casinhas pros bichos. Aqui eram dois garotos bagunceiros e estão aqui quietinhos com o macaquinho. E passamos a fazer excursões. […] Então realmente nós fomos à luta, fomos desafiados. O ensino de Ciências no desafio. Mas o principal são os olhos das crianças, a atenção, a tentativa de entender, de chegar lá e ver

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 158).

Sobre esse espaço, cabe comentar que sua existência reflete uma certa cultura zoológica de aprisionar animais, de não os deixar soltos na natureza, para que fosse possível conservar as espécies e estudá-las em maior profundidade. Além disso, práticas como dar nomes a animais silvestres e manter alguns em sua residência se aproximam de processos de domesticação. Por outro lado, a preocupação ecológica de Nilza, que lidava com eles usando de muito cuidado, inspirando seus estudantes a fazerem o mesmo, parece ser sinal de que a docente mesclava práticas ambientalistas da época com uma pedagogia do afeto pelos animais que trazia sentidos para além do puro conhecimento biológico.

Figura 3
Alunos com o macaco Chico no interior de um viveiro construído na escola

A narrativa elaborada por Nilza enquanto examinava a fotografia que registrou seus alunos interagindo com Chico em um viveiro do mini zoológico construído na ECCB (Figura 3), mais uma vez evidencia que o uso pedagógico da fauna viva também contribuía para que ela motivasse seus estudantes e pudesse empreender sua dinâmica de aula com mais tranquilidade, por mais que fosse esperada alguma agitação diante dos animais.

A partir de uma perspectiva crítica para o uso da fotografia como fonte histórica, inspirados em Mauad (1996)MAUAD, Ana Maria. Através da Imagem: fotografia e história interfaces. Tempo, Niterói, EdUFF, v. 1, n. 2, 1996, p. 73-98. e em Vidal e Abdala (2005)VIDAL, Diana Gonçalves; ABDALA, Raquel Duarte. A Fotografia como Fonte para a História da Educação: questões teórico-metodológicas e de pesquisa. Educação, Santa Maria, UFSM, v. 30, n. 2, p. 177-194, 2005., assumimos que os registros imagéticos podem ser produzidos e preservados com a intenção de construir ou demolir consensos sobre determinadas práticas. Desse modo, o arsenal fotográfico compõe recursos que participam das batalhas de memórias (Pollak, 1989POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v 2, n. 3, p. 3-15, 1989.), conceito em que Pollak enfatiza os tensionamentos que marcam as possíveis significações desses registros. Assim sendo, estamos advertidos de que as fotografias que acionamos para contar a história de vida de Nilza Vieira, principalmente por serem oriundas de seu acervo pessoal, provavelmente foram produzidas e preservadas intencionalmente porque contemplam determinada faceta do seu trabalho docente para ser relembrado, conhecido e divulgado.

Composições como a exposta a seguir (Figura 4) surpreendem pelo enquadramento que captura com exatidão as expressões faciais da professora e de seus alunos durante a exibição dos espécimes. Nesse caso, Nilza foi fotografada explicando um comportamento desenvolvido pelas pererecas para diminuir os danos causados por picadas de insetos. Sendo assim, podemos perceber que as fotografias do acervo particular da docente contribuem para reforçar a ideia de uma profissional segura na hora de ensinar sobre a biodiversidade e de discentes curiosos e fascinados pelos animais mostrados, como ela ressaltou em depoimento:

Então os alunos ficavam pasmos vendo isso tudo: a perereca que entra sozinha no tubo, no bambu. Ela entra sozinha e bota o bumbum pra cima. Fica protegida porque quase não tem carne no bumbum e, quando os mosquitos mordem, ela quase não sente nada. Esse domínio [conhecimento das espécies] dos jardins… A planta estranguladora que começa lá de cima, o baobá lá da Praça Paris… Essa beleza de baobá, eu também não sabia. O Carauta, botânico do Jardim Botânico, famoso, que [me] disse

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 160).
Figura 4
Alunos com Nilza observando uma perereca no interior do bambu

Para analisar esse tipo de vivência, recordamos as ponderações de Carvalho (2005)CARVALHO, Luiz Marcelo de. A Temática Ambiental e o Ensino de Biologia: compreender, valorizar e defender a vida. In: MARANDINO, Martha; SELLES, Sandra Escovedo; FERREIRA, Marcia Serra; AMORIM, Antônio Carlos (Org.). Ensino de Biologia: conhecimentos e valores em disputa. Niterói: EdUFF, 2005. P. 85-99. (Volume 1). sobre as imbricações que as temáticas ambientais suscitaram entre o ensino de ecologia e a educação ambiental na história escolar. No período em que Nilza consolidou a realização de atividades de campo com suas turmas (Borba; Selles, 2020bBORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento; SELLES, Sandra Escovedo. Research with Life Stories in the Production of the History of Science Education: the photobiographical device as a resource for the understanding of social experiences. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, Rio de Janeiro, UFMG, v. 20, p. 403-428, 2020b.) e ações de ensino envolvendo o manuseio da fauna como partes significativas de seu repertório pedagógico, as abordagens didáticas pautadas na exploração dos fenômenos ecológico-evolutivos passaram a ser entendidas como alternativas ao ensino de Ciências tradicional, baseado na memorização de conteúdos e de conceitos biológicos. Ou seja, tratava-se de um modo de ressignificar as tradições de História Natural, substituindo a observação e a descrição presentes em livros didáticos, o que requeria a mobilização intelectual das características da fauna e da flora feita pelos alunos de forma passiva, pelo manuseio de espécimes vivas em perspectivas de ensino ativo.

Ao trazer o meio natural como contexto para análise de diferentes interações entre seres vivos e as transformações biológicas ao longo do tempo conjugadas às mudanças do meio como fatores para explicar a diversidade de espécies, Nilza tinha todo um aparato de conhecimentos que serviram de substrato para posteriores proposições e ações de cunho ambientalista, como nos ajudam a refletir Selles e Abreu (2002)SELLES, Sandra Escovedo; ABREU, Martha. Darwin na Serra da Tiririca: caminhos entrecruzados entre a Biologia e a História. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 20, p. 5-26, 2002. ao ponderarem sobre como a temática ambiental foi sendo inserida, apropriada e ressignificada nos currículos de Ciências e Biologia.

Assim, a professora operava tensionamentos entre perspectivas evolutivas e naturalistas, enquanto as ressignificava: ora as utilizava para fortalecer a ciência ao estabelecer diálogos com cientistas ecólogos e ambientalistas; ora as acionava para adaptar determinadas práticas com fins didáticos, realizando interlocuções com a comunidade disciplinar formada tanto por professores de Ciências, quanto por docentes universitários, que almejavam inovações curriculares nas bases do ensino ativo que já eram propagadas desde o início do século XX (Azevedo, 2020AZEVEDO, Maicon. Entre a Bancada e a Sala de Aula – a experimentação no período de ouro do Ensino de Ciências. Curitiba: Appris Editora, 2020.). Sem romper totalmente com abordagens didáticas que poderiam ser consideradas tradicionais, Nilza hibridizava estas duas perspectivas respondendo de maneira coerente às novas finalidades da escolarização que despontavam.

Como pode ser depreendido a partir das memórias de José Antônio dos Anjos, o referido espaço para criação de animais dentro da escola foi construído na década de 1980 e se tornou um lugar de memória5 5 Segundo Nora (1993), os lugares de memória são espaços materiais, simbólicos e funcionais caracterizados por uma aura ritualizada e não espontânea que colabora para transformar memória em história. Os lugares de memória, além de preservarem e atribuírem sentidos à memória coletiva, ainda corroboram para a invenção ou o reforço de identidades. (Nora, 1993NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, PUC-SP, v. 10, 1993, p. 7-28.) sobre a docência de Nilza. O depoente testemunhou o estabelecimento do espaço e seu apogeu:

A Nilza foi responsável por um bom tempo pelo mini zoológico que a gente tinha na escola. Tinha a ajuda de dois ex-alunos da escola, que foram alunos dela. Montaram quando eu já estava na escola, mas não lembro como foi o processo. Onde ela pegou bicho, onde ela arrumou… Só sei que ela era muito empenhada nesse mini zoo. Era quem pegava comida. Se ela tinha algum patrocínio, eu não sei, mas com certeza tudo que entrava de comida para os animais era proveniente dela. Se ela não fosse na feira buscar, os bichinhos não comeriam. Pegavam da xepa da feira, lá da Cobal do Humaitá… Só sei que o carro vinha lotado com muita comida e os bichinhos se divertiam. O carro dela, meu Deus do céu! Lembro que era uma Caravan azul. A bichinha fedia a coisa de folhagem. Fedia. Não tinha outro termo. E a Nilza sempre dentro, trazendo material para manter as coisas e as crianças verem os bichos ali, como viviam. Lembro que tinha tucano, patos, guaxinim… Eram vários bichos que tinham lá dentro daquele zoológico

(José Antônio dos Anjos, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 161, grifo nosso).

Sobre a necessidade desse espaço para manutenção de animais em cativeiro, Verônica ofereceu mais detalhes de como o interior do prédio ficou pequeno para abrigar adequadamente o conjunto de seres vivos que eram utilizados em aulas e atividades:

Os alunos levavam o que encontravam morto, mas eles tinham muito animal vivo. Tinham muitos terrários terrestres e insetos viviam nesses terrários porque eles davam aula com eles. Pegavam na mão, mostravam… Eram caixas d’água imensas. Não sei como eles conseguiam fazer isso, mas cortavam a caixa d’água do lado e botavam vidro. E tinham uns que eram de ambiente marinho. Eles devolviam os animais da Urca porque ela dava aula na praia e devolvia, não matava ninguém. Alguns eles levavam para o aquário deles. […] Os animais ficavam presos no laboratório. Ela e meu padrinho [Walter] dominavam o último andar da Camilo [Escola Camilo Castelo Branco], então tinham muitas salas, vários banheiros e seus próprios laboratórios. Os animais ficavam ali, nos tanques. Depois ela começou a ficar com muito animal porque o pessoal acabava encaminhando os animais machucados para ela

(Verônica Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 162, grifo nosso).

Nesse bojo, Verônica contou sobre os recursos envolvidos na construção e na montagem dos viveiros para os animais e, coincidindo com o que foi informado por José Antônio dos Anjos, ressaltou a importância de doações e do apoio prestado por ex-alunos de Nilza para viabilizar as ações da professora, uma vez que este parecia se tratar de um projeto pessoal custeado pela própria docente:

Quando ela conseguiu um financiamento, fez tipo um mini parque. Antes de ter o mini parque, eles ficavam lá em casa nas férias. Era muito bicho lá em casa, mas quando ela começou a fazer o mini parque ecológico, eles começaram a ficar lá direto. E ela tinha um ex-aluno que ia lá no final de semana para cuidar e nas férias também. E a gente sempre ia, pegava muita doação na Cobal, porque gastávamos muito dinheiro, eram muitos animais. Ela tirava o dinheiro do bolso dela porque o financiamento que ela teve foi mais construir a estrutura, não para manter. A gente ia lá na Cobal e pegava doação de verduras, legumes, frutas

(Verônica Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 162, grifo nosso).

Como salienta Carvalho (2005)CARVALHO, Luiz Marcelo de. A Temática Ambiental e o Ensino de Biologia: compreender, valorizar e defender a vida. In: MARANDINO, Martha; SELLES, Sandra Escovedo; FERREIRA, Marcia Serra; AMORIM, Antônio Carlos (Org.). Ensino de Biologia: conhecimentos e valores em disputa. Niterói: EdUFF, 2005. P. 85-99. (Volume 1)., a percepção emergente dos problemas ambientais durante a década de 1960 e que foi se fortalecendo nos anos 1970 fez com que os biólogos passassem a se preocupar com a manutenção da vida na Terra, principalmente com questões ligadas à poluição que afetava os centros urbanos, à extinção de espécies e aos danos sofridos por ambientes naturais que vinham sendo impactados pela atividade industrial. A extinção acelerada e inegável da fauna e flora, tanto no Brasil, quanto no mundo, passou a figurar paulatinamente como ponto de atenção e enquanto fator que contribuía para a construção de diferentes movimentos e discursos ambientalistas em prol da defesa da natureza e da conservação das espécies.

Assim sendo, a segunda metade do século XX seria marcada por interlocuções entre conhecimentos científicos com questões éticas e políticas. Nilza parece ter dirigido atenção a algumas dimensões dos problemas ambientais, alterando aos poucos os focos de seu trabalho pedagógico para integrar discursos ambientalistas às práticas educativas que propunha, incorporando o ideário de conservação da natureza aos processos de ensinar e aprender Ciências como mote para dar sentido a estes. Com isso, foi também transformando sua pedagogia do afeto aos animais, enquanto lhe agregava preocupações ecológicas. Por outro lado, o mini zoológico também contribuiu para solucionar problemas trazidos pela existência de animais não domesticados no apartamento da professora, que emitiam sons bem diferentes dos convencionais latidos e miados. Por exemplo, em seu viveiro na escola, além de não incomodar os vizinhos da professora, Matilde poderia contar com mais espaço e também com o cuidado e o carinho de estudantes (Figura 5).

Matilde era a marreca. Que era um homem e depois descobrimos que era uma menina. Ela morou aqui por muito tempo, aí os vizinhos ficavam interfonando sábado e domingo pedindo pra botar fita durex no bico da pata porque ninguém podia dormir. Durante a semana, a gente acordava cedo e ia com ela. Mas sábado e domingo não. Aí eu tive que levar pra escola

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 163).
Figura 5
Aluno e Nilza acariciando a marreca Matilde em um viveiro construído na escola

Além disso, a partir de Goodson (1997)GOODSON, Ivor. A Construção Social do Currículo. Lisboa: Educa, 1997., podemos indagar se o manejo costumeiro de animais silvestres também se configurou como prática, que serviu para favorecer que a professora transitasse por diferentes comunidades disciplinares e ao mesmo tempo garantir status, recursos e territórios para a disciplina escolar Ciências na ECCB. Sabemos que esse tipo de ação culminou em certa notoriedade da docente dentro métier ambientalista, tendo em vista que Nilza e a fauna sobre sua tutela passaram a ser integrados a outros espaços sociais e a personagens socialmente prestigiados:

Esse aqui é o Perfeito Fortuna, do Circo Voador, com sorriso de garoto. Se ele soltou o sorriso dele com o macaco, imagina as crianças. Aqui era uma excursão, por isso o Perfeito Fortuna veio. Ele nos conheceu em um encontro em Friburgo que era sobre Arte e Educação e nós fomos com os bichos todos. Aí depois ele foi lá e pretendia fazer uma apresentação com o Caetano Veloso. Com o jeito do Caetano Veloso e o meu jeito com os bichos, mas não deu certo…

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 165).

Na Figura 6, podemos ver o encontro de Nilza Vieira, Perfeito Fortuna e Chico, o primata de estimação da professora. O produtor cultural e promotor de eventos parecia feliz e à vontade com o pequeno macaco em seu ombro, enquanto este se mantinha seguro por uma coleira e uma guia, como é possível observar em outras fotos.

Figura 6
Perfeito Fortuna, Nilza Vieira e o macaco Chico

Ao mencionar o engajamento dos estudantes nas atividades com os animais, Nilza reforçou o discurso de que os espécimes atuavam como “diferenciais” que contribuíam inclusive para a melhoria do rendimento escolar. Os seres vivos funcionariam como um tipo de catalisador de aprendizagens ao prender a atenção e despertar a curiosidade dos estudantes frente às adaptações evolutivas e às características ecológicas da fauna, como ela exemplificou ao apontar para uma fotografia que a traz dando aula com o quati chamado Bimba, acompanhada de duas estagiárias, reconhecidas por Tânia Golbach, uma depoente da pesquisa, como sendo Denise Lopes Machado e a Márcia Dias Silva (Figura 7):

Olha a atenção deles, veja esse menino. Estão ‘comprados’, estão presos ao bicho, ao que eu estou dizendo. Não precisa disciplina, eles estão à vontade. Cada um sentou onde quis, como quiseram, até no tronco. O quati é que está dominando. Eles estão presos ao que eu disser. Não precisa de inspetor para tomar conta, não precisa de nota pra exigir a atenção deles. Nada. E olha aqui a delícia! Essas são estagiárias, elas estão também ligadas. Olha esse sorriso! E olha esse menino que está aí! Era um menino levado, um menino de darem zero sem parar! A menina, uma boneca! Todos ligados! Os elos feitos…

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 166, grifo nosso).
Figura 7
Nilza em aula com o quati Bimba

Com o passar dos anos, as práticas de ensino que acionavam o uso de animais como recursos didáticos passaram a ser mais aceitas pela comunidade escolar da ECCB. Por exemplo, o fato de a professora ter um mico de estimação e andar com ele também pela escola acabou sendo incorporado como um traço que distinguia Nilza de outras pessoas:

A aparência dela na época era o que era usado [na moda]: Gal Costa com aquele cabelão imenso. E para variar, ela ainda enfiava um macaco no cabelo. Era um miquinho que ela tinha. Aí ela estava andando e do nada aparecia o bicho. Era muito engraçado! Era normal. Era muito normal. Ninguém falava nada, todo mundo achava normal, natural. Vai falar o que se a pessoa… Todo mundo já sabia mesmo que ela era professora de Biologia, então acabou, fim de papo, tchau. Já aquela brincadeira de cobra, criança subindo e descendo com cobra… [o depoente terminou reticente, mas deixou subentendido que gerava algum estranhamento]

(José Antônio dos Anjos, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 167, grifo nosso).

Porém, tal fala conota que havia diferentes níveis de tolerância com relação aos animais mantidos na escola e manuseados nas aulas pela docente e por seus estudantes. Se o mico era melhor assimilado, as serpentes não eram tão benquistas. Ou seja, cabe enunciar que as ações de Nilza não eram entendidas de forma uniforme como algo bem-vindo por toda a comunidade escolar, mas eram atravessadas por tensões e contradições materializadas nos currículos cotidianos da disciplina escolar Ciências na instituição. A naturalização a que se refere José Antônio dos Anjos não pode ser entendida como aceitação de suas práticas, como será discutido na seção seguinte.

Disputas e Desestabilizações Curriculares: a docência de Nilza em xeque

Apesar de sua complexidade e robustez, o trabalho pedagógico de Nilza Vieira apoiado na coleta e no manuseio de animais encontrou resistência de colegas e familiares de discentes, a despeito do sucesso que parecia alcançar junto aos estudantes, pelo menos a uma parte deles:

Engraçado que as meninas iam todas arrumadinhas, as menores de 10 anos que passavam para a 5ª série. E aí caíam de boca de pegar sapo, pegar cobra, pegar aranha, pegar isso, pegar aquilo. Eu entrava em sala e elas queriam pegar tudo. Quem ia ficar com o sapo? Quem ia ficar com o macaco? Tudo vivo! Depois trocavam entre si porque não dava para uma só ficar, mas era aquela vibração de pegar. Passava uma semana, duas ou três, aí chegava aquela menininha bonitinha e dizia ‘Professora, minha mãe disse que a senhora é uma porca’. Eu dizia ‘Uma porca? Por que ela disse isso?’ e ela ‘Porque a senhora pega esses bichos sujos. Pega cobra, pega sapo, fica pegando esses bichos sujos’. E eu respondia: ‘Mas você não disse pra sua mãe que eu lavo as mãos o tempo inteiro? Que eu vivo lavando a mão? Eu falo com vocês o tempo inteiro e você não explicou para sua mãe?’. No laboratório tinham dois tanques. É uma marca que eu trago da minha casa, como eu mexia com mil bichos… Então passava para um e para outro, lavava a mão

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 168, grifo nosso).

Assim sendo, Nilza precisava lidar com pressões contrárias existentes no interior da ECCB. Junto com a notoriedade que carregava, havia também dificuldades, limites e obstáculos que nem sempre conseguiam ser facilmente driblados. Podemos pensar que tais conflitos e questionamentos seriam até esperados, tendo em vista que as práticas pedagógicas da professora, por mais que muitas delas se aproximassem das inovações curriculares forjadas no âmbito do Movimento de Renovação do Ensino de Ciências e estivessem se aproximando do crescente ideário ambientalista, também se distanciavam das normas e valores próprios da cultura escolar mais rígida que se tinha na época e dos costumes familiares que atribuíam repulsa ou receio aos animais silvestres. Além disso, as produções da docente podem ser entendidas como tentativas de mudanças que disputavam reconhecimento com concepções estabilizadas de currículo naquele momento, ao mesmo tempo em que pretendia modificar, na escola e fora dela, a cultura de rejeição aos animais silvestres.

Certa falta de apoio dentro da própria escola também foi retratada quando a professora rememorou os desafios para se alimentar os animais fora dos dias letivos:

Sábado e domingo, a gente tinha que pular o muro para dar comida aos bichos, quando eu consegui fazer os viveiros e eles foram morar lá. O vigia e a vigia não abriam o portão para mim. Eu ficava batendo e batendo, aí circulava pela escola de um lado para outro e não abriam. Tinha que pedir escada aos vizinhos, botava a escada e pulava o muro que era muito alto. Pulava pelo lado do quintal para poder dar comida aos bichos

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 169, grifo nosso).

José Antônio também recordou incidentes nos quais a professora tinha dificuldades para conseguir ajuda para a realização de tarefas relacionadas à manutenção dos viveiros, tendo em vista que alguns estudantes a evitavam quando percebiam que alguma solicitação seria feita:

Ela saía do laboratório e aí vinha: ‘vem cá, me ajuda’, ‘ajuda a tirar uma cadeira de um lugar’, ‘ajuda a tirar um saco de sei o que lá de dentro do carro’. Era mais braçal o tipo de ajuda que ela queria mesmo. Tanto é que tinham alunos aqui que mal sentiam o cheiro do carro dela, metiam o pé e iam embora para não ter que ajudar

(José Antônio dos Anjos, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 170, grifo nosso).

No que tange ao uso dos animais para fins didáticos, a docente mencionou que trabalhava com os espécimes vivos, para manuseio e apresentação de estruturas externas e adaptações evolutivas. Contudo, o professor Walter realizava dissecações ou vivissecções6 6 A dissecação consiste em abrir o corpo de um organismo morto para estudar sua anatomia. Já a vivissecção é a abertura de um organismo anestesiado ou sedado, mas ainda vivo, o que permite a observação do funcionamento dos órgãos e sistemas in vivo, favorecendo o entendimento também de aspectos fisiológicos. Desde os anos 1970, as dissecações e vivissecções foram caindo em desuso nas aulas de Ciências e Biologia, tornando-se práticas incomuns nas escolas em decorrência de debates bioéticos que questionavam o uso de animais em experimentos com fins didáticos e de leis que começaram a dificultar a experimentação animal em escolas. A Constituição Federal de 1988 e a Lei n°.11.794/2008 endossaram as proibições desse tipo atividade nas escolas de modo mais veementes, especialmente daquelas que envolvem animais vertebrados. :

O Walter que fazia [dissecação] e eu morria de pena. Ele pegava e fazia, mas achava necessário. Então quando ele abria, eu pegava para mostrar também. Mas eu morria de pena. Abria sapo, abria cobra, esse tipo assim… Rato. Às vezes, ele tinha coragem de abrir rato também. Uma vez, ele levou pra minha casa uma fêmea grávida e nasceram 20. Minha casa ficou coberta de camundongos. Iam por todo lado e eu e Candido [esposo] no meio deles. O Walter levou por pena da bichinha

(Nilza Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 170).

Sobre a dissecação ou vivissecção de animais em aulas práticas, José Antônio também recordou sobre a realização desse tipo de atividade pelo professor Walter, ressaltando que a professora Nilza preferia trabalhar de outro modo:

Lembro que o professor Walter gostava muito de abrir os bichinhos, dissecar. Ela já queria o bichinho vivo. De repente, poderiam usar até para fazer a mesma prática, mas eu nunca assisti. Era legal, um complementando o outro. Ela mostrava o animal vivo e ele dissecava, empalhava, mostrava o aparelho digestivo. Os alunos amavam. Tinha um período em que eles desciam com cobra viva na mão. Eu ia subindo a escada e era engraçado, porque se aparecesse uma cobra na minha frente…. Juro por Deus! Tinha gente que saía desesperado

(José Antônio dos Anjos, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 170, grifo nosso).

Em respeito às práticas de dissecação e vivissecção, bem como do uso de animais mortos nas aulas práticas, Verônica acrescentou que uma coleção zoológica foi sendo paulatinamente construída a partir de espécimes que já chegavam sem vida à escola, sem que os professores os sacrificassem para utilizá-los com suas turmas:

O Walter pegava um gambá dissecado, que eles tinham, e levava pro meio e abria ali. Todo mundo olhava, estudava anatomia comparada ali na hora. […] Ninguém nunca matou bicho. Os animais que morriam, as pessoas levavam, porque sabiam que tinham dois professores de ciências e laboratório na escola. E esse acervo foi surgindo assim: todo animal que morria levavam para eles. Alguns eles dissecavam e deixavam no formol para a aula de anatomia animal

(Verônica Vieira, 2019, apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 171, grifo nosso).

Contrastando com essas memórias de Nilza, Verônica e José Antônio, Irma Rizzini recordou uma aula com vivissecção de um anfíbio realizada pela professora, mas, por outro lado, concordou com outras reminiscências ligadas ao manejo de serpentes vivas. Esses indícios de distância e de confluência entre memórias nos recordam que estas são produções e construções influenciadas por diversos fatores, inclusive pela narrativa que se deseja hegemonizar, mesmo que de modo inconsciente:

Lembro de [Nilza] dissecar sapo. Coitadinho do sapo. Eu não dissecava, era em grupo e eu só olhava. Ela ensinou a dissecar sapo, a cortar, a abrir o sapo e observar… E os sapos morriam. […] Lembro também que tinha cobra. Teve uma aula em que ela tirou as cobras, era a coral falsa e a gente ficou fascinado. Estava viva e ela colocava na nossa mão, dizia que podíamos pegar enquanto explicava qual era a diferença. Explicava o que era uma cobra venenosa, mostrava a diferença na cabeça, nos desenhinhos, dentes. Mostrava o desenho enquanto a cobra passava pelos nossos dedos. Foi a única vez na minha vida em que eu segurei uma cobra

(Irma Rizzini, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 171, grifo nosso).

Essas narrativas são importantes para conseguirmos situar historicamente as experiências e práticas pedagógicas envolvendo o uso de animais nas aulas de Nilza e a forma como lidava com questões do cenário social, político e cultural. De acordo com Magalhães, Massarani e Norberto Rocha (2021), as atividades com experimentação animal foram incentivadas pelo Movimento de Renovação do Ensino de Ciências. Ao analisarem obras didáticas e a imprensa paulista, os referidos autores conseguiram indiciar que, nos anos 1960, essa prática era bem vista, tida como algo relevante no aprendizado de Ciências, enquanto que elas passaram a ser restringidas e evitadas na década seguinte. Assim, com o passar do tempo, discussões relacionadas a questões bioéticas ganharam força e pressionaram pela regulamentação dos requisitos para a criação e o manuseio de animais em laboratório, contribuindo para restringir a utilização de animais a experiências estritamente científicas, sob condições controladas e legalmente determinadas. A partir da metade da década de 1970, surgiram e foram aprovados projetos de lei que visavam proibir práticas de dissecação ou de vivissecção de animais em escolas, tendo como culminância a Lei Federal de número 6.638 (Brasil, 1979BRASIL. Lei n° 6.638, de 8 de maio de 1979. Estabelece normas para a prática didático-científica da vivissecção de animais e determina outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 10 maio 1979. Seção 1. P. 6537.), que vetou de vez o uso de experimentação animal no ensino de Ciências.

Apesar de ter nutrido um exercício profissional diferenciado, que repercutia positivamente em diferentes espaços sociais e educativos, o manejo de animais vivos assegurado pela existência de um mini zoológico dentro da escola se tornou insustentável diante da oposição que ocorria no interior da instituição. De modo ambíguo, essas práticas e o emprego de vivissecções com fins didáticos conflitavam com o que também Nilza defendia como o desenvolvimento de afeto pelos animais. O declínio desse espaço que representava bem os auspícios naturalistas e ambientalistas da professora, no fim da década de 1980, pode ter sido um fator decisivo para que ela deixasse de trabalhar na escola:

Teve um período em que todo mundo estava implicando por causa do cheiro forte demais dos dejetos do mini zoo. Então denunciaram – não sei quem foi –, aí o Ibama veio e acabou com o zoológico. Quando acabou, todo mundo ficou super chocado com a situação, porque ninguém esperava que fosse ser do jeito que foi. Vieram, levaram os bichos e aí tchau. Ela chorou muito, ficou muito triste, coitadinha. Aliás, só ela não. A gente também ficou. Mas ela principalmente porque era responsável. Depois disso, foi acabando, acabando, acabando. Aí ela se afastou da escola

(José Antônio dos Anjos, 2019 apud, Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 172, grifo nosso).

Ademais, acompanhando transformações mais amplas na organização dos sistemas de ensino municipal e estadual, a partir dos anos 1990, os usos dos espaços do prédio compartilhado pela ECCB e pelo Colégio Estadual Manuel Bandeira também passaram por modificações. Reformas na estrutura da escola acionadas pela esfera estadual visaram dividir de maneira mais hermética as áreas que cada instituição educativa poderia utilizar. Tal movimento foi crucial para interditar definitivamente as ações de Nilza na Escola Camilo Castelo Branco, impedindo que a mesma prosseguisse com suas aulas práticas e com as atividades envolvendo os animais vivos:

Chegou um período de uma reforma doida em que eles [autoridades responsáveis pelos espaços] acabaram com todos os nossos laboratórios. […] Eu também fui prejudicado porque eu fiquei sem um laboratório de datilografia. Aliás, todos ficamos prejudicados na época e a Nilza foi a mais prejudicada, porque ela perdeu o espaço dela do laboratório no terceiro andar e o mini zoo que ela mantinha aqui embaixo. Foi na década de 1990. Foi um período brabo para a gente. Depois, ela sumiu. A Nilza foi transferida para outra escola e a gente nunca mais se encontrou

(José Antônio dos Anjos, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 172, grifo nosso).

Apesar dos desfechos do mini zoológico e dos laboratórios terem certamente contribuídos para que Nilza deixasse a escola, Verônica revelou que um convite permitiu que a professora prosseguisse trabalhando com as questões sobre biodiversidade e meio ambiente aliadas ao ensino de Ciências. Desse modo, esse duro tensionamento do trabalho sustentado em bases experimentais e naturalísticas pode ter impulsionado ainda mais sua aproximação com o ambientalismo e contribuído para o desenvolvimento de práticas de educação ambiental que olhassem para questões mais amplas, indo além do conhecimento biológico por si só:

Na mesma época que aconteceu isso [reformas na escola e inviabilização de espaços para Nilza], veio o convite para ela formar o primeiro Polo de Ciências. Ela migrou da Camilo para o CIEP de Ipanema e inaugurou o primeiro Polo de Ciências e Matemática do município do Rio7 7 De 1995 a 1997, a professora permaneceu em função extraclasse, atuando em um Polo de Ciências e Matemática que atendia escolas municipais da zona sul carioca, focando especialmente o desenvolvimento de materiais curriculares e de atividades de formação docente voltadas à educação ambiental. . No final, foram dez: um por CRE e o dela foi o primeiro. […] Era coisa de educação ambiental basicamente. Sempre foi educação ambiental naquela visão socioambiental, contextualizando, visão política mesmo

(Verônica Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 173).

Nesse sentido, outro aspecto importante a ser salientado é que as abordagens de educação ambiental exercitadas pela professora também foram se modificando ao longo do tempo. Se os primeiros diálogos e ações poderiam ser entendidas como mais alinhadas à macrotendência que Layrargues e Lima (2014)LAYRARGUES, Philippe Pomier; LIMA, Gustavo Ferreira da Costa. As Macrotendências Político-Pedagógicas da Educação Ambiental Brasileira. Ambiente & Sociedade, São Paulo, ANPOCS, v. 17, p. 23-40, 2014. categorizam como conservacionista, ao que tudo indica, a partir da década de 1990, já próximo ao fim de sua carreira na Educação Básica, Nilza se aproximou de uma vertente crítica, emancipadora, do trabalho com a questão ambiental a partir de problematização de questões sociais e culturais interligadas à temática ambiental.

Afirmamos isso porque até seu ingresso no curso de Mestrado em Educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), a docente não trazia debates socioambientais como constituintes das aulas: as discussões das temáticas ambientais estavam circunscritas ao viés taxonômico, fisiológico e ecológico. Nesse sentido, Verônica também observou uma mudança na trajetória da mãe no que diz respeito ao se posicionamento diante das questões socioambientais, com uma nítida ruptura após o mestrado:

Ela tinha um foco mais preservacionista, mais voltado à zoologia e botânica, da biologia mesmo. Quando ela começou a estudar com o pessoal politizado, se tornou mais política e começou a tratar mais a questão social junto com a ambiental, uma educação ambiental mais crítica mesmo, com uma visão socioambiental. Aí meio que já não ligava tanto assim para a parte da zoologia e botânica pura e começou a trabalhar isso inserido na questão do ecossistema, da pressão sobre os ecossistemas, do planeta, da questão histórica de como o país sofreu esse impacto da colonização. Essa visão dela, que já era uma visão diferente de valorização da fauna e flora nativos, ela foi tornando mais política

(Verônica Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 174, grifo nosso).

Contribuindo para matizar o debate, a depoente lembrou ainda da dificuldade e do risco que seria para sua mãe trabalhar aspectos sociais, econômicos e políticos integrados às discussões sobre meio ambiente durante a ditadura civil-militar. Primeiro, por conta da censura e da perseguição violenta que o regime fazia a qualquer um que parecesse um opositor e para isso bastava nutrir e divulgar algum pensamento crítico e problematizador do status quo hegemônico. Segundo, porque as próprias reflexões sobre as questões ambientais ainda estavam muito pouco consolidadas no país em meados do século XX:

Eu nasci em 1968, mas sei que eles [meus pais] tinham muito medo. Acho que eles foram chamados algumas vezes para esclarecer algumas coisas do livro. Eles tinham muito medo, só que ela não era politizada na época; era bem voltada para biologia mesmo, para o preservacionismo. O que na época já era até de vanguarda você ter essa visão de preservar o meio ambiente para as gerações futuras. […] Quando ela era mais preservacionista, ela tinha como referências o Pierre Lucie que era um educador, o [Ronaldo Rogério de Freitas] Mourão, que era do planetário e o Maurice Bazin, que era um físico. Eram referências, assim, digamos, científicas. Ciência pura. Depois que ela ficou do balacobaco da política, passou a ser a Nilda Alves, o Marcos Arruda, o Frei Betto, o pessoal mesmo mais politizado. Ela mudou de perfil

(Verônica Vieira, 2019 apud Borba, 2021BORBA, Rodrigo Cerqueira do Nascimento. História do Currículo e da disciplina escolar Ciências entre as décadas de 1960 e 1980: as “três vidas” de Nilza Vieira, uma professora inesquecível. 2021. 295 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021., p. 174).

Essas observações são importantes para evidenciarmos transformações nos saberes, discursos e práticas da professora, mas de modo algum pretendemos ser anacrônicos. Temos ciência de que, no Brasil, as primeiras iniciativas que tentaram relacionar o trabalho com temáticas ambientais ao ensino de Ciências surgiram no início do século XX (Carvalho, 2005CARVALHO, Luiz Marcelo de. A Temática Ambiental e o Ensino de Biologia: compreender, valorizar e defender a vida. In: MARANDINO, Martha; SELLES, Sandra Escovedo; FERREIRA, Marcia Serra; AMORIM, Antônio Carlos (Org.). Ensino de Biologia: conhecimentos e valores em disputa. Niterói: EdUFF, 2005. P. 85-99. (Volume 1).) e foram adensadas a partir das décadas de 1970 e 1980 a partir de pressões de movimentos sociais, organizações ambientais e incentivos internacionais frutos de eventos como as Conferências de Estocolmo em 1972 e de Tbilisi em 1977 promovidas pela Organização das Nações Unidas (Loureiro, 2008LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo. Proposta Pedagógica da Educação Ambiental no Brasil. In: BRASIL. Ministério da Educação. Boletim Salto para o Futuro: Educação Ambiental no Brasil. Brasília: MEC, 2008. P. 3-12.; Carvalho, 2008CARVALHO, Isabel. A Educação Ambiental no Brasil. In: BRASIL. Ministério da Educação. Boletim Salto para o Futuro: Educação Ambiental no Brasil. Brasília: MEC, 2008. P. 13-20.). Sendo assim, como destaca Carvalho (2008)CARVALHO, Isabel. A Educação Ambiental no Brasil. In: BRASIL. Ministério da Educação. Boletim Salto para o Futuro: Educação Ambiental no Brasil. Brasília: MEC, 2008. P. 13-20., somente em meados da década de 1980, começou a ser plasmado um debate público mais consistente e significativo no cenário brasileiro, impulsionado pela redemocratização e pela aproximação da discussão ambiental com a educação popular.

Assim, a professora permanecia atenta às mudanças e se adaptando aos novos tempos, garantindo a preservação de seu prestígio. Seu “amor”8 8 Ao longo do texto, usamos aspas em “amor aos animais” porque entendemos que se trata de uma expressão coloquial. Entendemos que apreço, cuidado e afeto existiam por parte da professora pelos animais, mas certamente esse não era um sentimento exatamente equivalente ao amor que ela sentia, por exemplo, por sua filha. pelos animais, à natureza, e sua paixão pela ciência fizeram com ela desenvolvesse um certo gosto muito particular pela docência, encontrando na escola um modo de significar e concretizar alguns de seus sonhos. De acordo com as entrevistas, as abordagens das problemáticas ambientais construídas por Nilza passaram também a incorporar elementos de outras áreas do conhecimento para além do foro biológico.

A partir de Loureiro (2008)LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo. Proposta Pedagógica da Educação Ambiental no Brasil. In: BRASIL. Ministério da Educação. Boletim Salto para o Futuro: Educação Ambiental no Brasil. Brasília: MEC, 2008. P. 3-12., podemos refletir sobre essas variações nas tendências do trabalho de Nilza e as compreensões plurais sobre o que seria desenvolver práticas de educação ambiental com as quais a docente operou ao longo do tempo. Uma diversidade de concepções, agentes e regulações constituiu os primórdios do campo da Educação Ambiental no país, gerando especificidades na trajetória do debate ambiental brasileiro que não estão desvinculadas da história de vida da professora. Como ressaltado pelo autor, documentos e legislações chanceladas pelo Estado que orientavam o assunto nas décadas de 1970 e 1980, em meio à ditadura civil-militar e sem participação popular, associavam a abordagem das questões ambientais ao trabalho com relações ecológicas em perspectiva comportamentalista e técnica. Havia a expectativa de que a conservação do patrimônio natural brasileiro favorecesse o desenvolvimento do país, mas não havia espaço para discussões sociais ou culturais.

Há de se registrar que o ambiente brasileiro ficou sob ataque dos processos desenvolvimentistas brasileiro, seja nos centros urbanos quanto nos campos e nas matas, como o crescimento populacional desordenado e concentrado, sobretudo em São Paulo, a construção da Transamazônica e a intensidade na devastação da Mata Atlântica em toda a costa brasileira. A isso se acrescenta o ritmo acelerado e o descuido das indústrias com a qualidade do ar, da água e de vida, ameaçando sobretudo as populações migrantes e os segmentos mais pobres, dentre os quais o contingente afrodescendente que seguia sem direitos básicos. Tais populações assistiam sem reação à ampliação dos números de edifícios – como a canção Construção de Chico Buarque (1971)BUARQUE, Chico. Construção. Rio de Janeiro: Philips Records, 1979. 1 música (6 min). tristemente registrou.

Justamente nesse período em que a educação ambiental era estreitamente entrelaçada ao ensino de ecologia foi que Nilza passou a ter uma interlocução cada vez maior com as preocupações sobre o meio ambiente, o que não poderia deixar de refletir em suas práticas pedagógicas. Convém mencionar que, como argumenta Lima (2019)LIMA, Jacqueline Girão Soares de. Educação Ambiental e Ensino de Ciências e Biologia: tensões e diálogos. Revista de Ensino de Biologia da SBEnBio, Florianópolis, UFSC, v. 12, n. 1, p. 115-131, 2019., essa marca histórica ainda se faz presente nos currículos cotidianos atuais: se por um lado a legislação sinaliza que as práticas de educação ambiental devem ser interdisciplinares ou mesmo transversais, as disciplinas escolares Ciências e Biologia ainda continuam sendo o reduto das principais iniciativas para discussão das temáticas ambientais nas escolas.

Apesar de atualmente, ações restritas à ótica conservacionista e ao pensamento comportamentalista sejam passíveis de duras críticas (Layrargues; Lima, 2014LAYRARGUES, Philippe Pomier; LIMA, Gustavo Ferreira da Costa. As Macrotendências Político-Pedagógicas da Educação Ambiental Brasileira. Ambiente & Sociedade, São Paulo, ANPOCS, v. 17, p. 23-40, 2014.; Loureiro; Lima, 2009LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo; LIMA, Jacqueline Girão Soares de. Educação Ambiental e Educação Científica na Perspectiva Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS): pilares para uma educação crítica. Acta Scientiae, Canoas, ULBRA, v. 11, p. 88-100, 2009.), uma análise sócio-histórica da questão nos impede de ignorar as contribuições dos movimentos ambientalistas para o desenvolvimento do campo da Educação Ambiental no Brasil. Conforme ressalta Carvalho (2008)CARVALHO, Isabel. A Educação Ambiental no Brasil. In: BRASIL. Ministério da Educação. Boletim Salto para o Futuro: Educação Ambiental no Brasil. Brasília: MEC, 2008. P. 13-20., foram os militantes da causa conservacionista que, a partir dos conhecimentos ecológicos, demandaram uma resposta do campo da Educação para as questões ambientais, inserindo dimensões pedagógicas nesse debate.

Considerações Finais

Dessa forma, diante das imagens recuperadas e dos testemunhos relatados, pode-se pensar se Nilza Vieira viveu radicalmente o ideário ambientalista ao se empenhar para dirimir qualquer separação entre sociedade, cultura e natureza, perceptível inclusive na guarda de animais silvestres vivos em sua residência como uma experiência improvisada enquanto um espaço próprio não era providenciado na escola ou ambas as coisas. Autores como Carvalho (2005)CARVALHO, Luiz Marcelo de. A Temática Ambiental e o Ensino de Biologia: compreender, valorizar e defender a vida. In: MARANDINO, Martha; SELLES, Sandra Escovedo; FERREIRA, Marcia Serra; AMORIM, Antônio Carlos (Org.). Ensino de Biologia: conhecimentos e valores em disputa. Niterói: EdUFF, 2005. P. 85-99. (Volume 1). e Loureiro e Lima (2009)LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo; LIMA, Jacqueline Girão Soares de. Educação Ambiental e Educação Científica na Perspectiva Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS): pilares para uma educação crítica. Acta Scientiae, Canoas, ULBRA, v. 11, p. 88-100, 2009. ressaltam que a construção moderna e ocidental do distanciamento entre a humanidade e o meio natural foi um significativo catalisador da crise ambiental e que discursos e práticas ambientalistas em ascensão desde a década de 1970 tentam problematizar essa distinção, reduzindo esse afastamento entre homem/mulher e a natureza.

Ao longo do processo investigativo recuperado por este texto, foi se tornando cada vez mais evidente que fomentar a construção de conhecimentos sobre a biodiversidade e didatizá-los em perspectiva evolutiva, talvez tenha sido uma das principais preocupações pedagógicas de Nilza Vieira entre as décadas de 1960 e 1970. Todavia, a partir dos anos 1980, foi possível identificar uma virada em suas intencionalidades como professora. As finalidades do seu trabalho passaram estar cada vez mais correlacionadas à preservação do meio ambiente, aproximando-a do campo da Educação Ambiental que começava a se organizar melhor no Brasil (Carvalho, 2008CARVALHO, Isabel. A Educação Ambiental no Brasil. In: BRASIL. Ministério da Educação. Boletim Salto para o Futuro: Educação Ambiental no Brasil. Brasília: MEC, 2008. P. 13-20.).

Assim como Dubar (2005)DUBAR, Claude. A Socialização: construção das identidades profissionais. São Paulo: Martins Fontes, 2005., compreendemos que as identidades não são estanques, mas construídas de modo contínuo e processual. Elas são forjadas também a partir da inserção dos sujeitos em tramas sociais e o desenrolar dos processos identitários se dá de modo fluído e ao longo de toda a vida. Sob essa perspectiva de análise, o que parece ser possível inferir é que a professora inicialmente foi movida por um “amor aos animais”, cultivado em sua história de vida e na sua formação biológica, marcadamente naturalística. Os improvisos causados pelos alunos que traziam animais mortos ou vivos, estivessem feridos ou não, foram desenhando possibilidades de se conjugar diferentes propósitos pedagógicos e pessoais. Anos mais tarde, talvez tenha percebido que esse trabalho cuidadoso com os animais guardava sentidos que ela ainda não havia se dado conta, mas que se tornariam cada vez mais visíveis e valorizados.

Nilza expressava um sentimento de cuidado com os animais que mantinha, carregando suas ações com referências afetivas. Por um lado, humanizando-os e introduzindo-os no seu cotidiano doméstico e compartindo-os com estudantes; por outro lado, agia provavelmente movida por um desejo de ensinar aos estudantes sobre o manejo respeitoso com animais silvestres, uma vez que muitos deles não tinham contato com a vida silvestre e não conseguiam acessar facilmente conhecimentos biológicos que a docente considerava importantes. Entretanto, não se pode deixar de anotar que, ao mantê-los cativos, Nilza reproduzia formas de domesticação que conflitam com o conhecimento e as condutas bioéticas atuais a respeito desse comportamento. É preciso considerar que, no tempo dessas experiências, os valores sociais e mesmo científicos não as colocavam em questão. Em que pese os registros colhidos junto à própria Nilza e a seus ex-alunos, sua intencionalidade pedagógica era colocada em favor de valores de cuidado que faziam sentido com o que ensinava, seja em sala de aula, seja em trabalhos de campo.

Essa percepção permitiu que Nilza fosse se assumindo não somente como uma ambientalista, mas como uma professora ambientalista. Conforme pode ser notado na retórica de sua entrevista, esse aspecto foi um fator importante na produção de sua própria narrativa de si: Nilza passou a se ver como uma docente ambientalmente consciente, quase como se sempre tivesse sido assim, independentemente das mudanças conjunturais que ao longo dos seus anos de docência foram plasmando e favorecendo tanto os discursos, quanto as práticas ambientalistas.

Por fim, focalizando os nós e os entrenós relativos ao mini zoológico construído por Nilza na ECCB, podemos ressaltar que um aspecto permanentemente presente e facilmente identificável na trajetória de Nilza Vieira é aquilo que Goodson (2015)GOODSON, Ivor. Narrativas em Educação: a vida e a voz dos professores. Porto: Porto Editora, 2015. denomina de ecologia do compromisso. Ao mobilizar as histórias de vida de profissionais tais como professores e enfermeiros, Goodson (2015)GOODSON, Ivor. Narrativas em Educação: a vida e a voz dos professores. Porto: Porto Editora, 2015. debate que existem sujeitos que constroem suas carreiras apoiados em um senso de missão pessoal que acompanha intrinsecamente o desenvolvimento profissional. Com isso, esses profissionais tendem a investir muito tempo e bastante energia em suas atividades laborais, inclusive interligando-as a outros setores de suas vidas. Assim sendo, se, por um lado, podemos dizer que os focos da docência de Nilza foram gradualmente se alterando, por outro, o seu compromisso com a docência manteve-se em alta e foi o mote para a produção de práticas que puderam ser inscritas nas fontes que analisamos.

Notas

  • 1
    O artigo toma como base a tese de doutorado do primeiro autor, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. A investigação fez parte de um projeto de pesquisa mais amplo, intitulado Narrativas docentes e diálogos geracionais na construção da disciplina escolar Biologia, que conta com o fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 2
    No intuito de facilitar a leitura do artigo, utilizamos o termo “biodiversidade” para nos referirmos, de modo geral, à variedade de espécies encontradas em um território durante determinado período devido à ampla circulação e assimilação desse conceito no tempo presente. Sabemos, entretanto, que o conceito de biodiversidade foi construído e legitimado pelos ecólogos apenas no final dos anos 1980 (Franco, 2013FRANCO, José Luiz de Andrade. O Conceito de Biodiversidade e a História da Biologia da Conservação: da preservação da wilderness à conservação da biodiversidade. História, São Paulo, USP, v. 32, p. 21-48, 2013.). Ou seja, antes disso, o conceito não estava estabelecido e não era acionável por Nilza Vieira em suas aulas.
  • 3
    Segundo Magalhães, Massarani e Norberto Rocha (2021)MAGALHAES, Danilo; MASSARANI, Luísa; NORBETO ROCHA, Jessica. A Mídia e a Experimentação com Animais no Ensino Básico de Ciências no Estado de São Paulo: uma análise da cobertura feita por jornais impressos nas décadas de 1960 e 1970. Educação em Foco, Juiz de Fora, UFJF, v. 24, p. 5-31, 2021. indicam, o uso de animais vivos em aulas era bem aceito e incentivado nos anos 1960. Esse quadro passou a mudar na década seguinte até culminar no estabelecimento de legislações que vedaram totalmente tais práticas, como será abordado mais adiante.
  • 4
    Os micos-de-cheiro (Saimirisp.) são primatas popularmente conhecidos pelo hábito de passarem urina pelo corpo, o que lhes confere um odor característico utilizado para comunicação via olfato e demarcação de território. Possuem pequeno porte, são pouco agressivos com outros macacos, costumam viver em grupo e têm dieta generalista. São considerados espécies invasoras em muitos locais, inclusive no fragmento de Mata Atlântica que se conecta ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o que traz impactos ambientais em decorrência da ação antrópica. Por suas características físicas e comportamentais, são alvo comum do tráfico de animais silvestres, o que muitas vezes resulta em posterior soltura em ambientes inadequados (Oliveira; Grelle, 2012OLIVEIRA, Leonardo; GRELLE, Carlos Eduardo Viveiros. Introduced Primate Species of an Atlantic Forest Region in Brazil: present and future implications for the native fauna. Tropical Conservation Science, v. 5, p. 112-120, 2012.).
  • 5
    Segundo Nora (1993)NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, PUC-SP, v. 10, 1993, p. 7-28., os lugares de memória são espaços materiais, simbólicos e funcionais caracterizados por uma aura ritualizada e não espontânea que colabora para transformar memória em história. Os lugares de memória, além de preservarem e atribuírem sentidos à memória coletiva, ainda corroboram para a invenção ou o reforço de identidades.
  • 6
    A dissecação consiste em abrir o corpo de um organismo morto para estudar sua anatomia. Já a vivissecção é a abertura de um organismo anestesiado ou sedado, mas ainda vivo, o que permite a observação do funcionamento dos órgãos e sistemas in vivo, favorecendo o entendimento também de aspectos fisiológicos. Desde os anos 1970, as dissecações e vivissecções foram caindo em desuso nas aulas de Ciências e Biologia, tornando-se práticas incomuns nas escolas em decorrência de debates bioéticos que questionavam o uso de animais em experimentos com fins didáticos e de leis que começaram a dificultar a experimentação animal em escolas. A Constituição Federal de 1988 e a Lei n°.11.794/2008 endossaram as proibições desse tipo atividade nas escolas de modo mais veementes, especialmente daquelas que envolvem animais vertebrados.
  • 7
    De 1995 a 1997, a professora permaneceu em função extraclasse, atuando em um Polo de Ciências e Matemática que atendia escolas municipais da zona sul carioca, focando especialmente o desenvolvimento de materiais curriculares e de atividades de formação docente voltadas à educação ambiental.
  • 8
    Ao longo do texto, usamos aspas em “amor aos animais” porque entendemos que se trata de uma expressão coloquial. Entendemos que apreço, cuidado e afeto existiam por parte da professora pelos animais, mas certamente esse não era um sentimento exatamente equivalente ao amor que ela sentia, por exemplo, por sua filha.

Referências

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Editado por

Editores responsáveis: Luís Henrique Sacchi dos Santos; Leandro BelinasoGuimarães; Daniela Ripoll

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    22 Abr 2022
  • Aceito
    31 Jan 2023
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