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Pensar as Tecnologias a partir de Gilbert Simondon e Yuk Hui

RESUMO

Neste artigo, apontamos a importância de problematizarmos as tecnologias atuais a partir dos filósofos Gilbert Simondon e Yuk Hui, que alertam sobre a urgência de um pensamento tecnológico contra alienações que decorrem de posturas que dissociam cultura, tecnologia e natureza. Com o objetivo de se pensar outras alternativas contra a alienação tecnológica, o texto aborda algumas ideias sobre educação tecnológica, cultura técnica e pós-humano. Simondon faz pensar sobre os funcionamentos das máquinas e dos valores que elas aludem; Hui, sobre um novo programa de conhecimento tecnológico a partir dos seus conceitos de cosmotécnica e tecnodiversidade.

Palavras-chave
Tecnologia; Alienação; Educação; Gilbert Simondon; Yuk Hui

ABSTRACT

In this paper, we point out the importance of problematizing current technologies from the philosophers Gilbert Simondon and Yuk Hui who alert us to the urgency of a technological thinking that is directed towards an education of technology against alienations that arises from positions that dissociate culture, technology and nature. With the aim of thinking about other alternatives against technological alienation, we approach some ideas about technological education, technical culture and post-human. Simondon makes us think about the operationalities of how machines work and the values they allude, Hui urges us on a new program of technological knowledge based on his concepts of cosmotechnics and technodiversity.

Keywords
Technology; Alienation; Education; Gilbert Simondon; Yuk Hui

Introdução

Apontamos, neste artigo, a necessidade de problematizarmos as tecnologias atuais diante da complexidade do mundo em que vivemos. O porquê da necessidade de tanta inovação tecnológica, com foco no aceleracionismo tecnológico, querendo ditar o nosso futuro sob uma base sólida capitalista? Recentemente o Facebook, com o seu histórico de desrespeito à privacidade dos dados, lançou o seu Smart Glasses Rayban com Realidade Virtual, com o intuito de substituir os celulares e instalar o Metaverso nos nossos cotidianos, juntando realidade virtual, realidade aumentada e internet.

Com investimento do Google, Baidu e Tesla, há o incremento do desenvolvimento de carros autônomos (self driving cars) conduzidos por inteligência artificial (IA); robôs presentes nos chatbots, nas redes sociais e plataformas como ChatGPT, que mediam nossas escolhas e podem promover mundos paralelos com fake news e deep fakes – sem contar a exploração espacial que se apresenta com o turismo espacial, sendo promovido principalmente pela economia privada americana; ou a disputa do território lunar e poder informacional sobre o espaço, entre as grandes nações. Notícias que circulam mais e mais em nossos cotidianos midiáticos, impulsionando uma realidade tecnológica que precisa ser questionada criticamente por diversas áreas do conhecimento, no sentido do que precisamos aprender ou ter cautela com estas tecnologias.

Esses exemplos não desqualificam as tecnologias atuais, pois como o filósofo da tecnologia Yuk Hui (2016HUI, Yuk. The Question Concerning Technology in China: an essay in cosmotechnics. UK: Urbanomic, 2016.; 2019HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019.; 2020)HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020. tem mencionado em suas falas: não há tecnologia capitalista, mas usos capitalistas da tecnologia. Quando falamos em tecnologia, escolhemos mencioná-la de forma ampla, pensar em práticas tecnológicas que incluem as analógicas, mecânicas, eletrônicas, digitais, quânticas, e outras por vir, não nos reduzindo apenas às tecnologias digitais. Atualmente observamos certa tentativa de unificar as tecnologias como sendo somente digitais, como se todos nós estivéssemos reféns da inteligência artificial e seus robôs, sendo conduzidos e determinados por uma superinteligência que aponta em nossos horizontes. Temos escutado discursos nas mídias que, de alguma maneira, intencionalmente, geram um temor quanto a dominação tecnológica que pode prever probabilisticamente nossos comportamentos e escolhas futuras. Discursos que de algum modo subjugam culturas locais e diversidades de práticas tecnológias a fim de promover o fortalecimento de tecnologias universalizantes.

Entendemos que tais discursos de dominação tecnológica precisam ser desconstruídos, uma vez que parecem superadas as visões distorcidas que colocam a tecnologia contra a cultura ou vice-versa, estando voltadas ora para uma idolatração tecnofílica, ora para uma rejeição tecnofóbica – isto é, ora a tecnologia encontra-se subjugada ao humano como mera ferramenta e instrumento, ora está idolatrada como modelo perfeito de existência, como os robôs, aos quais são atribuídos alma e existência separada, autônoma, com desejos próprios, contra um homem preguiçoso, ocioso e obsoleto. Tais colocações não se sustentam mais e perdem seu valor de discussão, no momento em que humanos e não humanos estão implicados e agenciados em um mesmo processo de individuação, constituindo corpos coletivos computacionais. Sabemos que as tecnologias nunca foram boas, nem más e nem neutras, por exemplo, o descobrimento do potencial da tecnologia marítima na época das Grandes Navegações nos séculos XV a XVII, ocasionou a expansão das comunicações continentais e trocas culturais e econômicas, contudo, ao mesmo tempo, o incremento de sistemas escravocratas e o extermínio de povos originários. Extermínio esse que, infelizmente, ainda continua, como vemos a tentativa do governo brasileiro (2018-2022) de aprovação do Marco Temporal sobre terras indígenas (Oliveira, 2020OLIVEIRA, Andreia Machado. Pós-digital e Inteligência Artificial: a importância de um paradigma tecno-ético-estético. In: ROCHA, Cleomar et al. (Org). SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE INOVAÇÃO EM MÍDIAS INTERATIVAS, 7., São Paulo. Anais […]. São Paulo: Media Lab/BR, PUC-SP, 2020.).

Assim como inexistem tais distorções, também deve-se compreender que inexiste neutralidade. Alguns teóricos já nos alertam a esse respeito: Nestor Canclini (2003)CANCLINI. Nestor. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2003. aponta que os processos de informatização da cultura híbrida em que vivemos também geram excluídos; Félix Guattari (1992)GUATTARI, Félix. Caosmose. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. explicita que as tecnologias de informação e comunicação são uma mistura de enriquecimento e empobrecimento, singularização e massificação, desterritorialização e reterritorialização, potencialização e despotencialização de subjetividades; e Gilbert Simondon (1989)SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objects techniques. Paris: Editions Aubier, 1989. alerta que em todo objeto tecnoestético há uma adaptação ao meio, que quando voltada a uma especialização aumentada, sobrevinda nas condições de utilização ou de fabricação, causa o que ele denomina de hipertelia.

Dito isto, neste artigo evitamos posições negacionistas ou salvacionistas em relação às tecnologias, abordando algumas ideias sobre educação tecnológica, cultura técnica e pós-humano, a fim de pensarmos outras alternativas contra uma alienação tecnológica, em especial, na educação. Assim, objetivamos mostrar que há riscos em qualquer um dos posicionamentos polarizados e excludentes na educação, uma vez que a idolatração tecnofílica pode nos levar a posturas que afirmam uma ideologia da singularidade tecnológica, entendendo-a de modo universalista e hegemônica; e a rejeição tecnofóbica pode nos fazer reféns dos programas tecnológicos, ao ignorar os funcionamentos e modus operandi das máquinas. Salientamos que ambas as posturas geram alienação em nível tecnológico e cultural, principalmente no momento atual, com as tecnologias algorítmicas que visam a universalização e se apresentam tão complexas, em caixas-pretas lacradas.

Nessa perspectiva, inquerimos sobre os modos de uso, aplicação e funcionamento das tecnologias em cada época, sendo que estas ficam na tensão entre tendências deterministas ou não. Simondon (1989)SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objects techniques. Paris: Editions Aubier, 1989. fala sobre as indeterminações das máquinas como possibilidades inventivas que escapam à automatização condicionada e à alienação, uma vez que

[…] cada peça, num objeto concreto, não é somente o que tem por essência corresponder à realização de uma função desejada pelo construtor, mas é uma parte de um sistema no qual se exercem uma multitude de forças e se produzem efeitos independentes da intenção do fabricante

(Simondon, 1989SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objects techniques. Paris: Editions Aubier, 1989., p. 35).

Nos dias de hoje, o automatismo tecnológico, com a inteligência artificial, encontra-se em um limiar: por um lado, a otimização de funções computacionais frente à presença de um grande número de dados, trazendo grandes benefícios para diversas áreas; por outro lado, a programação de algoritmos de controle e vigilância com manipulações perceptivas, cognitivas, afetivas, estéticas e comportamentais, ocasionando sistemas cada vez mais homogêneos, excludentes e obscuros, que se tornam caixas-pretas quase invioláveis.

No lugar de pensarmos que as tecnologias nos ameaçam, em visões catastróficas, ou que nos salvam, como se fossem a única alternativa de resolvermos nossos problemas, precisamos assumir que as tecnologias estão replicando, com grande aceleração, padrões includentes e excludentes que já trazemos historicamente, pois sua automação não parte de sua autonomia como indivíduo técnico. Assim nos questionamos: qual a nossa responsabilidade social e pedagógica dentro deste latifúndio de informações e produções tecnológicas?

Nossas reflexões e problematizações são guiadas, principalmente, pelo pensamento de dois filósofos da tecnologia: Gilbert Simondon e Yuk Hui. O filósofo francês Gilbert Simondon (1924-1989) foi estudioso em filosofia, engenharia, psicologia, etologia e cibernética, aluno de Georges Canguilhem e Maurice Merleau-Ponty. Suas principais obras estão baseadas em uma ontogênese das relações que trata sobre os processos de individuação, e fazem revisões sobre conceitos, como: imagem, meio, percepção, informação, tecnologia e estética. Na atualidade, Simondon é um teórico de grande relevância para os estudos interdisciplinares das mídias digitais. O filósofo chinês Yuk Hui tem formação em engenharia computacional e filosofia, com estudos sobre os discursos e práticas contemporâneas que se voltam, em especial, à cibernética e à inteligência artificial, aportando conceitos como cosmotécnica e tecnodiversidade. Também é reconhecido por sua expertise nas obras de Martin Heiddeger, Gilbert Simondon e Bernard Stiegler. Simondon (2008SIMONDON, Gilbert. El modo de existencia de los objetos técnicos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008.; 2015SIMONDON, Gilbert. Cultura y técnica. In: BLANCO, Javier et al. (Org.). Amar a las máquinas: cultura y técnica en Gilbert Simondon. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2015.; 2017)SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017. nos impulsiona a estudarmos, detalhadamente, as operacionalidades dos funcionamentos das máquinas e dos valores que elas aludem, Hui (2016HUI, Yuk. The Question Concerning Technology in China: an essay in cosmotechnics. UK: Urbanomic, 2016.; 2019HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019.; 2020) HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.nos instiga a explorarmos um novo programa de conhecimento tecnológico a partir dos seus conceitos de cosmotécnica e tecnodiversidade.

Portanto, buscamos traçar uma convergência entre as teorias de Gilbert Simondon e Yuk Hui para abordarmos um pensamento tecnológico que se direciona para uma educação da tecnologia contra alienações que decorrem de posturas que dissociam cultura, tecnologia e natureza. Um pensamento tecnológico que fomenta uma educação tecnológica que questiona os humanistas (substancialistas) que excluem a tecnologia na produção do conhecimento; bem como os transhumanistas radicais que colocam a tecnologia como universal e redentora da humanidade. Nesse sentido, ambos filósofos resgatam a relação humano, tecnologia e natureza, investigando a existência humana a partir da realidade técnica que a circunda.

Educação Tecnológica contra a Alienação

Ao observamos que estamos cada vez mais submersos nas tecnologias digitais e que persiste um desconhecimento cada vez maior sobre as mesmas, nos questionamos: o que justifica essa contínua alienação tecnológica? Ao sabermos que a alienação tecnológica se sustenta nas dicotomias entre o humano e a natureza, entre a cultura e a técnica, faz-se necessária uma revisão de tais dicotomias. Para Simondon, a tecnologia1 1 Simondon faz referência ao termo técnica e tecnologia em diferentes momentos. Neste artigo, priorizamos o termo tecnologia, uma vez que Simondon o utiliza como estudos das técnicas. que o humano aporta não está contra a natureza, mas sim a seu favor, caso essa tecnologia esteja na mediação do humano e o natural. Como o autor coloca, “[…] a mistura mais estável e universal do mundo natural com o mundo humano é o conjunto de seres técnicos” (Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 237), que ao mesmo tempo nos liga ao mundo natural e nos humaniza. Como já apontado por Bruno Latour (2012)LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria ator-rede. Salvador: EDUFBA-Edusc, 2012., a existência humana está atrelada intrinsecamente à existência dos objetos técnicos, sendo que não há uma essência ou pureza humana, haja vista que nos humanizamos conjuntamente com os seres técnicos. O processo de hominização é artificial.

Todavia, mesmo que os objetos técnicos sejam inseparáveis da existência humana, precisamos analisar que tipo de relações se efetivam entre os mundos naturais e humanos. Para que as mediações sejam benéficas, os seres técnicos devem interferir de modo colaborativo com o mundo natural a partir do entendimento e do respeito de sua própria dinâmica, já que nessa interferência “[…] a técnica costuma ser uma aceleração dos processos naturais” (Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 163). Ao contrário de intervenções colaborativas, observamos também intervenções predatórias, que ocorrem em oposições entre natureza e técnica, colocando o mundo natural como objeto a ser explorado abusivamente, como temos nos deparado no Antropoceno. Ou seja, não sendo apenas uma aceleração dos processos naturais, mas sim, mais drasticamente, uma alteração e transformação dos processos naturais em nível físico, químico e biotecnológico. Explicita-se uma vontade de soberania do humano sobre o natural, sendo que a tecnologia deixa de ser mediadora e passa a ser soberana ao natural. Neste sentido, diante da complexidade das tecnologias contemporâneas, precisamos pensar como nos direcionarmos às ações que implicam numa intervenção colaborativa, e questionarmos as intervenções predatórias com a natureza.

De acordo com Simondon, “[…] o homem não é o mestre da natureza” (Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 197), ao contrário, é a natureza a grande mestra que nos conduz. Ele vai de encontro a um pensamento cartesiano que coloca o humano como superior e dominador da natureza. Simondon, em seus livros, trás inúmeros exemplos de intervenções colaborativas com a natureza, como o implemento da energia solar e eólica ou a construção de antenas de transmissão que ampliam a paisagem natural; bem como traz preocupações quanto ao excesso de consumo e exploração desmedida através de intervenções predadoras que levam a problemas ambientais, como a poluição, e desenvolvimento de técnicas da destruição, como armas nucleares. Portanto, na mediação dos mundos naturais e humanos, as tecnologias devem ser concebidas a partir dos agenciamentos psicossociais com a natureza, haja vista que “[…] a técnica, a operação do homem com a natureza – arte et natura – se engendra a si mesma e renasce de si mesma […]” (Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 155).

Atualmente, os funcionamentos das máquinas digitais nos mostram que elas não estão desvinculadas da natureza: para que uma nuvem de dados possa operar, ela requer muito espaço físico e água para refrigerá-la, bem como sabemos que esses aglomerados computacionais ocasionam uma emissão acentuada de gás carbônico; também, há acentuada extração de recursos minerais para a fabricação das máquinas computacionais, e necessitamos de um grande número de “recursos humanos” para criação de dados caracterizados nos datasets de redes neurais. Ou seja, técnica e natureza estão indissociavelmente atreladas e o humano não se isenta da responsabilidade de intervenção, dado que “[…] o homem é capaz de assumir a relação entre o ser vivo que é e a máquina que fabrica; a operação técnica requer uma vida técnica e natural” (Simondon, 2008SIMONDON, Gilbert. El modo de existencia de los objetos técnicos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008., p. 143). Simondon não exclui a responsabilidade humana sobre as técnicas que fabrica, ao afirmar:

Acusamos o objeto técnico de tornar o homem escravo: é perfeitamente verdade, mas o homem na realidade é escravo de si mesmo porque o aceita quando se entrega aos objetos técnicos; ele se rende a eles como a alma se rende ao diabo, por desejo de poder, glória ou riqueza; a tentação não vem do objeto, senão daquele que o sujeito crê ver no objeto que medeia

(Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 349).

Assim, a alienação tecnológica passa primeiramente pela alienação do humano sobre si próprio, sobre seus desejos e comportamentos fabricados e advindos com/dos objetos técnicos que o rodeiam, tornando-se escravo dos mesmos desejos e comportamentos. Nessa perspectiva, Simondon ressalta em seus escritos, a importância de uma Educação para as tecnologias, desde a formação escolar – o que, hoje em dia, poderíamos pensar em uma alfabetização para as tecnologias digitais desde o nível primário. Ao falar sobre uma Educação para as tecnologias, ele diferencia aprendizado e treinamento, alertando que “[…] uma educação que substituísse o verdadeiro aprendizado por um treinamento profissional encerraria cada indivíduo em um fatalismo social” (Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 236), ou que “[…] o treinamento profissional precoce, fruto de uma especialização abusiva, provoca uma superadaptação, e, consequentemente uma rigidez social” (Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 234). Diferentemente, um aprendizado tecnológico leva ao entendimento dos engajamentos técnicos e naturais, técnicos e psicossociais, e, logo, um dinamismo e transformação cultural e social.

Simondon, quando ensinava a alunos numa faixa etária de 12 e 13 anos, enfatizava tais engajamentos e respeito mútuo entre humano, natureza e máquina, em suas palavras:

Afirmei que a máquina não é uma escrava ou um instrumento utilitário, válido apenas pelos seus resultados. Ensinei a respeitar aquele ser que é a máquina, intermediário substancial entre a natureza e o homem; ensinei a tratá-la não como uma serva, mas como uma criança. Defini sua dignidade e exigi respeito desinteressado por sua existência imperfeita

(Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 202).

Atribuir dignidade à máquina não é dar soberania à máquina, senão oportunizar um modo de relacionamento horizontal entre humanos e máquinas, entre humanos e a realidade que os circundam. Essa Educação para a tecnologia, desenhada por Simondon, estava baseada em momentos práticos e teóricos, e em uma divisão de etapas progressivas do desenvolvimento tecnológico de acordo com a faixa etária. Segundo ele, a cultura e a técnica se encontram em conteúdos mentais que deveriam fazer parte da educação: “[…] a aprendizagem da cultura deve se estender até a idade adulta, e a do tecnicismo deve ser abordada mais cedo; desse modo, poderia ser atenuado um dualismo que, em grande medida, é um artefato da educação” (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. Cultura y técnica. In: BLANCO, Javier et al. (Org.). Amar a las máquinas: cultura y técnica en Gilbert Simondon. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2015., p. 29).

Hui, ao mencionar Simondon, coloca que “[…] a tecnologia é a concretização de esquemas mentais influenciados por estruturas sociais e políticas contidas na sociedade humana, mas também porque ambas são transformadoras pela realidade técnica” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 161). Com frequência, em culturas indígenas, ocorre essa atenuação dualística, em que a cultura permanece ativa com suas cosmologias até a fase adulta, e que o aprendizado das técnicas faz parte da vida das crianças desde cedo. Distinto do que observamos em nossa cultura ocidental, em que na vida adulta há uma carência de sentido cosmológico e de reconhecimento cultural, e na vida da criança uma falta de conhecimento de técnicas e tecnologias, como se tudo estivesse dado e pronto para ser consumido.

Na direção de uma educação tecnológica que visa uma compreensão das relações entre natureza e técnica, no texto Nascimento da Tecnologia, originalmente publicado em 1970, Simondon (2017, p. 164-173)SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017. aponta quatro momentos históricos do desenvolvimento tecnológico: pré-agrícola e pré-pastoral, agrícola e pastoral, industrial e cibernético. Em um primeiro momento estão as técnicas pré-agrícolas e pré-pastorais como caça, pesca, coleta, sendo a técnica uma mediação feliz entre o humano e a natureza (Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017.), em que a natureza produz segundo seus ciclos, com calendários que regulam o trabalho humano. Em um segundo momento, a produção ocorre de maneira mútua entre humano e natureza, há um intercâmbio regular entre ambos com uma intervenção tecnológica colaborativa, aparecendo a domesticação de animais, o cultivo à horticultura e a irrigação artificial, interferências baseadas nos cuidados intuitivos com a Terra. Como Simondon diz:

Nos permitiremos apontar em particular o valor de uma cultura baseada na intuição direta das plantas e dos animais. O conhecimento das estações, o amor pelos animais, o folclore de todas as regiões, dão ao pequeno agricultor a consciência de uma relação direta com as coisas da vida

(Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 233).

Em ambos os casos, as ferramentas ampliam os gestos humanos, há uma relação amistosa com a técnica que não entra em confronto com a natureza. A ferramenta aparece como um elemento técnico que o artesão/agricultor regula com o seu meio associado, a partir de um conhecimento técnico transmitido. De acordo com Simondon,

Portanto, não se trata aqui de uma técnica como meio, mas sim como um ato, como uma fase de uma atividade de relacionamento entre o homem e seu ambiente; durante esta fase, o homem estimula seu ambiente, introduzindo uma modificação nele; essa modificação se desenvolve, e o meio ambiente modificado oferece ao homem um novo campo de ação que requer uma nova adaptação e suscita novas necessidades (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. Cultura y técnica. In: BLANCO, Javier et al. (Org.). Amar a las máquinas: cultura y técnica en Gilbert Simondon. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2015., p. 24).

Há uma atividade recursiva entre o humano e a natureza provocada pelo ato técnico. Contudo, no terceiro momento da técnica (início séc. XVII), começa a aparecer uma tensão entre técnica e natureza: uma ameaça da técnica vir a destruir a natureza, de substituir o homem em seu trabalho, ou seja, há um sentido de exploração tanto da natureza quanto do trabalho humano, aparecendo a alienação do humano em relação à técnica e o domínio da técnica em relação à natureza, bem explicito no filme Tempos Modernos (1937) de Charles Chaplin: uma alienação técnica incorporada no corpo, ocasionando uma fabricação psicossomática de corpos dóceis e automatizados, mesmo em seus períodos de lazer. Nesse momento, tem-se uma visão dissociada entre mecânico e orgânico, na fábrica o operário é um organizador, um supervisor de máquinas autônomas que têm ritmos e condicionamentos próprios, que, inclusive, condicionam e alienam os próprios operários.

Simondon faz uma crítica à Karl Marx (1818-1883) quando considera a alienação somente econômica do trabalhador em relação ao capital. Para Simondon, faz-se necessário acrescentar a alienação tecnológica, aos objetos técnicos, que, segundo ele, é a pior de todas. As máquinas nas fábricas são indivíduos técnicos, sendo que agora é a indústria que regula o meio associado desses indivíduos. O artesão se converte em operário alienado, sem regular mais ferramentas ou máquinas, uma vez que não dispõe dos conhecimentos técnicos das mesmas, ficando estes conhecimentos centrados nos engenheiros, que, por sua vez desconhecem as operacionalidades das máquinas. Simondon coloca que a alienação somente cessará “[…] se o homem intervir na atividade técnica em seu duplo título de operador e objeto da operação” (Simondon, 2017SIMONDON, Gilbert. Sobre la técnica: 1953-1983. Buenos Aires: Cactus, 2017., p. 266), de operador que conhece a tecnologia e é transformado pela mesma, estando em uma situação diferente que a do engenheiro, que somente detém o conhecimento em teoria, ou do dono da fábrica, que prima pelos fins econômicos.

O progresso tecnológico, quando baseado restritamente em fins econômicos, se reduz à superprodução e ao consumo desmedido, em um ciclo voltado ao consumo, produção e uso dos objetos tecnológicos nas relações psicossociais, que se estende até os nossos dias em uma overdose capitalística de consumo. Um quarto momento tecnológico aparece com a teoria da informação, teoria das comunicações e, principalmente, com a cibernética e os modelos de inteligibilidade. Distinta da automatização mecânica anterior, em que a fábrica regula os indivíduos técnicos, os computadores surgem como conjuntos técnicos vinculados e autorregulados pela ação do humano, em processos de automação, podendo, ou não, estar a serviço de intensificar o progresso, a superprodução e o consumo. De acordo com Simondon (2008, p. 142)SIMONDON, Gilbert. El modo de existencia de los objetos técnicos. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008.:

Um entusiasmo elementar pelos autômatos de autorregulação nos faz esquecer que são precisamente essas máquinas que mais precisam do homem; enquanto as outras máquinas precisam apenas do homem como servo ou organizador, as máquinas de autorregulação precisam do homem como técnico, isto é, como associado; a sua relação com o homem se situa ao nível da dita regulamentação e não ao nível dos elementos ou conjuntos. Mas, por meio dessa autorregulação, as máquinas automáticas podem ser vinculadas ao conjunto técnico em que operam.

Mills, ao comentar Simondon, coloca que na atualidade as máquinas computacionais apresentam uma abertura em suas possibilidades de indeterminação, sendo que “[…] a abertura da operação tecnológica significa que o poder inventivo do técnico, como um novo tipo de trabalhador engajado na atividade técnica, é necessário para forjar e regular essas novas unidades de operação significativa” (Mills, 2016MILLS, Simon. Gilbert Simondon: information, technology and media. New York, London: Rowman & Littlefield, 2016., p. 135).

A ideia simondoniana do humano associado à máquina vai de encontro ao imaginário atual de máquinas superinteligentes e independentes que o excluem. As máquinas computacionais aparecem como autômatos que se autorregulam e que tomam suas próprias decisões, como se a construção dos padrões e as decisões tomadas pelas máquinas não passassem pelas escolhas éticas e padrões comportamentais humanos. Diferentemente, “Simondon defende que o humano tem um lugar importante entre a máquina, trabalhando com essa abertura” (Mills, 2016MILLS, Simon. Gilbert Simondon: information, technology and media. New York, London: Rowman & Littlefield, 2016., p. 136), com sua indeterminação e interdependência. Tal associação com a máquina, que Simondon aponta, torna-se cada vez mais pertinente, complexa e interdisciplinar, envolvendo técnicos, engenheiros, filósofos, psicólogos, designers, artistas, sociólogos etc., em projetos como do self driving cars em que as decisões tecnológicas tomadas implicam em comportamentos sociais e condutas éticas moderadas por inteligências artificiais.

Portanto, para Gilbert Simondon (1989)SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objects techniques. Paris: Editions Aubier, 1989., há uma evolução biológica e tecnológica que não separa natureza e técnica ou cultura e técnica, uma vez que não se trata da tecnologia como ferramenta/instrumento, mas como ato, inserido na cultura (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. Cultura y técnica. In: BLANCO, Javier et al. (Org.). Amar a las máquinas: cultura y técnica en Gilbert Simondon. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2015.). Estamos sempre submersos em certa cultura técnica, nos subjetivamos com as tecnologias, nós as produzimos e somos produzidos por elas. Falamos em tecnologias não apenas digitais, como “Don Ihde insiste que os corpos humanos e as tecnologias coabitam um com outro em relação a projetos particulares ou vida real. Na medida que eu uso uma tecnologia, eu também sou usado por ela” (Haraway, 2010HARAWAY, Donna. Compaoundings. In: JONES, Caroline (Org.). Sensorium: embodied experience, technology, and contemporary art. Cambridge: MIT Press, 2006., p. 123). As tecnologias constituem formas de subjetividade, determinam maneiras de pensar, agir e sentir, bem como os próprios sujeitos criam tecnologias de acordo com suas necessidades e desejos, isto é, não há como separar sujeito e máquina, uma vez que se produzem em um mesmo processo de subjetivação, ou seja, constituem-se, simultaneamente, sujeitos e máquinas a partir de agenciamentos psicossociais. Nossa própria linha de tempo histórica humana está separada por divisões tecnológicas: Idade da Pedra, do Fogo, do Metal… Primeira, Segunda, Terceira Revolução Industrial, agora a Quarta Revolução Industrial 4.0 com acentuada automação, com a Internet das Coisas, Big Data, Machine Learning…, e uma Quinta Revolução Industrial com os modos de implementação de tais tecnologias nas relações entre humanos, não humanos e ciborgues.

Procuramos colocar na cultura técnica a natureza das máquinas, uma vez que o que se define por natureza humana já parte de um sistema tecnológico. Em O modo de existência dos objetos técnicos (1989), Simondon busca, insistentemente, integrar tecnologia e cultura, apontando que “[…] é necessário que o objeto técnico seja conhecido em si mesmo para que a relação do homem com a máquina seja estável e válida: daí a necessidade de uma cultura técnica” (Simondon, 1989SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objects techniques. Paris: Editions Aubier, 1989., p. 82). Faz uma crítica a abordagens que entendem a técnica de modo somente utilitário e desprovido de sentidos e significados. Assim, apontamos a pertinência de uma abordagem filosófica sobre a tecnológica como uma maneira de se compreender os processos de individuação, implicados nos artefatos tecnoestéticos e seus meios associados (Oliveira, 2020OLIVEIRA, Andreia Machado. Pós-digital e Inteligência Artificial: a importância de um paradigma tecno-ético-estético. In: ROCHA, Cleomar et al. (Org). SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE INOVAÇÃO EM MÍDIAS INTERATIVAS, 7., São Paulo. Anais […]. São Paulo: Media Lab/BR, PUC-SP, 2020.). Constata-se uma falsa oposição entre cultura e técnica, como Arlindo Machado nos coloca: “[…] nenhuma leitura dos objetos culturais recentes ou antigos pode ser completa se não se considerar relevantes, em termos de resultados, a ‘lógica’ intrínseca do material e os procedimentos técnicos que lhe dão forma” (Machado, 1996MACHADO, Arlindo. Máquina e Imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996., p. 11, grifo do autor).

Nessa perspectiva, de que o conhecimento da cultura humana passa necessariamente pelo conhecimento das tecnologias, Simondon (2015)SIMONDON, Gilbert. Cultura y técnica. In: BLANCO, Javier et al. (Org.). Amar a las máquinas: cultura y técnica en Gilbert Simondon. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2015., intencionalmente, relaciona a palavra cultura com a palavra cultivar, as técnicas de cultivo de plantas e animais, do humano atuando para modificar o meio via um gesto técnico. Mills coloca que para “[…] Simondon é explícito que a cultura é o uso da técnica para cultivar a espécie humana” (Mills, 2016MILLS, Simon. Gilbert Simondon: information, technology and media. New York, London: Rowman & Littlefield, 2016., p. 132). Em princípio não há conflito entre cultura e técnica: elas se opõem quando uma das partes se encontra em uma posição estática, em que não ocorrem dinâmicas de autorregulação, nas quais ambas se alteram: positivamente como transformação, negativamente como perigo. Para Simondon “Cultura’ é o conjunto de técnicas de manipulação humana direta que cada grupo humano usa para se perpetuar na estabilidade” (Simondon, 2015SIMONDON, Gilbert. Cultura y técnica. In: BLANCO, Javier et al. (Org.). Amar a las máquinas: cultura y técnica en Gilbert Simondon. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2015., p. 23), podendo a cultura estar em sintonia com a técnica ou contra ela, ou vice-versa, o que vemos na maioria dos casos. A cultura regula o social, de maneira positiva, quando aparece como reguladora dos valores sociais ao se apropriar dos conhecimentos tecnológicos; e, negativa, ao negar e alienar tais conhecimentos.

Ao atrelar questões culturais e políticas, Yuk Hui nos alerta que “[…] nos processos de colonização e de modernização, as diferenças tecnológicas também preservam e reforçam diferenças de poder” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 83). Por exemplo, atualmente com as tecnologias a serviço da dominação, como os algoritmos de reconhecimento facial para o cárcere de pessoas condenadas ao cumprimento de pena, a grande maioria das pessoas brasileiras presas são pretas, haja vista que há a reprodução de padrões sociais de um racismo estrutural, desde o input das redes neurais com a criação dos datasets, os modelos de aprendizagem das máquinas, até os outputs que induzem futuros reconhecimentos. Ou seja, a questão central não consiste na oposição entre cultura e tecnologia, como dito anteriormente, considerando a tecnologia culpada, neutra ou redentora. Contudo, precisamos nos deter justamente em como se dão as relações entre cultura e tecnologia, tecendo questionamentos sobre as noções de cultura e de tecnologia adotadas em nossa época, podendo haver momentos de amistosidade, de tensão ou de sobreposição uma sobre a outra.

Pós-Humanismo e Tecnodiversidade

A fim de ampliarmos nossa visão sobre a tecnologia e nos desviarmos de posicionamentos alienantes e tecnocratas, propomos abordagens mais abrangentes e não antropocêntricas sobre a mesma. Abordagens que apontam alternativas que vão além de posturas dicotômicas e polarizadas entre o humano e a máquina, posturas que primam por um modelo de dominação, ora do humano, ora da máquina, bem como por um modelo purista que dissocia humano e máquina, em prol de ideias universalistas sobre o que aceitamos por humano e por máquina.

Nesse sentido, apontamos a necessidade de revermos o que entendemos por humano. Tanto Simondon quanto Hui, apontam a importância de problematizarmos e atualizarmos o conceito de humano e, consequentemente, de humanismo. Como Simondon coloca “[…] cada época deve descobrir o seu humanismo, direcionando-o para o perigo principal da alienação” (Simondon, 1989SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objects techniques. Paris: Editions Aubier, 1989., p. 121), e Hui que “[…] o conceito de humano é um conceito histórico contingente”, e, que “[…] rejeitar o conceito de humanidade é estilhaçar a ilusão criada por um discurso unificador do humano, ligado a um processo de modernização como forma de sincronização” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 85). Ao reconhecermos que não existe uma essência humana pura a ser revelada ou conquistada, pensamos o humano como uma fabricação conceitual, histórica, múltipla e diversificada que precisa ser revista em cada localidade e época.

A pós-humanista crítica Rosi Braidotti (2017)BRAIDOTTI, Rosi. Posthuman Critical Theory. Journal of Posthuman Studies, v. 1. n. 1, p. 9-25, 2017. também problematiza o que chamamos de humano, no sentido dos outros não humanos, contra a ideia de um sujeito dominante (masculino, branco, europeu) e uma visão antropocêntrica. A autora coloca o pós-humanismo como sendo uma convergência do anti-humanismo e do anti-antropocentrismo, contudo, indo além, para uma direção mais complexa e atual. Aponta para a necessidade de uma abordagem pós-humanista que não separa o dado (natureza) e o construído (cultura). Ao contrário, aponta para os aspectos históricos contingentes na relação natureza e cultura, considerando o vital, a auto-organização e estruturas não naturalistas (Braidotti, 2013BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Londres: Polity, 2013.). Marca a importância de repensarmos a subjetividade como um agenciamento coletivo que engloba atores humanos e não humanos, no sentido de composições múltiplas e práticas coletivas de um devir-pós-humanista (Braidotti, 2017BRAIDOTTI, Rosi. Posthuman Critical Theory. Journal of Posthuman Studies, v. 1. n. 1, p. 9-25, 2017.).

Yuk Hui (2019)HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019. nos fala sobre o pós-humanismo a fim de evitar um desenvolvimento tecnológico homogêneo baseado em uma visão eurocêntrica, determinística, apocalítica e totalitária. Ao colocar que no pós-humanismo o humano é uma existência técnica, Hui indica a importância de estudos críticos e problematizações da relação humano-máquina: “[…] o conceito de meio se estende dos órgãos humanos aos órgãos analógicos e digitais, constituindo um novo meio caracterizado por uma organicidade inorgânica” (Hui, 2019HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019., p. 214), em que o inorgânico se torna orgânico. Hui aponta duas grandes linhas do pensamento do século XX: o organicismo e a organologia. Para Hui, desde o início da cibernética, não tem mais sentido separarmos o mecânico e o orgânico, e sim pensarmos em um organo-mecânico.

[…] as máquinas cibernéticas, especialmente a máquina de Turing, ganham um novo status, pois não são mais um mero mecanismo no sentido cartesiano, nem um ser vivo. Em vez disso, é um ser organo-mecânico: um ser mecânico implementado em uma forma orgânica

(Hui, 2019HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019., p. 151).

Nobert Wiener, com a cibernética, “[…] descobriu uma operação técnica capaz de assimilar o comportamento humano” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 165), com implicações recursivas entre o orgânico e a máquina. A cibernética, campo interdisciplinar que aporta a noção de feedback e comporta operações recursivas, “[…] permite ao algoritmo a absorção eficaz da contingência para o aprimoramento da eficiência computacional. A inteligência emerge quando deixa de ser mecânica, ou seja, quando passa a ser capaz de lidar com acidentes imprevistos em suas regras” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 167). Hui observa que, quando gradativamente a recursivamente vai se abrindo às contingências do sistema, ela vai dando espaço a uma inteligência que opera recursivamente entre cognição e mundo (machine learning). Podemos aproximar as contingências mencionadas por Hui com as indeterminações das máquinas aludidas por Simondon, uma vez que ambas abrem alterativas de saída de uma programação restrita em direção à criação de possibilidades não previstas. “Simondon vê na natureza informacional da tecnologia cibernética um indeterminismo que é sua graça salvadora” (Mills, 2016MILLS, Simon. Gilbert Simondon: information, technology and media. New York, London: Rowman & Littlefield, 2016., p. 136), sendo que tal indeterminismo está atrelado a relações de interdependência entre humanos e máquinas.

De acordo com Hui (2019)HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019., a organologia, ao inserir o acidental e o contingente, desvia-se de abordagens antropocêntricas e substancialistas do humano e da cultura. A organologia é uma linha do pensamento do século XX e “[…] pode ser considerada uma ciência materialista, mas não é um materialismo que opõe espírito e matéria. Em vez disso, busca, em todas as oportunidades, permitir que o espírito exerça sua liberdade sem produzir a alienação da alma” (Hui, 2019HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019., p. 56). A organologia está mais voltada para concepções pós-humanas do que transhumanas. Segundo o posicionamento de Hui, o transhumanismo (radical de direita) toma refúgio na tecnologia como salvadora do humano, “[…] no desejo de imortalidade inorgânica” (Hui, 2019HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019., p. 243). Ao aprimorar o seu funcionamento a partir do automatismo imposto pela atual inteligência artificial, o transhumanismo visa superar um humano obsoleto. Para Hui, os transhumanistas

Adotam o funcionalismo (ver o ser humano como composto de funções que podem ser melhoradas individualmente) e um programa interdisciplinar para aprimoramento humano, incluindo tecnologia da informação, ciência da computação, ciência cognitiva e neurociência, pesquisa de interface neural-computador, ciência dos materiais, inteligência artificial, regenerativa medicina e extensão de vida, engenharia genética e nanotecnologia

(Hui, 2019HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019., p. 243).

Há uma ênfase determinista sobre os sistemas de automação, como Yuk Hui nos alerta:

Refletiremos sobre a crescente determinação dos sistemas técnicos realizados na nova onda de industrialização, alimentados pela inteligência artificial, aprendizado de máquina e todo tipo de tecnologias de vigilância dotadas de uma ideologia transhumanista que quer superar o limite do humano e da política

(Hui, 2019HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019., p. 17).

Entendendo que a política da automação atual é uma política capitalista e colonialista do automatismo que vê a competitividade como solução, Hui (2019)HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019. faz uma crítica à ideia do aceleracionismo de direita (como uma continuidade do pensamento iluminista), como de Nick Land, que afirma a singularidade tecnológica em prol da intensificação do capitalismo na perspectiva de sua auto superação: “[…] os neorreacionários e os transhumanistas celebram a inteligência artificial em nome de um triunfalismo pós-humanista, porque a superinteligência e a singularidade tecnológica demonstram a ‘possibilidade de uma humanidade sublime’” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 86). A singularidade tecnológica, sustentada em uma inteligência artificial forte com aprendizado não supervisionado, profetiza que chegaremos a um nível de superinteligência, onipresente, onipotente e superior a todas as demais, que converge sobre si própria. Por ser tão específica e separada do humano, se torna singular e o transcende.

A tecnologia moderna sincroniza histórias não ocidentais no eixo de tempo global da modernidade Ocidental. Simultaneamente oportunidade e problema, o processo de sincronização permite que o mundo desfrute da ciência e da tecnologia, mas também o lança em um eixo de tempo que, animado pelo humanismo, está se movendo em direção a um fim apocalíptico, seja na forma da singularidade tecnológica (a explosão de inteligência), seja na forma do surgimento de uma ‘superinteligência’

(Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 85).

De acordo com essa visão aceleracionista, somente tal superinteligência hegemônica seria capaz de gestionar economicamente, politicamente e socialmente os conflitos da humanidade em um eixo de tempo global, uma vez que todas as informações estariam sincronizadas e se conseguiria prever os conflitos e programá-los. Esta postura tecnocrática implica uma visão “ingênua” em que inexistiria o humano com interesses geopolíticos de poder.

Para Hui (2020)HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., há uma convergência do tempo imposta, uma sincronização com tecnologias modernas em nível global, ocasionando uma unificação tecnológica e, posteriormente, uma explosão da inteligência que atinge a todos de maneira uniforme. Todavia, ele também coloca que há a possibilidade de múltiplas bifurcações diferenciadas após a convergência em um eixo de tempo global sincronizado, bifurcações advindas da diversidade de localidades e suas cosmotécnicas, de práticas de tecnodiversidade, como diversas práticas tecnológicas que têm sido adotadas por comunidades minoritárias, como as indígenas, quilombolas, aborígenes etc.

Por exemplo, citamos o projeto DNA afetivo: Kame e Kanhru como uma prática de tecnodiversidade. Tal projeto, realizado desde 2016, vem sendo desenvolvido com as escolas indígenas kaingáng Gormecindo Jete Tenh Ribeiro e Augusto Ope Da Silva, envolvendo as crianças das comunidades kaingáng Terra do Indígena do Guarita km10, localizada no noroeste do estado do Rio Grande do Sul e a comunidade de Santa Maria. Nesse projeto, foram desenvolvidos laboratórios de criação nos quais as crianças, ao trabalharem com suas questões culturais, utilizaram tecnologias digitais para a produção de fotografias, vídeos e desenhos gráficos, bem como contribuíram para a elaboração de um jogo digital bilíngue que trabalha com as marcas da estrutural social kaingáng Kame e Kanhru.

O jogo digital Kame Kanhru agregou a imagem visual e sonora, as estratégias de gamificação e as dinâmicas de interação lúdica, como outra possibilidade de se contar sobre os mesmos mitos, tradições e costumes. A cultura de passar a sabedoria Kaingáng dos mais velhos aos mais novos se faz presente no processo de criação e nos objetivos do jogo digital Kame Kanhru, sendo um jogo destinado, principalmente, às crianças e ao público jovem em idade escolar

(Lorenci Mallmann et al., 2021LORENCI MALLMANN, Kalinka; OLIVEIRA, Andreia Machado; SALES, Joceli Sirai. Arte e tecnodiversidade na ativação da cultura indígena kaingáng. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, Bogotá, v. 16, n. 2, p. 174-195, 2021., p. 193).

O projeto problematiza “[…] como as tecnologias emergentes, quando disponíveis e parte da realidade social desses povos, também podem ser assimiladas e relacionadas à preservação e à perpetuação de seu patrimônio cultural” (Lorenci Mallmann et al., 2021LORENCI MALLMANN, Kalinka; OLIVEIRA, Andreia Machado; SALES, Joceli Sirai. Arte e tecnodiversidade na ativação da cultura indígena kaingáng. Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, Bogotá, v. 16, n. 2, p. 174-195, 2021., p. 193). A comunidade kaingáng, a partir de suas demandas, faz uso das tecnologias emergentes, contudo apropriando outros valores, costumes e saberes, trazendo suas cosmologias para outras práticas tecnológicas. Como Viveiro de Castro (2018, p. 21)VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu Editora, n-1 edições, 2018. coloca: “[…] o que toda experiência de uma outra cultura nos oferece é a ocasião para se fazer uma experiência sobre nossa própria cultura; muito mais que uma variação imaginativa” , especulativa ou exótica.

Nesse sentido, a construção do jogo digital Kame Kahnru não se direciona apenas para a comunidade kaingáng, mas também para comunidades com distintas culturas ao propiciar uma prática tecnológica diversificada a partir de sua própria cosmologia. O jogo digital Kame Kahnru vem ao encontro do que Hui coloca: “[…] todas as culturas não europeias deveriam sistematizar as próprias cosmotécnicas e as histórias dessas cosmotécnicas” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 42). Assim, tal projeto demonstra, de certa maneira, como cosmologias diferentes podem fazer outros usos das tecnologias sincronizadas mencionadas por Hui (2020)HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.; também, como práticas tecnológicas advindas de cosmologias diferentes podem provocar uma revisão sobre nossas próprias práticas.

Yuk Hui assinala que “[…] para que consigamos nos afastar dessa sincronização, ao que tudo indica, teremos de exigir uma fragmentação que nos libertará de um tempo histórico-linear definido em termos de pré-moderno / moderno / pós-moderno / apocalipse” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 17). Potência de fragmentação de um tempo sincronizado que existe na diversidade dos modos de vidas, de suas cosmologias e práticas tecnológicas.

Precisamos escapar de seu eixo de tempo global, escapar de um (trans)humanismo que submete outros seres aos termos de nosso destino e propor uma nova agenda e uma nova imaginação tecnológica que possibilitem novas formas de vida social, política e estética e novas relações com não humanos, a Terra e o cosmos

(Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 95).

Ao nos indagarmos sobre um eixo de tempo global, Hui nos confronta com a alienação tecnológica atual em que nos encontramos:

Por que não considerar outra forma de aceleração que não leve a velocidade a seus extremos, mas que mude a direção do movimento, que dê à tecnologia um novo referencial e uma nova orientação no que diz respeito ao tempo e ao desenvolvimento tecnológico?

(Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 88).

Sua resposta vai na direção de uma reflexão sistemática, de pensar novas epistemes a partir de múltiplas cosmotécnicas e tecnodiversidades, de abrir as recursividades tecnológicas para as contingências no sentido de uma epistemologia da recursividade, isto é, “[…] novas ideias cujo funcionamento se dá a partir de formas de raciocínio não lineares, entre as quais constam a cibernética, a teoria dos sistemas, a teoria da complexidade e a ecologia” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 163). Tais discussões nos levam a apontar dois aspectos primordiais no pensamento da tecnologia: diversidade de relações entre humanos e não humanos que incluem distintas informações, sensações, pensamentos, estéticas e modos de viver; e dessubstancialização de mundos totalitários e pontos de vistas unitários que levem a sincronizações do tempo de modo linear.

Considerações sobre Possíveis Indeterminações Tecnológicas

Enfim, ao propormos pensar as tecnologias e seus funcionamentos a partir dos filósofos da tecnologia Gilbert Simondon e Yuk Hui, visamos problematizar as possibilidades de restabelecer os valores à cultura a partir do conhecimento tecnológico, de se refletir sobre as relações mútuas entre humano, máquina e natureza, a fim de irmos contra uma alienação tecnológica. Como Simondon (1989)SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objects techniques. Paris: Editions Aubier, 1989. nos fala, a máquina apenas pode tomar lugar do humano quando ele centraliza em si uma função de “portador de ferramentas”, um simples executor de tarefas. A tecnologia somente pode ser incorporada à cultura se a relação humano e máquina não estabelecer padrões de inferioridade ou de superioridade, mas, ao contrário, estabelecer relações de respeito e reciprocidade, inseridas em uma cultura técnica.

Guiados por essas ideias, neste artigo, objetivamos desconstruir posições negacionistas ou salvacionistas em relação às tecnologias, trazendo ideias sobre a importância de uma educação tecnológica que encontra-se direcionada aos modos de funcionamentos dos objetos técnicos inseridos na cultura e entrelaçados com a natureza (Simondon, 1989SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objects techniques. Paris: Editions Aubier, 1989.); sobre a pertinência de uma cultura técnica que atrela os valores culturais aos tecnológicos; sobre a necessidade de revisão do entendimento do próprio humano, a partir de noções como pós-humano, a fim de pensarmos outras alternativas contra a alienação tecnológica na educação.

Nesse sentido, Yuk Hui atualiza Gilbert Simondon ao problematizar as tecnologias emergentes em uma perspectiva de superar oposições entre humano e máquina, entre objetividade e subjetividade. Com base no pluralismo ontológico e nos conceitos de reticulação e tecnicidade, Hui (2016)HUI, Yuk. The Question Concerning Technology in China: an essay in cosmotechnics. UK: Urbanomic, 2016. nos propõe um pensamento cosmotécnico que visa integrar tecnologia e cultura. Evitando um desenvolvimento tecnológico homogêneo, baseado em uma visão eurocêntrica, une visões cosmológicas contemporâneas e tradicionais, ocidentais e orientais, através da análise de múltiplos sistemas tecnológicos e suas particularidades.

Ao tecer relações entre o tradicional e o moderno, entre o local e o global, Hui abre espaço para outros pensamentos diferenciados, como as cosmologias chinesas, apontando que existem múltiplas naturezas, cosmologias, mitologias (sistemas de pensamentos), e tecnologias. Busca desconstruir hierarquias de narrativas, uma vez que cada narrativa cosmológica cria seu próprio mundo inserido em outros mundos. Partindo das cosmologias chinesas, Hui provoca um espaço de discussão para que outras culturas minoritárias investiguem suas múltiplas cosmologias e tecnologias, nos questionando: “[…] o que significa uma cosmotécnica amazônica, inca, maia? E, para além de formas de arte e de artesanato indígenas a serem preservadas, como essas cosmotécnicas poderiam nos inspirar a recontextualizar a tecnologia moderna?” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 10). Assim, o conceito de cosmotécnica está implicado em uma visão de tecnodiversidade, haja vista que devemos entender em qual sistema tecnológico as cosmologias estão inseridas. O conceito de cosmotécnica nos instiga a investigar de que maneira cada cultura e época desenvolve tecnologias particulares em suas localidades, juntamente com as tecnologias universalizadas e sincronizadas. Esses outros usos de tais tecnologias tornam-se fundamentais ao incorporarem seus valores culturais e contribuírem para a diversidade de outros saberes e práticas contemporâneas.

Nessa direção, Hui faz uma revisão da noção de localidade, que não é mais uma localidade isolada espacialmente ou temporalmente, e sim “[…] deve ser uma localidade que se apropria do global em vez de ser simplesmente produzida e reproduzida pelo global” (Hui, 2019HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019., p. 307), não estando em oposição ao global. Ele diz que o caráter universal e de localidade precisam ser vistos juntos, a técnica é universal no sentido de hominização, contudo também é “[…] motivada e limitada por especificidades geográficas e cosmológicas” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 89), que se transformam graças ao seu caráter heterogêneo. A localidade volta-se para as práticas que respondem às contingências da vida com suas diversidades, para as tecnodiversidades que não separam o local e o global.

Bruno Latour (2012)LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria ator-rede. Salvador: EDUFBA-Edusc, 2012., também vai de encontro a qualquer abordagem substancialista que visa à pureza e isolamento de qualquer grupo social, ao colocar que tanto indivíduo como sociedade se produzem nas relações entre os mediadores humanos e não-humanos, estabelecendo vínculos entre global e local a partir da especificidade de cada associação.“Temos apenas que estabelecer conexões contínuas entre uma interação local e outros lugares, tempos ou agências por meio dos quais um local é levado a fazer coisas” (Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria ator-rede. Salvador: EDUFBA-Edusc, 2012., p. 251, grifo do autor). Ele busca o modus operandi dos mediadores em determinado lugar a fim de abrir as controvérsias que ali habitam, mesmo estando fechadas, temporariamente, em caixas-pretas.

Nesse sentido, enfatizamos a urgência de uma educação tecnológica que vai além do conceito burguês de cultura e de tecnologia atrelada a privilégios econômicos vinculados aos conhecimentos tecnológicos. De acordo com Simon Mills, “Simondon, portanto, propõe uma mudança pedagógica para que a tecnicidade seja ensinada simultaneamente com a educação cultural, permitindo assim ao aluno alcançar uma compreensão unificada do mundo” (Mills, 2016MILLS, Simon. Gilbert Simondon: information, technology and media. New York, London: Rowman & Littlefield, 2016., p. 142). A educação tecnológica não se reduz a uma educação instrumentalista ou tecnicista, uma vez que Simondon não vê a tecnologia como mera ferramenta ou instrumento; ao contrário, vê na educação tecnológica uma possibilidade de irmos contra a alienação de nossa condição humana e suas relações de poder. Mills, ao se referir a Simondon, coloca que:

[…] outra sugestão importante para ajudar a regular a relação entre tecnologia e cultura é por meio da educação. Dada a importância da tecnologia para o mundo contemporâneo, é claro que nem todos os problemas sociais podem ser tratados em termos puramente culturais. O que se requer para a solução de muitos problemas que a humanidade enfrenta é a compreensão da relação entre o homem e o meio ambiente, predominantemente mediada pela tecnologia

(Mills, 2016MILLS, Simon. Gilbert Simondon: information, technology and media. New York, London: Rowman & Littlefield, 2016., p. 141).

Assim, a partir da tecnologia como mediadora da relação humano e meio, precisamos pensar as relações sociais e econômicas implícitas em cada inovação tecnológica, com suas possibilidades simultâneas de ampliação e de alienação de realidades, de inclusão e exclusão social e econômica, de integração e de polarização de ideias. Yuk Hui, na atualidade, tem se colocado como um pensador que problematiza as tecnologias emergentes, principalmente às voltadas à automação. Aponta que “[…] recolocar a questão da tecnologia é recusar esse futuro tecnológico homogêneo que nos é apresentado como a única opção” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 46), ao se referir à imposição de uma singularidade tecnológica que estaria acima da diversidade das localidades.

Sobre as possibilidades e indeterminações tecnológicas futuras, Hui nos questiona “[…] quais futuros podem ser ainda imaginados e concretizados?” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 94); e Braidotti aponta para a necessidade de uma subjetividade nômade, de “[…] uma transposição ativa, uma transformação em nível profundo, uma mudança de cultura semelhante a mutações genéticas, mas registrada também no nível ético” (Braidotti, 2006BRAIDOTTI, Rosi. Posthuman, all too human: towards a new process ontology. Theory, Culture & Society, v. 23, n. 7-8, p. 197-208, 2006., p. 207). Assim, ao falarmos das interconexões entre pós-humanismo e inteligência artificial, apontamos para a pertinência da pesquisa interdisciplinar em inteligência artificial (IA), incluindo arte, filosofia, ciência e tecnologia, visto como estamos sendo “moldados” e modulados constantemente por meio de discursos, padrões comportamentais e estéticos decorrentes de práticas de IA. Estamos em meio às tecnologias emergentes como machine learning em inteligência artificial, ou inteligência organoide com biocomputadores com células cerebrais, ou outras tantas inteligências porvir impulsionadas pelo aceleracionismo tecnológico. Haja vista que tais tecnologias implicam em agenciamentos e interações constantes entre humanos e máquinas, interações permeadas por redes de informações.

Ao se referir à inteligência da IA, Hui sugere que precisamos considerar a diversidade de abordagens do que entendemos por inteligência, exigindo uma historicidade do termo inteligência e da própria inteligência artificial. Para Hui (2019)HUI, Yuk. Recursivity and Contingency. London: Rowman & Littlefield, 2019., a inteligência da máquina é mais suscetível a mutações do que a inteligência humana, pois ocorre na indeterminação da agência maquínica e humana, dentro das operações digitais recursivas. Hui esclarece que não se trata de mostrar a fraqueza da IA, mas de nos questionarmos o que entendemos por inteligência das máquinas e liberá-la de certas noções específicas de inteligência (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020.).

A inteligência é diferente de instinto, pois fabrica objetos que fabrica objetos: “[…] graças a invenção de ferramentas, a inteligência permite a complexificação do organismo por meio de órgãos exteriorizados” (Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 160). A inteligência

[…] é capaz de realizar sua transferência de um material para o outro – uma forma moderna de transubstancialização. Esse processo confere à inteligência artificial a capacidade de produzir mutações mais rápidas e mais amplas do que aquelas ligadas à inteligência humana – um fato também reconhecido por Bergson

(Hui, 2020HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 160).

Tais questões nos remetem diretamente sobre as indeterminações e determinações tecnológicas ainda possíveis, como as plataformas sociais que utilizam sistemas de inteligência artificial generativa (Gen-AI), como a ChatGPT, com capacidades em processamento de linguagem natural, e a DALL-E, que gera imagens decorrentes da descrição de textos, lançadas recentemente pela empresa OpenAI. Conjuntamente com outras empresas, vemos a criação, por parte das máquinas, de códigos (Metabob, Codis, Mutable AI), textos (ChatGPT, Jenni, Hipertype), sons (AD Auris, Resemble AI, Lovo), imagens (DALL-E, Hexo AI, Hypar), audiovisuais (Vidyo AI, Vochi, Steve AI) etc. E, indo mais além, podemos vislumbrar conexões entre tecnologias multimodais: como a inteligência da assistente virtual Alexa associada ao ChatGPT, em um diálogo, de modo oral e textual, nos dando respostas desde assuntos cotidianos a proposições filosóficas, cientificas e artísticas. Assim como em épocas precedentes pesquisávamos em enciclopédias, atualmente em navegadores online e wikipedia, futuramente teremos outras maneiras de ter acesso às informações.

Mesmo ainda estando no início do uso das plataformas de realidade virtual e aumentada e sistemas que utilizam IA, o assunto já se torna muito complexo e entrevemos saltos tecnológicos e cognitivos significativos e decisórios, no âmbito da invenção da energia elétrica ou o surgimento da www. Faz-se necessário que repensemos sobre que tipo de interação humano e máquina estamos experienciando, para entendermos a própria transformação humana com a qual nos deparamos. Precisamos ficar atentos sobre as mudanças cognitivas e afetivas, em nível individual e social, que tais tecnologias estão provocando. Questionar o potencial dos agenciamentos humanos com as tecnologias algorítmicas, no sentido de acessar às indeterminações das máquinas e as imprevisibilidades humanas; ou, ao contrário, de sofrer restrições impostas por tais agenciamentos, limitando nossas escolhas éticas e estéticas e determinando nossos comportamentos de modo previsível e calculado em prol de interesses econômicos e políticos particulares.

Desde os anos 1950 há estudos sobre IA, contudo após o desenvolvimento de machine learning e a aceleração das inovações computacionais, observamos não somente o reconhecimento de padrões, mas também a possibilidade da criação de novos conteúdos com a IA. Salientamos que é “com” a IA, ou seja, estamos implicados em tais produções, a IA não faz nada sozinha. Os dados gerados ocorrem a partir de agenciamentos humano e máquina que se dão desde a criação dos datasets, a preparação dos dados para serem treinados, o treinamento do algoritmo, a testagem dos modelos, a utilização do algoritmo treinado, a geração de dados a partir do algoritmo, ou seja, entre os inputs e outputs das máquinas, os dados e padrões são mediados de alguma maneira pelos humanos.

Apesar da IA ​​ainda ser capaz de fornecer um nível muito básico de inteligência focado na manipulação de informações e reconhecimento de padrões, em um nível social e político, precisamos entender a crescente agência e funcionalidade dos conjuntos humano-máquina sob uma nova luz. Trabalhar “com” a IA está gerando uma mudança cognitiva, sendo que a atribuição de sentido e significados ocorre na interação com a tecnologia algorítmica, não sendo isolada e produzida apenas pela máquina. Como dito anteriormente, há uma produção humana e maquínica, sendo impossível retirar a responsabilidade ética humana. Quando mencionamos que há um racismo estrutural na IA, esses padrões não são criados apenas pelas máquinas, mas advêm de padrões sociais instituídos anteriormente. Assim, há riscos não na IA em si, mas em termos posicionamentos polarizados e excludentes em relação às tecnologias, com consequências de alienação em nível tecnológico, cultural, ecológico, político e social.

Portanto, com o intuito de pensarmos que mundos temos construído com as tecnologias emergentes, teóricos como Gilbert Simondon e Yuk Hui têm nos provocado no sentido de interrogar sobre que tipo de sociedade queremos para viver, quais direções estamos dando para essas tecnologias em nossos cotidianos. Como tais tecnologias emergentes podem, no lugar de apenas limitar e determinar, nos desafiar a ampliar a nossa consciência sobre os padrões psicossociais que fabricamos e compartilhamos, e nos abrirmos para nossas indeterminações e devires. Nesse sentido, apontamos a necessidade de nos posicionarmos a favor de uma educação para a tecnologia que vá contra as exclusões e alienações tecnológicas que separam tecnologia, cultura e natureza2 2 Apoio: CNPq e FAPERGS. .

Notas

  • 1
    Simondon faz referência ao termo técnica e tecnologia em diferentes momentos. Neste artigo, priorizamos o termo tecnologia, uma vez que Simondon o utiliza como estudos das técnicas.
  • 2
    Apoio: CNPq e FAPERGS.

Disponibilidade dos dados da pesquisa

o conjunto de dados de apoio aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

Referências

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Editado por

Editora responsável: Carla Karnoppi Vasques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Set 2021
  • Aceito
    12 Jun 2023
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