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O Descompasso entre a Gestão da Educação Paulista e os Estudos de Paulo Freire

RESUMO

Esta pesquisa analisa a concepção de trabalho docente do Sistema de Ensino Básico Paulista, para identificar suas proximidades e distanciamentos com os postulados de Paulo Freire acerca da gestão do ensino. A análise teve como objeto o Currículo Paulista, documento orientador da ação docente. O estudo foi desenvolvido por meio da análise de conteúdo apoiada no software NVivo para a categorização das ideias prevalecentes do documento. O recorte da análise foram as categorias competência, engajamento e defesa da autonomia. Entre as principais constatações, cabe mencionar a postura contraditória da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEESP) ao apresentar um discurso que e aproxima das premissas freirianas e uma ação mecanicista de ensino, que reproduz paradigmas neoliberais.

Palavras-chave
Prática Docente; Paulo Freire; Currículo Paulista

ABSTRACT

This research examines the concept of teaching work within the São Paulo Basic Education System to identify its similarities and differences with Paulo Freire’s postulates regarding educational management. The analysis focused on the São Paulo Curriculum, a guiding document for teaching action. The study employed content analysis supported by the NVivo software to categorize the prevalent ideas in the document. The analysis delved into competence, engagement, and autonomy advocacy categories. Among the main findings, it is noteworthy to mention the contradictory stance of the São Paulo State Department of Education (SEESP), which presents a discourse aligned with Freirean premises while exhibiting a mechanistic teaching approach that reproduces neoliberal paradigms.

Keywords
Teaching Practice; Paulo Freire; Currículo Paulista

Introdução

A importância de se estudar as ideias difundidas por Paulo Freire sobre a educação é atemporal. O pensamento freiriano é antes de tudo, político, uma vez que vislumbra a educação como instrumento de transformação a ser utilizado por uma classe social oprimida em busca de alvedrio. Nesse sentido, a educação popular, para Freire, é uma forma de luta pela superação da profunda assimetria presente nas relações sociais.

O legado de Freire se constitui não apenas de concepções teóricas, mas também de engajamento prático. De um lado, destaca-se a autoria de várias obras dedicadas principalmente em compreender os caminhos que poderiam levar à construção de uma educação emancipadora. É nesse sentido que suas obras abordam questões que influenciam de forma direta o campo da educação: a opressão das camadas populares; os caminhos da defesa de uma educação na e para a autonomia; e as características de um engajamento político libertador, emancipador e, acima de tudo, transformador da realidade. De outro lado, o pensador se engajou na educação de adultos, colocando em prática um método de alfabetização criado por si, que tirou milhares do analfabetismo, sendo considerado revolucionário. Freire foi Secretário da Educação do Município de São Paulo entre 1989 e 1991.

Para os fins desta pesquisa, é importante destacar que o pensamento freiriano é orientado por uma concepção política e social marxiana. Desse modo, a divisão da sociedade em classes contrapõe opressores e oprimidos em um espectro de dominação não só econômica, mas de poder discursivo, decisivo no que tange ao posicionamento social e político.

Nessa perspectiva, é a partir da crítica à desvalorização do saber da classe popular que Paulo Freire apresenta o seu entendimento sobre a importância de se construir uma educação que valorize o conhecimento popular. Essa deve ser ajuizada não para o povo, mas com ele. Trata-se de uma concepção de educação libertadora, na medida em que não se restringe ao ensino da língua materna e do cálculo; para além disso, tem como preocupação descortinar as relações histórica e social, em um processo de edificação do sujeito consciente da realidade que o cerca e capaz de transformá-la.

Freire foi crítico da educação tradicional predominante em seu tempo e com permanências na atualidade. Essa educação, que desconsidera os atores sociais como sujeitos de seu aprendizado, Freire denominou educação bancária, como alusão à ideia de que o professor tem como função “depositar” conhecimentos prontos “na cabeça” do estudante, e esse os reproduzirá mecanicamente. As proposições de Freire foram revolucionárias para a educação popular, na medida em que colocam as mulheres e homens das camadas populares como sujeitos do conhecimento e a realidade desses como espaço de construção de saberes. E, mais ainda, concebe a educação como ferramenta de emancipação dos sujeitos, na luta pela superação da verticalização das relações sociais, como processo opressor das camadas populares.

A cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, se configurou como o lócus do despontar do engajamento de Paulo Freire na educação popular. Foi naquele ambiente que, em 1962, Freire aplicou pela primeira vez seu método de alfabetização recém-criado, promovendo a alfabetização de trezentas pessoas no prazo de 40 horas. O então Presidente João Goulart ficou tão impressionado que criou o Plano Nacional de Alfabetização, coordenado por Paulo Freire. O golpe militar de 1964 levou Freire ao exílio, do qual só retornaria em 1980. Nesse período seu método de alfabetização foi divulgado nos diversos países por onde passou e ganhou notoriedade também em muitos outros.

Em 1989, Paulo Freire assumiu a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e colocou em discussão de forma pioneira questões sobre o currículo e as tecnologias na educação. Levou, assim, para a secretaria municipal sua concepção de educação como ação política e instrumento de transformação. A visão política de educação difundida e praticada por Paulo Freire contrasta com as características gerais da política educacional do estado de São Paulo das últimas décadas.

A gestão da educação no sistema paulista de ensino básico, como parte da política governamental, tem sido conduzida por governantes filiados ao Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) desde 1995 até os dias atuais. Ao longo desse período as políticas sociais implementadas por esses gestores têm demonstrado algumas características recorrentes, quais sejam: centralização da gestão administrativa e financeira, desconcentração da gestão pedagógica e responsabilização dos executores das políticas pelos resultados.

Nesse sentido, a partir de 1996 foi levado a termo no estado de São Paulo um processo de descentralização da educação básica, com ações que levaram à ampliação crescente da municipalização desse nível de ensino. Nos dias atuais, a esfera municipal responde por 3.848.780 de matrículas na educação básica, número que corresponde a aproximadamente 52% dos estudantes que frequentam a rede pública paulista. Já a rede estadual é responsável por 3.567.229 de matriculados.

No âmbito da rede estadual paulista, a centralização da gestão administrativa e financeira pode ser observada, entre outros aspectos, pela discricionariedade das ações que competem aos diretores de escola. As verbas que são destinadas diretamente para a escola já chegam nas instituições com destino carimbado, cabendo pouca ou nenhuma margem de decisão por parte desses gestores. Em relação aos procedimentos administrativos, essa centralização também acontece: as orientações da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEESP), até mesmo as ações mais técnicas seguem uma padronização para todas as instituições, a qual é centralmente definida. Há nessas atividades uma clara tendência ao processo de desconcentração da administração, composto basicamente por tomadas de decisão e definição de procedimentos centralizados e execução descentralizada (Ramos, 2015RAMOS, Alberto. Administração Pública. Rio de Janeiro: FGV, 2015., p. 559). Desse modo, observa-se que resta pouca margem para a autonomia e reflexão no âmbito da ação docente.

Os programas e projetos pedagógicos, fruto da política educacional, chegam aos agentes do nível da rua, em especial, professores com diretrizes claramente apontadas a priori, apenas para “participação”, uma vez que a fase de tomada de decisões se encontra estabelecida pelos órgãos centrais da SEESP. Trata-se de uma participação superficial e artificial, sem um envolvimento efetivo no estabelecimento de diretrizes. O programa São Paulo Faz Escola, que vigorou com a mesma estrutura entre 2007 e 2019, é um exemplo dessa prática. Os currículos que compunham esse programa foram concebidos e elaborados no âmbito das Coordenadorias da Secretaria de Educação, e as consultas aos docentes surtiram pouco ou nenhum efeito. Nota flagrante disso é a constatação da ausência de mudanças ocorridas no referido programa ao longo desses 12 anos, mesmo diante das inúmeras críticas levantadas pelos diferentes agentes de nível da rua (Silva, 2017SILVA, Hilda Maria Gonçalves da. Os Dados do Saresp entre 2008 e 2014 e os Usos desses Resultados pela SEESP. Revista de Educação Pública, Cuiabá, UFMG, v. 26, n. 63, p. 801-816, 2017.). A partir de 2019, o governo de João Dória passou a construir um novo Currículo Paulista (São Paulo, 2019), no interior do programa São Paulo Faz Escola, com características e uma constituição muito semelhantes às descritas nas linhas anteriores.

Finalmente, contribui para a caracterização do tipo de gestão adotada no âmbito do sistema de educação básica do estado de São Paulo a adoção em larga escala das avaliações externas, por meio do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP), instituído em 1996 e em curso até os dias atuais. O SARESP, por se localizar no bojo das avaliações de larga escala e se identificar com elas no que se refere ao uso para a verificação de resultados e responsabilização dos agentes do nível da rua, traz consigo o ideário de controle da educação, das escolas e dos professores, em um exercício de eximir o estado da responsabilidade pelos resultados do serviço público oferecido.

É nesse contexto que buscou-se estabelecer um diálogo entre os ideais de educação como política em Freire e a política da educação no estado de São Paulo, com um olhar para o perfil da gestão da sala de aula e, mais especificamente, para o trabalho docente, de acordo com os signatários dessas políticas.

Para categorização, utilizou-se análise de conteúdo orientada pelos preceitos de Bardin (2016)BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Almedina Brasil, 2016.. Com o objetivo de estabelecer o ideário que caracteriza a gestão pedagógica das instituições de ensino básico da rede pública do estado de São Paulo, analisou-se, no âmbito do sistema paulista de ensino, o Currículo Paulista (São Paulo, 2019SÃO PAULO (Estado). Currículo Paulista. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 2019. Disponível em: v http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Portals/84/docs/pdf/curriculo_paulista_26_07_2019.pdf. Acesso em: 1 jun. 2021.
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), com especial atenção para o documento de apresentação do currículo e para os Cadernos do Professor, destinados aos anos finais do ensino fundamental.

O estudo dos documentos e da teoria de Freire sobre a gestão da educação teve como escopo três categorias, quais sejam: a competência, ou rigor metodológico, o engajamento e a defesa da autonomia. No decorrer da análise, foram estabelecidos as proximidades e os distanciamentos dos ideários de gestão do ensino veiculados pela concepção de Freire a da SEESP revelados em cada uma dessas três categorias.

A Concepção Freiriana de Educação

Desvencilhar-se de uma proposta conservadora de ensino, que legitima uma hierarquização em que o poder centralizado infere no desenvolvimento de práticas de ensino que se diluem na experiência de aprendizagem dos sujeitos, é um desafio constante. As obras de Paulo Freire são reconhecidas mundialmente por trazerem contribuições pontuais diante desse pensamento pedagógico clássico e universal (Gadotti, 2000GADOTTI, Moacir. Saber Aprender: um olhar sobre Paulo Freire e as perspectivas atuais da educação. In: CONGRESSO INTERNACIONAL – UM OLHAR SOBRE PAULO FREIRE, 1., 2000, Évora. Anais […]. Évora: Universidade de Évora, 2000. P. 1-10. Disponível em: http://siteantigo.paulofreire.org/pub/Institu/SubInstitucional1203023491It003Ps002/Aprender_ensinar_Freire_2000.pdf. Acesso em: 7 abr. 2021.
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). Muito disso se dá pelo fato de essas contribuições serem fundamentadas em premissas que consideram a pedagogia como ciência transversal, que alarga a noção de escola e da organização do trabalho pedagógico.

Cabe sondar primeiro o campo que Freire demonstra seu pensamento para depois discutir o ato de ensinar como algo que ultrapassa as quatro paredes que cercam a sala de aula. Nesse caminho, os argumentos apresentados pela teoria freiriana revelam a importância de dimensões da educação que não se findam na estrutura física e curricular, mas que vão muito além disso, uma vez que consideram a condição humana, de forma individual e no interior das relações sociais, para um desenvolvimento mútuo de pessoas em diferentes funções no processo de aprendizagem.

Sob um pano de fundo humanista, Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. coloca o acesso à educação equiparado ao acesso a uma libertação do ideal de aprendizado por memorização e por repasse de informações em estruturas engessadas. Nessa concepção de superação, a educação será posta como uma prática que não se limita ao acúmulo de conhecimentos e busca formar os indivíduos para produzir e transformar conhecimentos (Freire, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.). Ainda que as linhas tênues que formam esse processo pareçam estar prestes a se cruzarem, é possível deduzir a intencionalidade do filósofo em ampliar os mirantes dos profissionais para essa perspectiva de se libertar dos ideais tradicionais e compreender a educação como campo político.

Isso porque é consenso que o campo pedagógico contemporâneo ainda é altamente influenciado por práticas que sustentam um aprendizado baseado muito mais em decorar informações do que buscar, de fato, uma reflexão sobre elas e uma conexão com o contexto em que os estudantes estão inseridos. Nessa mesma linha, Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. reitera que o ato de ensinar e as dimensões que constituem seu entorno não se resumem à transferência de conhecimentos, já que condensar o sentido de aprendizado a isso é ignorar as razões pedagógicas, políticas, éticas, epistemológicas e ontológicas que precisam ser testemunhadas.

Para Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., desprender da postura conservadora e embarcar em uma mais democrática, que priorize o desenvolvimento crítico do sujeito, depende de como o educador e, mais ainda, de como os programas educacionais compreendem, analisam e direcionam os encaminhamentos no interior das escolas. Desse modo, faz-se presente uma necessidade de integralizar o trabalho do professor e do diretor como agentes principais desse processo.

Sobre o cotidiano escolar, a perspectiva freiriana defende que ele deve ser concebido e mantido sobre o viés de apoiar, instigar e promover ações que já trabalham ou visam trabalhar em busca de uma educação libertadora (Freire, 1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.). Entretanto, não cabe aos programas o controle ideológico sobre os profissionais que atuam diariamente nas instituições de ensino, ou a garantia de uma unanimidade de valores. Sob a ótica de Freire, o que deve ser feito é uma capacitação rigorosa dos envolvidos, em especial, dos educadores de base, a qual firme um compromisso compartilhado em superar o autoritarismo que limita a capacidade de aprender e desenvolver os aprendizados, e promover uma consciência da educação como transformadora potencial da sociedade (Freire, 1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.).

Na concepção de Freire (1981)FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981., em uma educação de qualidade social, a gestão das Secretarias de Educação é responsável por vincular os educadores às bases populares, de forma que a percepção de uma educação democrática e libertadora esteja expressa na prática docente. A viabilidade de um programa educacional, como o Currículo Paulista (São Paulo, 2019SÃO PAULO (Estado). Currículo Paulista. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 2019. Disponível em: v http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Portals/84/docs/pdf/curriculo_paulista_26_07_2019.pdf. Acesso em: 1 jun. 2021.
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), por exemplo, está condicionada à sua capacidade de aprender com esses educadores, que, por se configurarem como agentes do nível da rua, têm muito o que oferecer (Freire, 1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.). Nesse sentido, exprime-se uma relação de interdependência entre educadores do nível da rua e gestores centrais na definição de diretrizes do trabalho pedagógico que, na prática, muitas vezes, são concebidas de modo aligeirado e depois interrompidas, ou distorcidas, por conta de ruídos que podem surtir na comunicação.

Ademais, há uma certa essencialidade em manter uma comunicação transparente e constante com os educadores, posto que esse diálogo deve ser capaz de fomentar uma integralização do trabalho pedagógico e ainda se configura como uma oportunidade para estimular o compartilhamento de observações, críticas e pareceres em torno de suas compreensões (Freire, 1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.). Além disso, abrir fronteiras por meio da comunicação e, consequentemente, intensificar o trabalho cooperado, é uma medida pontual para superar métodos autocráticos de gestão. Sobre esse ponto, destaca-se Freire (1981, p. 22)FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.:

Assim, quanto mais burocrática seja uma equipe central, não só do ponto de vista administrativo, mas sobretudo mental, tanto mais estreita e inspetora será. Ao contrário, tanto mais seja ela aberta e disponível à criatividade, antidogmática, quanto mais avaliadora, no sentido aqui descrito, será.

O trecho extraído denota aspectos importantes que alavancam a discussão proposta no trabalho. Primeiramente, cabe mencionar que o sentido avaliador a que o autor se refere é dado por uma ideia de avaliação que é diferente de inspeção, visto que prioriza o seu caráter dialógico, em que todos os indivíduos são objetos de análise, ao mesmo tempo que emitem pareceres (Freire, 1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.). Evidencia-se, então, uma estrutura que, ainda que tenha uma hierarquização, é adepta a práticas substanciais, como a de avaliar, e as colocam em uma disposição horizontal, em que gestores não só avaliam, mas também são avaliados.

Posto isso, é preciso ressaltar a responsabilização dada à postura intencional de trabalho de uma equipe. A apreciação de Freire (1981)FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981. é voltada para elucidar a condição subalterna do trabalho gestor à sua metodologia de trabalho, que é manifestada de acordo com os paradigmas adotados, com seus interesses e pontos de vistas sobre distintos tópicos do cotidiano escolar. Nesse sentido, uma metodologia de trabalho que não é aberta a ideias, não é acolhedora e adepta da participação efetiva dos diferentes atores sociais envolvidos, pode se tornar excessivamente técnica e fazer com que possibilidades para lidar com os desafios passem despercebidas.

Apreender as questões que envolvem o Programa São Paulo Faz Escola, por meio da análise do Currículo Paulista (São Paulo, 2019SÃO PAULO (Estado). Currículo Paulista. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 2019. Disponível em: v http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Portals/84/docs/pdf/curriculo_paulista_26_07_2019.pdf. Acesso em: 1 jun. 2021.
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), vai exigir que sejam postas em apreciação as perspectivas preponderantes nas obras de Freire que inferem sobre a gestão do trabalho pedagógico. Primeiramente, para adentrar nesse campo de concepções, é preciso considerar que o cotidiano escolar deve ser posto sob uma perspectiva coletiva e participativa para que os desafios não se concentrem apenas entre a normatização e a supervisão. Em contrapartida, seguir em um caminho colaborativo, mas acabar por deixar o educador como único responsável por identificar, ponderar e solucionar obstáculos dentro da sala de aula é uma postura incompatível com o movimento dialético que precisa se manter coerente (Freire, 1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.).

Aspectos sobre a Categorização

Antes de embarcar na discussão principal propiciada pelo trabalho, optou-se por explicitar os pontos da análise de conteúdo feita no Currículo Paulista (São Paulo, 2019SÃO PAULO (Estado). Currículo Paulista. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 2019. Disponível em: v http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Portals/84/docs/pdf/curriculo_paulista_26_07_2019.pdf. Acesso em: 1 jun. 2021.
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) que se associam com a concepção freiriana de educação. Com base na teoria de Bardin (2016)BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Almedina Brasil, 2016., delimitou-se como passos da análise de conteúdo a leitura prévia do material, seguida pelo processo de categorização e finalizada pela constatação de resultados.

Para potencializar a fase de categorização, foi utilizado o software de análise de dados qualitativos NVivo. De acordo com Nodari, Soares e Wiedenhoft (2014)NODARI, Felipe; SOARES, Mauren do Couto; WIEDENHOFT, Guilherme Costa. Contribuição do Maxqda e do NVivo para a Realização da Análise de Conteúdo. In: ENCONTRO DA ANPAD, 38., 2014, Rio de Janeiro. Anais […]. Rio de Janeiro: EnAnpad, 2014. P. 1-16. Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/10235/2/Contribuicao_do_Maxqda_e_do_NVivo_para_a_Realizacao_da_Analise_de_Conteudo.pdf. Acesso em: 10 abr. 2021.
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, o NVivo trata-se de uma ferramenta capaz de oferecer direções de análise ao pesquisador ao mesmo tempo em que aumenta o rigor metodológico do estudo.

Ao utilizar os Cadernos do Professor como objeto de pesquisa no software, foi extraída uma lista das 30 palavras mais frequentes. Cabe mencionar que se optou por excluir preposições, conjunções, interjeições e pronomes da lista, uma vez que poderiam ter apenas uma função morfológica coadjuvante nos textos e não retratarem a ideia principal de uma frase que poderia contribuir com a exploração do material. A lista de palavras geradas está apresentada a seguir no Quadro 1.

Quadro 1
30 Palavras Mais Frequentes

Como forma de hierarquizar a lista de uma forma visual, foi elaborada uma nuvem de palavras capaz de representar a frequência de aparição de acordo com o tamanho dos termos, isto é, quanto mais vezes a palavra apareceu no documento, maior ela é representada na imagem gerada (Figura 1).

Figura 1
Nuvem de Palavras

O próximo procedimento metodológico tomado consistiu na análise minuciosa de cada palavra dentro do material, com fins de analisar o contexto em que elas foram inseridas para que fosse feita a categorização. Ao aprofundar a análise das palavras mais frequentes, notou-se que elas estavam diretamente relacionadas com a teoria freiriana. Isso porque os trechos que elas compunham se referiam a princípios delimitados por Freire (1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.; 2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. para o trabalho docente. Assim como no trecho extraído, em que há uma evidente aproximação do conteúdo com ideia da defesa da autonomia:

É desejável – na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental – investir em práticas que concorram para que os estudantes desenvolvam progressivamente competências e habilidades relativawws à autoria e ao protagonismo, inclusive em relação as escolhas que possam convergir para a construção de seu Projeto de Vida

(São Paulo, 2019SÃO PAULO (Estado). Currículo Paulista. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 2019. Disponível em: v http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Portals/84/docs/pdf/curriculo_paulista_26_07_2019.pdf. Acesso em: 1 jun. 2021.
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, p. 39).

Nesse sentido, as palavras mais frequentes subsidiaram a delimitação de 3 categorias que estão diretamente próximas de princípios da teoria freiriana, sendo elas: a) a competência ou o rigor metodológico; b) o engajamento; c) a defesa da autonomia. No Quadro 2, foi apresentada uma sintetização dessa segmentação, que relaciona a categoria de análise com alguns dos termos da lista de palavras frequentes, e ainda traz trechos que corroboram a ligação encontrada.

Quadro 2
Detalhamento sobre as Categorias de Análise

Dado o exposto, percebe-se que as ideias prevalecentes no texto, identificadas por meio de uma análise aprofundada das palavras mais frequentes, apontam uma associação direta com a teoria freiriana, principalmente no que tange ao trabalho docente orientado e posto como parte primordial da educação de uma nação. Ainda assim, por si só, a análise no NVivo não promove uma reflexão a respeito das entrelinhas que residem nos discursos da SEESP, fazendo-se necessário prosseguir para uma análise mais aprofundada das categorias, utilizando como respaldo a literatura de Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002..

Freire e as Diretrizes da Gestão da Educação no Estado de São Paulo

Equilibrar-se no contexto de uma ação docente pautada pela autonomia, competência e efetividade, é um exercício permanente, uma vez que a busca por romper a compreensão da educação reacionária e adentrar na tendência de qualidade pedagógica, social e democrática traz consigo a necessidade de domínio de algumas dimensões imprescindíveis. É nessa perspectiva que o presente artigo optou por trabalhar com as categorias de análise de competência, ou rigor metodológico, engajamento e defesa da autonomia. A análise desenvolvida buscou promover um diálogo entre a concepção freiriana e as diretrizes da SEESP acerca dessas três dimensões no âmbito da gestão do ensino.

Para Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., o educador democrático também é encarregado de consumar uma prática docente pautada pela rigorosidade, isso porque o rigor metodológico buscado aqui é muito distante de uma rigidez do trabalho docente voltado para a repetição de informações para serem, mecanicamente, memorizadas.

É fato que o educador impulsiona e confere materialidade a um processo de aprendizagem. Entretanto, o caminho dado à educação hodierna pelos sistemas de governo é um caminho que padroniza os suprimentos que fomentam o aprendizado e limita o trabalho dos professores no que tange ao implemento de ações que aproximam a educação como prática de liberdade (Gadotti, 2000GADOTTI, Moacir. Saber Aprender: um olhar sobre Paulo Freire e as perspectivas atuais da educação. In: CONGRESSO INTERNACIONAL – UM OLHAR SOBRE PAULO FREIRE, 1., 2000, Évora. Anais […]. Évora: Universidade de Évora, 2000. P. 1-10. Disponível em: http://siteantigo.paulofreire.org/pub/Institu/SubInstitucional1203023491It003Ps002/Aprender_ensinar_Freire_2000.pdf. Acesso em: 7 abr. 2021.
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). A ideia de rigorosidade debatida por Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. ecoa diretamente nessa questão. Isso porque essa rigorosidade remete ao compromisso de construir um ambiente favorável à vivência de experiências em torno do aprendizado. O trabalho do professor é de fundamental importância na construção desse ambiente.

Com atenção para essas questões, a pesquisa deteve-se na análise do Currículo Paulista (São Paulo, 2019SÃO PAULO (Estado). Currículo Paulista. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 2019. Disponível em: v http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Portals/84/docs/pdf/curriculo_paulista_26_07_2019.pdf. Acesso em: 1 jun. 2021.
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), para o ensino fundamental, anos finais. A apresentação do atual currículo estadual está eivada de um diretivismo que deixa pouca margem para a essência do trabalho docente que tem como base a ação/reflexão integrada ao diálogo com o estudante. A práxis freiriana parece corrompida já nas primeiras páginas do referido documento:

Assim, o Currículo indica claramente o que os estudantes devem ‘saber’ (em termos de conhecimentos, habilidades, atitudes e valores) e, sobretudo, do que devem ‘saber fazer’, considerando a mobilização desses conhecimentos, habilidades, atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho

(São Paulo, 2019SÃO PAULO (Estado). Currículo Paulista. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 2019. Disponível em: v http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Portals/84/docs/pdf/curriculo_paulista_26_07_2019.pdf. Acesso em: 1 jun. 2021.
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, p. 35).

Esse trecho denota se tratar de um currículo inflexível, com reduzido espaço para as experiências cotidianas, para a valorização da realidade dos estudantes na construção do conhecimento e para a troca de aprendizagem entre educadores e educandos tão valorizados por Paulo Freire no âmbito da rigorosidade e da competência. Para além da apresentação do Currículo, o conjunto de documentos que o compõem inclui os Cadernos do Aluno e do Professor de cada disciplina. Cabe aqui compreender como esse diretivismo pode comprometer o trabalho docente.

Nessa perspectiva, para Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., tratar da rigorosidade também envolve considerar que há uma dimensão estética em torno das práticas pedagógicas, posto que o trabalho do educador precisa ser movido por um desejo de mudança, seriedade e respeito pelo seu trabalho. Essa concepção é, muitas vezes, desvirtuada pela compreensão generalista de que basta o educador se motivar pela possibilidade de contribuir com a educação como um todo e garantir o repasse do material disposto na grade curricular. Sob à luz da teoria freiriana, o rigor do trabalho do educador e o compromisso com uma educação libertadora permitem que ele veja grandes mudanças em cada estudante, em um processo que articula teoria e prática, construindo com e não para o estudante uma práxis, pela qual seja motivado incessantemente por acompanhar essas mudanças, bem como o seu próprio processo de transformação (Freire, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.).

Difícil atender a essa dimensão da rigorosidade, apontada por Freire, com tão estrita margem de atuação diante de um Currículo composto pelo que se pode chamar de apostilado fechado em termos de conteúdos e temáticas preestabelecidas, o qual espera do professor apenas a reprodução do prescrito e do gestor escolar a fiscalização do atendimento ao plano verticalizado. Desse modo, o rigor que a SEESP adota está distante do conceito de práxis e mais voltado para a padronização das ações e a aplicação do material didático, colocando esses atores sociais em um papel menor, como se o Currículo, uma vez aplicado, fosse capaz, por si só, de promover a (re)produção do conhecimento.

Os estudos freirianos apontam ainda para a questão da ética na busca de um trabalho pautado por rigor. Nesse momento, Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. chama a atenção para a profundidade da palavra ética e pelo seu sentido multivalente, isso em razão da ética do educador estar constantemente sujeita a ser influenciada pela ética do mercado, que colide com a ideia de vigorizar um trabalho de respeito, democrático e emancipador na educação. Ainda que suprimir essa questão seja considerado pelo filósofo como uma utopia da pedagogia da autonomia, lançar mão de um compromisso histórico entre os profissionais da educação para instaurar uma ética universal nesse sentido é fundamental. No âmbito da SEESP só há espaço para uma ação ética nos moldes apontados por Freire na luta pela transformação do Sistema de Ensino Paulista e na resistência a esse modelo estandardizado de educação. Isso porque nesse modelo de gestão não há espaço para o pensamento crítico, em um processo de construção no qual quem aprende constrói conhecimento e quem ensina também aprende.

Nessa mesma linha, para Freire a criticidade é o que permite que os educadores estejam preparados para a dimensão do cotidiano escolar que é imprevisível, subjetiva e condicionada a fatores externos da sociedade que não são fixos (Freire, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.). Sendo assim, atentar-se à busca por austeridade não significa que se está buscando um engessamento de práticas de trabalho e corrompendo a liberdade do educador de se modificar. Na verdade, a rigidez aqui é direcionada ao compromisso do educador de que, sem excepcionalidades, prevaleça esse trajeto de ensino defendido pelo filósofo.

No mais, esse processo não se dá no vazio e nem pode ser concretizado por um esforço unilateral. Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. esclarece que o engajamento é um elemento vital para conciliar todos os interesses envolvidos na construção de uma educação libertadora. Indo ainda mais além, o engajamento na formação é a maneira pela qual a escola manifesta a sua compreensão e apoio às diferentes condições socioculturais, econômicas e de aprendizado dos alunos e de toda a comunidade escolar em si (Freire, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.).

Fica evidente o entrave colocado pelas características da gestão estadual ao engajamento de diretores e professores no espaço escolar. O engajamento remete ao trabalho autônomo, à ação consciente e proativa, oposta à padronização e à prática mecanicista, desvinculada dos processos dinâmicos de construção dialógica.

Para Gadotti (2000)GADOTTI, Moacir. Saber Aprender: um olhar sobre Paulo Freire e as perspectivas atuais da educação. In: CONGRESSO INTERNACIONAL – UM OLHAR SOBRE PAULO FREIRE, 1., 2000, Évora. Anais […]. Évora: Universidade de Évora, 2000. P. 1-10. Disponível em: http://siteantigo.paulofreire.org/pub/Institu/SubInstitucional1203023491It003Ps002/Aprender_ensinar_Freire_2000.pdf. Acesso em: 7 abr. 2021.
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, a ideia de uma gestão democrática e participativa é predominante nas obras de Freire, principalmente, por tratarem de uma lacuna de comprometimento que se mantém historicamente presente na educação brasileira. É fato que a supressão da dimensão pedagógica em prol da propagação de ações de um Estado gerencialista contribui com o agravamento dessa questão e compromete os esforços para consolidar uma gestão democrática. Entretanto, o engajamento no processo de aprendizado não começa na sala de aula, é preciso estar manifestado no seu entorno para, então, repercutir sobre o trabalho do professor na defesa do direito difuso da educação (Freire, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.).

No que tange a prática do trabalho pedagógico, Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. alega que os educadores precisam estar cientes do seu papel e das suas atribuições, mas que há condições para que elas sejam feitas de formas mais efetivas, que tratem mais especificamente de garantir condições físicas do espaço, condições de higiene e condições estéticas que forneçam recursos para a realização do trabalho. Ainda que possa surtir como uma questão mínima de requisitos para a escola, as vicissitudes sociais vêm exigindo cada vez mais recursos que mudam as condições. A ausência de programas e de política pública para o atendimento dessas condições se tornou mais evidente e mais dramática com as exigências trazidas pela pandemia do Coronavírus, a qual requereu uma necessidade mais premente e complexa de recursos tecnológicos, devido a necessidade de se adentrar no ensino remoto.

Nessa mesma linha, faz-se necessário destacar outro ponto interessante no debate de Freire sobre o ato de se engajar: o engajamento no processo de mudança. Pelo fato de as transformações profundas no âmbito educacional exigirem um comprometimento íntegro e constante, revela-se a importância de os profissionais da área oferecerem uma lucidez e uma compreensão da necessidade do seu empenho para assunção de uma missão nas transformações sociais (Freire, 1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.). Assim, é possível deduzir que a questão do engajamento do sujeito é posta sob múltiplas facetas, que passam pela gestão educacional, pela gestão escolar e pelo trabalho docente, mas que se findam na sustentação de um ideal de mudança em distintos aspectos.

Aqui cumpre evidenciar mais uma vez o quão castradora da autonomia e, consequentemente, do engajamento é o programa curricular paulista. O “receituário” presente nos cadernos de alunos e professores traz prontas até mesmo atividades relacionadas à “formação” socioemocional, em um componente curricular denominado “Projeto de Vida”, destinado ao Ensino Médio. Grave verificar que se acredita ser viável promover engajamento, de diretores, professores e especialmente de estudantes, em um componente altamente dependente do campo relacional, por meio de apostilados, restringindo a práxis docente à ação mecânica em torno de temáticas artificialmente produzidas. Como exemplo, apresenta-se no Quadro 3 uma atividade proposta nesse componente curricular:

Quadro 3
Atividade Proposta no Caderno do Aluno

Observa-se que as situações de aprendizagem dizem muito sobre o que compete ao professor da rede estadual de ensino, segundo a SEESP. Desenvolver atividades preestabelecidas trata-se de atividade mecânica, reprodutora de concepções e paradigmas definidos por terceiros, aqueles aos quais compete refletir sobre a prática educativa, enquanto aos professores compete o exercício, a ação. É a evidência de dissociação entre teoria e prática, soterrando a práxis tão necessária à tarefa docente. A partir desse ponto discutido, é possível retomar em Freire a associação da competência à construção e à implementação do trabalho educativo, em contraposição ao executor de tarefas pretendido pela gestão educacional paulista. Para Freire (2002, p. 47)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002., “[…] [o] professor que não leve a sério sua formação, que não estude, que não se esforce para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe”. O trecho em destaque elucida a importância de os profissionais da educação adquirirem competências técnicas que permitam o exercício de um trabalho encerrado na práxis, de forma que se constituam como profissionais conscientes do caráter, não só metodológico e conceitual, mas também político de sua ação.

Ainda que o contexto educacional seja pautado, em muitos momentos, por imprevisibilidade, pode-se deduzir que a capacidade crítica de lidar com situações inesperadas também vem da competência profissional. Nesse sentido, em contraposição ao revelado pela análise documental da SEESP, para a teoria freiriana, colocar a questão da competência no sentido de preparar professores para o inesperado é instigar a educação democrática, uma vez que há esforços empenhados em superar desafios, abrir-se para a criatividade e assumir responsabilidade diante das próprias ações (Freire, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.).

Não se pode desconsiderar que o educador precisa ter postura de autoridade para ter seu trabalho respeitado. Sobre esse ponto, Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. reitera que se deve tratar de uma autoridade coerentemente democrática, que se fundamenta na certeza de que é para construir um espaço para os educandos se orientarem, e em hipótese alguma deve ser usada para reduzir a liberdade que se busca. Em um certo ponto, a ideia de autoridade se encaixa com a perspectiva de competência pregada pelo filósofo, visto que é por meio da busca por competência que outros quesitos importantes que trazem essa autoridade se manifestam, como a segurança ao executar ações, a sua bagagem cognitiva e o nível de qualidade de execução das tarefas (Freire, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.).

A maestria do trabalho do educador, então, é dada por esse testemunho do trabalho ético a favor da autonomia. Em relação à autonomia, Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. aponta para a força do termo na prática e em um discurso ideológico, por conta, principalmente, das inversões que operam na mentalidade neoliberal. Nesse sentido, diante das possibilidades de interpretação e aplicações, a autonomia pode ser política, social, econômica ou cultural e pode variar de acordo com os interesses, objetivos e intenções dominantes em um espaço social. Tratando-se de pedagogia, a autonomia defendida por Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. caminha rumo ao testemunho, também por parte do sujeito, do conhecimento, da liberdade e dos direitos que possui por meio da educação.

A defesa da autonomia não se finda nos efeitos que o indivíduo irá gerar na sociedade após o período de formação, porque ela é igualmente necessária no processo. Não respeitar a história dos estudantes, suas curiosidades, inquietudes, gostos e percursos de suas vidas deslegitima os educadores diante do dever de estar, respeitosamente, presente para ensinar e incitar uma experiência formadora aos educandos com base em princípios éticos (Freire, 2002FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.). Assim, é vital em um processo de aprendizagem que o educador tenha ciência de que o seu trabalho envolve respeitar a autonomia de todos e não afogar a liberdade que a educação proporciona por meio de práticas autoritárias e desrespeitosas.

Para Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. não existe justificativa genética, histórica, filosófica ou sociológica que privilegie uma superioridade moral entre indivíduos, independentemente de cor, gênero ou posição hierárquica de trabalho. A autonomia pedagógica pregada pelo filósofo parte do respeito à identidade dos indivíduos e deve se fazer presente de forma perene no cotidiano escolar, até porque a defesa da autonomia é um quesito elementar na implantação de perspectivas democráticas em diversas esferas da organização do trabalho pedagógico.

Indo ainda mais além, a autonomia é base para o desenvolvimento das práticas de trabalho que considerem as pluralidades das instituições de ensino e as comunidades acerca delas, ao invés de padronizar ações pautadas em uma visão mecanicista das tarefas e planos de ação. Sob essa questão, Freire (2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. atenta para a centralidade da autonomia, uma vez que todo o seu entorno, que abrange a formação docente, o alinhamento da equipe gestora, a conexão com a comunidade e as práticas de ensino, precisa estar operando a favor da autonomia dos estudantes e da capacidade para lidar com as imprevisibilidades de cada empecilho que possa surgir nesse contexto.

Considerações Finais

Tendo em vista a importância dos trabalhos de Freire para a educação nacional, notou-se a imprescindibilidade de refletir sobre as premissas freirianas para modificar a visão da educação mercantilizada que tem sido entoada por meio de reformas, planos, projetos e programas paulistas. Diante disso, o estudo buscou categorizar as ideias principais do Currículo Paulista (São Paulo, 2019SÃO PAULO (Estado). Currículo Paulista. São Paulo: Secretaria de Estado da Educação, 2019. Disponível em: v http://www.escoladeformacao.sp.gov.br/portais/Portals/84/docs/pdf/curriculo_paulista_26_07_2019.pdf. Acesso em: 1 jun. 2021.
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) para analisá-las sob a ótica de Freire (1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.; 2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. sobre o trabalho docente.

A reflexão feita sobre o trabalho dos professores abriu margem para enfatizar aspectos dos discursos da SEESP que se voltam para uma política de educação mecanicista, esta que é revestida por um viés pedagógico enquanto lança propostas reprodutoras de concepções e paradigmas neoliberais. Assim, a pesquisa apresentou as perspectivas de Freire (1981FREIRE, Paulo. Ação Cultural para Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 1981.; 2002)FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. sobre uma educação que seria, de fato, democrática e pautada no reconhecimento dos sujeitos como seres críticos.

Para que esse ideário de educação seja alcançado, enfatizou-se que o professor detém um importante papel no que tange a uma atuação profissional, competente e atenta ao dinamismo da sociedade. Mais especificamente, as categorias de análise, sendo elas a competência ou rigor metodológico, o engajamento e a defesa da autonomia, contribuíram para determinar limites e possibilidades do trabalho docente ético e compromissado com o acesso ao direito difuso à educação.

Por fim, considera-se que a análise apresentada elucida um encadeamento entre o trabalho docente com princípios da teoria freiriana que promovem um processo de aprendizagem humanizado e voltado para o desenvolvimento da sociedade como um todo, ao ponto de que as camadas populares possam testemunhar o acesso ao conhecimento, aos seus direitos e a sua liberdade legitimada por meio da educação.

Disponibilidade dos dados da pesquisa

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Referencias

Editado por

Editora responsável: Carla Karnoppi Vasques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2022
  • Aceito
    02 Mar 2023
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