Accessibility / Report Error

A “loucura das multidões”. Crítica e autocrítica em Euclides da Cunha

RESUMO

No período entre a publicação dos artigos escritos para o jornal O Estado de S. Paulo e a redação de Os sertões, Euclides da Cunha muda radicalmente sua opinião sobre o significado da revolta de Canudos, mas em nenhum momento, antes ou depois da publicação do livro, ele registra as razões dessa mudança ou propõe uma autocrítica a seu posicionamento anterior. O presente artigo examina esse silêncio, procurando diagnosticá-lo a partir do quadro teórico fornecido pela psicologia das massas adotada no livro, especialmente a de autoria do psiquiatra Nina Rodrigues. Sendo usada por Euclides para compreender a “loucura coletiva” que teria acometido os sertanejos, uma tal teoria psicológica, que caracteriza essa doença coletiva como contagiosa, poderá dar pistas sobre a “contaminação” do próprio autor da denúncia contra a República, explicando, ao menos em parte, sua omissão ao não se incluir entre os causadores da tragédia.

PALAVRAS-CHAVE:
Euclides da Cunha; Autocrítica; Doença mental; Psicologia das massas; Contágio

ABSTRACT

During the period between the publication of the articles written for the newspaper O Estado de S. Paulo and the writing of Os sertões, Euclides da Cunha radically changes his opinion on the meaning of the Canudos uprising, but at no time, before or after the publication of the book, does he register the reasons for this change of opinion or propose a self-criticism of his previous position. The paper examines this silence, seeking to diagnose it from the theoretical framework provided by the mass psychology adopted in the book, especially that formulated by the psychiatrist Nina Rodrigues. Being used by Euclides to understand the “collective madness” that have allegedly affected the sertanejos, such psychological theory, which characterizes this collective disease as contagious, may give clues about the “contamination” of the author of the denouncement against the Republic, explaining, at least in part, his omission in not including himself among the causes of the tragedy.

KEYWORDS:
Euclides da Cunha; Self-criticism; Mental illness; Mass psychology; Contagion

Introdução

No início do capítulo de Os sertões dedicado à Quarta Expedição do exército brasileiro contra Canudos, Euclides apresenta uma análise crítica do que ele caracteriza como “um desvairamento geral da opinião” usado para justificar o massacre de milhares de inocentes. Diz ele:

Na desorientação completa dos espíritos, alteou-se logo, primeiro esparsa em vagos comentários, condensada depois em inabalável certeza, a ideia de que não agiam isolados os tabaréus turbulentos. Eram a vanguarda de ignotas falanges prontas a irromperem, de remanente, em toda a parte, convergentes sobre o novo regímen. E como nas capitais, federal e estaduais, há muito, meia dúzia de platônicos, revolucionários contemplativos e mansos, se agitavam esterilmente na propaganda da restauração monárquica, fez-se de tal circunstância ponto de partida para a mais contraproducente das reações. (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.329)

Ao pintar o inimigo com as cores de um movimento conspiratório visando à restauração da monarquia e organizado por forças externas à comunidade de Belo Monte, a ação enérgica do exército formulava para si mesma uma justificação plausível. O desvario coletivo das populações urbanas aderiu fortemente a essa estória, legitimando politicamente a violência sanguinária desencadeada pelo governo central do país.

Para defender-se da suspeita de que talvez exagerasse na caracterização de um tal “desvairamento”, Euclides transcreve trechos de artigos tomados “ao acaso” de “qualquer jornal daqueles dias”. Ao reproduzir esses trechos em um capítulo intitulado significativamente “Canudos - uma diátese”, Euclides o faz valendo-se de verbos com sujeito indeterminado: “Doutrinava-se [....] Concluía-se [....] Explicava-se [....] Afirmava-se”. A indeterminação do sujeito que prepara a transcrição desses artigos jornalísticos traduz a contaminação da opinião pública anônima por parte das mentiras articuladas pelos jornalistas e pelo governo da República, aí incluindo-se o próprio presidente. Daí para a adoção de um comportamento de manada pela multidão enfurecida foi um pequeno movimento. Euclides concentra sua narrativa no empastelamento de jornais monarquistas cariocas. Nesse trecho, ele transcreve a seguinte notícia do Jornal do Brasil:

Copiemos: “Já era tarde e a excitação do povo aumentava na proporção de sua massa sempre crescente; assim nesta indignação lembraram-se dos jornais monarquistas, e todos por um, em um ímpeto de desabafo, foram às redações e tipografias dos jornais Gazeta da Tarde, Liberdade e Apóstolo, e, apesar de ter a polícia corrido para evitar qualquer assalto a esses jornais, não chegou a tempo de evitá-lo, pois a multidão aos gritos de viva a República e à memória de Floriano Peixoto invadiu aqueles estabelecimentos e destruiu-os por completo, queimando tudo”.

Então começaram a quebrar e inutilizar tudo quanto encontraram, atirando, depois, os objetos, livros, papéis, quadros, móveis, utensílios, tabuletas, divisões etc., para a rua de onde foram logo conduzidos para o largo de S. Francisco de Paula, onde formaram uma grande fogueira, ficando outros em montes de destroços na mesma rua do Ouvidor. (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.331)

O que Euclides não diz nessa parte de Os sertões - nem em nenhum outro momento do livro - é que ele bem poderia citar qualquer um de seus próprios artigos jornalísticos como exemplo das notícias que inflamaram a multidão (incluindo artigos publicados naquele mesmo ano de 1897, o ano do massacre que ele testemunharia alguns meses depois de escrevê-los).1 1 No Diário de uma expedição, escrito na frente de batalha, Euclides em nenhum momento deixa de se referir aos habitantes de Canudos como os “inimigos” de “nossas armas”. Portanto, sob o sujeito indeterminado (“Doutrinava-se [....] Concluía-se [....] Explicava-se [....] Afirmava-se”) que antecedia os trechos citados pelo escritor Euclides da Cunha, encontrava-se ninguém menos do que o jornalista Euclides da Cunha.

De fato, nos dois extensos artigos reunidos sob o título “A nossa Vendeia”, publicados pelo jornal O Estado de S. Paulo pouco antes de sua viagem para Canudos, entre março e julho daquele ano, Euclides elogia a “bravura e abnegação” dos “soldados da República”, antecipando com prazer o momento “quando forem desbaratadas as hostes fanáticas do Conselheiro”, o que fará “descer a primitiva quietude sobre os sertões baianos” (Cunha, 1995CUNHA, E. da. Euclides da Cunha. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995. 2v., p.612).2 2 Walnice Nogueira Galvão assinala que o título desse artigo, que “chegou a rotular provisoriamente Os sertões” (Cunha, 2016, p.620), fez muito sucesso, inspirando outros tantos e motivando a contratação de Euclides pelo mesmo jornal para cobrir a campanha de Canudos. “A nossa Vendeia” contém em si uma protoversão de Os sertões, abordando, nesta ordem, a terra, o homem e a luta, mas a comparação entre Belo Monte o departamento francês é usada, no artigo jornalístico, para corroborar uma suposta conspiração monarquista, enquanto, no livro, retém apenas outros aspectos (culturais, políticos, militares) presentes em ambos. Que essa quietude tão almejada seja o silêncio da morte não parece ser objeto de maiores preocupações nem ao menos em um texto escrito já tendo sido terminado o combate (Belo Monte, como se sabe, caiu em 5 de outubro de 1897; nesse mesmo mês, em um outro artigo publicado pelo mesmo jornal, ele elogia novamente os “briosos soldados” do Batalhão de São Paulo, que fizeram jus à “epopeia ainda não escrita dos Bandeirantes”, origem remota da “índole aventureira e lutadora dos sulistas ousados” (ibidem, p.613-14).

Nada nessas páginas jornalísticas antecipa, sob a menor sombra de suspeita, o tom do libelo contra o Exército e a República que aprendemos a identificar como o núcleo do livro Os sertões, publicado cinco anos depois, em 1902. Terá o transcurso desses cinco anos modificado tão radicalmente o julgamento do escritor, então já divorciado dos sentimentos do jornalista?

A conversão silenciosa

Em vão procuraremos pistas dessa modificação completa de opinião. Nos registros que encontramos no próprio livro e em outros escritos dessa época - correspondências, anotações privadas, documentos oficiais, artigos jornalísticos -, já deparamos, por volta da virada do século, com um Euclides inteiramente convertido à sua tarefa de denunciar o crime cometido pela República. Assim, em uma passagem em que reflete sobre a primeira recepção de Os sertões, contida em um caderno íntimo escrito durante sua estada em Lorena, no ano de 1902, ele registra sua “visão assombradora do grande assassinato coletivo”, atribuindo a ela a obrigação de “escrever sobre a lastimável campanha de Canudos” (Cunha, 1995CUNHA, E. da. Euclides da Cunha. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995. 2v., p.618).

No próprio livro, essa sua conversão aparece de forma críptica em um elemento paratextual, a “Nota preliminar”, datada de 1901. Em suas primeiras frases, ele indica que o texto que o leitor tem entre as mãos não corresponde ao plano originalmente vislumbrado. De início, ele diz, “este livro [....] se resumia à história da campanha de Canudos”; no entanto, devido ao tempo excessivo transcorrido entre os eventos narrados e a publicação do texto, o assunto tornara-se obsoleto e já muito explorado, de modo que a natureza mesma da obra mudou: “Demos-lhe, por isso”, diz Euclides, “outra feição, tornando apenas variante de assunto geral o tema, a princípio dominante, que o sugeriu” (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.10). Essa “outra feição”, explica o restante da “Nota preliminar”, é o conflito das raças ao longo dos séculos, a qual sustenta e explica aquele confronto singular que foi Canudos. O livro ganhou, assim, o estatuto de uma obra científica universal, para além do registro jornalístico factual daquele evento particular.

Como vimos, alguma coisa aconteceu nesse meio-tempo: algum evento crucial, ocorrido em um instante não assinalado, operou a mudança do defensor da República e de seu exército em seu acusador. Essa verdadeira conversão tem certamente a ver com a mudança do registro jornalístico para o literário-científico, o qual, menos do que um mero efeito dessa transformação, deve ser considerada como uma de suas causas. A hipótese aqui formulada é que o registro científico-literário de Os sertões foi o instrumento reflexivo por meio do qual Euclides identificou o erro de sua antiga posição. Esse erro, veremos, não tem uma natureza meramente cognitiva ou moral: ele decorreu, segundo seu próprio diagnóstico, de uma patologia mental, transmitida por contágio, uma doença que o atingiu no momento mesmo em que ele procurava explicar sua etiologia. Os sertões pode ser lido, portanto, como um longo processo terapêutico de cura do seu próprio autor - e essa é a razão pela qual ele não pode conter em si mesmo o registro de sua mudança de opinião, o qual deveria ser apenas seu resultado posterior. Que essa terapia não tenha eliminado todos os sintomas da doença e tenha, na verdade, introduzido efeitos colaterais tão ou mais graves do que a própria patologia original, é o que veremos a seguir.

Em Os sertões, trata-se sobretudo de investigar o fenômeno de Canudos como um episódio de “psicose coletiva” (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.178), a qual afetava especialmente um agrupamento como aquele, pertencente a um “estádio social inferior” e “bárbaro” (ibidem). O principal sintoma desse tipo de psicose é a produção de crenças e comportamentos uniformes em uma “massa inconsciente e bruta” (ibidem, p.179). Nina Rodrigues, mencionado uma única vez em Os sertões, terá um papel destacado na produção da teoria dessa doença mental contagiosa.

Luiz Costa Lima já mostrou como a posição intelectual de Euclides, oscilando entre a literatura e a ciência, mas inscrevendo-se prioritariamente na última, permitiu-lhe se valer das teorias psicológicas de sua época para explicar o conceito de imitação coletiva. No capítulo 3 de seu livro Terra ignota. A construção de Os sertões, intitulado justamente de “Imitação e contágio”, Costa Lima (1997) acompanha as disputas no interior da então nascente psicologia de massas moderna, de modo a mostrar como elas forjaram a análise euclidiana do fenômeno de Canudos. Mas Costa Lima detém-se na psicologia europeia, não examinando o modo como ela foi recebida no Brasil. Acredito que o acréscimo dessa mediação pode ser essencial para a compreensão do partido que Euclides toma nesses debates. De fato, se a psicologia de massas tem, como nota Costa Lima (1997, p.71), “o propósito secreto de constituir Il principe de um novo tempo”, a participação de Nina Rodrigues no papel de nosso Maquiavel tropical nos permitirá entender de que forma ele e o próprio Euclides se colocaram a serviço do governo central, bem como a isso se sucedeu a mudança de opinião desse último.

Nina Rodrigues e as coletividades anormais

Na coletânea intitulada As coletividades anormais,3 3 A coletânea foi organizada pelo médico Arthur de Araújo Pereira Ramos. publicada postumamente pela primeira vez em 1939 e na qual estão agrupados alguns dos principais artigos científicos do psiquiatra e etnólogo Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), a elaboração progressiva de um conceito preciso de contágio perpassa todas as suas páginas, mostrando-se, assim, como uma das tarefas mais centrais a ser realizada para a formulação definitiva de uma teoria sobre as patologias mentais das multidões e sobre suas formas de transmissão.

Embora habitasse um país periférico, Nina Rodrigues fez parte da vanguarda do movimento intelectual que, na Europa e nos Estados Unidos, instituiu o então nascente campo da psicologia das massas - podemos citar, entre outros, os nomes de Scipio Sighele, Gabriel Tarde e Gustave Le Bon, os quais aparecem nos diversos artigos de Nina Rodrigues. A posição colonial do pesquisador brasileiro não deixa, porém, de se tornar manifesta em sua produção teórica: o evolucionismo positivista de seus colegas estrangeiros, já contendo um forte viés racista e classista, adquire, com Nina Rodrigues, um papel singular de controle social no contexto político específico de nossa sociedade periférica.4 4 Como mostra Costa Lima (1997, p.72), referindo-se a Euclides (mas a mesma observação seria válida também para Nina Rodrigues), “o evolucionismo, ao entrar nos trópicos, provocava no intelectual a sensação do mais vivo desgarre. Para ele, a espera do futuro se tornava a quase única motivação”.

Dentre todos os artigos reunidos em As coletividades anormais, o que trata de maneira mais exaustiva e abstrata do conceito de contágio é o intitulado “A loucura das multidões” (Nina Rodrigues, 2006, p.57-102). Seu maior grau de abstração nos permite compreender as articulações pelas quais o conceito é paulatinamente construído, especialmente porque essa construção se dá pela sua contraposição às teorias que estavam sendo desenvolvidas na mesma época nas metrópoles, especialmente unificadas em torno da psiquiatria forense.

O contágio mental por sugestão coletiva é o fator principal da constituição do que Nina Rodrigues (2006, p.64) chama de estado de multidão. Esse contágio deve ser disparado por uma espécie de gatilho, normalmente personificado por um doente mental isolado que é o ponto zero da transmissão das alucinações. Para designar esse primeiro elo causal da psicose coletiva, Nina Rodrigues (2006) usa muitas vezes o nome francês “meneur”; Euclides usa o nome “dominador”, explorando as conotações políticas contidas nesse termo.

Para ambos, o meneur não é mais do que uma poderosa causa próxima (ibidem) que ativa disposições raciais inatas. Sobre o Conselheiro, diz Euclides: “Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de três raças”; nesse papel, Antonio Conselheiro era um agente “monstruoso, mas autômato” (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.156). Ou seja, sua função não foi intencional: ele era como um vírus que, obedecendo às leis implacáveis da natureza, cumpria cegamente seu destino. Essa caracterização do Conselheiro é parte importante da mudança de opinião de Euclides sobre o fenômeno que ocorreu em Canudos, pois foi ela que lhe permitiu inocentar os doentes mentais e separá-los das suposições de uma conspiração monarquista. Tratava-se aí de um delírio religioso, e não de um comportamento político deliberado.5 5 O comportamento dos sertanejos “não traduzia o mais pálido intuito político: o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional” (Cunha, 2016, p.191).

Em “A loucura das multidões”, o exemplo do caso clínico de Canudos desempenha um papel central, paradigmático. O maior embate teórico do texto de Nina Rodrigues se dá contra Scipio Sighele, autor do livro A loucura delinquente (publicado em Turim em 1875); ao contrário desse último, que explicava a “transmissão da loucura” dos meneurs à multidão como uma espécie de transe hipnótico, Nina Rodrigues afirma que se trata mais do que de um fenômeno de sugestão: há, nesses casos, uma doença real, o que implica - ao contrário do que propõe Sighele - a inimputabilidade jurídica da multidão.

Eis o que afirma Nina Rodrigues (2006, p.70-1):

No contágio mental em um predisposto, a sugestão pode limitar-se a desenvolver um estado patológico, uma verdadeira doença, que, uma vez declarada, evolui de maneira particular com todas as modificações impostas pela constituição física e mental do paciente. É uma situação que dá a estas doenças uma autonomia clínica bem conhecida, não permitindo que suas reações se reduzam à simples reprodução de uma sugestão recebida.

É por isso que o paradigma da loucura das multidões não é a hipnose, mas sim a histeria, uma doença que, segundo Nina Rodrigues, é comprovadamente transmitida por contágio. A histeria, segundo a teoria dominante na época, pode ser provocada por sugestão ou por outras causas, mas, mesmo quando ela tem origem em um estado hipnótico, o desenvolvimento da doença ganha, a partir de um certo estágio, uma dinâmica própria. Isso comprova que a sugestão é apenas uma causa ocasional que ativa um processo patológico já latente.

Nina Rodrigues (2006, p.71) afirma que é preciso distinguir “os casos de contágio rápido, agudo, daqueles em que o contágio é lento, retardado, preparado por uma ação prolongada do íncubo sobre o súcubo”. No caso do contágio lento, o resultado é um tipo de delírio coletivo que gera “multidões organizadas”; no contágio rápido, geram-se “multidões heterogêneas”. Vê-se então que não é apenas o indivíduo ativo que é doente; o indivíduo passivo também sempre o é, ao contrário do que propunham Lasègue e Falret (1877LASÈGUE, C.; FALRET, J. La folie à deux. Annales Médico-Psychologiques, n.18, p.321-55, 1877.).

De fato, segundo Lasègue e Falret, no caso da “loucura imposta”, na qual só o íncubo é alienado, o súcubo é um “faux malade”; nos dois outros casos aceitos de loucura a dois, o de “loucura simultânea” e de “loucura comunicada”, ambos os membros da relação são alienados. Ainda de acordo com Lasègue e Falret, a loucura a dois obedece a uma lógica circular: compartilhando um mesmo ambiente, o elemento ativo e o passivo vivem as mesmas expectativas e medos, e reforçam mutuamente a crença no delírio compartilhado. Nesse sentido, é o elemento passivo que inicia o processo de coordenar a loucura, dando-lhe uma aparência plausível e internamente consistente (Nina Rodrigues, 2006, p.48-9).

Ora, contra Sighele, Lasègue e Falret, Nina Rodrigues quer provar que a loucura imposta, que segundo ele ocorre nos fenômenos de psicose coletiva, é apenas um caso atenuado de loucura comunicada: os dois membros da relação são alienados. Os mestiços do Brasil, especialmente dos sertões, pertencem, ainda de acordo com Nina Rodrigues, a uma raça inferior, intrinsecamente doente. O Brasil, em seu interior, não tem nenhuma semelhança com as saudáveis sociedades europeias, sendo antes uma sociedade feudal governada por descendentes “degenerados” dos colonizadores e habitada por uma população afetada por um estado de multidão mórbida (Nina Rodrigues, 2006, p.99) - ou seja, a doença já estava lá o tempo todo, de forma latente, esperando ser despertada.

Íncubos e súcubos

Euclides refere-se a Sighele uma única vez em Os sertões, mas não é certo que, na época da redação do livro, já conhecia as críticas que Nina Rodrigues dirigiu ao cientista italiano em “A loucura das multidões”, uma vez que esse artigo foi publicado apenas em 1901.6 6 “A loucura das multidões; nova contribuição ao estudo das loucuras epidêmicas no Brasil”, foi publicado nos Annales médico-psychologiques, janeiro-agosto de 1901. Seu contato com a obra de Nina Rodrigues é, porém, suficiente para apontar certas similaridades importantes. Se nos fiarmos na interpretação proposta por Nina Rodrigues, concordaremos que o ponto central da teoria de Sighele é composto por duas teses, solidárias entre si: 1- que a psicose das multidões não é propriamente um caso de loucura a dois, mas apenas uma modalidade de hipnotismo em que somente o transmissor do contágio é o doente; 2- que, portanto, não sendo uma doença, a psicose coletiva torna as multidões imputáveis juridicamente por seus eventuais crimes, enquanto o transmissor poderia ter sua pena amenizada, devido a sua condição psíquica.

Euclides aparentemente não retém essas duas teses de Sighele ao explicar o caso de Canudos, pois ele condena a República e, seguindo a opinião de Nina Rodrigues, absolve tanto o meneur (Antonio Conselheiro) quanto a multidão que enlouqueceu juntamente com ele. No entanto, ao examinarmos o contexto em que aparece a menção feita por Euclides a Sighele, é significativo notar que a teoria desse autor é usada para diagnosticar os habitantes do litoral, e não os sertanejos. Nesse contexto, contra Nina Rodrigues e seguindo a opinião de Sighele, a imputabilidade jurídica dos citadinos corresponde exatamente aos desígnios da denúncia de um crime em Os sertões, uma vez que a acusação lançada contra o exército pode ser estendida a todos aqueles que apoiaram suas ações, ou seja, a maioria dos habitantes dos centros urbanos. Mas tal denúncia não se faz sem que, por isso mesmo, e ao contrário dos sertanejos, os citadinos não sejam caracterizados como loucos. Afinal - e aqui Euclides segue Nina Rodrigues -, era às raças inferiores que se deveria atribuir a predisposição atávica para a loucura.

Os meneurs da psicose coletiva do litoral foram, segundo Euclides, primeiramente, o marechal Floriano Peixoto e, após sua morte, alguns participantes de seu governo, alguns tribunos, mas, sobretudo, a imprensa e as ruas. Mas esses últimos apenas se aproveitavam da situação para lucrar politicamente. O meneur mais importante talvez tenha sido outro, um homem mentalmente “desequilibrado”, o coronel Moreira César. Euclides caracterizou esse último como um doente, físico e mental. Fisicamente, “[a] fisionomia inexpressiva e mórbida completava-lhe o porte desgracioso e exíguo” (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.275). Mentalmente, “[t]inha o temperamento desigual e bizarro de um epilético provado, encobrindo a instabilidade nervosa de doente em placidez enganadora” (ibidem, p.276). Estava assim montado o processo acusatório de Os sertões: seria preciso condenar os que se aproveitaram daquele momento de surto coletivo bem como a própria multidão que se deixou enganar e inocentar Moreira César e Floriano Peixoto, ambos vítimas de uma doença individual que não puderam controlar.7 7 Em seu artigo “O Marechal de ferro”, publicado pelo O Estado de S. Paulo em 29 de junho de 1904 e republicado, em 1907, no livro Contrastes e confrontos, Floriano Peixoto é caracterizado por Euclides como um “eterno convalescente” (Cunha, 1995, v.1, p.131). Ao longo do texto, Euclides desenvolve uma análise médica, e também um tanto cômica, do líder apático e depressivo.

Como vimos, ao se voltar para o caso de Canudos, Euclides não o trata da mesma maneira: ao invés de um caso de “loucura imposta”, seguindo a classificação de Lasègue e Falret, Canudos seria um exemplo de “loucura comunicada”, sendo assim inimputáveis tanto o meneur quanto a multidão. Isso não o impede de descrever com dureza tanto Moreira César quanto Antonio Conselheiro, pois a concepção de doença mental adotada por Euclides o levava a afirmar que elas são as responsáveis por muitas das perversões morais, elas mesmas entendidas como patologias.8 8 Se pode haver julgamento moral, é porque a doença só pode se instalar no paciente caso esse último tenha uma predisposição atávica a contraí-la, o que é o indício de uma perversidade moral. Sobre esse ponto, ver Costa Lima (1997, p.65-6). No entanto, se as ações desses “doentes” morais devem ser condenadas, ambos deveriam, do ponto de vista jurídico, antes ser tratados pela medicina do que condenados pelos tribunais.

Todo o discurso médico de Os sertões estaria assim resolvido se uma ambiguidade final não o afetasse - e o afetasse justamente como a suspeita de que esse discurso médico ele mesmo seja apenas o sintoma de uma patologia oculta. De fato, em certos trechos do livro, Euclides, insensivelmente - e talvez inconscientemente -, abandona Sighele em favor de Nina Rodrigues. Nessa suspeita perturbadora, o próprio Euclides e seus concidadãos, os habitantes do litoral, seriam de alguma forma loucos à sua maneira e, portanto, também eles inimputáveis, vítimas ao invés de algozes.

Essa suspeita é identificável, por exemplo, na mesma passagem que faz a etiologia da doença mental de Moreira César examinada acima. Lemos a certa altura do texto:

A retração criminosa da maioria pensante do país permitia todos os excessos; e no meio da indiferença geral todas as mediocridades irritadiças conseguiram imprimir àquela quadra, felizmente transitória e breve, o traço mais vivo que a caracteriza. (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.273)

Notemos bem: a loucura que assolou as cidades litorâneas foi um crime (“Uma retração criminosa”, diz o texto), mas ela também foi, “felizmente”, afirma aliviado Euclides, “transitória e breve”, mero reflexo pálido da verdadeira doença que assolava o interior do Brasil.

Mais adiante, Euclides chega a duvidar da “força da raça” que habitava a costa brasileira. Vale a pena aqui citar um longo e famoso trecho, no qual ele narra a loucura paranoica que afetou os habitantes do litoral, a qual culminou no empastelamento de jornais monarquistas no Rio de Janeiro:

A rua do Ouvidor valia por um desvio das caatingas. A correria do sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro. E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. Não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral. O homem do sertão, encourado e bruto, tinha parceiros porventura mais perigosos. [....] A força portentosa da hereditariedade, aqui, como em toda a parte e em todos os tempos, arrasta para os meios mais adiantados - enluvados e encobertos de tênue verniz de cultura - trogloditas completos. Se o curso normal da civilização em geral os contém, e os domina, e os manieta, e os inutiliza, e a pouco e pouco os destrói, recalcando-os na penumbra de uma existência inútil, de onde os arranca, às vezes, a curiosidade dos sociólogos extravagantes, ou as pesquisas da psiquiatria, sempre que um abalo profundo lhes afrouxa em torno a coesão das leis eles surgem e invadem escandalosamente a História. (ibidem, p.332)

Toda essa passagem é precedida e seguida por dúvidas e hesitações sobre sua validade: “Valerá a pena defini-los?”, pergunta-se Euclides a respeito desses episódios - afinal, eles são apenas “o reverso fatal dos acontecimentos, o claro-escuro indispensável aos fatos de maior vulto”, e não têm, portanto, “outra função, nem outro valor; não há analisá-los”. Como corolário dessas hesitações, ele conclui finalmente: “Deixemo-los; sigamos” (ibidem).

O importante a se notar nessa passagem é que, ao suspender o juízo sobre o estatuto mental e jurídico dos habitantes do litoral - seriam eles afinal simples criminosos ou loucos inimputáveis? -, Euclides silencia sobre si mesmo. O autor ocupa potencialmente assim, em Os sertões, uma dupla posição, a de médico e de paciente - ou melhor, a de um médico que acabou por se infectar pela doença contagiosa que examinava.

A princípio, ao se deslocar para o sertão baiano como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, Euclides se colocou no lugar do cientista que examina uma doença endêmica, o surto que tomou conta de Canudos. No entanto, ao escrever o livro, Euclides inscreve-se, aqui e ali, no interior da “raça inferior” que habita o Brasil (na correspondência que se segue a sua volta à “civilização”, vez por outra ele se caracteriza como um “caboclo”, ou mesmo como um “jagunço”). A “força portentosa da hereditariedade” manifestou-se igualmente nele e em seus conterrâneos do litoral, de tal modo que também eles foram acometidos por uma doença mental - e, na verdade, pela mesma doença mental que afetara os sertanejos. Euclides, o jornalista que escrevia a favor do massacre de Canudos antes de adentrar os sertões, era um doente que só foi percebido como tal por Euclides, o escritor de Os sertões. Podemos até mesmo conjecturar que ele só pôde se perceber como doente quando, ao relatar anos depois a campanha de Canudos, o fez sob o signo do momento em que, adoentado no front da guerra, viu-se a si mesmo, através da reflexão propiciada pela escrita, no espelho dos sertanejos. A República revelou-se, assim, apenas como um outro Canudos.

Se a loucura das multidões o contaminou, bem como a seus conterrâneos citadinos, levando-o a uma reação irracional contra Canudos, foi também uma forma de contágio que o curou - afinal de contas, a empatia que sentiu pelos sertanejos não deixa de ser um caso ameno de contágio: uma comoção simpática, uma identidade de destinos, a mesma que o livro é capaz de transmitir a seus leitores. Em uma anotação privada de 1902, em que registra a recepção de Os sertões, Euclides observa que “a natureza do assunto” aí tratado “estabelece entre ele e o narrador uma harmonia perfeita de pensar e sentir, um contágio permanente de emoções idênticas” sendo então normal que “a sua atividade cerebral por um fenômeno vulgar da psicologia, ao fim de algum tempo, vibre nessa intensidade de sentimentos que cria a admiração” (Cunha, 1995CUNHA, E. da. Euclides da Cunha. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995. 2v., v.2, p.618, grifo meu). Como Lawrence da Arábia, Euclides, e com ele seu leitor, entraram em um devir-selvagem que lhes permitiu reconhecer-se como doentes. Ou ainda, como o alienista de Machado de Assis, Euclides pôde finalmente autodiagnosticar a loucura que antes só reconhecia nos outros.9 9 Na entrada de 26 de setembro de 1897, está registrada uma suspeita que atravessa todo o Diário de uma expedição, a desconfiança de que aquele episódio particular encobria um significado oculto. Eis a frase que a exprime: “Não nos iludamos. Há em toda essa luta uma feição misteriosa que deve ser desvendada” (Cunha, 1995, v.2, p.584). Não seria talvez exagerado tomar trechos como esse, repetidos diversas vezes à medida em que Euclides avança em direção a Belo Monte, como os primeiros sintomas de sua contaminação pela loucura dos jagunços - isto é, como o início de sua cura.

Conclusão

O silêncio de Euclides sobre seu processo de conversão de algoz a defensor de Canudos explica-se assim, ao menos em parte, pelo fato de tal silêncio equivaler à cura de uma doença contagiosa que, uma vez eliminada, permitiu a visão equilibrada dos fatos.

Ao menos em parte, mas não inteiramente. Afinal, já recuperado, nada o impediria de reconhecer que fora vítima de uma doença contagiosa, o que o eximiria de culpa. Se tivesse feito isso, ele teria deixado claro que suas antigas opiniões não deveriam ser levadas a sério. Ao silenciar e, ao mesmo tempo, adotar uma posição que o eximia de culpa, Euclides pode ser criticado, senão pelo que ele identificou como uma doença, ao menos por esse silêncio monolítico que se seguiu à cura.

Assim, ao lermos a famosa última frase do livro (“É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”), a menção ao psiquiatra forense Henry Maudsley (1835-1818), um lamarckiniano que formulou a tese da degenerescência progressiva das espécies ao longo do tempo, situa decisivamente o crime ao lado da doença. Essa frase comenta o transporte da cabeça de Antonio Conselheiro para o litoral. “Que a ciência dissesse a última palavra”, sentencia Euclides. E essa última palavra de fato foi dada por ninguém menos do que por Nina Rodrigues. Antonio Conselheiro morreu (provavelmente de disenteria) pouco antes da tomada de Belo Monte pelas tropas do exército brasileiro. Uma das primeiras providências dos oficiais no comando, antes de destruírem completamente a cidade, foi a diligência para encontrar seu corpo. A essa altura já enterrado e em decomposição, dele fizeram uma famosa fotografia, reproduzida em todo o país: era importante provar que o inimigo estava morto. Entretanto, antes de abandonarem o corpo, um último ritual mórbido teve lugar: o cadáver foi decapitado.

Esse gesto bárbaro não era simplesmente uma forma ritualizada de vingança, própria de sociedades ditas “primitivas”. No caso de Antonio Conselheiro, a decapitação ocorreu por motivos políticos, ligados à produção de uma imagem que dissuadisse futuras rebeliões, mas ela não deixou de ser justificada também por interesses científicos: seu crânio foi enviado à Bahia, de modo a ser examinado pelo psiquiatra forense Nina Rodrigues.10 10 Eis como Nina Rodrigues narra o modo como teve acesso ao crânio do revoltoso: “Na hora em que acabávamos nosso artigo precedente sobre esta epidemia, uma notícia telegráfica anunciava-nos a tomada de Canudos. Antônio Conselheiro havia morrido alguns dias antes, tendo sido inumado seu cadáver no santuário de uma igreja em construção. Tinha sido anunciada e prometida a ascensão celeste do profeta, havendo a crença nesta ascensão penetrado no espírito do povo.

O que esse episódio mostra claramente é que a civilização litorânea tinha (tem) seus próprios rituais de extermínio de seus inimigos. A psicologia das massas era essa religião, e Nina Rodrigues, seu oficiante, ambos a serviço dos mecanismos de controle social das sublevações. Não podemos nos esquecer de que o próprio Nina Rodrigues, além de médico e etnólogo, era um criminologista respeitado. Portanto, a decapitação de Antonio Conselheiro foi, ao mesmo tempo, o mais requintado ato de vingança promovido pela República militarizada contra a comunidade de Belo Monte, e também uma última tentativa de se comunicar com seu inimigo, retirando dele, pela ciência, informações que ajudassem o Estado a impedir novas revoltas e a melhor esmagar os revoltosos do futuro.

Mas não foi apenas a ciência forense quem deu a última palavra sobre o caso de Canudos. O próprio Euclides, em meio a seu silêncio sobre diagnóstico dessa patologia coletiva - uma doença que afetou os sertanejos e ele mesmo -, acabou por produzir sua mais extensa síntese, a saber, o próprio livro intitulado Os sertões. De fato, se, em certo sentido, sua mudança de opinião não foi tematizada particularmente em nenhuma passagem do livro, isso ocorreu porque ela foi o objeto de uma infinita loquacidade por parte de Euclides: Os sertões, em sua totalidade, é esse pronunciamento. Que ele tenha a forma de uma descrição do fracasso na consolidação da “raça brasileira” 11 11 Com o fim de impedir o desenvolvimento desta fé, como também para impedir a crença na fuga de Antônio Conselheiro, as autoridades exumaram seu cadáver para estabelecerem sua identidade e procederem à autopsia. A cabeça foi separada, sendo-me o crânio oferecido pelo médico chefe da expedição, o major Dr. Miranda Cúrio. Encontra-se atualmente no laboratório de medicina legal da Bahia” (Nina Rodrigues, 2006, p.88). apenas mostra que, no lugar da psiquiatria forense, seu autor preferiu tomar por modelo uma outra ciência em ascensão em sua época, a biologia eugenista (Gumplowicz no lugar de Sighele). É o projeto eugênico, afinal de contas, que será o paradigma da biopolítica do começo do século XX e será ela o operador da síntese ético-política promovida pelo livro.

A ausência de uma autocrítica explícita que servisse como penitência dos erros passados explicar-se-ia, portanto, pelo fato de que o projeto da obra nunca foi o de resgatar os oprimidos da injustiça de que foram vítimas: “Não tive o intuito de defender os sertanejos”, escreve Euclides na nota à segunda edição de Os sertões, “porque este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque” (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.560).

Quanto a Nina Rodrigues, ele estudou a cabeça de Antonio Conselheiro segundo os princípios da frenologia, concluindo pela normalidade do crânio do líder revoltoso, embora isso não o impedisse de diagnosticá-lo como portador de uma “psicose sistematizada primitiva, do delírio crônico de Magnan” (Nina Rodrigues, 2006, p.88).

Referências

  • COSTA LIMA, L. Imitação e contágio. In: Terra ignota. A construção de Os sertões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. p.57-90.
  • CUNHA, E. da. Euclides da Cunha. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995. 2v.
  • ______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016.
  • GALVÃO, W. N. Fortuna crítica. In: CUNHA, E. da. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016.
  • LASÈGUE, C.; FALRET, J. La folie à deux. Annales Médico-Psychologiques, n.18, p.321-55, 1877.
  • NINA RODRIGUES, R. As coletividades anormais. Brasília: Edições do Senado Federal, 2006.

Notas

  • 1
    No Diário de uma expedição, escrito na frente de batalha, Euclides em nenhum momento deixa de se referir aos habitantes de Canudos como os “inimigos” de “nossas armas”.
  • 2
    Walnice Nogueira Galvão assinala que o título desse artigo, que “chegou a rotular provisoriamente Os sertões” (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.620), fez muito sucesso, inspirando outros tantos e motivando a contratação de Euclides pelo mesmo jornal para cobrir a campanha de Canudos. “A nossa Vendeia” contém em si uma protoversão de Os sertões, abordando, nesta ordem, a terra, o homem e a luta, mas a comparação entre Belo Monte o departamento francês é usada, no artigo jornalístico, para corroborar uma suposta conspiração monarquista, enquanto, no livro, retém apenas outros aspectos (culturais, políticos, militares) presentes em ambos.
  • 3
    A coletânea foi organizada pelo médico Arthur de Araújo Pereira Ramos.
  • 4
    Como mostra Costa Lima (1997, p.72), referindo-se a Euclides (mas a mesma observação seria válida também para Nina Rodrigues), “o evolucionismo, ao entrar nos trópicos, provocava no intelectual a sensação do mais vivo desgarre. Para ele, a espera do futuro se tornava a quase única motivação”.
  • 5
    O comportamento dos sertanejos “não traduzia o mais pálido intuito político: o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional” (Cunha, 2016______. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu Editora; Edições Sesc São Paulo, 2016., p.191).
  • 6
    “A loucura das multidões; nova contribuição ao estudo das loucuras epidêmicas no Brasil”, foi publicado nos Annales médico-psychologiques, janeiro-agosto de 1901.
  • 7
    Em seu artigo “O Marechal de ferro”, publicado pelo O Estado de S. Paulo em 29 de junho de 1904 e republicado, em 1907, no livro Contrastes e confrontos, Floriano Peixoto é caracterizado por Euclides como um “eterno convalescente” (Cunha, 1995CUNHA, E. da. Euclides da Cunha. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995. 2v., v.1, p.131). Ao longo do texto, Euclides desenvolve uma análise médica, e também um tanto cômica, do líder apático e depressivo.
  • 8
    Se pode haver julgamento moral, é porque a doença só pode se instalar no paciente caso esse último tenha uma predisposição atávica a contraí-la, o que é o indício de uma perversidade moral. Sobre esse ponto, ver Costa Lima (1997, p.65-6).
  • 9
    Na entrada de 26 de setembro de 1897, está registrada uma suspeita que atravessa todo o Diário de uma expedição, a desconfiança de que aquele episódio particular encobria um significado oculto. Eis a frase que a exprime: “Não nos iludamos. Há em toda essa luta uma feição misteriosa que deve ser desvendada” (Cunha, 1995CUNHA, E. da. Euclides da Cunha. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995. 2v., v.2, p.584). Não seria talvez exagerado tomar trechos como esse, repetidos diversas vezes à medida em que Euclides avança em direção a Belo Monte, como os primeiros sintomas de sua contaminação pela loucura dos jagunços - isto é, como o início de sua cura.
  • 10
    Eis como Nina Rodrigues narra o modo como teve acesso ao crânio do revoltoso: “Na hora em que acabávamos nosso artigo precedente sobre esta epidemia, uma notícia telegráfica anunciava-nos a tomada de Canudos. Antônio Conselheiro havia morrido alguns dias antes, tendo sido inumado seu cadáver no santuário de uma igreja em construção. Tinha sido anunciada e prometida a ascensão celeste do profeta, havendo a crença nesta ascensão penetrado no espírito do povo.
  • 11
    Com o fim de impedir o desenvolvimento desta fé, como também para impedir a crença na fuga de Antônio Conselheiro, as autoridades exumaram seu cadáver para estabelecerem sua identidade e procederem à autopsia. A cabeça foi separada, sendo-me o crânio oferecido pelo médico chefe da expedição, o major Dr. Miranda Cúrio. Encontra-se atualmente no laboratório de medicina legal da Bahia” (Nina Rodrigues, 2006, p.88).
  • 12
    A crônica cosmológica desse fracasso explica como o isolamento populacional dos sertanejos forjou sua “índole”, protegendo-os do contato com uma alteridade que teria podido testar e aumentar sua força.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2023
  • Aceito
    02 Jul 2023
Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo Rua da Reitoria,109 - Cidade Universitária, 05508-900 São Paulo SP - Brasil, Tel: (55 11) 3091-1675/3091-1676, Fax: (55 11) 3091-4306 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: estudosavancados@usp.br