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Violência contra a pessoa idosa no contexto rural em tempos de COVID-19: velhas e novas emergências

Violencia contra los adultos mayores en el contexto rural en tiempos de COVID-19: viejas y nuevas emergencias

RESUMO

Objetivo

ampliar o debate sobre os fatores presentes no cotidiano da população idosa rural do Brasil, que contribuem para o aumento da violência contra a pessoa idosa (VCPI) na pandemia.

Método

estudo teórico-reflexivo, que apresenta como referenciais a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta e a Teoria da Vulnerabilidade, proposta por Ayres, que buscam compreender a exposição dos indivíduos a desfechos agravantes à saúde. O desenvolvimento se pautou na literatura nacional e internacional, e foi organizado pelo eixo condutor “as vulnerabilidades, redes formais e informais de proteção contra VCPI: reflexões em tempos de pandemia de COVID-19 em contexto de ruralidades”.

Resultados

o distanciamento social necessário para a mitigação da pandemia de COVID-19 pode estar impactando negativamente os idosos da zona rural a enfrentarem a VCPI. Acredita-se que o conjunto de estratégias das redes formais e informais não tem atingido adequadamente as necessidades dos idosos da área rural.

Considerações finais e implicações para a prática

é de fundamental importância que, em meio à pandemia do coronavírus, haja implantação de estratégias para a manutenção e ampliação dos equipamentos sociais da rede formal e informal de proteção contra VCPI, levando em consideração as necessidades da área rural.

Palavras-chave
: Abuso de Idosos; Covid-19; Pandemia; Violência; Zona Rural

RESUMEN

Objetivo

ampliar el debate sobre los factores presentes en el cotidiano de la población anciana rural en Brasil, que contribuyen al aumento de la violencia contra los ancianos (VCA) en la pandemia.

Método

estudio teórico-reflexivo que presenta como referencias la Política Nacional de Salud Integral de las Poblaciones Rurales y Forestales y la Teoría de la Vulnerabilidad, propuesta por Ayres, que buscan comprender la exposición de los individuos a resultados agravantes de salud. El desarrollo se basó en la literatura nacional e internacional, y fue organizado por el eje rector “las vulnerabilidades, redes formales e informales de protección a las VCA: reflexiones en tiempos de la pandemia del COVID-19 en el contexto de las ruralidades”.

Resultados

el distanciamiento social necesario para mitigar la pandemia de COVID-19 puede estar impactando negativamente a las personas mayores rurales que enfrentan la VCA. Se cree que el conjunto de estrategias de las redes formales e informales no han atendido adecuadamente las necesidades de los adultos mayores en las zonas rurales.

Consideraciones finales e implicaciones para la práctica

es de fundamental importancia que, en medio de la pandemia del coronavirus, se implementen estrategias para el mantenimiento y ampliación de los equipamientos sociales en la red formal e informal de protección contra la VCA, teniendo en cuenta las necesidades de la zona rural.

Palabras clave
: Abuso de Ancianos; Covid-19; Pandemia; Violencia; Zona Rural

ABSTRACT

Objective

to expand the debate on factors present in the daily life of rural older adults in Brazil, which contribute to the increase in elder abuse (EA) in the pandemic.

Method

a theoretical-reflective study, which presents the Brazilian National Comprehensive Health Policy for Rural and Forest Populations and the Vulnerability Theory as frameworks, proposed by Ayres, that seek to understand the exposure of individuals to aggravating health outcomes. The development was based on national and international literature, and was organized by the guiding axis “vulnerabilities, formal and informal networks of protection against EA: reflections in times of the COVID-19 pandemic in a context of rurality”.

Results

the social distancing necessary for mitigating the COVID-19 pandemic may be negatively impacting rural older adults facing EA. It is believed that the set of strategies of formal and informal networks has not adequately met older adults’ needs in rural areas.

Final considerations and implications for practice

it is of fundamental importance that, amidst the coronavirus pandemic, strategies are implemented for maintenance and expansion of the formal and informal network social equipment of protection against EA, taking into account rural people’s needs.

Keywords:
Elderly Abuse; Covid-19; Pandemic; Violence; Countryside

INTRODUÇÃO

A pandemia de COVID-19, no final do ano de 2021, registrou mais de 261.435.768 casos confirmados no mundo, incluindo 5.207.634 mortes.11 World Health Organization – WHO. Coronavirus (COVID-10) dashboard [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2021 [citado 2021nov 30]. Disponível em: https://covid19.who.int/
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O epicentro da epidemia, a partir de meados de fevereiro de 2020, alternou-se da China para o Irã, depois para a Europa Ocidental (Itália e Espanha, em particular). Logo após, o epicentro foi a América, e somente o Brasil registrou 22.080.906 casos confirmados e 614.278 óbitos.11 World Health Organization – WHO. Coronavirus (COVID-10) dashboard [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2021 [citado 2021nov 30]. Disponível em: https://covid19.who.int/
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Entende-se que, para mitigar tal cenário, são inúmeros os desafios quanto às medidas a serem adotadas, principalmente em um país de dimensões continentais, como é o Brasil, marcado pela heterogeneidade e suas históricas desigualdades estruturantes. Certamente, a vacinação foi e é a principal estratégia, todavia, diante da demora em engrenar a vacinação no Brasil, adotaram-se para o enfrentamento do problema medidas baseadas em ações individuais de prevenção, tais como o uso de máscaras, lavagem regular das mãos e aplicação de álcool em gel, além de medidas de distanciamento social.22 Moraes CL, Marques ES, Ribeiro AP, Souza ER. Violência contra idosos durante a pandemia de Covid-19 no Brasil: contribuições para seu enfrentamento. Cien Saude Colet. 2020;25(Supl. 2):4177-84. http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.27662020. PMid:33027354.
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O distanciamento social, fundamental para redução da transmissão do novo coronavírus (SARS-CoV-2), impactou e gerou sérios prejuízos na economia mundial, além de drásticas mudanças no cotidiano da vida em sociedade.33 Pana-Cryan R, Ray T, Bushnell T, Quay B. Economic security during the COVID-19 pandemic: a healthy work design and well-being perspective [Internet]. Atlanta: Centers for Disease Control and Prevention; 2020 [citado 2021 abr 15]. Disponível em: https://blogs.cdc.gov/niosh-science-blog/2020/06/22/economic-security-covid-19/
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Potencializou também o fenômeno da violência familiar em suas diferentes expressões, principalmente contra mulheres, crianças e adolescentes em diferentes países e estratos sociais.22 Moraes CL, Marques ES, Ribeiro AP, Souza ER. Violência contra idosos durante a pandemia de Covid-19 no Brasil: contribuições para seu enfrentamento. Cien Saude Colet. 2020;25(Supl. 2):4177-84. http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.27662020. PMid:33027354.
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Rapidamente, a população de idosos somou-se a estes subgrupos populacionais em situação de violência agravada pelo distanciamento social. No Brasil, a violência contra a pessoa idosa (VCPI), durante os meses de maiores taxas de isolamento social em 2020 (triênio de março a maio), passou de 3 mil para 17 mil, o que corresponde a um crescimento de 567% no período.44 Mazzi C. Denúncias de violência contra idosos quintuplicaram durante a pandemia, apontam dados do Disque 100. O Globo [Internet], 15 jun 2020 [citado 2021 out 20]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/denuncias-de-violencia-contra-idosos
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Mesmo com a ascensão exponencial no número de casos de denúncias de VCPI durante a pandemia, constatou-se que a produção acadêmica sobre a temática ainda é inexpressiva no Brasil e no mundo. Entre as publicações identificadas, há um total silenciamento sobre a população de idosos que residem nos espaços rurais. Para além da temática sobre VCPI, apesar de o envelhecimento constituir um objeto de estudos com uma vasta produção na literatura especializada, os estudos voltados à compreensão desse fenômeno no meio rural, principalmente no Brasil, ainda são escassos.55 Campos GL, Fernandes FAS, Tomaz KC, Araújo MCS, Gomes VC, Sousa AD et al. A diferença na qualidade de vida entre idosos da zona urbana e rural: uma revisão integrativa da literatura. Rev Eletrônica Acervo Saúde. 2020;59(59):e4129. http://dx.doi.org/10.25248/reas.e4139.2020.
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Tal silenciamento teórico pode produzir concepções generificadas quanto ao envelhecer no meio rural, pois o contexto urbano é sempre o cenário de investigação e de “onde se fala” sobre o “ser idoso.66 Lakhani HV, Pillai SS, Zehra M, Sharma I, Sodhi K. Systematic review of clinical insights into novel coronavirus (Covid-19) pandemic: persisting challenges in U.S. rural population. Int J Environ Res Public Health. 2020;17(12):4279. http://dx.doi.org/10.3390/ijerph17124279. PMid:32549334.
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O direcionamento da atenção a abuso de idosos de forma generificada, abordando-a exclusivamente como fenômeno urbano neste contexto de pandemia, seria o ato de negação das subjetividades e das peculiaridades emergentes do contexto histórico, social, cultural e do cotidiano de vida da população de idosos rurais.

Generificações também caminham na contramão do modelo ecológico proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para compreensão da gênese das violências, principalmente as interpessoais na VCPI.77 Chan M, Clark H, Fedotov Y. Global status report on violence prevention [Internet]. Geneva: World Health Organization; 2014 [citado 2022 jun 27]. Disponível em: https://www.undp.org/sites/g/files/zskgke326/files/publications/UNDP-GVA-violence-2014.pdf
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Conforme o modelo, a análise das violências deve considerar fatores macroestruturais, comunitários, relacionais e individuais, que interagem e se retroalimentam, promovendo contextos mais facilitadores ou dificultadores.

Certos da impossibilidade de não esgotar o tema, mas preocupados pela perspectiva negativa que ele pode assumir na ausência de ações, estratégias e políticas específicas, pretende-se, com este texto, ampliar o debate sobre a temática quanto aos fatores específicos presentes no cotidiano de vida da população idosa rural do Brasil que podem contribuir para o aumento da VCPI em tempos de pandemia.

METODOLOGIA

Trata-se de estudo teórico-reflexivo, baseado na VCPI e no aumento da incidência de casos durante a pandemia de COVID-19, que busca refletir quanto ao silenciamento desses agravos na área rural. Essa construção teórica se aproxima da abordagem qualitativa, tendo em vista a interpretação e a análise dos elementos teóricos obtidos por meio do levantamento bibliográfico realizado. A elaboração deste artigo seguiu os pressupostos da revisão de literatura, sendo que o percurso metodológico incluiu, primeiramente, o levantamento bibliográfico, por meio do qual se realizou uma pesquisa exploratória e sistemática de documentos em formato eletrônico presentes na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) nas seguintes bases de dados: Scientific Eletronic Library Online (Scielo), Literatura Latino-americana e do Caribe em ciências da Saúde (LILACS) e Literatura Internacional em Ciências da Saúde (MEDLINE). Destaca-se que desta pesquisa, encontraram-se três artigos que abordaram a temática e que, entre as publicações identificadas, há um total silenciamento sobre a população de idosos que residem nas áreas rurais.

Considerando pouca a produção científica quanto ao tema de investigação, definiu-se por articular os componentes presentes no resultado da busca nas bases de dados, tendo como componente estruturante das reflexões e de referencial teórico para as mesmas a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta, que garante o acesso para a população rural aos serviços de saúde e apoio social, e a Teoria da Vulnerabilidade, proposta por Ayres. De acordo com o autor, o conceito de vulnerabilidade é expressado em três dimensões analíticas, individual, social e programática, que buscam compreender como se dá a exposição de indivíduos ou grupos de indivíduos a desfechos agravantes à saúde em sua relação com o coletivo.88 Dimenstein M, Cirilo No M. Abordagens conceituais da vulnerabilidade no âmbito da saúde e assistência social. Pesqui Prát Psicossociais [Internet]. 2020; [citado 2022 jun 27];15:1-17. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082020000100002
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A vulnerabilidade individual está relacionada ao conhecimento do indivíduo a determinado problema ou agravo e as possíveis formas para o seu enfrentamento. Alguns fatores podem implicar a exposição e suscetibilidade do indivíduo ao agravo, tais como fatores pessoais, como nível de conhecimento, escolaridade, acesso à informação, fatores subjetivos, como valores e crenças, além de fatores biológicos comportamentais e afetivos.88 Dimenstein M, Cirilo No M. Abordagens conceituais da vulnerabilidade no âmbito da saúde e assistência social. Pesqui Prát Psicossociais [Internet]. 2020; [citado 2022 jun 27];15:1-17. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082020000100002
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No que tange à vulnerabilidade social, relaciona-se ao acesso a informações e à capacidade da pessoa em compreender e incorporar essas informações na prática, condições essas que não dependem unicamente do indivíduo, mas também de aspectos, como saúde, educação, cultura e emprego, que estão interligados ao acesso a recursos sociais.88 Dimenstein M, Cirilo No M. Abordagens conceituais da vulnerabilidade no âmbito da saúde e assistência social. Pesqui Prát Psicossociais [Internet]. 2020; [citado 2022 jun 27];15:1-17. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082020000100002
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A vulnerabilidade programática caracteriza-se pela identificação e análise do cenário de programas governamentais, incluindo políticas, programas, serviços e ações de proteção e promoção à saúde, ou seja, refere-se à maneira como as políticas, os programas e os serviços de saúde influenciam o agravo em questão.88 Dimenstein M, Cirilo No M. Abordagens conceituais da vulnerabilidade no âmbito da saúde e assistência social. Pesqui Prát Psicossociais [Internet]. 2020; [citado 2022 jun 27];15:1-17. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082020000100002
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O desenvolvimento analítico desta reflexão teórica pautou-se no diálogo com a literatura nacional e internacional no período de março de 2020 a novembro de 2021. Este estudo foi organizado por impressões reflexivas a respeito da temática, sendo comparados e interpretados com a literatura científica, tendo como eixo condutor “as vulnerabilidades, redes formais e informais de proteção contra a VCPI: reflexões em tempos de pandemia de COVID-19 em contexto de ruralidades”.

DESENVOLVIMENTO

Vulnerabilidades, redes formais e informais de proteção contra a violência a pessoa idosa: reflexões em tempos de pandemia de COVID-19 em contexto de ruralidades

Apesar de o Brasil contar com amplo arcabouço legal para a garantia dos direitos dos idosos, a população rural, por suas próprias características históricas, sociais, culturais e geográficas, já não gozava em plenitude de tais marcos legais. Se tais medidas são fundamentais para proteção do idoso e contribuem efetivamente para a redução dos casos de VCPI, em contexto de pandemia, acredita-se que o isolamento social da pessoa idosa rural possa ter sido fundamental para o agravamento do fenômeno da violência nesta população.

Para apresentarmos reflexões que sustentam a afirmação anterior, apresentaremos três questões norteadoras. A primeira:

A desigualdade social, econômica e de acesso aos equipamentos e serviços de saúde das populações rurais, em tempos de pandemia, potencializou vulnerabilidades para VCPI rural?

Investigações produzidas fora do contexto de pandemia evidenciaram que as populações rurais e, consequentemente, o envelhecer, neste contexto, são demarcados por um conjunto de aspectos de ordem econômica, social, cultural, política e ambiental, que conotam maior desigualdade social e vulnerabilidades em saúde com relação às áreas urbanas.99 Zanatta LF, Ruiz-Cantero MT, Chilet-Rossel E, Álvarez-Dardet C, Brêtas JRDS. Gender norms among “Landless” youth: evidence for the social practice of nursing. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03279. http://dx.doi.org/10.1590/S1980-220X2016041603279. PMid:29562045.
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,1010 Castro EG. Juventude rural, do campo, das águas e das florestas: a primeira geração jovem dos movimentos sociais no Brasil e sua incidência nas políticas públicas de juventude. Rev Cienc Soc [Internet]. 2017; [citado 2022 jun 27];45:193-212. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/politicaetrabalho/article/view/30734/17809
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Portanto, acredita-se que a crise sanitária e econômica que vivencia o país tem potencializado as vulnerabilidades para VCPI em zona rural.

Os idosos rurais estão entre os mais vulneráveis no processo de exclusão dos sistemas de saúde,1111 Tonezer C, Trzcinski C, Dal Magro MLP. As vulnerabilidades da velhice rural: um estudo de casos múltiplos no Rio Grande do Sul. Desenvolv Questão. 2017;15(40):7-38. http://dx.doi.org/10.21527/2237-6453.2017.40.7-38.
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devido ao distanciamento geográfico para acesso às áreas urbanas, à inexpressiva presença de Unidades de Saúde nos Bairros Rurais e à baixa quantidade de visitas da equipe de saúde.1111 Tonezer C, Trzcinski C, Dal Magro MLP. As vulnerabilidades da velhice rural: um estudo de casos múltiplos no Rio Grande do Sul. Desenvolv Questão. 2017;15(40):7-38. http://dx.doi.org/10.21527/2237-6453.2017.40.7-38.
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O que antes da pandemia era um desafio, hoje, com a COVID-19, é quase uma impossibilidade, pois encontram ainda mais restrições para se deslocarem até a cidade. Os serviços públicos de saúde estão cada dia mais lotados, e as visitas da equipe da Estratégia Saúde da Família, que já eram escassas na área rural, em muitos municípios, estão suspensas. Além disso, houve grande avanço das tecnologias da telessaúde,1212 Paloski GR, Barlem JGT, Brum AN, Barlem ELD, Rocha LP, Castanheira JS. Contribuição do telessaúde para o enfrentamento da COVID-19. Esc Anna Nery. 2020;24(spe):1-6. http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0287.
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que, por um lado, é de grande valia em tempos pandêmicos, mas que, muitas vezes, não é possível acesso aos moradores da área rural.

Frente a tal conjuntura, acredita-se que este cenário tenha impossibilitado o idoso rural de acessar essa rede formal de apoio para o enfrentamento da violência, o que pode estar limitando a identificação e a notificação dos casos, fatores que impedem o desencadeamento de ações da rede de proteção ao idoso que visem à interrupção da situação.22 Moraes CL, Marques ES, Ribeiro AP, Souza ER. Violência contra idosos durante a pandemia de Covid-19 no Brasil: contribuições para seu enfrentamento. Cien Saude Colet. 2020;25(Supl. 2):4177-84. http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.27662020. PMid:33027354.
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Nesta mesma lógica reflexiva, emerge a segunda questão problematizadora:

Na impossibilidade de acesso presencial aos equipamentos das redes formais de proteção social e de denúncia à violência, quais outras possibilidades tem o idoso rural em tempos de pandemia?

Identificou-se que uma das estratégias para o enfrentamento dos abusos de idosos, em tempos de pandemia, seria o uso de tecnologias móveis como estratégia estruturada pela rede formal de proteção e denúncia.22 Moraes CL, Marques ES, Ribeiro AP, Souza ER. Violência contra idosos durante a pandemia de Covid-19 no Brasil: contribuições para seu enfrentamento. Cien Saude Colet. 2020;25(Supl. 2):4177-84. http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.27662020. PMid:33027354.
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Todavia, sabe-se que, no Brasil, em 2018,1313 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Uso de internet, televisão e celular no Brasil: tecnologia da informação e comunicação no Brasil [Internet]. 2021 [citado 2021 out 20]. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/20787-uso-de-internet-televisao-e celular-no-brasil.html
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somente 49,2% dos domicílios rurais utilizavam internet, contra 83,8% das áreas urbanas, que também possuem um maior percentual quanto a possuírem celular para uso pessoal (82,9%), quando comparadas à população rural (57,3%).

Nesse sentido, é crucial pensar em uma estratégia de mobilidade tecnológica criada como forma de contribuir para as redes formais de denúncia da VCPI, dentro de uma perspectiva que considere a pluralidade territorial brasileira, focalizando nas limitações que se desenvolvem nos ambientes rurais, como as dificuldades de acesso e posse de telefonia móvel, além de limitações de sinal de internet.

Soma-se ao fato o idoso ser menos afeito às tecnologias de informática e de outros equipamentos que facilitam contatos remotos.22 Moraes CL, Marques ES, Ribeiro AP, Souza ER. Violência contra idosos durante a pandemia de Covid-19 no Brasil: contribuições para seu enfrentamento. Cien Saude Colet. 2020;25(Supl. 2):4177-84. http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320202510.2.27662020. PMid:33027354.
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No espaço rural, essa condição pode ser potencializada por maiores índices de analfabetismo entre a população idosa, quando comparada ao espaço urbano,1414 Pereira CN, Castro CN. Educação: contraste entre o meio urbano e o meio rural no Brasil. Bol Reg Urbano Ambient [Internet]. 2019; [citado 2021 nov 20];(21). Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=35262&Itemid=7
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trazendo mais dificuldades para o idoso rural quanto ao uso das tecnologias digitais como estratégia de denúncia e notificação de casos de violência.

Ainda, lança-se uma última interrogação para reflexão:

Na ausência das redes formais, estariam os idosos rurais utilizando as redes de proteção informal para denúncia e enfrentamento da violência em tempos de pandemia?

Incontestavelmente, as medidas de distanciamento, fundamentais para a mitigação da pandemia, em nível comunitário, promoveram redução do apoio social e de sua rede de suporte para as pessoas idosas. Ressalta-se que o apoio social e a rede de suporte que dele emerge, para as pessoas idosas em contextos rurais, já eram algo deficitário. O êxodo rural, que contribuiu com a saída dos jovens do campo e, principalmente, das mulheres, gerou um empobrecimento e envelhecimento do território rural brasileiro.

No meio rural, a integração social e o lazer são prejudicados pelas próprias características do cotidiano de vida, isso porque, se, por um lado, as relações de vizinhança se acentuam como estratégias de sobrevivência e relacionais, por outro, existem idosos totalmente isolados, longe dos serviços e equipamentos de saúde e da sociedade.1111 Tonezer C, Trzcinski C, Dal Magro MLP. As vulnerabilidades da velhice rural: um estudo de casos múltiplos no Rio Grande do Sul. Desenvolv Questão. 2017;15(40):7-38. http://dx.doi.org/10.21527/2237-6453.2017.40.7-38.
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Nos territórios rurais, as principais formas de integração social e de lazer relacionam-se com atividades esportivas (principalmente o futebol), as visitas aos vizinhos (quando há), o ato de fazer compras nas vendas e/ou bodegas e a ida a eventos (missas, cultos, etc.) para manifestação da crença religiosa.

Com o distanciamento social instituído como medida de proteção contra a circulação do novo coronavírus, as atividades de integração social e de lazer foram reduzidas ou cessadas. Com isso, acredita-se que a rede de proteção informal contra a violência dos idosos na área rural tenha sido potencialmente fragilizada, deixando esse idoso ainda mais vulnerável e suscetível a tal agravo, sem a chance de apoio informal para encorajamento do interrompimento do ciclo de violência, por meio da denúncia e do afastamento do agressor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA

Este texto reflete uma perspectiva negativa em relação ao enfrentamento da VCPI na área rural em tempos de pandemia. Considerando o distanciamento social necessário para a mitigação da pandemia de COVID-19, esta temática pode estar impactando negativamente as situações de violência. Acredita-se que o conjunto de estratégias (generificadas) sendo propostas para o enfrentamento do fenômeno não tem atingido adequadamente as necessidades desta população em relação ao problema da violência.

Entende-se que as vulnerabilidades à VCPI, em seus distintos componentes individual, social e programática, foram exacerbadas em tempos de pandemia e que o reduzido ou inexistente apoio social formal e informal da rede de proteção, com o isolamento social, tornou este grupo mais suscetível aos casos de violência e impossibilidade de denúncia, notificação ou interrupção dos casos.

Acredita-se que seja premente a reorganização da Atenção Primária à Saúde para os idosos da área rural, fortalecendo a assistência nessas áreas, centralmente, com a intensificação das consultas de rotina e das visitas dos agentes comunitários de saúde. Essa estratégia possibilitaria o idoso da área rural ter a garantia e a continuidade do acesso às redes de proteção formal, para o enfrentamento da violência.

No âmbito comunitário, é de fundamental importância a implantação de estratégias para a manutenção e ampliação dos equipamentos sociais da rede de proteção formal e informal. Na evidência das inúmeras dificuldades que possuem os idosos rurais de acessarem as Unidades de Saúde, os Conselhos ou as Delegacias do Idoso, considera-se de extrema importância o direcionamento de esforços programáticos para a criação e/ou o fortalecimento das redes solidárias informais neste momento de pandemia. Essa deve ser articulada com a rede formal de proteção social, para que auxiliem na identificação e denuncia dos casos, mesmo que suspeitos.

Considera-se, ainda, que, em um país com dimensões continentais, como o Brasil, o contexto rural não é um espaço singular, visto que existe uma pluralidade de contextos relacionados ao rural. Sendo assim, não se pode generificar as distintas formas de existir no cenário rural.

Esta reflexão trouxe apenas algumas problematizações, pretendendo suscitar outras. Espera-se que estas sejam questões a serem respondidas por pesquisas futuras, ou que sejam preocupações presentes no arcabouço das políticas públicas direcionadas às populações idosas, inclusivas e eticamente ajustadas para as populações rurais.

Este texto enfrenta algumas limitações, como o pouco acesso a dados quantitativos referente à VCPI em contexto rural, bem como à limitação de adentrar o contexto rural e acionar as equipes de apoio que atuam nessas áreas.

REFERÊNCIAS

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO Antonio José de Almeida Filho https://orcid.org/0000-0002-2547-9906
EDITOR CIENTÍFICO Ivone Evangelista Cabral https://orcid.org/0000-0002-1522-9516

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2022
  • Aceito
    03 Jul 2022
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