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Estética, jogabilidade e narrativa para o Antropoceno

RESUMO

Este artigo explora interfaces entre os videogames Nier:Automata (PS4 e PC, 2017; Xbox One, 2018 e Nintendo Switch, 2022) e Cruelty Squad (PC, 2021), mapeando suas leituras e discursos sob a perspectiva do Antropoceno. Como termo principiado no campo das ciências naturais, que coloca a humanidade como protagonista de mais uma força da natureza capaz de interferir nas condições de vida do planeta, o Antropoceno tem se difundido para as mais diversas áreas reerguendo controvérsias acerca das fronteiras e limites do humano diante do colapso planetário-civilizacional que nos acomete. As linhas-guias propostas para a análise das narrativas e das ambientações dos jogos são estéticas, jogabilidade e sociabilidade. Mediante imersão, premissas e cenários críticos propostos, os jogos relacionam os impactos ambientais, perspectivas distópicas para o futuro da espécie humana - alguns dos desafios epistemológicos, éticos e identitários do Antropoceno.

PALAVRAS-CHAVE:
Videogames; Nier:Automata; Cruelty Squad; Antropoceno; Capitaloceno; Game studies

ABSTRACT

This paper explores dialogues between the video games Nier:Automata (PS4 and PC, 2017; Xbox One, 2018) and Cruelty Squad (PC, 2021), mapping their discourses from the perspective of the Anthropocene. As a term originally from natural sciences, positing mankind activity as the protagonist of yet another force of nature capable of interfering on Earth’s living conditions, the Anthropocene has spread to a wide range of areas bringing light to controversies about human boundaries and limits facing planetary and civilizational collapses. Aesthetics, gameplay, and sociability are guidelines for the analysis of the both games narratives and ambiances. Through immersion, premises, and proposed critical scenarios, the games relate environmental impacts as well as dystopian perspectives for the future of the human species - some of the epistemological, ethical, and identitary challenges of the Anthropocene.

KEYWORDS:
Videogames; Nier:Automata; Cruelty Squad; Anthropocene; Capitalocene; Game studies

Dos protótipos desenvolvidos no âmbito acadêmico-militar, a partir dos anos 1960, aos recentes dispositivos móveis e realidades estendidas, é inegável a relevância que os jogos eletrônicos adquiriram nas últimas décadas. A disseminação de dispositivos de comunicação digital, somada à facilidade em assimilar plataformas de interação e inseri-las em uma rotina cotidiana contribuíram para que os videogames se tornassem indissociáveis de fenômenos da cultura. O vínculo entre jogadores e videogames se deve tanto ao avanço de tecnologias e mecânicas dos jogos, como também aos novos modos de coleta e processamento de dados que, somados à sofisticação dos algoritmos de inteligência artificial, são capazes de criar experiências customizadas.

Esse processo de engajamento acentua uma sensação de dissolução das fronteiras entre o mundo jogado e o vivido. A imbricação entre realidades é reforçada mediante a emergência de um novo paradigma de pensamento e suplantada por uma assimilação mútua. Em Haraway (2021HARAWAY, D. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. E-book Kindle., n.p.), “o mundo é um nó em movimento”, “natureza” e “cultura” já não podem ser lidas de forma estanque, mas como provisórias e locais, que “confundem consequências potentes com fundações preexistentes” (ibidem). Nesse sentido, em um modelo de contiguidade, torna-se propícia uma aproximação entre mídias de massa e debates acerca das novas tecnologias, questões climáticas e avanços no campo das ciências naturais. A implementação de modelos de distribuição online reforça a atualidade dos videogames, que “podem estar disponíveis apenas alguns meses após a primeira ideia. Isso os coloca numa posição única: eles podem nos revelar os sonhos e medos que sequer sabemos ter” (Bown, 2021BOWN, A. Políticas, desejos e videogame: The Playstation Dreamworld. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2021., p.46).

Na tentativa de traçar um panorama crítico acerca dos videogames como um fenômeno da cultura, o presente artigo busca identificar aproximações e controvérsias entre dois games - Nier:Automata (N:A; PS4 e PC, 2017; Xbox One, 2018; Nintendo Switch, 2022) e Cruelty Squad (CS; PC, 2021) - e o Antropoceno, entendido como uma nova Época geológica, que coloca o humano como uma força da natureza capaz de interferir nas condições de vida do planeta. Com origem no campo das ciências naturais, o Antropoceno é aqui tomado a partir dos estudos da comunicação, linguagem e cultura.

Antropoceno, Capitaloceno: reverberações na cultura

Iniciado como um debate nas geociências, o Antropoceno desafia as nossas formas de entender o mundo, “foi engendrado por nós, nos abrange, nos extrapola - já que atinge todo o planeta, de forma ampla - e acabou por assumir uma dimensão impensada por nossa espécie” (Messias, 2019MESSIAS, A. Comunicação e Antropoceno: os desafios do humano. São Paulo: Educ, 2019., p.80-1). A difusão do termo tem início em 2000, com uma publicação na Newsletter do International Geosphere-Biosphere Programme (IGBP), escrita em uma parceria entre o ecologista Eugene Stoermer e o Prêmio Nobel de Química Paul Crutzen. Segundo os autores, diante da impossibilidade de negarmos as transformações em curso na biosfera, resultantes dos efeitos das ações humanas no mundo, é necessário considerar o encerramento do, então vigente, Holoceno e o início de uma nova Época geológica, o “Antropoceno”.

A popularidade adquirida pelo termo não o exime de controvérsias. No âmbito das geociências, a informalidade no uso do Antropoceno deriva de que a sua constatação não obedece a convenções estratigráficas de nomeação dos tempos geológicos. Desde 2009, o Anthropocene Working Group (AWG) trabalha para relatar à União Internacional de Ciências Geológicas e à Comissão Internacional de Estratigrafia sobre a oficialização, ou não, de uma nova época. As principais conclusões e recomendações do grupo foram compiladas em um artigo publicado em 2017 (Zalasiewicz et al., 2017ZALASIEWICZ, J.; WATERS, C.; HEAD, M. J. Anthropocene: its stratigraphic basis. Nature, v.541, p.289, jan. 2017. Disponível em: <https://doi.org/10.1038/541289b>. Acesso em: 4 jan. 2024.
https://doi.org/10.1038/541289b...
), onde orientou, por ampla maioria, que o Antropoceno seja reconhecido como Época geológica logo após a segunda metade do século XX (Waters; Turner, 2022WATERS, C.; TURNER, S. Defining the onset of the Anthropocene. Science, Washington DC, 378, 6621, p.706-8, novembro, 2022. Disponível em: <https://www.science.org/doi/10.1126/science.ade2310>.
https://www.science.org/doi/10.1126/scie...
). Para além das polêmicas científicas, o termo extrapassa suas disciplinas de origem e reverbera na cultura, nos estudos da comunicação e da linguagem.

Na tentativa de assimilar suas origens e consequências, a perspectiva geo-histórica do Antropoceno é questionada por meio de termos alternativos. Dentre as nomenclaturas propostas, o “Capitaloceno”, que tem como expoente o geógrafo Jason W. Moore, emerge como uma das principais correntes. Segundo Thomas J. Demos (2020DEMOS, T. J. Beyond the World’s End: Arts of Living at the Crossing. Durham: Duke University Press, 2020.), denominar a nova Época como Capitaloceno permite “nomear o culpado” e compreender as novas condições de vida no planeta como parte de uma série de processos complexos e interrelacionados que decorrem de um modelo de desolação fundado no capitalismo (Demos, 2020, p.86). Para os adeptos da terminologia, a industrialização massiva no início do século XIX é consequência de uma mutação socioeconômica mais ampla, iniciada no século XVI, e que gerou o capitalismo (Moore, 2016). Sua aplicação também propõe contrapor o induto antropocêntrico inerente ao vocábulo inicial - generalizar a “humanidade” como causadora das mutações na biosfera tende a absolver os responsáveis.

Em obras audiovisuais, envolto em uma espécie de pré-trauma climático (Kaplan, 2016KAPLAN, E. A. Climate Trauma: Foreseeing the Future in Dystopian Film and Fiction. New Brunswick; New Jersey; Londres: Rutgers University Press, 2016.), o ser humano é retratado tanto como o agente causador da tragédia que se anuncia, como também vítima de um sistema de aniquilamento engendrado. Questões correlatas à degradação da Terra - ao ponto de torná-la inabitável - e a falência de uma sociedade de consumo transpõem um corpo de conceitos que orienta a indústria de entretenimento; em diferentes proporções, de forma sutil ou direta, as ciências da natureza tornam-se afeitas a um público amplo. A ansiedade climática, deflagrada durante a “grande aceleração”, no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial, ganha força diante do avanço de pesquisas científicas e da impossibilidade de refutar o desastre em curso. O Antropoceno reifica presságios, amedronta e fascina - batizar uma nova época com o “nosso nome”, somada à tentativa de “rebelar-se” contra um sistema econômico global, gera um cenário atraente para a produção de narrativas.

Assim como na literatura e no cinema, os videogames trazem consigo o potencial de traduzir imaginários e desejos presentes no momento de seu desenvolvimento. De modo análogo, o debate político e a insatisfação com a exploração e a degradação instauradas provoca uma série de jogos que versam sobre uma implosão do capitalismo. Ao alçar os jogadores à posição de agente atuante, supostamente capaz de redefinir desfechos, cria-se uma ilusão de autonomia, ao tempo que é fomentado um engajamento. Como colocado por Alfie Bown (2021BOWN, A. Políticas, desejos e videogame: The Playstation Dreamworld. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2021., p.57), “o videogame não é um texto a ser lido, mas um sonho a ser sonhado. Como um sonho, e diferentemente dos livros e da televisão, um videogame é experimentado ativamente, como se cada jogador tivesse um papel na determinação de seus eventos e resultados”.

Ocorre que, por vezes, esse debate é limitado por diretrizes rígidas e não reivindica alternativas consistentes. Atualmente os games foram alçados à posição de maior indústria de entretenimento do mundo (Pacete, 2022PACETE, L. G. 2022 promissor: mercado de games ultrapassará US$200 bi até 2023. Forbes, 3.1.2022. Forbes Tech. Disponível em: <forbes.com.br/forbes-tech/2022/01/com-2022-decisivo-mercado-de-games-ultrapassara-us-200-bi-ate-2023>. Acesso em: 11 set. 2022.
forbes.com.br/forbes-tech/2022/01/com-20...
). A estimativa é que, em 2022, o mercado global de jogos gere US$ 196,8 bilhões, um aumento de 2,1% em relação ao ano anterior (Newzoo, 2022, p.19). Segundo a Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Digitais (Abragames), a participação da comitiva brasileira na GDC 2022 (Game Developers Conference), o maior encontro global de desenvolvedores de games, gerou 23 milhões de dólares em contratos para estúdios no país, resultado 27,7% maior que a meta inicial de US$ 18 milhões (Brito, 2022BRITO, S. A evolução do Brasil no mercado de games. Veja, São Paulo, 2.6.2022. Tecnologia. Disponível em: <veja.abril.com.br/tecnologia/a-evolucao-do-brasil-no-mercado-de-games>. Acesso em: 11 set. 2022.
veja.abril.com.br/tecnologia/a-evolucao-...
). Como efeito, para atender as expectativas de seus financiadores, os videogames “de resistência” encaram um paradoxo e, não raro, cedem às ambições de mercado, corroboram um modelo de visão de mundo e enfatizam a inevitabilidade do capitalismo.

NieR:Automata

N:A é um jogo eletrônico para videogames e computadores pessoais desenvolvido pela PlatinumGames e distribuído pela Square Enix em 2017. Está na categoria de Role Playing Game (RPG) de ação e aventura, gênero focado em interpretação e desenvolvimento de habilidades de um ou mais personagens. A criação de narrativa e direção é de Yoko Taro em parceria com Hana Kikuchi e Yoshiho Akabane. O universo concebido se expande por diferentes mídias além dos videogames - livros, quadrinhos, teatro - e não é necessário conhecê-lo por inteiro para jogar e compreender N:A, ainda que o jogo referencie outras obras na construção de seus ambientes.

O título tem origem em Nier (2010), um spin-off de Drakengard (2003), onde uma doença viral advinda de semideuses afeta a humanidade. Em Nier, depois de milênios dos eventos de Drakengard, duas personagens estão num pequeno mercado de prateleiras vazias. Uma está doente e a outra se esforça para protegê-las de sombras humanas que vagam pelo mundo. A tela escurece. O tempo avança milhares de anos. Deparamos com as duas personagens preservadas, inclusive na doença, mas agora habitam um vilarejo feudal. Em uma perspectiva de continuidade histórica, o avanço das tecnologias e alterações nos modos de produção parecem extirpar um suposto equilíbrio, como que um “declínio do paraíso pastoral ao deserto pós-capitalista estéril” (Bown, 2021BOWN, A. Políticas, desejos e videogame: The Playstation Dreamworld. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2021., p.42). A nostalgia desponta como “mecanismo de defesa numa época de ritmos de vida acelerados e convulsões históricas” (Boym, 2001BOYM, S. The Future of Nostalgia. New York: Basic Books, 2001., p.xiv). Ao final da jornada, descobre-se que a humanidade sucumbiu ao vírus e que o ambiente que tivemos acesso é parte de um projeto que obteve êxito na separação de alma e corpo, onde sombras humanas estendem suas vidas mediante androides replicantes.

N:A se passa após um novo salto de milhares de anos. São apresentadas duas novas personagens androides, que pertencem à organização militar YoRHa: 2B, protagonista na história inicial, um modelo de batalha, e 9S, de reconhecimento de território. Os humanos não sucumbiram totalmente ao vírus das divindades, habitam a Lua à espera de que a Terra seja limpa pelos androides de YoRHa, que tem como lema “Glória à humanidade!” A exaltação de um nacionalismo nostálgico flerta com políticas de populismo. Sob tal cenário, cabe ao jogador enfrentar os seres intrusos, recuperar o planeta e defender uma humanidade que ainda remanesce.

Há duas proibições para os androides: não são permitidas visão e emoção. Supõe-se que eles sejam seres sencientes, capazes de unir sentimento e consciência, sem necessariamente incluir a autoconsciência (Santaella, 2015SANTAELLA, L. A grande aceleração e o campo comunicacional. Revista Intexto, n.34, p.46-59, set./dez. 2015., p.26). Há ainda uma terceira proibição oculta: não é permitida a sapiência. Mesmo com os olhos vendados e emoções contidas, 2B quer saber, em silêncio, o quão belo é o mundo. Na narrativa, o resgate de uma harmonia, outrora vigente, é posto como a única alternativa ao colapso. É assim que o jogador inicia sua jornada através de onze cenários dispostos num mapa tridimensional; com foco no Antropoceno, descreveremos brevemente nove deles.

O (1) bunker é o centro de operações da organização militar YoRHa, um abrigo na órbita terrestre para os androides que têm como missão limpar a superfície do planeta das máquinas corrompidas. Eles não se consideram máquinas pois são feitos a imagem e semelhança dos humanos. Todo o sistema informacional é independente do planeta já que as máquinas foram corrompidas por um “vírus lógico”. Chamar de bunker uma estrutura flutuante pode soar estranho à primeira vista. Entretanto, se fora da Terra é o único refúgio seguro, proteção, isolamento e escuridão não estão, como outrora, abaixo do solo, e sim além da atmosfera.

A (2) fábrica abandonada é a primeira localidade a que o jogador tem acesso na superfície terrestre. No mundo antigo dos humanos, milhares de trabalhadores eram empregados aqui. Embora o capitalismo não seja diretamente taxado como responsável pela paisagem de destruição que emoldura o jogo, algumas inserções são, evidentemente, referências ao sistema econômico. As estruturas metálicas, corroídas pela ação do tempo, continuam operantes num fluxo contínuo e sem propósito aparente. A edificação se impõe às personagens nas grandes dimensões do ambiente e de seus apetrechos (roldanas, engrenagens, esteiras, escadas e elevadores). O jogador, então, depara com Marx e Engels, duas grandes formas de vida maquínica, semelhantes a plataformas petrolíferas, que devem ser combatidas pelo jogador. Batizadas com nomes que remetem aos autores de O Manifesto Comunista, Karl Marx e Friedrich Engels, publicado em 1848, as criaturas parecem guardar a área da fábrica e sua linha de produção. As menções a Karl Marx e Friedrich Engels, que figuram no imaginário sociopolítico, e a mecanismos industriais de extração e produção reforçam o vínculo entre a paisagem de extinção, digna de uma nova Época geológica, e um sistema capitalista de exploração financeira e social da força de trabalho e do sistema planetário.

Figura 1
Imagem de divulgação com 2B e 9S em vista parcial das ruínas da cidade.

As (3) ruínas da cidade são o centro do mapa. Por meio delas, o jogador tem acesso aos esqueletos da humanidade: altos edifícios e grandes viadutos em pedaços, envolvidos por plantas e raízes. O projeto moderno para as grandes cidades funcionou como um centro do ordenamento espacial privado estabelecido no final do século XVIII. As ruínas referenciam materialização, ascensão e queda do processo civilizatório, por sua vez conduzido por um pensamento social e econômico dominante:

[...] com a emergência gradual de uma consistente burguesia, na Inglaterra e também em outros países europeus, modifica-se todo um sistema de valores relativos à moradia e à cidade. A domesticidade começa a assumir uma importância cada vez maior, por três ordens de motivos: a pressão dos movimentos evangélicos, para os quais a casa se torna um microcosmo, núcleo de uma sociedade ideal oposta ao mundo externo; os progressos tecnológicos e sanitários, com a consequente diminuição da mortalidade infantil e a maior presença de jovens nas famílias; o afastamento, por fim, da família e da casa das atividades profissionais ou empregatícias das novas gerações. O mundo burguês se separa em dois: em uma espécie de lado externo o mundo do trabalho e a cidade, e no lado interno o mundo da casa e da família. (Secchi, 2019SECCHI, B. A cidade do rico e a cidade dos pobres. Belo Horizonte: Âyiné, 2019., p.51)

No (4) acampamento de resistência androide reúnem-se personagens não jogáveis (non-player characters, NPCs) cuja função é apresentar novos objetivos e melhoramentos de habilidades. Este pequeno espaço de proteção, convivência e familiaridade está em meio às ruínas e tem caráter provisório, os equipamentos dispostos ali são protegidos por lonas esticadas.

A (5) área do deserto é uma paisagem engolida pela areia. Um tubo colapsado, resquício de infraestrutura urbana, direciona o jogador a conjuntos habitacionais de subúrbios. Os androides conversam sobre apartamentos, acham graça, mas percebem que falta algo. Projetados para as necessidades humanas, vê-se carcaças de veículos sem motorista, balanços sem crianças e semáforos apagados. 2B e 9S atravessam um fosso com esqueletos de androides e observam um grupo de máquinas procurando emular comportamentos e hábitos humanos, ainda que não conheçam suas finalidades originais.

Após batalha com Hegel (outra plataforma petrolífera semelhante a Marx e Engels) e o colapso de parte das ruínas da cidade, o sistema de esgotos da cidade tornou-se acessível e, pelo subterrâneo, chega-se ao (6) parque de diversões abandonado. O complexo de brinquedos em escombros, cujo sentido original parece esvaído, é ocupado por máquinas procurando compreender ideias humanas de diversão, felicidade e espetáculo. No final do percurso, abaixo do castelo encantado, está o teatro habitado por Simone (inspirada em Simone de Beauvoir), uma máquina inimiga e hostil que entoa: “Me faça bela!”, enquanto adorna-se por cadáveres de androides.

Concluído o embate com Simone, uma máquina pacifista nos conduz à (7) vila de Pascal. Desconectada do servidor corrompido das máquinas, a personagem Pascal é a interlocutora da Vila. Outro habitante notável é Jean-Paul (em referência ao filósofo existencialista Jean-Paul Sartre). O vilarejo, periférico ao parque de diversões, é o único em todo o jogo que tem construções singulares, são espaços privados que cabem apenas uma máquina em pé ou uma família de máquinas. As construções têm por característica fundamental a utilização de diversos tipos de materiais e funcionam para manter uma máquina, ou um grupo, em estado de pausa.

O (8) reino florestal é formado por ruínas de um castelo de pedras em meio a uma floresta. Para entrar no castelo, é necessário combater hordas de súditos-máquina que bradam: “Salve o rei!” Ao chegarmos na sala do rei, vemos um rei bebê máquina; o propósito do reino é proteger o rei a cada ciclo que se encerra com a sua morte. Para acessar o reino, 2B e 9S passam por ruínas de um shopping center e conversam sobre o propósito da construção. As duas riem curiosas com o que significaria “comprar”, sem resposta.

Por fim, a área beira-mar (9) cidade inundada é acessível por meio da cratera aberta nas ruínas da cidade. Há edifícios de veraneio submersos e autopistas despedaçadas; a água do mar subiu lentamente e corroeu as construções.

Descrevendo ambientes computacionais concebidos pela direção de arte do jogo, estabelecemos entre N:A e o tema do Antropoceno uma relação de modelos de habitações humanas sublinhadas por meio da narrativa. Tais habitações foram possíveis em determinado momento porque as cidades são habitações históricas submetidas aos nossos projetos. Como nos lembra Leonardo Benevolo (1997BENEVOLO, L. História da cidade. São Paulo: Perspectiva, 1997., p.9), elas nem sempre existiram, “tiveram início num dado momento da evolução social e podem acabar, ou ser radicalmente transformadas num dado momento”, como nos parece o caso desse mundo dinamizado por criatividade humana, observado pela visão eletrônica celestial dos satélites artificiais e dimensionado pela captação e transmissão de imagens. Combinadas, tecnologias permitem que os aspectos sociocomunicativos sejam estendidos para alcançar a “digitalização das territorialidades, dos ecossistemas e de suas populações” conforme apontou Massimo Di Felice (2009, p.12) e, assim, abranger dimensões de habitação por meio de sensores que capturam movimentos, não só de nossos corpos, mas também de microscópicas partículas no ar, como é o caso das protagonistas de N:A.

Como acontece no jogo, o processo narrativo se confunde com o processo histórico. Na história e na narrativa buscamos uma referência, um modelo que nos permita defender a posição da humanidade. Uma das discussões propostas por N:A é a de que, diante de um colapso no planeta e do potencial fim dos seres biológicos humanos - mas não da humanidade -, criaturas se tornaram criadoras. Durante o jogo somos impelidos a pensar em imitação, assim como os bebês imitam seus pais. Entretanto, essa repetição de processos ocorre nas ruínas do modelo humano; o mundo está posto, então o ser experiencia algo que está ao redor - nesse caso, materialidade e significados residuais de uma civilização anterior. Além de lidar com o conflito primordial que é a corrupção do programa humano por meio de um vírus, depois, os criadores do vírus também sucumbem. Com ambos os criadores exterminados, as máquinas estão soltas, sem propósito evidente, no mundo. Ao chegarem, os androides deparam com diversas tentativas de organização social das máquinas: umas continuam a lutar, outras procuraram criar, como já dito, com base em modelos humanos, ainda que os humanos, no jogo, tenham fracassado em seus projetos. Projeto e progresso humano foram sinônimos de fracasso e a programação da máquina segue um script. A ruptura desse ciclo só acontece quando há morte.

Cruelty Squad

CS é um videogame single-player de tiro em primeira pessoa (first person shooter, FPS) com elementos táticos, furtivos e de plataforma desenvolvido e publicado em 2021 pelo estúdio independente finlandês Consumer Softproducts sob a direção do ilustrador, cartunista e artista multimídia Ville Kallio. Produzido na Godot Engine, o jogo está disponível para Microsoft Windows. No papel de um protagonista silencioso e sem nome convidado a trabalhar na empresa de “assassinatos como serviço” Cruelty Squad, o jogador deve matar NPCs previamente determinados ao longo de 19 missões/mapas no estilo sandbox, com alto grau de liberdade para completar os desafios. O ciclo de jogabilidade e feedback, projetado para manter o engajamento, define-se em: acessar uma nova área, explorá-la e coletar recursos em sucessivas tentativas, aperfeiçoar equipamentos, cumprir o objetivo e recomeçar em outra área. Os cenários escondem segredos que tornam o progresso menos linear e podem incentivar o jogador a revisitar fases e ser recompensado com recursos, itens, missões bônus e trechos da história; inclusive, itens descobertos em uma fase podem ajudar a resolver enigmas em outras.

Não se sabe muito sobre passado ou presente do protagonista além do fato de que foi dispensado da “SEC Death Unit”; apesar de não oferecer mais detalhes sobre esta organização, a narrativa deixa implícito que o protagonista tem familiaridade e prazer com trabalhos violentos. Executivos estão dispostos a pagar pelos serviços violentos do protagonista desde que ele se submeta ao discurso institucional. O menu principal oferece opções para selecionar e gerenciar armas, recursos financeiros e modificadores de mobilidade e de defesa que, alterando a jogabilidade, podem ajudar a completar tarefas ou mesmo apresentar desafios extras. Nesse menu, à medida em que as fases são desbloqueadas, o jogador recebe de seu contratante (frequentemente referido como “o manipulador”) um briefing informal da missão em forma de um monólogo em texto. Entre traições, vingança, insultos, provocações, palavrões e cinismo, a figura deformada, misto de humano, porco e blob, revela sem pudor motivações corruptas e sádicas de grandes conglomerados financeiros. O desvelar do mundo e da história se dá principalmente nas falas do manipulador, em nomes e descrições de cada item ou fase e nas interações com NPCs - tanto os alvos quanto civis neutros.

Visuais, usabilidade e sonorização de CS desviam de expectativas e convenções vigentes na indústria dos videogames. Ambientes e personagens são constituídos por cores e texturas psicodélicas e polígonos de baixa resolução; na trilha musical e nos efeitos sonoros, sons guturais, compressão excessiva, ruído e cacofonia formam melodias esparsas, de ritmo fragmentado; a jogabilidade não respeita padrões usados na maioria dos FPSs; as informações nos menus e na heads-up display (HUD) são precárias e exibidas em ícones e tipografias pouco legíveis, a navegação não é autoexplicativa ou intuitiva. Os resultados são, em geral, ambientes e interfaces confusos, desconfortáveis e com elementos inquietantes de sangue e vísceras. Partindo dessa experiência pouco familiar, imersão e envolvimento com o jogo passam pela adaptação do jogador a elementos propositalmente repugnantes, representativos da decadência material, ética e psicológica do discurso de CS.

Figura 2
Imagem de divulgação representando o interior de um edifício empresarial em CS.

Há inimigos humanoides, blindados, não humanos (de zumbis e bioescravos) e chefes (incluindo uma representação da criatura arconte Abraxas, ser místico relacionado ao gnosticismo). Design, comportamento e posicionamento dos inimigos, além de proporem diferentes graus de desafio mecânico e estratégico, estabelecem temas para o desenvolvimento da narrativa.

Para lidar com inimigos e mapas, as habilidades do jogador podem ser modificadas utilizando vestimentas e implantes biotecnológicos na cabeça, peito, braços e pernas do personagem. O protagonista compra implantes e altera seu corpo com tecnologias conforme as necessidades do trabalho a ser executado. Uma das maneiras de se conseguir recursos para adquirir os implantes é coletar órgãos dos NPCs mortos e vendê-los em uma bolsa de valores na qual se negociam cérebros psicóticos, intestinos pútridos, pâncreas avançados, entre outros a preço dinâmico. Há também um mercado de ações convencional com empresas fictícias, e que inclui a própria desenvolvedora do jogo, e um sistema de aquisição e venda de peixes. Acessível a qualquer momento, a dinâmica de mercado financeiro funciona como um metajogo. Referências irônicas ao vocabulário financeiro e corporativo em descrições e nomenclaturas - e.g. arquidemônia corporativa, olhos do insight corporativo e moedas biológicas - revestem o universo do jogo de tons satíricos e distópicos. Diferentemente de outros jogos em que o objetivo também é matar alvos específicos, não há punição por assassinar civis. Pelo contrário, o canibalismo é uma mecânica de jogo, cadáveres e órgãos podem ser usados como fonte de saúde e dinheiro, se o jogador desejar.

Entre os alvos a serem assassinados estão executivos, empresários, investidores anarcocapitalistas, políticos, policiais, líderes de cultos, membros da elite e mesmo o senhorio do protagonista. Os cenários, repletos de passagens secretas, armadilhas e rotas variadas de invasão, incluem condomínio de mansões, shopping center, cruzeiro, cassino, estação de esqui, festa, escritório, delegacia, pântano e até escapar de uma emboscada no paupérrimo apartamento do protagonista. No mundo em miséria de CS, as decorações luxuosas são despropositadas, agressivas e ridículas em igual medida. A exploração pode conduzir às “entranhas” de um lugar à primeira vista comum; os níveis Androgen Assault e Miner’s Miracle, por exemplo, escondem salas com paredes que, em vez de concreto ou mármore, são texturizadas com carne pulsante, representativa de experimentos biológicos ali realizados. Outras superfícies têm texturas de pele e rostos em uma “combinação de elementos grotescos góticos e [d]a maneira como quase tudo tem um rosto nos jogos do [Super] Mario” (Kallio, 2021KALLIO, V. Artist of the week: Ville Kallio. [Entrevista cedida a] Christopher Good. LVL3. 19.8.2021. Disponível em: <lvl3official.com/ville-kallio>. Acesso em: 11 fev. 2022.).

Ruído, visualidade glitch e metalinguagem estão incorporados à estética, jogabilidade e design de níveis em CS. Há assets e texturas sobrepostos e/ou com baixa resolução, além de itens e filtros que, quando equipados, expandem e mesmo dificultam a mobilidade e a visualização. O padrão de exploração dos cenários muda conforme as habilidades implantadas a ponto de, sem muita dificuldade, permitir que o jogador acesse ambientes externos aos tradicionais e diegéticos, algo que jogos com maior pretensão realística geralmente procuram impedir e esconder. O jogo parece oferecer insumos para que seus próprios limites narrativos e de interação sejam testados, o que, na percepção do jogador, deve diluir fronteiras entre um suposto mau funcionamento e o funcionamento planejado; a diferenciação entre um defeito e o comportamento programado no jogo não é óbvia. Usando os itens apropriados, é, por exemplo, possível lançar-se para além das paredes do cenário e cair em um poço sem fim, típico dos softwares de modelagem em 3D. Em certa medida, apropriando-se do glitch como fundamento estético, CS evidencia e discorre sobre controle e falibilidade de seus próprios mecanismos operacionais.

Em etapas mais avançadas do jogo há níveis que não referenciam diretamente lugares cotidianos, mas planos sobrenaturais (e.g. Archon Grid e Darkworld) e mentais (Trauma Loop); nessas fases, os briefings apresentados são menos literais e sugerem, em metáforas e quebra da quarta parede, alterações da percepção, perturbação da consciência, ascensão divina e fusão entre mercado financeiro e corpo biológico.

Irônica e paradoxalmente, CS trata precarização e punição como recompensas, tal qual o capitalismo representado e criticado no jogo. “A única pessoa a ser punida é o jogador. O universo do jogo é baseado em mitologia gnóstica. Qualquer punição percebida é uma coincidência e decorre da natureza fundamentalmente imperfeita ou corrupta do mundo, isolada da luz divina de Deus” (Kallio, 2021KALLIO, V. Artist of the week: Ville Kallio. [Entrevista cedida a] Christopher Good. LVL3. 19.8.2021. Disponível em: <lvl3official.com/ville-kallio>. Acesso em: 11 fev. 2022.). Habitando de forma violenta, profana, gananciosa e traumática uma sociedade distópica, o protagonista gradualmente transfigura-se, juntamente com a ambientação, em um pesadelo absurdo, nos limites da compreensão, híbrido de carne, tecnologia e misticismo financeirizados pelas corporações e pelo mercado especulativo. Não há um desfecho denotativo ou literal para a narrativa, CS possui três finais similarmente abstratos e crípticos exibidos de acordo com os critérios atendidos e os níveis finalizados pelo jogador.

Em suas temáticas e linguagem, CS dialoga com estilos e subgêneros da literatura, do cinema e dos videogames. Derivado do cyberpunk, o biopunk é um subgênero da ficção científica com foco nas implicações da biologia sintética e da biotecnologia sobre organismos, culturas e sociedades humanas. O horror corporal é um subgênero do cinema de terror cujo mote é exibir violações gráfica e psicologicamente chocantes de organismos vivos, tais como mutações, mutilação, zumbificação e doenças. O boomer shooter é um subgênero de jogos de tiro que referencia, em seus gráficos, temáticas e/ou mecânicas, FPSs publicados na década de 1990 como Wolfenstein 3D (1992), Doom (1993) e Duke Nukem 3D (1996). Interpretando essas influências em uma narrativa anti-heroica, CS relê sistemas de imagens do passado para refletir sobre hábitos, identidades e perspectivas pessimistas que esses imaginários ajudaram a nutrir.

Ainda que CS seja o primeiro jogo desenvolvido por Kallio, o artista vem produzindo obras alinhadas às mesmas motivação e abordagem críticas; por exemplo, em entrevista sobre o curta-metragem GOREPLEX do ano de 2017,1 1 Disponível em: vimeo.com/207370161. Acesso em: 10 fev. 2022. que discute utopias econômicas e biológicas em diferentes sistemas sociopolíticos, Kallio afirma que

O transhumanismo como ocultismo é uma ótima maneira de colocar a questão, eu acho. A parte ocultista vem de uma sensação geral de desesperança semeada pela falta de crença em qualquer tipo de agência política ou pessoal, onde a única coisa a que se pode recorrer é a realização de ritos ocultos em uma tentativa final de controlar a história. Eu tinha pensado muito sobre o conceito de inteligência de enxame [hivemind] e como estamos constantemente nos aproximando cada vez mais de nos tornarmos um, à medida que a tecnologia de comunicação se torna mais rápida e pervasiva. Pensei que uma boa maneira de visualizar isto seria imaginar a espécie humana se fundindo em uma enorme biomassa, onde a tecnologia de comunicação é substituída por conexões nervosas diretas entre cérebros, consciência existente em uma espécie de bio-simulação fluida. (Kalio; Goreplex, 2018)

Suas técnicas e poética incluem reprocessar e aplicar ruído e distorção em bibliotecas audiovisuais encontradas, recombinando-as com modelagem 3D rudimentar e não realística, cores e texturas artificialmente saturadas e tipografia beirando a ilegibilidade. Nas palavras do desenvolvedor, o jogo “tem um tema de mutação e fluidez geral da biologia, onde as coisas se misturam e os limites são cruzados. A Terra é mais uma entidade viva, capaz de consumo e metabolismo” (Kallio, 2021KALLIO, V. Artist of the week: Ville Kallio. [Entrevista cedida a] Christopher Good. LVL3. 19.8.2021. Disponível em: <lvl3official.com/ville-kallio>. Acesso em: 11 fev. 2022.). Dissolvendo fronteiras biologia-tecnologia e real-simulação, CS, em diálogo com subgêneros de horror e distopia e com o acervo de Kallio, deve compor uma cosmogonia para o Capitaloceno em um palimpsesto de mitologias pagãs, bioengenharia e cultura pop plasmados em corporativismo, punitivismo e sarcasmo.

Ambientação em antropos e capital

A comunidade de jogadores, em tempo de redes sociais, se reúne em fóruns para discutir dúvidas e leituras sobre os múltiplos finais de N:A e CS. Há influência cultural de ambos, para além do compartilhamento de dicas: há produção de outras séries de conteúdos que vão desde memes até fanarts sobre os jogos. Nesse tipo de mídia de consumo individual é preciso produzir e permitir que o conteúdo cresça entre os indivíduos. Entretanto, sublinhamos que, mesmo diante de uma possível interação que os videogames promovem como discurso através do controle, sempre estaremos submetidos ao script, à programação do jogo eletrônico. A intencionalidade é sempre humana, e nestes casos é de Yoko Taro e Ville Kallio.

Além da diferença significativa de mercado, sendo N:A um jogo multiplataforma e CS um jogo independente desenvolvido apenas para computadores pessoais, a maneira como estes jogos escolhem para narrar os eventos são completamente distintos. Enquanto N:A apostou num posicionamento de câmera em terceira pessoa privilegiando grandes ângulos de visão do ambiente e reduzindo o tamanho das personagens diante dele, CS trouxe uma câmera em primeira pessoa, onde a personagem anônima será você, o espectador daquele universo mais próximo dos olhos que podem perceber os detalhes gráficos de estética grotesca. Ainda que, graficamente, os jogos tenham poucas semelhanças em virtude do posicionamento de câmera, ambos trazem mais do presente do que o futuro escatológico.

Os dois jogos partem de universos ficcionais de discurso prévio, os ambientes em tela compartilham similaridades ao representar locais de compra, de trabalho, de lazer, entre outros que denotam as severas críticas à maneira como os meios de produção operam, afetam e corrompem as relações humanas, incluindo o meio ambiente. Se o Antropoceno marcou uma conscientização sobre a crise energética do planeta, esses dois jogos pretendem representar os desdobramentos de ações humanas por meio de uma série de apetrechos criados por nós, de androides salvadores até parafernálias ligadas ao próprio corpo. O resultado nos dois casos é morte. Sejam as mais variadas cisões de ideais, com direção de arte realística em N:A; seja a própria carne exposta com direção de arte psicodélica, gore, em CS.

N:A discute a humanização para além da biologia ao apresentar contextos em que a tecnologia, na inteligência artificial de androides e robôs, possibilita e medeia a recuperação e o desenvolvimento de ideias e produções humanas no plano coletivo: pensamentos (e.g. tradições filosóficas) e invenções (indústrias de armas ou parques de diversão) humanas são ocupados e reinterpretados pelos seres que habitam a Terra. Em CS a tecnologia é vetor e interface para a desumanização dos organismos, submetendo-os cada vez mais aos experimentos e interesses de um capitalismo corporativista e autoritário caricaturalmente insensível e agressivo.

Ao explorar cultura e resquícios da humanidade, a inteligência tecnológica em N:A aprende a reproduzir e expandir diferentes tons e nuances da vida psicológica e emocional humana, incluindo, por exemplo, diversão, constrangimento, obstinação, traição, vingança e altruísmo. Por outro lado, a emotividade em CS aparece anestesiada e achatada em ciclos naturalizados de hipocrisia, cinismo, egoísmo, opressão, frustração, autoengano, indiferença, impotência e depressão. As missões e os sensos de pertencimento e de coletividade dos protagonistas em N:A alteram-se conforme surgem alianças entre androides e máquinas. Diferentemente, as missões em CS apresentam o sistema de natureza corruptora do humano e mergulha em suas engrenagens sem qualquer pretensão de alterá-lo; narrativamente, o núcleo dos objetivos em CS inclui sustentar alguma esperança de enriquecer trabalhando para um mecanismo abusador que desvaloriza o protagonista.

Ambos os jogos representam um processo de luto e negociação constantes a que temos acesso pelo ponto de vista das personagens. No caso de N:A, tudo o que era conhecido deixou de existir: a superioridade em relação às máquinas; os seres humanos glorificados; os seres que mataram os humanos; a inteligência artificial de controle das máquinas. Com o Bunker destruído não há para onde retornar. Amarras rompidas, desde quando os criadores se foram e temos ciência disso, os androides atravessam a fantasia e tomam uma nova direção como criadores do destino, não mais como criaturas de um destino inevitável, com uma vida semelhante à biológica, que desafia a morte, já que não há como transferir suas memórias. Já em CS, em um dos finais, o protagonista mata Malice, a representante do estado das coisas, o que denota a perenidade do sistema e o baixo valor da vida. Ao agirmos, rompemos com o ciclo de sucessivas ressurreições de Malice. Em ambos os jogos, o porvir será preenchido por cada jogador. Ainda que ambos transpareçam uma ideia de pessimismo ao relacionarmos os eventos em tela com o mundo à nossa volta - que, através de uma série de metáforas, traz uma crítica ao sistema capitalista -, o protagonismo é atribuído ao jogador, para o bem ou para o mal. A morte, ou o ato de matar, em ambos os casos sugere romper com uma condição de submissão que nos colocamos diante do sistema e, ao mesmo tempo, assumirmos o protagonismo numa tela a preencher.

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Nota

  • 1
    Disponível em: vimeo.com/207370161. Acesso em: 10 fev. 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2022
  • Aceito
    16 Jun 2023
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