Acessibilidade / Reportar erro

Lições da Evolução: uma abordagem transdisciplinar a partir da arte

RESUMO

O artigo discute a transdisciplinaridade entre os campos do saber e a contribuição das artes visuais para o ensino das ciências naturais. É apresentado o trabalho artístico em vídeo Evoluções em 3 Lições, do próprio autor, no qual se entrelaçam histórias relacionadas à teoria da evolução e ao colonialismo, buscando oferecer uma visão complexa da relação entre humanos brancos, humanos não-brancos e animais não-humanos. Conclui-se que o ensino das ciências aliado à percepção sensível proporcionada pela arte pode contribuir para a constituição de um mundo plural em que o respeito à alteridade e a comunicação entre os campos do saber ocorra de forma mais íntegra e colaborativa, sem deixar de lado as complexidades de cada área.

Palavras-chave
Evolução; Arte; Ciências Naturais; Educação; Pós-Humanismo

ABSTRACT

The paper discusses the transdisciplinarity between the fields of knowledge and the contribution of visual arts to teaching natural sciences. The author’s own video artwork Evolutions in 3 Lessons is presented, in which stories related to the theory of evolution and colonialism are intertwined, seeking to offer a complex view of the relationship between white humans, non-white humans and non-human animals. It is concluded that the teaching of science allied to the sensitive perception provided by art can contribute to the constitution of a plural world in which respect for otherness and communication between the fields of knowledge occur in a more integral and collaborative way, without ceasing to the complexities of each area.

Keywords
Evolution; Art; Natural Sciences; Education; Post-Humanism

Introdução

A especialização1 1 Este trabalho se trata de uma continuação de tese de mesma autoria, Fortes (2016), que teve outra abordagem em Fortes (2018). dos saberes, iniciada já na base do projeto humanista do período renascentista e alcançando seu auge ao longo do século XX, fez com que arte e ciência tenham sido vistas cada vez mais como campos totalmente opostos do conhecimento, sem qualquer possibilidade de diálogo. Nas visões mais exacerbadas, a arte se ocuparia puramente da expressão dos sentimentos, sem uma conexão com a realidade, enquanto a ciência assumiria um racionalismo de contornos positivistas, sem qualquer traço de subjetividade ou inferência política. As críticas à neutralidade da ciência vêm sendo tecidas através de diversas vertentes teóricas, principalmente a partir dos anos 1960; entretanto, nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, tais críticas ganham aprofundamento e ressonância, particularmente no trabalho de autores ligados ao chamado pós-humanismo, em suas acepções mais diversas. A necessidade de estabelecimento de um conhecimento transdisciplinar já vinha sendo apontada por Edgar Morin (1993)MORIN, Edgar. Contrabandista dos Saberes. In: PESSIS-PASTERNAK, Guitta. Do Caos à Inteligência Artificial: quando os cientistas se interrogam. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. P. 83-94 no final do século XX, quando ele se apresentava como um “contrabandista de saberes”. Mais recentemente, autores como Donna Haraway, Bruno Latour, Viveiros de Castro, entre outros, têm entrelaçado os campos da antropologia, das ciências naturais, da história, da sociologia, da arte, da comunicação, da economia e da política de maneira a convocar o senso crítico nas abordagens do conhecimento, questionando as epistemologias promovidas pelo homem branco ao longo da história e clamando pela inclusão de seres vivos anteriormente vistos apenas como objetos de estudo e não como sujeitos protagonistas (negros, indígenas, animais não-humanos, vegetais, fungos etc.).

Donna Haraway (2008)HARAWAY, Donna. When Species meet. Minnesota: University of Minnesota Press, 2008., por exemplo, refere-se aos animais não-humanos como “espécies companheiras”, cujo desenvolvimento se deu em conjunto com o homem, em um “tornar-se com” [becoming with] (Haraway, 2008HARAWAY, Donna. When Species meet. Minnesota: University of Minnesota Press, 2008.), no qual as espécies se influenciam mutuamente e é a partir da relação de dependência entre elas que se constitui o mundo, e não apenas através da preponderância de uma espécie sobre a outra. Da mesma forma, Viveiros de Castro (2015)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015. aponta para a necessidade da antropologia de questionar seu ponto de vista eurocêntrico, levando-a a considerar outras subjetividades e propondo a discussão de outras formas de concepção do mundo, outros pontos de vista como aqueles fundados no “perspectivismo ameríndio”. Bruno Latour (1994)LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Ensaios de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. aponta ainda para a necessidade de se pensar a ciência no contexto de sua responsabilidade política e socioeconômica diante da condição epistemológica em que ela é produzida na contemporaneidade. Embora não seja possível, no âmbito deste artigo, abordar com detalhamento o pensamento de Latour, vale ressaltar o intrincamento entre pensamento científico transdisciplinar e suas implicações sociopolíticas, já apontado pelo autor em Jamais Fomos Modernos e posteriormente aprofundado em outros escritos.

A ciência vem sendo tratada por esses pensadores não mais como um conhecimento totalmente isento de subjetividade ou de postura ideológica, mas como um pensamento que deve se autoquestionar constantemente para se inserir de forma transformadora e responsável no seio da sociedade. Não se trata de um negacionismo científico sem fundamentos; pelo contrário, esses pensadores clamam pela busca de um conhecimento ainda mais amplo e profundo, que não descarte a complexidade dos fenômenos contemporâneos e suas implicações sociopolíticas, tecnológicas e culturais. No campo da educação, essas novas concepções epistemológicas representam um desafio para as metodologias pedagógicas, que não devem promover um ensino compartimentado e tecnicista, mas propor a formação de um indivíduo crítico e consciente de seu papel no mundo.

Nesse sentido, a arte pode efetivamente colaborar para o surgimento de novas percepções no ensino das ciências, fazendo aflorar sensibilidades questionadoras e investigativas e possibilitando que o aluno compreenda a inserção daquele conhecimento científico no mundo que o rodeia, revelando sua complexidade e entrelaçando os campos do saber. No caso específico da biologia, a arte já estava presente no alvorecer da disciplina, se considerarmos a importância da ilustração científica na constituição do conhecimento morfológico de animais e vegetais. Não se pode desprezar a importância das imagens para a constituição do pensamento de Alexander von Humboldt e Bonpland, ou Von Martius e Spix, apenas para citar alguns nomes.

Na atualidade, a relação entre arte e biologia ainda permanece relevante, mesmo que tenha ganhado novas nuances e complexidades. É conhecido, por exemplo, o polêmico campo da bioarte, em que artistas se utilizam de procedimentos tecnocientíficos para criar seres híbridos ou simplesmente questionar as formas de inserção da ciência na sociedade contemporânea. Também podemos lembrar de diversos artistas que fazem referência direta à ilustração botânica, aos procedimentos da taxonomia ou aos métodos de exibição de animais em museus de história natural, deslocando-os de seu contexto científico e reapresentando-os de forma poética ou irônica, fazendo surgir versões questionadoras de nossa relação com os outros seres e seu enquadramento enquanto objetos de estudo desprovidos de sentimentos e subjetividades. Outros artistas se debruçam ainda sobre a história da ciência, evocando o contexto eurocêntrico em que ela foi produzida e propondo narrativas anticolonialistas, despertando novos olhares para as relações interespécies e racializadas.

Como contribuição para a discussão dessas questões, apresento, nesse artigo, um trabalho artístico de minha autoria no qual se entrelaçam histórias relacionadas à teoria da evolução e ao colonialismo, buscando oferecer uma visão mais complexa da relação entre humanos brancos, humanos não-brancos e animais não-humanos. O trabalho consiste em um vídeo no qual são mescladas diferentes narrativas interespecíficas: o aprisionamento de corvos na Torre de Londres ao longo dos séculos devido a superstições sobre seu poder mágico na manutenção do Império Britânico; a passagem de Darwin pela Terra do Fogo e sua percepção dos indígenas locais; e a convivência desses indígenas com lobos-marinhos que hoje encontram-se ameaçados devido ao aquecimento global.

A abordagem desse trabalho artístico neste artigo é realizada propositalmente de modo ensaístico e em primeira pessoa, como convém à metodologia de pesquisa em artes visuais. A fala do artista não é considerada aqui um perturbador, mas sim um contributo efetivo sobre o processo criativo que engendra o trabalho, que não se fecha para a constituição de um único sentido, mas que se apresenta como obra aberta e plurisígnica, cujo objetivo é evocar sensações e sensibilidades a respeito das relações de alteridade entre humanos e não-humanos em uma mirada pós-colonialista e crítica. Dessa forma, o texto a seguir, reconstitui o trabalho artístico Evoluções em 3 Lições (2012), propondo uma narrativa poética e reflexiva sobre as questões que ele engendra.

Imagem 1
do vídeo Evoluções em 3 Lições

Evoluções em 3 Lições

Lição 3

Ir até o fim do mundo para encontrar o olhar do outro para enxergar a si mesmo. O outro que não é gente, mas bicho, e bicho estranho. Lobo-marinho. E pássaros, cormorões. Animais que eu nunca havia visto ao vivo, só em programas de televisão. Ali estavam eles, vivendo suas vidas indiferentes a nós, turistas, que só tínhamos alguns minutos para estar ali. Não eram animais aprisionados em zoológicos; dessa vez, éramos nós que estávamos presos no barco que nos levava a seu habitat. O encontro se deu em Ushuaia, a cidade mais austral da Patagônia Argentina, também conhecida como o Fim do Mundo. Um lugar mítico, ao final do mapa e com a natureza mais impactante e bela que já presenciei.

Havia sido convidado para apresentar um trabalho na III Bienal del Fin del Mundo, ali realizada. Porém as belezas naturais, como o final da Cordilheira dos Andes, que se vê ao redor da cidade, o mar e a paisagem de cores incríveis, a vegetação diferente e bela e a possibilidade de ver animais tão especiais em seu ambiente natural, se revelaram muito mais emocionantes do que qualquer exposição artística. Ver as famílias de lobos-marinhos banhando-se ao sol sob ilhas de pedras, mergulhando na água de azul profundo, movimentando-se com seus corpos peculiares e vivendo sua vida em seu próprio tempo e espaço, foi uma sensação que jamais esquecerei. Tive vontade de retê-los em imagem, captá-los em fotografias e vídeos, que, embora não pudessem substituir a sensação de estar ali, poderiam ao menos auxiliar no desencadeamento dos processos da memória quando nossos corpos não pudessem mais habitar aquele tempo-espaço. As vistas poderiam um dia transformarem-se em um “puro bloco de sensações”, como diria Deleuze (2013)DELEUZE, Gilles; GUATTARI. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 2013.; transformarem-se, enfim, em arte.

Ainda que não soubesse o que faria com essas imagens, quando elas deixariam de ser simples registros para se tornarem poética, pus-me a filmar esses seres outros, que agora estavam ali tão próximos. Percebi que, embora estivessem absortos em suas próprias vidas, vez por outra, algum me olhava. Pouco eu sabia sobre esses animais. Apenas aquilo que todos sabem: que estavam ameaçados pelas mudanças climáticas e pela poluição marinha. Soube depois, também, que essa espécie um dia já servira de alimento para os indígenas que habitavam a Terra do Fogo.

Imagem 2
Frame do vídeo Evoluções em 3 Lições

Lição 2

Os indígenas que habitavam a Terra do Fogo foram avistados pela primeira vez em 1624, pelo navegante holandês Geen Huygen Schapenham, mas apenas posteriormente foram melhor conhecidos, tendo sido descritos no século XIX, pelas expedições comandadas pelo inglês FitzRoy. Eram indígenas nômades, que viviam em canoas na região costeira de Ushuaia e pouco desciam à terra. Não tinham um alojamento fixo, viviam no mar, a caçar lobos-marinhos e pássaros para sua nutrição. A despeito do intenso frio da região, viviam nus, envolvidos pela gordura extraída dos lobos-marinhos e das baleias. Às vezes cobriam-se de peles. Para se aquecer à noite, costumavam também acender fogueiras no interior de suas próprias canoas. Esse era o fogo avistado pelos europeus, que deu origem ao nome da Tierra del Fuego2 2 As informações sobre os indígenas fueguinos aqui apresentadas baseiam-se sobretudo nos relatos do livro Indios Fueguinos: Vida, Costumbres e Historia, de Arnoldo Canclini (2009) e também nas informações coletadas pelo autor do artigo em visitas a museus de Ushuaia, Argentina. .

De maneira geral, eram chamados de indígenas fueguinos, por viverem na Tierra del Fuego. Embora houvesse diversas etnias fueguinas, uma das mais importantes era a chamada Yagan. Os yaganes habitavam a costa marítima, ao redor de Ushuaia. Sua população hoje está totalmente extinta. Muitos deles adoeciam em contato com os brancos e também devido à falta de higiene. Por não estarem habituados a se lavar, já que viviam nus, passaram a adquirir várias doenças a partir do momento em que se viram obrigados a usar roupas ocidentais. Muitos caíam no vício da bebida, com a qual não estavam acostumados. Os processos de evangelização, a que foram submetidos pelos colonizadores europeus, contribuíram para a dissolução de seus hábitos e organização social (Canclini, 2009CANCLINI, Arnoldo. Indios Fueguinos: vida, costumbres e historia. Buenos Aires: Editorial Dunken, 2009.).

Alguns deles tornaram-se muito conhecidos por terem sido levados à Europa, para receber educação ocidental e depois devolvidos à sua terra de origem com o intuito de auxiliarem no processo de colonização. Nessa época era bastante comum a captura de humanos nos continentes distantes para serem exibidos na Europa. Há diversos casos notórios, desde indígenas ou africanos que passaram a viver nas cortes, até aqueles que eram exibidos em verdadeiros zoológicos humanos para diversão da população. O destino dos indígenas fueguinos, entretanto, mostrou-se diferente, já que o comandante FitzRoy tomou o cuidado de evitar que se tornassem simples exotismos, uma vez que pretendia devolvê-los a sua terra de origem após eles terem aprendido os rudimentos da cultura europeia. Porém, essa experiência educacional sociológica, que deveria auxiliar a impor a dominação do homem branco sobre os indígenas, mostrou-se um grande fracasso.

O fato ocorreu no século XIX e teve a participação célebre do comandante inglês FitzRoy. Em 1830, chegou à região de Ushuaia o famoso navio Beagle, comandado por Parker King, tendo como seu segundo comandante FitzRoy. Após ter tido um de seus botes baleeiros roubado pelos indígenas fueguinos, a tripulação do Beagle capturou 4 indígenas, que FitzRoy decidiu levar à Inglaterra, para terem lições de inglês, conhecerem “[…] as verdades simples do cristianismo” e aprenderem “[…] o uso de ferramentas comuns, um pouco de agricultura e jardinagem” (FitzRoy3 3 FITZROY, Robert. Letters to His Family from HMS Glendower, Hind, Thetis, Ganges and Beagle from 1816 to 1852. Cambridge: Cambridge University Library, 1991. (Correspondence). Disponível em: https://archivesearch.lib.cam.ac.uk/repositories/2/resources/8063. Acesso em: 2 abr. 2022. apud Taylor, 2009TAYLOR, James. A Viagem do Beagle: aventura de Darwin a bordo do famoso navio de pesquisa do Capitão FitzRoy. São Paulo: EDUSP, 2009., p. 49). Os nativos foram batizados com nomes em inglês, que faziam referência às condições em que foram capturados. York Minster foi o primeiro a ser capturado e recebeu esse nome em homenagem a uma famosa catedral inglesa de mesmo nome, cujo formato lembrava o de uma rocha onde ele havia sido capturado. Boat Memory foi assim batizado pois era o índio que mais se recordava dos fatos acontecidos no roubo do bote baleeiro. Jemmy Button deve seu nome ao botão de madrepérola que havia sido ofertado para ele para atraí-lo até o Beagle. Entre os capturados, só havia uma integrante do sexo feminino, a menina Fuegia Basket, cujo nome fazia referência ao cesto improvisado que os marinheiros ingleses tiveram que utilizar como barco para retornar ao Beagle após a captura de seu bote (Taylor, 2009TAYLOR, James. A Viagem do Beagle: aventura de Darwin a bordo do famoso navio de pesquisa do Capitão FitzRoy. São Paulo: EDUSP, 2009., p. 48-49).

Logo ao chegar a Inglaterra, o índio Boat Memory faleceu em reação a uma vacina que recebeu. Os outros permaneceram ali por cerca de um ano e meio, recebendo educação em um mosteiro, tendo sido até mesmo apresentados ao rei. Ao final de 1831, FitzRoy partiu novamente para a América, com o objetivo de dar prosseguimento às viagens exploratórias dos novos continentes e devolver os fueguinos à Terra do Fogo. É nessa viagem de retorno, que Charles Darwin vai se juntar a eles e travar seus primeiros contatos com esses indígenas. Darwin faz várias menções aos indígenas em seu diário, comparando-os a animais selvagens, embora nem todos os seus comentários sobre eles sejam negativos. Em 1832, o Beagle chega finalmente à Terra do Fogo e Darwin narra seu primeiro encontro com os nativos em seu ambiente original: “Eu não teria acreditado que existe entre o civilizado e o selvagem tamanha diferença. É maior que entre o animal selvagem e o doméstico, na medida em que há no homem mais poder de aperfeiçoamento” (Darwin4 4 DARWIN, Charles. The Voyage of the Beagle’s Journal of Researches into the Natural History and Geology of the Countries Visited during the Voyage of HMS Beagle round the World, under the Command of Captain Fiz Roy, RN. London: John Murray, 1845. apud Taylor, 2009TAYLOR, James. A Viagem do Beagle: aventura de Darwin a bordo do famoso navio de pesquisa do Capitão FitzRoy. São Paulo: EDUSP, 2009., p. 104).

Ao ver os fueguinos voltando para sua terra após terem recebido algumas lições da educação inglesa, Darwin anotou em seu diário: “Eles têm bastante senso comum para perceber a imensa superioridade dos hábitos civilizados com relação aos seus, mas temo que logo regridam a estes” (Darwin5 5 DARWIN, Charles. The Voyage of the Beagle’s Journal of Researches into the Natural History and Geology of the Countries Visited during the Voyage of HMS Beagle round the World, under the Command of Captain Fiz Roy, RN. London: John Murray, 1845. apud Taylor, 2009TAYLOR, James. A Viagem do Beagle: aventura de Darwin a bordo do famoso navio de pesquisa do Capitão FitzRoy. São Paulo: EDUSP, 2009., p. 62).

De fato, assim que retornaram, em pouco tempo os indígenas fueguinos voltaram a viver como seus outros companheiros nativos. York Minster e Fuegia Basket logo se embrenharam na mata e fugiram. Jemmy Button permaneceu por um tempo vivendo junto com os missionários brancos do pequeno povoado, porém, alguns anos depois, foi descrito pelo capitão FitzRoy, que voltou ao local, como tendo retornado a seus hábitos indígenas. Estava nu, com o cabelo desgrenhado e miseravelmente magro. Conta-se que por volta de 1860, Jemmy Button teria sido um dos líderes da revolta que massacrou uma série de colonizadores na região da Terra do Fogo.

O fracasso da experiência educacional com os indígenas fueguinos contribuiu para que os preconceitos raciais entre europeus e não-europeus fossem acirrados. Se, por um lado, a suposta superioridade da cultura europeia não foi capaz de “educar” corretamente os “selvagens”, por outro lado, esse fato poderia ser visto como uma prova cabal da inferioridade destes, que se aproximariam de animais.

Se, por um lado, as considerações de Darwin sobre os “selvagens” possam ser depreciativas ao aproximá-los aos animais, por outro lado, a teoria evolucionista de Darwin coloca a todos nós diante de um novo paradigma a respeito da animalidade: o de que possuímos um ancestral animal comum, já que, de alguma forma, todos seríamos descendentes dos símios. Ao afirmar isso, em alguma medida, Darwin rompe com a ideia de que seríamos cópias diretas dos deuses e, por isso, superiores aos animais. Ao contrário, seríamos, nós humanos, também animais; porém, em uma escala um pouco mais evoluída que os demais.

Não se trata aqui de fazer um julgamento de Darwin, mas sim apontar para as polêmicas consequências que seu pensamento representa. Mesmo que seu personagem apresente incongruências, não se pode negar sua contribuição inestimável para a ciência, bem como a revolução epistemológica gerada a partir de suas teorias, que abalaram as relações entre os homens, suas crenças e os animais.

Imagem 3
Frame do vídeo Evoluções em 3 Lições

Lição 1

Os homens, suas crenças e os animais. Ainda que constantemente subjugados pelo homem, os animais não-humanos muitas vezes representaram forças míticas e extraordinárias, sendo símbolos de poderes superiores, inalcançáveis pela espécie humana. Todas as sociedades apresentam animais em suas mitologias e superstições. Mesmo na atualidade, em um mundo dominado pela ciência e pela suposta racionalidade, muitas dessas crenças permanecem.

Um exemplo interessante é a significação dos corvos que vivem na Tower of London. A Torre de Londres é uma fortaleza que teve sua construção iniciada no século XI, com o intuito de amedrontar aqueles que não seguissem as leis britânicas e intimidar os estrangeiros, demonstrando o poderio do reinado britânico. O passado de prisões e torturas que a Tower of London representou, hoje foi substituído por sua exploração turística. O local é um dos mais visitados por turistas de todo o mundo, e abriga também uma parte da coleção de joias reais.

Conta a lenda que os corvos que residem na Torre nunca deveriam deixá-la, pois, se um dia eles fugissem, a torre cairia, e o reinado também. Por esse motivo, hoje em dia são mantidos sempre pelo menos 6 corvos no local, que têm suas asas cortadas para não fugirem. Durante o dia, os corvos são soltos no jardim e podem ser vistos pelos turistas que visitam a Torre e à noite são recolhidos em suas gaiolas. Cada corvo tem um nome e há um funcionário do governo britânico encarregado de cuidar deles, que recebe o nome de Ravenmaster, o mestre dos corvos.

Embora essa lenda seja muito antiga, foi no século XVII que a presença dos corvos foi oficializada pelo reinado britânico. Na época, o astrônomo John Flamsteed (1646-1719) utilizava a torre para a realização de suas observações científicas e reclamou, ao rei Charles II, que os corvos estavam atrapalhando suas pesquisas. Temendo os presságios que ameaçavam seu reino, caso os corvos fossem removidos, o rei decidiu que os corvos deveriam ser sempre mantidos ali, e quem teria que se mudar seria o Observatório Real, dirigido por Flamsteed.

É interessante que, nesse caso, as superstições venceram a ciência, que era menos amedrontadora para o reino do que o poder sobrenatural dos corvos. Também é curioso perceber que, mesmo muito séculos depois – com todo o desenvolvimento científico e a diminuição das crendices –, a lenda esteja sendo perpetuada até os dias de hoje, e a presença dos corvos não é totalmente espontânea, já que eles são ali mantidos graças ao corte de suas asas. Os corvos tornaram-se hoje atrações turísticas, aparecem com destaque no site da Tower of London e são representados em souvenirs à venda para os turistas. Tal fato nos faz lembrar imediatamente dos escritos de John Berger a respeito do processo de coisificação a que estão submetidos os animais na sociedade contemporânea, tendo o seu passado mítico substituído por símbolos comercializáveis e turísticos.

O Artista como Viajante no Passado e na Atualidade

É bastante frequente, nos dias de hoje, que os artistas produzam trabalhos a partir de suas viagens. Deslocar-se de um país a outro é bem mais fácil hoje do que anos atrás, e diversas são as possibilidades que surgem para os artistas contemporâneos para participarem de residências artísticas, realizarem exposições no exterior e apresentarem seus trabalhos em congressos. Estar em um local desconhecido aguça a percepção para aquele que busca observar aquilo que muitas vezes passa despercebido no cotidiano. Conhecer um novo ambiente, visualizar novas paisagens e aprender novos hábitos é sem dúvida muito estimulante para a criatividade artística. Em verdade, a figura do artista-viajante não é nova. Desde o início das grandes navegações, era comum que um artista acompanhasse as expedições para documentar a fauna e a flora dos novos continentes. Essa participação do artista no reconhecimento do território e na formação da ciência foi bastante intensificada nos séculos XVIII e XIX. Ao olhar para o desconhecido e para os povos e animais que habitam os outros continentes, o artista se aproxima do antropólogo e do cientista, fazendo uma investigação que não se prende necessariamente à descoberta racional da ciência, mas que pode revelar os aspectos sensíveis dos ambientes visitados. As viagens como ponto de partida para o desenvolvimento de um trabalho artístico tiveram seu papel até mesmo na construção de uma noção da identidade nacional brasileira na época modernista, como se pode depreender dos escritos de Mário de Andrade (2019)ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2019. em O Turista Aprendiz. Mesmo que a atividade do artista contemporâneo tenha se diferenciado muito daquela dos artistas viajantes de outras épocas, no sentido de que seus trabalhos não são necessariamente documentais e representacionais e que as condições em que o artista contemporâneo viaja são muito diferentes das de seus antepassados, ainda assim, é possível perceber os resultados poéticos que essas viagens podem proporcionar.

Foi dentro desse contexto que tomei contato com as histórias que narrei anteriormente. Embora não houvesse necessariamente uma conexão direta entre as histórias dos corvos da Torre de Londres e os lobos-marinhos e os indígenas fueguinos, o fato de eu ter realizado viagens a esses lugares no mesmo ano e ter ficado impressionado com suas histórias me fez imaginar um fio condutor que pudesse entrelaçá-las e assim gerar novas percepções sobre as relações entre o homem branco, os indígenas e os animais. Afinal, em cada uma dessas histórias havia elementos do estranhamento com o outro e do subjugo de uns pelos outros. Os corvos, apesar de seu poder mítico, foram capturados e permanecem sob custódia do homem branco para perpetuar suas tradições e funcionar ao mesmo tempo como atração turística. Os indígenas fueguinos também foram capturados pelo homem branco e levados para Londres, quem sabe, até conheceram os corvos da Torre de Londres. Os indígenas foram também descritos como selvagens, quase animais. E os lobos-marinhos já foram caçados pelos indígenas para sua subsistência, assim como pelos brancos, e agora são vistos como atrações turísticas. Mesmo que os indígenas fueguinos já tenham sido exterminados, os lobos-marinhos ainda permanecem na Terra do Fogo, embora não se saiba por quanto tempo. Todas essas histórias, de alguma forma, inter-relacionam-se através das dificuldades de convívio com o outro, quer seja homem, quer seja animal.

A figura de Darwin me pareceu um personagem fundamental para entrelaçar essas histórias. Sua viagem a bordo do Beagle serve como ligação entre a realidade britânica e a paisagem da Terra do Fogo. Sua significação como representante da racionalidade científica ocidental me interessou bastante, principalmente por causa de suas próprias contradições e seu estranhamento diante dos outros homens nativos que ele desconhecia. Da mesma forma, pareceu-me estranho o fato de que, mesmo nos dias de hoje, em que estamos dominados pelo racionalismo técnico-científico e pelo poderio econômico, ainda se cortam as asas de pássaros para se garantir a perpetuação de crendices. Também é curioso que os lobos-marinhos que eram caçados pelos indígenas fueguinos, que por sua vez foram exterminados pelo homem branco, tenham subsistido a seus próprios predadores indígenas, que desapareceram antes de suas presas.

Todos esses fatos e reflexões levaram-me a produzir o vídeo Evoluções em 3 Lições, em 2012. O trabalho não se trata de um documentário e nem busca contar de maneira clara todas essas questões. Ao invés disso, o que se pretende é sensibilizar o espectador para as intricadas relações entre homens brancos e não-brancos e os animais. O espectador pode ou não ter conhecimento prévio dessas histórias, mas, de qualquer forma, poderá refletir sobre essas questões. Embora haja um caráter narrativo no vídeo, determinado por sua divisão em três capítulos que compõem as “lições” da evolução, sua narrativa não é nem cronológica e nem lógica, mas sim poética. Foram utilizadas algumas estratégias criativas de forma a enredar o espectador em uma narração fragmentada, que, porém, se repete de forma semelhante em cada uma das três lições.

A Lição 1 se inicia com o surgimento de um mapa antigo da Grã-Bretanha, oferecendo pistas de onde ocorre a ação. A seguir, veem-se imagens de alguns dos corvos no jardim da Torre de Londres, embora o local não seja identificado na imagem. Os corvos são o assunto principal da imagem: eles andam, pulam e ciscam na grama. Na parte inferior da imagem, porém, podem-se perceber sutilmente algumas sombras de humanos que se movimentam. Na verdade, tratam-se das sombras dos turistas da Torre de Londres, que observam os corvos. Os humanos, portanto, aparecem somente como sombras até esse momento.

A música de fundo dessas imagens é a Wassermusik, de Haendel, composta no século XVIII e que teve sua apresentação de estreia em Londres, em 1717, para a corte do rei George. A música é bastante imponente e contrasta com a cena prosaica dos engraçados corvos reais. É uma música contemporânea da época em que a proteção aos corvos da Torre de Londres foi oficializada. Conforme se desenvolve o vídeo, aos poucos, surgem algumas frases que introduzem sua narrativa. As frases aparecem em diferentes posições do campo visual da imagem, ora se aproximando dos corvos, ora se aproximando das sombras dos humanos, criando assim uma relação intersemiótica entre as linguagens visual e verbal, gerando diversas possibilidades de interpretação. A narrativa ocorre toda no passado, remetendo à linguagem das fábulas. Há termos que são propositalmente dúbios no texto, que se tornam mais explicitados de acordo com sua posição na imagem. Por exemplo, o pronome “eles” às vezes se refere aos corvos e às vezes se refere aos humanos, que aparecem como sombras. De acordo com a localização da frase no campo visual, pode-se ter uma interpretação diferente do sujeito da ação.

O texto básico que aparece na Lição 1, é repetido com algumas variações nas lições seguintes. Porém sua significação é alterada de acordo com a imagem a que se refere. Assim, há a sensação de que a história se repete, embora as situações e os personagens sejam diferentes em cada uma das “lições”. Ao longo do desenvolvimento do vídeo, o texto vai se tornando cada vez mais fragmentado e vago, de forma que, na última lição, sobram apenas algumas palavras do texto original, que não mais formam frases completas, apenas insinuam significados em suas relações com as imagens.

O texto completo da primeira “lição” é o seguinte:

[…] eles viviam em uma ilha eles acreditavam se eles fugissem da ilha seu mundo iria desaparecer então eles foram capturados e tiveram suas asas cortadas eles eram brancos e pretos eles acreditavam em evolução eles não eram selvagens (Evoluções…, 2012EVOLUÇÕES em 3 Lições. Direção, produção e roteiro: Hugo Fortes. Brasil, 2012. 1 vídeo (7 min.). Disponível em: https://vimeo.com/50945546. Acesso em: 15 abr. 2022.
https://vimeo.com/50945546...
).

Essa certa indefinição do sujeito a que se refere o pronome “eles”, que muda de acordo com a posição que ocupa na imagem, causa uma certa confusão no espectador, que pode pensar que a história se refere tanto aos homens como aos corvos. Essa indefinição é acentuada ao longo do desenvolvimento das outras “lições” dos vídeos, que vão deixando cada vez mais intricadas as relações entre homens e animais. Há algumas ironias e provocações na relação entre texto e imagem. Uma delas é a frase “eles eram brancos e pretos” (Evoluções…, 2012EVOLUÇÕES em 3 Lições. Direção, produção e roteiro: Hugo Fortes. Brasil, 2012. 1 vídeo (7 min.). Disponível em: https://vimeo.com/50945546. Acesso em: 15 abr. 2022.
https://vimeo.com/50945546...
), que pode remeter a questões racistas, mas que, nesse capítulo do vídeo, é apenas uma descrição dos homens e dos corvos. A mesma frase será repetida no segundo capítulo do vídeo, porém, referindo-se a imagem em preto e branco de um índio fueguino pintado com listas brancas.

Há também uma certa ironia nas frases “eles acreditavam em evolução” e “eles não eram selvagens” (Evoluções…, 2012EVOLUÇÕES em 3 Lições. Direção, produção e roteiro: Hugo Fortes. Brasil, 2012. 1 vídeo (7 min.). Disponível em: https://vimeo.com/50945546. Acesso em: 15 abr. 2022.
https://vimeo.com/50945546...
). Na primeira lição, essas frases aparecem na transição das imagens dos corvos para as imagens barulhentas da multidão de turistas que invadem a acelerada Torre de Londres. Também junto dessas imagens, aparece sobreposta a imagem de Darwin, que parece pedir silêncio diante da turba agitada de turistas6 6 A imagem de Darwin pedindo silêncio é, na verdade, uma montagem fotográfica utilizada nos cartazes de exposição no Museu de História Natural de Londres. Trata-se de uma manipulação digital a partir de uma foto original de 1881, e amplamente difundida na internet para divulgação da mostra (Pero…, 2009). . A frase “eles não eram selvagens” (Evoluções…, 2012EVOLUÇÕES em 3 Lições. Direção, produção e roteiro: Hugo Fortes. Brasil, 2012. 1 vídeo (7 min.). Disponível em: https://vimeo.com/50945546. Acesso em: 15 abr. 2022.
https://vimeo.com/50945546...
) parece incongruente diante da postura pouco civilizada dos turistas contemporâneos. Na segunda “lição” do vídeo, a frase “eles não eram selvagens” (Evoluções…, 2012EVOLUÇÕES em 3 Lições. Direção, produção e roteiro: Hugo Fortes. Brasil, 2012. 1 vídeo (7 min.). Disponível em: https://vimeo.com/50945546. Acesso em: 15 abr. 2022.
https://vimeo.com/50945546...
) aparece justamente sobre a imagem dos indígenas fueguinos, sugerindo que os próprios indígenas não se viam como selvagens, e sim como humanos.

A segunda “lição” do vídeo é composta por imagens de fotografias em preto e branco dos indígenas fueguinos sobrepostas a imagens de água, captadas na baía de Ushuaia. Não há música, apenas o som ambiente das águas movimentadas e do vento. A sensação é de fluidez, distanciamento, memória e desaparecimento. As imagens dos indígenas aparecem sempre em transparência, como se eles estivessem desaparecendo como fantasmas no fluxo das águas. As mesmas frases da Lição 1 voltam a aparecer aqui com algumas modificações e supressões, gerando novas interpretações. Dessa vez, os capturados foram os indígenas ao invés dos pássaros. Porém eles não tinham asas. E seu mundo iria desaparecer.

Entre as imagens que se sobrepõem à água, uma delas se destaca por apresentar retratos de dois personagens importantes da história: Darwin e o índio fueguino York Minster. Na montagem realizada, ambos parecem se olhar, frente a frente. O retrato de Darwin é fotográfico, enquanto o do índio é uma ilustração. Não existe nenhum registro fotográfico dos indígenas capturados pela tripulação do Beagle, apenas gravuras. É interessante notar que, embora se possa notar pelas feições de York Minster que ele é um índio fueguino, em seu, retrato ele está usando roupas ocidentais.

O final da Lição 2 é um pouco brusco. As imagens são tragadas pela luminosidade de um fade out com fundo branco. O som final assemelha-se a um trovão ou explosão, remetendo ao desaparecimento. O barulho dá lugar ao silêncio, no qual é introduzida a Lição 3, de caráter mais melancólico.

Na Lição 3, veem-se imagens dos lobos-marinhos e dos pássaros que vivem nas ilhas da Baía de Ushuaia, intercaladas por palavras isoladas que aparecem sob fundo branco. Diferentemente das outras lições, em que o texto se sobrepõe às imagens, aqui, ele aparece no intervalo entre elas, marcando um ritmo mais cadenciado no qual as imagens aparecem e desaparecem constantemente. As imagens estão todas em câmera lenta, conferindo uma atmosfera coreográfica e arrastada aos movimentos dos animais. Não se vê mais a presença de humanos, apenas dos animais. Pode-se perceber elementos de dominação entre eles, como a presença de um macho alfa que espanta outros lobos-marinhos menores. Também se veem algumas marcas de sangue nos rochedos, que não se sabe se são oriundas de brigas entre os próprios animais, da captura de outros animais menores ou da ação de predação do homem.

A música de fundo é fundamental para a composição poética dessas imagens. Trata-se da música El Cant dels Ocells – O Canto dos Pássaros, em catalão – em arranjo para violoncelo de Pau Casals e interpretada pelo violoncelista Benedict Kloeckner. A música tem origem em uma canção de Natal do folclore catalão. Na Espanha, a versão de Pau Casals é geralmente utilizada como réquiem no velório de defuntos importantes. É uma música bastante potente, reflexiva e solene. Os sons graves do violoncelo e a lentidão de seu andamento podem ser associados, no vídeo, aos sons emitidos pelos lobos-marinhos e a sua movimentação lenta e pesada. A edição do vídeo considera a cadência pausada da música para introduzir lentamente as palavras que pontuam as imagens. Não é mais possível se constituir uma leitura linear da narrativa. O que se pretende aqui é causar uma imersão poética em uma conjunção sonoro-visual-verbal que faz a sensibilidade aflorar. A música termina como algo em suspensão e o vídeo prossegue em silêncio por mais alguns segundos, no momento em que um dos animais nos olha diretamente nos olhos.

O vídeo não oferece respostas, apenas levanta questões e dificuldades sobre as relações entre os homens, seus semelhantes e os animais. Compreender o outro não é tarefa fácil, quer seja ele outro animal humano ou não-humano.

A Antropologia, as Ciências Naturais e a Arte em Diálogo

Buscar compreender o outro tem sido ao longo do tempo a tarefa da antropologia no caso dos humanos, e da biologia no caso dos animais e vegetais, embora muitas vezes essas áreas se misturem e se complementem. As observações sobre o desconhecido, humano ou não-humano, foram feitas pelos mesmos cientistas no princípio do desenvolvimento da ciência moderna. Alexander von Humboldt, por exemplo, descreveu ao mesmo tempo a paisagem, a geografia, os animais e vegetais, bem como os povos indígenas e seus costumes. No Brasil, destacam-se as expedições dos botânicos Von Martius e Spix, entre outros, que além de documentar a flora e a fauna locais, também reuniram artefatos culturais dos indígenas. Darwin, de certa forma, embora se concentrasse no estudo biológico, também fez reflexões sobre os povos fueguinos e os aborígenes australianos. Assim como fez observações antropológicas sobre brancos não-europeus, como brasileiros e argentinos, que foram anotadas em seus diários de campo.

A antropologia, como ciência, começa a ganhar terreno após essas expedições exploratórias e é, desde seu início, o estudo dos povos estranhos aos europeus. Nasce, portanto, dentro de um ponto de vista eurocêntrico, que apenas recentemente tem sido contestado. Estudar o outro, quer seja ele animal ou humano, é, na verdade, uma questão de se construir uma identidade de si próprio. O homem para se definir busca uma diferenciação dos animais, já que, ao longo da história da filosofia, o homem é um animal com algo a mais. Ao se confrontar com outros homens que diferem dele, os “selvagens”, é necessário buscar outras formas de diferenciação que atualizem suas noções de identidade.

O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro apresenta brilhantemente essa problemática:

O fardo do homem: ser o animal universal, o animal para quem existe um universo. Os não-humanos, como sabemos - mas como diabo o sabemos? – são pobres em mundo; sequer a cotovia… Quanto aos humanos não-ocidentais, é-se discretamente levado a suspeitar que, em matéria de mundo, eles são na melhor das hipóteses, apenas modestamente aquinhoados. Nós, só nós, os europeus, somos os humanos completos e acabados, ou melhor, grandiosamente inacabados, os exploradores destemidos de mundos desconhecidos (plus ultra!), os acumuladores de mundos, os milionários em mundo, os configuradores de mundos. Como se vê, a metafísica ocidental é fons et origo de toda espécie de colonialismo – interno (interespecífico), externo (entre-específico), e se pudessem eterno (intemporal). Mas o vento vira, as coisas mudam, e a alteridade sempre termina por corroer e fazer desmoronar as mais sólidas muralhas da identidade

(Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 27).

Nessa passagem, Viveiros de Castro se refere aos comentários que Giorgio Agamben (2004)AGAMBEN, Giorgio. The Open. Man and Animal. California: Stanford University Press, 2004. faz sobre o pensamento de Heidegger, retomando-o de forma bastante crítica. Ao procurar estabelecer a diferenciação entre os homens e os animais, Heidegger elabora sua teoria dizendo que os animais seriam “pobres de mundo” (Weltarm) e os humanos seriam “configuradores de mundos” (Weltbildend). A essas distinções, Viveiros de Castro acrescenta ironicamente a contraposição de que os humanos não-ocidentais seriam “modestamente aquinhoados” de mundo, enquanto os europeus se achariam “milionários de mundo”. Tal afirmação coloca em xeque a tradição histórica da antropologia, que Viveiros de Castro pretende repensar a partir de novos parâmetros. O autor se pergunta ainda de que maneira poderíamos ter certeza de que os animais seriam pobres de mundo, afinal? A dificuldade de se colocar no lugar do outro, quer seja ele humano ou não-humano, deve ser questionada pela filosofia. Se nos casos dos animais ainda é mais difícil, ao menos no caso humano, a antropologia deve se esforçar para compreender o outro não apenas através da descrição de seus hábitos, mas a partir da tentativa de entender suas formas de pensamento.

Em outro trecho de seu livro Metafísicas Canibais, Viveiros de Castro (2015) pleiteia que a antropologia deveria “pensar outramente” – fazendo referência ao “penser autrement” de Foucault –, “[…] pensar outra mente, pensar com outras mentes” (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 25). Isso significa tentar se livrar dos seus preconceitos eurocêntricos para buscar mergulhar no pensamento dos não-ocidentais, tarefa a que o antropólogo Viveiros de Castro se dedica em seus estudos sobre os ameríndios.

O autor introduz o interessante conceito de “perspectivismo”, baseado no pensamento indígena que serve para ancorar sua teoria antropológica. Segundo ele, os indígenas amazônicos, tem uma diferente forma de pensar a relação entre corpo e alma. Enquanto os europeus em confronto com os “selvagens” duvidariam que eles teriam uma alma, aproximando-os dos animais, os indígenas duvidavam que os europeus teriam um corpo, podendo ser deuses cuja alma apenas estava encarnada temporariamente em um corpo. Para os indígenas, as almas poderiam se apresentar de diferentes formas, ora habitando os corpos de animais, vegetais, minerais e até artefatos e objetos, ora revelando-se como fenômenos meteorológicos, como simples espíritos dos mortos ou como deuses (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 43). Se as almas podem assim vagar e possuem uma subjetividade que não está atrelada a um corpo, “[…] todos os animais e demais componentes do cosmos são intensivamente pessoas, virtualmente pessoas, porque qualquer um deles pode se revelar (se transformar em) uma pessoa” (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 45-46).

Segundo o pensamento ameríndio, o que seria comum entre humanos e animais, portanto, não seria a animalidade, como pensam os ocidentais, mas sim a humanidade. Isso quer dizer que um lobo-marinho ou um pássaro, por exemplo, não veriam o mundo como animais, mas sim como humanos, pois eles possuem alma, e essa sua forma de ver o mundo é a que é válida para eles como pessoa naquele momento. Os outros animais veriam a si mesmos, portanto, como humanos, enquanto enxergam os homens e os outros animais como não-humanos. Para os indígenas,

[…] os animais veem seu alimento como alimento humano (os jaguares veem o sangue humano como cerveja de milho, os urubus veem os vermes da carne podre como peixe assado etc.’, seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos musicais, seu sistema social como organizado do mesmo modo que as instituições humanas (com chefes, xamãs, festas, ritos…)

(Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 45).

Cada ser possui, portanto, uma capacidade de ocupar um ponto de vista a partir de sua própria perspectiva. Viveiros de Castro chama essa forma de pensar de perspectivismo, já que as subjetividades seriam capazes de encarnar diferentes pontos de vista e assim encarar o mundo a partir de suas diferentes perspectivas, que poderiam ser ora humanas, ora não-humanas. Essa concepção do pensamento poderia então superar as velhas dicotomias ocidentais que veem sempre como oposições os pares humano/não-humano, civilizado/selvagem, cultura/natureza etc. Ao invés de um pensamento de oposição, que inclui a negação como processo de construção da identidade, o que o autor propõe é um pensamento complexo da multiplicidade, que contraria o narcisismo etnocêntrico e busca borrar as linhas divisórias entre as tradicionais categorias do pensamento. Viveiros de Castro afirma que “[…] não se trata de apagar contornos, mas de dobrá-los, adensá-los, enviesá-los, irisá-los, fractalizá-los” (Viveiros de Castro, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015., p. 28).

De certa forma, compartilho dessa busca no trabalho Evoluções em 3 Lições. Ao propor uma narrativa do desaparecimento e da dominação, que se repete ao longo do filme, referindo-se ora aos ocidentais, ora aos indígenas, ora aos animais, pretendo adotar diferentes perspectivas para compreender esses seres e tornar enviesada a complexidade de suas relações. Embora possa se reconhecer, no vídeo, uma certa sequência de dominação, que parte do homem branco subjugando os animais e os indígenas, passa para os indígenas subjugando outros animais, e termina na própria luta da sobrevivência entre os animais, o trabalho não pretende simplesmente elencar uma hierarquia de culpados, mas sim apontar para as questões insolúveis em que todos esses seres estão intrincados em suas relações. Se o fato de olhar o outro para enxergar a si mesmo faz parte de nosso processo inevitável de construção de identidade, contrariamente, esse processo não pode se basear em uma simples descrição narcisística, mas sim aproveitar a possibilidade de contato com o outro para alargar sua consciência perceptiva e respeitar outros pontos de vista, outras perspectivas.

A tarefa de buscar projetar-se em outros estados perspectivos e perceptivos não é nada fácil. Nosso aprisionamento no self muitas vezes dificulta esse processo. Para os indígenas, apenas os xamãs teriam a possibilidade de acessar outras perspectivas, projetar-se nas subjetividades do outro, humano ou não-humano. Os xamãs teriam a capacidade de acessar o suprassensível e transformar-se em outros seres, alcançando suas perspectivas. Em nosso mundo ocidental, o acesso ao suprassensível é geralmente atribuído aos ritos religiosos, ainda que a maioria das religiões se baseie em uma perspectiva única, que exclui aqueles que não lhe são fiéis. Podemos recordarmo-nos das “verdades do cristianismo” que deveriam ser ensinadas aos indígenas fueguinos.

O acesso ao suprassensível, porém, não é exclusividade das religiões, mas uma possibilidade que também é por vezes atribuída à arte. O aspecto xamânico da arte e sua ligação com o mundo espiritual está no cerne de seu fundamento. É bastante frequente que o artista busque, através da imaginação, tornar visíveis mundos e pensamentos inexistentes, projetando-se em outras perspectivas, encarnando personagens ou solidarizando-se com outros seres, visualizando relações ainda não vistas. Olhar para o outro, para o desconhecido, para o estranho é o que fascina a criação artística. Deslocar seu corpo para outras paisagens, vivenciar outros afetos no confronto com a alteridade e viajar para descobrir outros mundos são tarefas do artista. Permito-me emprestar aqui a noção de perspectivismo para o pensamento artístico. Assumindo novas perspectivas e deixando-as visíveis para o observador, o artista é capaz de sensibilizar o olhar do outro. É do olhar do outro que depende sua sobrevivência como artista, e é esse olhar que deve ser respeitado, ainda que haja dificuldades para compreendê-lo. O artista é um ser em viagem; sua alma, um turista de afecções e percepções. Podemos aprender bem mais que três lições com a evolução. Talvez não exista uma única evolução, mas sim evoluções, em diferentes perspectivas e estados sensíveis. Para compreender o mundo mais a fundo, precisamos olhar entre os espaços da multiplicidade e determo-nos nos interstícios do tempo, viajarmos sob a consciência das interrelações entre os seres. Por vezes, é necessário ir até o fim do mundo para encontrar o olhar do outro.

A educação é sem dúvida uma das principais atividades capazes de promover esse encontro de olhares e o compartilhamento de saberes. Aproximar a percepção sensível proporcionada de forma livre pela arte à busca estruturada do conhecimento que nos oferece a ciência pode certamente contribuir para a formação de indivíduos críticos e empáticos, que considerem a importância da presença do outro, independentemente de raça, cor, origem ou espécie. A busca pela constituição de um mundo plural em que o respeito à alteridade e a comunicação entre os campos do saber ocorra de forma mais íntegra e colaborativa, sem deixar de lado suas complexidades, é a principal lição que devemos aprender com a evolução.

Notas

  • 1
    Este trabalho se trata de uma continuação de tese de mesma autoria, Fortes (2016)FORTES, Hugo. Sobrevoos entre Homens, Animais, Espaços e Tempos: pensamentos sobre arte e natureza. 2016. 269 f. Tese (Livre-Docente em Expressão Tridimensional) – Departamento de Artes Plásticas, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016., que teve outra abordagem em Fortes (2018)FORTES, Hugo. Evoluções em 3 lições. In: JORNADA INTERNACIONAL GEMINIS, 3., 2918, São Carlos. Anais […]. São Carlos: JIG2018, 2018..
  • 2
    As informações sobre os indígenas fueguinos aqui apresentadas baseiam-se sobretudo nos relatos do livro Indios Fueguinos: Vida, Costumbres e Historia, de Arnoldo Canclini (2009)CANCLINI, Arnoldo. Indios Fueguinos: vida, costumbres e historia. Buenos Aires: Editorial Dunken, 2009. e também nas informações coletadas pelo autor do artigo em visitas a museus de Ushuaia, Argentina.
  • 3
    FITZROY, Robert. Letters to His Family from HMS Glendower, Hind, Thetis, Ganges and Beagle from 1816 to 1852. Cambridge: Cambridge University Library, 1991. (Correspondence). Disponível em: https://archivesearch.lib.cam.ac.uk/repositories/2/resources/8063. Acesso em: 2 abr. 2022.
  • 4
    DARWIN, Charles. The Voyage of the Beagle’s Journal of Researches into the Natural History and Geology of the Countries Visited during the Voyage of HMS Beagle round the World, under the Command of Captain Fiz Roy, RN. London: John Murray, 1845.
  • 5
    DARWIN, Charles. The Voyage of the Beagle’s Journal of Researches into the Natural History and Geology of the Countries Visited during the Voyage of HMS Beagle round the World, under the Command of Captain Fiz Roy, RN. London: John Murray, 1845.
  • 6
    A imagem de Darwin pedindo silêncio é, na verdade, uma montagem fotográfica utilizada nos cartazes de exposição no Museu de História Natural de Londres. Trata-se de uma manipulação digital a partir de uma foto original de 1881, e amplamente difundida na internet para divulgação da mostra (Pero…, 2009).

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. The Open. Man and Animal California: Stanford University Press, 2004.
  • ANDRADE, Mário de. O Turista Aprendiz São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2019.
  • CANCLINI, Arnoldo. Indios Fueguinos: vida, costumbres e historia Buenos Aires: Editorial Dunken, 2009.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI. O que é a Filosofia? São Paulo: Ed. 34, 2013.
  • EVOLUÇÕES em 3 Lições. Direção, produção e roteiro: Hugo Fortes. Brasil, 2012. 1 vídeo (7 min.). Disponível em: https://vimeo.com/50945546 Acesso em: 15 abr. 2022.
    » https://vimeo.com/50945546
  • FORTES, Hugo. Sobrevoos entre Homens, Animais, Espaços e Tempos: pensamentos sobre arte e natureza. 2016. 269 f. Tese (Livre-Docente em Expressão Tridimensional) – Departamento de Artes Plásticas, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
  • FORTES, Hugo. Evoluções em 3 lições. In: JORNADA INTERNACIONAL GEMINIS, 3., 2918, São Carlos. Anais […] São Carlos: JIG2018, 2018.
  • HARAWAY, Donna. When Species meet Minnesota: University of Minnesota Press, 2008.
  • LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos Ensaios de Antropologia Simétrica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994.
  • MARTÍNEZ RON, Antonio. Pero, ¿quién es este Darwin? Fogonazos: Asombros diarios, 23 ene. 2009. Disponible en: http://www.fogonazos.es/2009/01/pero-quin-es-este-darwin.html Aceso en: 20 abr. 2022.
    » http://www.fogonazos.es/2009/01/pero-quin-es-este-darwin.html
  • MORIN, Edgar. Contrabandista dos Saberes. In: PESSIS-PASTERNAK, Guitta. Do Caos à Inteligência Artificial: quando os cientistas se interrogam. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993. P. 83-94
  • TAYLOR, James. A Viagem do Beagle: aventura de Darwin a bordo do famoso navio de pesquisa do Capitão FitzRoy. São Paulo: EDUSP, 2009.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

Editado por

Editores responsáveis: Luís Henrique Sacchi dos Santos; Leandro Belinaso Guimarães; Daniela Ripoll

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Educação Avenida Paulo Gama, s/n, Faculdade de Educação - Prédio 12201 - Sala 914, 90046-900 Porto Alegre/RS – Brasil, Tel.: (55 51) 3308-3268, Fax: (55 51) 3308-3985 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: educreal@ufrgs.br