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Capitalismo de dados e guerras estéticas

RESUMO

O presente artigo propõe-se a explorar a natureza da articulação formada entre os seguintes fenômenos sociotécnicos e histórico-econômicos: (i) a vivência do consumo enquanto experiência de subjetividade, e (ii) as transformações ocorridas nos mercados globais ao longo dos últimos 40 anos, em que dois eixos nos interessam: de um lado, as tecnologias digitais como aparatos de produção de subjetividade virtualizada, e de outro, as guerras híbridas, centradas formação e controle de sensibilidades e percepções junto às populações.

PALAVRAS-CHAVE:
Consumo; Economia da experiência; Capitalismo de plataformas; Capitalismo de dados; Guerras híbridas; Guerras estéticas

ABSTRACT

This article proposes to explore the very nature of the jointure formed by the following sociotechnical and historical-economic phenomena: (i) consumption as an experience of subjectivity, and (ii) the transformations that occurred in global markets over the last 40 years, where two axes are crucial: on the one hand, the digital technologies as devices for the production of virtual subjectivity, and on the other, the hybrid wars, centered on the formation and control of sensibilities and perceptions among the populations.

KEYWORDS:
Consumption; Experience economy; Platform capitalism; Data capitalism; Hybrid wars; Aesthetic wars

Introdução

A pesquisa “State of the Connected Customer”1 1 Duas edições da pesquisa “State of the Connected Customer“ foram consideradas para esta investigação: a terceira edição - pré-pandemia da Covid-19 - realizada entre 2 e 18 de abril de 2019, junto a pouco mais de 8 mil clientes corporativos e consumidores finais de 16 mercados, excluindo Brasil; e a quinta edição, a mais recente, conduzida entre 8 de dezembro de 2021 e 1 de fevereiro de 2022, cobrindo quase 17 mil clientes corporativos e consumidores finais, em 29 mercados, incluindo Brasil. realizada pela empresa americana Salesforce ao longo dos últimos cinco anos traz interessantes achados, úteis à compreensão dos tempos atuais do capitalismo digital global. A mais recente edição da pesquisa aponta que (i) 88% dos consumidores entrevistados2 2 Isso representa uma elevação em relação à terceira edição da pesquisa cujo índice para essa consulta foi de 84%. declaram que a experiência que uma empresa proporciona é tão importante quanto seus produtos e serviços; e que (ii) 73% esperam que as empresas compreendam suas necessidades e expectativas individuais.3 3 Ante os 66% da edição de 2020 da pesquisa “State of the Connected Customer”. Observe-se ainda que a terceira edição dessa pesquisa, executada antes da pandemia, mostra que 66% dos entrevistados se diziam dispostos a pagar mais para ter acesso a ótimas experiências.

Partindo dessa pesquisa, o que pretendemos aqui demonstrar é o duplo nexo existente entre a vivência do consumo nas sociedades contemporâneas, e (i) o papel das tecnologias e plataformas digitais na condição de aparatos de produção de subjetividades, em conjunto com (ii) a nova natureza das guerras populações, mercados e mentes a uma mesma lógica de formação e controle de percepções.

Definindo experiência de consumo

Partiremos da noção de experiência como um estado mental, vale dizer idiossincrásico, que resulta da interação do consumidor, por intermédio de suas capacidades cognitiva, afetiva, sensorial e conativa (Park et al., 2008PARK, J.; STOEL, L.; LENNON, S. Cognitive, affective and conative responses to visual simulation: The effects of rotation in online product presentation. Journal of Consumer Behaviour, v.7, n.1, 2008. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/cb.237
https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1...
, p.74), com a proposta de valor de uma empresa (Scussel, 2021SCUSSEL, F.; FOGAÇA, N.; DEMO, G. Consumption experience: proposal for a unifying concept, Brazilian Journal of Marketing, v.20, n.1. Jan.-Mar. 2021., p.192). Note-se que (i) o estado mental que resulta dessa interação diz respeito não apenas à exposição direta do consumidor a produtos e serviços, como também à exposição indireta via atendimento, propaganda, notícias, opiniões etc. (Schwager; Meyer, 2007SCHWAGER, A.; MEYER, C. Understanding Customer Experience. Harvard Business Review, February 2007., p.2); e (ii) a experiência de consumo não necessariamente se traduz em prazer4 4 É o caso das situações de consumo viciante (ex.: jogos) ou de endividamento descontrolado. e positividade (Fontenelle, 2020FONTENELLE, I. Redes de desejo ou de gozo? Experiencia de consumo e novos agenciamentos tecnológicos, Revista de Administração de Empresas, FGV EAESP, v.60, n.4, julho-agosto, 2020. https://doi.org/10.1590/S0034-759020200406
https://doi.org/10.1590/S0034-7590202004...
, p.301). Por fim, (iii) o estado mental resultante expressa um valor experiencial que, em última instância, é o que impulsiona o ato de consumo.

O que a pesquisa supracitada confirma é a clara exacerbação, na perspectiva do consumo, da experiência como traço mais saliente e valioso nas relações econômicas de entre empresas e clientes. Mais que isso, fica evidente a expectativa, por parte dos consumidores, de que processos de compra e de comunicação sejam pautados por abordagens personalizadas nas quais as empresas reconheçam e gratifiquem o time span de atenção que recebem, e o façam de forma ágil. É o que 71% dos entrevistados5 5 Como apontado na terceira edição da pesquisa “State of the Connected Customer”. indicaram, ao declarar que esperam que as companhias se comuniquem consigo, em tempo real.

Pode-se, portanto, dizer que na era digital, atenção permanente e satisfação contínua são premissas para a fruição de experiências positivas de consumo. E sendo assim, negócios e marcas passam a enfrentar, na realidade dos mercados, um enorme desafio: a gestão informatizada dos diversos pontos de contato que mantêm com sua clientela, real ou potencial (prospects). É crucial não somente conhecer os dados de identificação civil de clientes, mas também o que compram, como, por que e onde o fazem. Esses e outros tantos momentos das vivências pessoais, sejam de consumo, entretenimento, sejam outras tantas, fornecem valiosos dados transacionais (compra ou venda), psicográficos ou sociodemográficos que as empresas podem transformar em bases de dados, ou dito de outra forma, em representações acionáveis de clientes (perfis e clusters, com diferentes níveis de granularidade), com ajuda de ferramentas de análise de dados, de CRM ou de CEM6 6 Sistemas de CEM podem ser encarados como engenhos computacionais dedicados à gestão de subjetividades ou, em termos deleuzianos (Mischke, 2021, p.601), instrumentos de controle postos a transformar pessoas em agentes de desejos modulados. (Computer Experience Management).

O que se conclui até aqui é que a experiência de consumo como experiência subjetiva formada a partir da ativação de estados mentais nos consumidores só se torna possível e efetiva porque as tecnologias digitais o viabilizam. E o fazem por meio de big data, ferramentas de processamento e análise, e plataformas de acionamento de campanhas supersegmentadas. Em última instância tais ferramentas apresentam-se como dispositivos de produção de subjetividade virtual.

Economia da experiência

Não é novo o entendimento de que as interações de consumo positivas e memoráveis entre empresas e clientes vêm a ser importante pilar da estratégia dos negócios, em particular, no ramo de bens de consumo (Fontenelle, 2020FONTENELLE, I. Redes de desejo ou de gozo? Experiencia de consumo e novos agenciamentos tecnológicos, Revista de Administração de Empresas, FGV EAESP, v.60, n.4, julho-agosto, 2020. https://doi.org/10.1590/S0034-759020200406
https://doi.org/10.1590/S0034-7590202004...
, p.299). Experiências exclusivas, diferenciadas, funcionam como antídotos ao “fantasma” da comoditização7 7 Pine e Gilmore (1998, p.30) falam sobre tal “fantasma” como momentos do mercado no quais “diferenciação desaparece, margens despencam, e clientes compram apenas com base em preço”. de bens e serviços e, portanto, são oportunidades para criação de valor econômico. A esse estágio das economias de mercado, Pine e Gilmore (1998) chamaram de era da economia da experiência. Trata-se de uma peculiar dinâmica das relações de consumo em que as características de produtos ou serviços importam tanto quanto a maneira pela qual seus consumidores as conhecem, percebem e usufruem. É como se a própria vivência de sensações e emoções fosse, ela própria, uma mercadoria (Fontenelle, 2020, p.300). É exatamente isso que a pesquisa suprareferida “State of the Connected Customer” (Salesforce, 2022) torna evidente ao reportar que 88% dos seus entrevistados declaram que a experiência que uma empresa proporciona, per se, é tão importante quanto seus produtos e serviços!

Pine e Gilmore recorrem, no desenvolvimento de sua visão, à metáfora da representação teatral onde “negócios são como palcos”. A imagética do palco (stage) remete a espaços e ambientações - um restaurante, loja, ou museu - onde compradores acessam, desfrutam e adquirem bens e serviços, suas qualidades e atributos, como que em uma coreografia de sensações “emocionais, físicas, intelectuais ou mesmo espirituais” (Pine; Gilmore, 1998, p.46). Há por certo uma atmosfera de alguma ficcionalidade a permear tais ambientes e que alguns descrevem como biosferas de marca, a saber, espaços físicos e psicológicos onde elementos temáticos e representações oferecem a clientes um universo ao qual esses aspirem pertencer (Nadeu, 2007, p.14). Desde Starbucks à Apple, das lojas American Girl ao Palazzo Versace em Dubai, passando pela Disneyworld, todos esses são exemplos de territórios temáticos orientados à vivência personalizada, narcísica8 8 Pesquisas recentes confirmam correlação entre o uso intensivo de mídias sociais, em especial as que oferecem interfaces visuais (ex.: Facebook), e o reforço em seus usuários de traços de personalidade narcísica, do tipo exibicionista (Reed, 2019). e “instagramável” do consumo. Destinam-se, portanto, à conformação na mente dos consumidores, de estados mentais de satisfação pulsional ou de gozo (Fontenelle, 2020FONTENELLE, I. Redes de desejo ou de gozo? Experiencia de consumo e novos agenciamentos tecnológicos, Revista de Administração de Empresas, FGV EAESP, v.60, n.4, julho-agosto, 2020. https://doi.org/10.1590/S0034-759020200406
https://doi.org/10.1590/S0034-7590202004...
, p.301). Palcos onde o consumo e a subjetividade se encontram.

A mobilização de aspirações, frustrações, crenças, preferências e outros traços da psicologia dos consumidores é o que está no cerne da economia da experiência. Todos esses aspectos da subjetividade humana que forjam o núcleo narrativo dos indivíduos e lhes dá unicidade e sentido são convocados e articulados de modo a criar valor econômico. O assim chamado retailtainment 9 9 Neologismo criado pelo sociólogo George Ritzer (2009, p.178) para explicar a convergência do marketing de varejo com o entretenimento. É o caso de varejistas de tênis que conectam street art, música e estilo de vida ao posicionamento de seus produtos. é exatamente sobre isso.

A economia da experiência epitomiza a emergência das sociedades pós-industriais onde a “realidade corpórea, emocional, linguística, criativa e vivente foi encampada pela produção de valor” (Berardi, 2009BERARDI, “BIFO” F. The soul at work - from alienation to autonomy. Trad. Francesca Cadel e Giuseppina Mecchia. Semiotext(e), 2009., p.109). A lógica do consumo capitalista contemporâneo não se atém apenas à fabricação de aspirações à base de campanhas publicitárias para grandes audiências. Um passo além foi dado: trata-se agora de conectar temáticas e tramas às tecnologias digitais com vistas a fabricar identidades virtualizadas por meio de jogos, redes sociais, metaversos, chatGPT e similares, ou ainda séries de Netflix. Os ambientes digitais transmutam a experiência de consumo em memória permanente de vida. Eis o cerne da economia dos intangíveis.

A economia dos intangíveis

A economia da experiência é a expressão, no plano do Marketing, do que os economistas ingleses Jonathan Haskel and Stian Westlake (2018HASKEL, J.; WESTLAKE, S. Capitalism without capital: the rise of the intangible economy. Princeton University Press, 2018., p.18) chamaram de economia dos intangíveis. Ao redor de 2007-2008 (período da grande recessão da bolha imobiliária norte-americana), o investimento de empresas em ativos intangíveis já superava o existente em ativos tangíveis, na Europa e nos Estados Unidos. Quando falamos de intangíveis estamos nos referindo a ativos tais como patentes, software, branding, o design de um produto, modelos de negócio, entre outros. Empresas-plataforma como Uber (que oferece serviços de taxi, sem frotas de carros), Airbnb (que oferece hospedagem sem possuir imóveis), ou Apple, Google e Microsoft10 10 “O valor de mercado da Microsoft em 2006 era de cerca de US$ 250 bilhões. [...] De acordo com os livros contábeis da empresa [...] cerca de US$ 60 bilhões eram dinheiro em caixa e outros instrumentos financeiros [...] os tradicionais ativos de instalações e equipamentos representavam apenas US$ 3 bilhões [...] 1% de seu valor de mercado” (Haskel; Westlake, 2018, p.5). são aqui bons exemplos. Essas companhias são players reconhecidos por escalarem seus negócios a partir de ativos intangíveis (software e reputação), explorando efeitos de rede, e expandindo assim o domínio sobre seus mercados (Haskel; Westlake 2018, p.67). A essência desse desdobramento do capitalismo contemporâneo é o que Haskel e Westalke vêm a chamar de “capitalismo sem capital”; e decorre de um complexo de fenômenos que se cristalizaram ao longo dos últimos 50 anos.11 11 As oportunidades de crescimento e inovação que se apresentam para a assim chamada economia dos intangíveis, são significativas; porém, não menos relevantes são os desafios à frente. Como bem observado por (Hazan et al., 2021, s.p.), “Essa nova forma emergente de capitalismo é potencialmente maravilhosa para pessoas qualificadas com habilidades altamente portáveis, mas um pouco mais assustadora para os menos qualificados e menos experientes digitalmente. As empresas que não têm recursos para fazer os investimentos necessários em intangíveis também podem ficar para trás. A economia desmaterializada, se não for bem administrada, corre o risco de ser uma receita para a desigualdade”. Vejamos cada um em mais detalhe.

Primeiramente, destaquemos o fenômeno da concentração de capital nas mãos de bancos e fundos de pensão (Chesnais, 2005CHESNAIS, F. A finança mundializada - Raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo, 2005., p.26). Como amplamente reconhecido, foi tal dinâmica que propiciou uma ascendência do capital financeiro sobre o capital industrial, que por seu turno acarretou extraordinários e duradouros impactos sociais, políticos e regulatórios, em escala global. Tais impactos podem ser constatados na flexibilização dos mercados de trabalho, na popularização dos métodos leves e ágeis de produção e gestão, na mobilidade geográfica das operações de produção, e na facilitação da circulação de capitais. O sociólogo Ilan Lapyda sintetiza bem o quadro de características da “financeirização” global, própria do capitalismo atual:

Embora em última instância o capital financeiro não possa prescindir da valorização produtiva, a desregulamentação dos fluxos de capital em nível mundial o colocou em primeiro plano. A queda do índice de investimento na produção, com a consequente “atonia” do setor industrial; o surgimento de atores econômicos centrais pertencentes à esfera financeira; o fim de um dinheiro mundial mercadoria, a partir da abolição do lastro-ouro do dólar, que amplia exponencialmente a possibilidade de criação de meios de pagamento; o surgimento da governança corporativa e outras medidas que têm colocado a valorização das ações das empresas como metas mais importantes que o lucro oriundo da produção de mercadorias; crises econômicas frequentes e de origem financeira, entre outros fatores, indicam o surgimento de novas formas de interpenetração da “finança” com a “indústria”, em benefício da primeira. (Lapyda 2011LAPYDA, I. A “financeirização” no capitalismo contemporâneo: uma discussão das teorias de François Chesnais e David Harvey. São Paulo, 2011. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo., p.50)

O segundo fenômeno a somar-se na consolidação da economia dos intangíveis foi a cristalização dos novos espaços de acumulação viabilizados por inovações nas tecnologias da informação e comunicação. Essa nova base técnica sustenta a progressiva “abstratificação” digital do trabalho concreto, ou seja, sua transmutação em algoritmos, redes neuronais e massas de dados, tornando assim “revivido”, o trabalho morto e armazenado em ambientes virtuais, acionável por interfaces multimodais. Esse processo de “abstratificação” afeta não apenas a dimensão do trabalho, mas também as atividades de consumo, entretenimento e comunicação, como fica evidenciado no duradouro hype ao redor da economia digital. Cabe aqui lembrar Franco Berardi (2009BERARDI, “BIFO” F. The soul at work - from alienation to autonomy. Trad. Francesca Cadel e Giuseppina Mecchia. Semiotext(e), 2009., p.108) quando esse nos fala de uma nova modalidade de alienação - não a da clássica reificação, do “eu tornado coisa” (própria da era do industrialismo fordista), mas alienação por desmaterialização (própria da economia digital) onde acentua-se a separação patogênica entre funções cognitivas e a socialidade material. Certamente é fácil notar este processo na popularização das tecnologias de comunicação remota (ex.: Zoom) durante a pandemia de Covid-19 ou ainda no sucesso das plataformas de games, ou mesmo nas ondas midiáticas da realidade virtual, metaversos ou inteligência artificial.

O terceiro fenômeno que se articula aos demais no quadro do capitalismo dos intangíveis é a elevação do intelecto à condição de importante forma da força de trabalho (Gorz, 2004GORZ, A. Misérias do presente, riqueza do possível. São Paulo: Annablume, 2004., p.13). O capitalismo pós-industrial insere recursos cognitivos humanos - encarnados e expressos como saber vivo - na atividade produtiva, flexibilizados sob distintos regimes de alocação de tempo - dedicado, independente ou mesmo voluntário. Memória, linguagem, atenção e afeto passam assim à condição de fatores psico-cognitivos da produção e do consumo.

Por fim, há ainda a destacar o fenômeno da mutação da tradicional figura do consumidor em um híbrido consumidor-produtor, dito prosumidor - termo esse cunhado pelo futurista Alvin Toffler. Prosumidores são agentes individuais de mercado que consomem e produzem valor, seja para autoconsumo, seja para consumo de terceiros. Há um amplo leque de tipos atendendo a tal definição - dos que consertam seus próprios eletrodomésticos, aos criadores de conteúdos que produzem e distribuem suas criações pela internet (ex.: podcasts) ou ainda os que criam produtos apenas vendidos sob demanda (ex.: armações de óculos personalizadas). Há, nesses casos, elementos de criatividade, autonomia, empreendedorismo e espírito de colaboração que não necessariamente têm como contrapartida remuneração ou outra modalidade de compensação material. Foucault (2021FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. Trad. Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2021., p.287) já notara no Nascimento da biopolítica que o neoliberalismo traz consigo um entendimento de que consumo não é simples troca, mas uma prática em que o consumidor é produtor ao produzir sua própria satisfação - produzindo a si próprio. É possível dizer-se ainda que usuários engajados em plataformas de redes sociais, criando, curtindo e comentando posts atuam na condição de prosumidores uma vez que, ao acessarem e consumirem conteúdos de terceiros, acabam por produzir dados (e metadados12 12 Metadados são dados de segunda ordem. Metadados capturam aspectos do comportamento de usuários que não são declarados ou indicados de forma direta. Por exemplo, localização geográfica, dia e hora em que uma ação é executada, ou ainda o tipo de dispositivo usado para conexão. ) de ordem pessoal que abastecem os algoritmos das plataformas. Tal matéria-prima torna possível o cálculo algorítmico de tipos mensuráveis (Chenney-Lippold, 2017, p.19) - os divíduos 13 13 Segundo Deleuze, “a linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação [...] Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’” (Deleuze, 1992, p.222). Nessa formulação antecipatória de Deleuze, as sociedades de controle têm no marketing um “instrumento de controle social” (ibidem, p.224) por meio do qual indivíduos são segmentados numericamente de forma contínua e tem seus traços dividualizantes, combinados de modo a atender necessidades de governos (ex.: políticas de estado) e corporações (ex.: campanhas de cross-selling e up-selling). - que vêm a formar os ativos de audiência monetizáveis pelas plataformas que são comercializados na forma de anúncios e dados para anunciantes, agências de propaganda ou consultorias. Em última análise, prosumidores são, nesse caso particular, dividualidades produzindo e consumindo subjetividade na forma de experiências, serviços e conteúdos digitais.

Retornamos novamente à pesquisa “State of the Connected Customer” (Salesforce 2022). Lá se constata que 69% dos consultados esperam que suas experiências sejam conectadas (integrando todos os pontos de contato - da loja física ao Whatsapp), e 64% esperam ter sua experiência customizada a partir de dados armazenados sobre suas interações passadas. Ou seja, na era da economia da experiência, os clientes declaram-se confortáveis em terem seus dados, compras e interações servindo aos sistemas das empresas ou às bases de audiência das plataformas. As contrapartidas esperadas pelos consumidores são sensações gratificantes como exclusividade, agilidade ou mesmo preços menores. É dessa forma que a materialidade do consumo se liquidifica, assumindo a forma intangível do prazer movido a fluxos de dados digitalizados, no palco da economia da experiência.

Analisamos a lógica do capitalismo dos intangíveis a partir de quatro fenômenos: (i) a “financeirização” da economia global, (ii) a base técnica digital de “abstratificação” do trabalho e do consumo, (iii) o intelecto elevado à condição de importante forma da força de trabalho e, (iv) o papel dos prosumidores postos a produzir e consumir subjetividade, alimentando de dados os sistemas de marketing e plataformas digitais, em escala global. Contudo, há uma outra dimensão relevante a considerar.

A rede global de data centers que hospedam gigantescas infraestruturas algorítmicas (Mischke, 2021MISCHKE, D. Deleuze and the Digital: On the Materiality of Algorithmic Infrastructures, Deleuze and Guattari Studies, v.15, n.4, p.593-609, 2021., p.599) trouxe à cena uma transformação radical: a imbricação entre tecnologias de gestão corporativa e as redes sociais nas quais conteúdo, comunicação e entretenimento se mesclam na vida cotidiana atual. Tomemos o caso da Meta (Facebook) que oferece às empresas, com a marca Workplace, uma solução destinada a incrementar produtividade e colaboração entre equipes. O Workplace emprega a mesma “gramática” que todos os usuários do Facebook conhecem e usam no plano da vida privada, há anos. Basicamente são os mesmos conceitos (amigos, posts, likes, comentários etc.), a mesma lógica e os mesmos recursos, só que agora em um outro registro, o da vida profissional.

Uma chamada no website oficial do Workplace avisa candidamente que foram reunidas “ferramentas familiares para que as pessoas possam conversar e trabalhar juntas” como se estivessem numa comunidade (Workplace, 2022). Não há necessidade de aprender novos comandos e conceitos porque há uma racionalidade técnica comum que passa a conectar o mundo da vida pessoal privada ao mundo do trabalho e dos negócios. Nestas condições, potencialmente metade da população do planeta14 14 Havia, em junho de 2022, aproximadamente, 3 bilhões de usuários globalmente ativos na rede social do Meta. Disponível em: <https://www.statista.com/statistics/264810/number-of-monthly-active-facebook-users-worldwide/>. já está treinada para usar o Workplace, uma vez que domina a linguagem da plataforma. Analogamente, isso também ocorre com o Google, Microsoft e outros. Em última instância, os tech players hoje dominantes (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft) vêm se tornando ambientes midiático-cognitivo-informacionais, padronizados e globalizados, onde a interação dos usuários - seja no papel de trabalhadores, estudantes, pesquisadores, criadores ou consumidores - com suas funcionalidades e interfaces, seguem as mesmas regras e critérios de usabilidade (Santaella, 2014SANTAELLA, L. Mídia, participação e entretenimento em tempos de convergência. Revista GEMInIS, Edição Especial (JIG 2014), p.4-7, 2014. Disponível em: <https://www.revistageminis.ufscar.br/index.php/geminis/article/view/175/145>.
https://www.revistageminis.ufscar.br/ind...
, p.5), configurando, pois, uma espécie de língua franca.

Fato incontornável é que os tech players constituíram-se ao longo dos últimos 25 anos, numa infraestrutura algorítmica global, consistente, multilíngue, massiva e pervasiva, inédita na história humana. É bem verdade que originalmente tais companhias foram guiadas por uma visão altruísta, tal como organizar a informação do mundo (Google), dar às pessoas o poder de construir comunidades e aproximarem-se (Facebook), ou ainda dar a todos o poder de criar e compartilhar ideias instantaneamente e sem barreiras (X [Twitter]). Porém, o traço romântico presente no nascimento dessas grandes plataformas de serviços digitais (e presente também na revolução californiana15 15 Disponível em: <https://www.wired.com/story/hackers-at-30-hackers-and-information-wants-to-be-free/>. dos computadores) veio sendo progressivamente calibrado pelas forças do mercado, pelos investidores ou pelo jogo geopolítico global.16 16 Disponível em: <https://uscpublicdiplomacy.org/blog/treating-facebook-geopolitical-actor>. As plataformas digitais globais de mídia, serviços e dados tornaram-se instrumentos comerciais primordialmente voltados a mapear e influenciar sensibilidades, escolhas e psiques,17 17 Disponíveis em: <https://www.publichealth.columbia.edu/public-health-now/news/just-how-harmful-social-media-our-experts-weigh />. E <https://www.ft.com/content/1f409239-9e4a-4988-b6fa-cad4dbe7c344>. sob o pretexto da entrega “sob medida” de conteúdos e serviços relevantes para seus usuários. Ainda que haja entre elas importantes diferenças, até mesmo no que tange à dinâmica de propagação de informações ou formação da opinião (Cinelli et al., 2021CINELLI, M. et al. The echo chamber effect on social media, PNAS, v.118, n.9, 2021. https://doi.org/10.1073/pnas.2023301118
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, p.2), as plataformas são hoje, ao fim e ao cabo, aparatos de produção de subjetividade.

Em última instância, propusemos até aqui que o capitalismo dos intangíveis, a financeirização das economias, e o alcance da economia das plataformas (movida a dados, conteúdos e sistemas de IA) são aspectos de um mesmo fenômeno: o da mercantilização das subjetividades. A virtualização de identidades, gostos, relacionamentos, conteúdos de toda sorte, e conhecimento humano, na condição de ativos intangíveis (do perfil do X [Twitter] ao chatGPT). Tudo é classificável, segmentável e acionável comercialmente - do tweet transformado em NFT18 18 Fundador do Twitter Jack Dorsey transformou seu primeiro tweet na plataforma, em NFT. Disponível em: <https://www.coindesk.com/business/2022/04/13/jack-dorseys-first-tweet-nft-went-on-sale-for-48m-it-ended-with-a-top-bid-of-just-280/>. aos dados pessoais trocados por ações para mitigação de impactos ambientais.19 19 Ver: <https://tribaldata.com>. Torna-se assim evidente a articulação entre a (i) vivência do consumo como experiência subjetiva, e (ii) a dinâmica do capitalismo contemporâneo dos intangíveis: de conteúdos a títulos financeiros, de marketplaces de NFT a dados pessoais, o primeiro emerge do segundo como a dança emerge de corpos em movimento. Transações financeiras, consumo, informação, subjetividade e a vida ordinária são confeccionados a partir da mesma matéria prima, o fluxo imaterial digital.

Guerras estéticas e a nova forma da guerra

Há um eixo conectando a narrativa da economia da experiência, a lógica do capitalismo intangível, o papel das plataformas digitais enquanto aparatos de produção de subjetividade e a nova natureza e função da guerra (Alliez; Lazzarato, 2020ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerras e capital. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu, 2020., p.335). A governamentalidade neoliberal pôs em curso um movimento sagaz, qual seja, a persistência da guerra por meio da paz (ibidem, p.311). A razão de fundo desse deslocamento não foi outra senão atender às necessidades da circulação globalizada de capitais humanos, possibilitar a preservação funcional dos arranjos globais produtivos e assegurar a continuidade de operações econômico-financeiras multimercado. Alliez e Lazzarato (2020, p.320), refletindo sobre essa temática, denominaram tal movimento como uma “revolução organizacional do capital”.

O modelo clássico da guerra industrial em que conflitos militares se desenvolvem entre estados-nação com ocupações de terreno, destruição, mortes e rendição, foi relativizado. Diz o general britânico Rupert Smith:20 20 Sir Rupert Smith, destacado oficial e estrategista militar que atuou por décadas em diferentes postos e campanhas militares, da Ásia aos conflitos na Bósnia. “os fatores que mais ameaçam a segurança ‘nacional’ (já) não são tanto as forças militares de um Estado inimigo quanto os fatores econômicos como a apropriação de recursos, a captura de mercados, o controle de capitais, as sanções comerciais” (apud Alliez; Lazzarato, 2020ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerras e capital. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu, 2020., p.329).

O contexto do capitalismo tecno financeiro dos intangíveis exige um paradigma da guerra a que o supracitado general chamará de “guerra no seio da população” 21 21 Conceito elaborado no livro The Utility of Force onde enuncia: “nosso combate é no seio das populações, não no campo de batalha” (apud Alliez; Lazzarato, 2020, p.340). (a war amongst the people). Não por referência às caçadas de terroristas e subversivos, ao menos não especialmente. A guerra em meio a populações22 22 O termo “população” não descreve um todo monolítico, um coletivo social de máximo anonimato. Populações são agrupamentos formados por religiões, etnias, famílias, funcionários de estado, empresários e outros agentes cuja diversidade e dinâmica de interesses, reduz a previsibilidade de qualquer intervenção (Alliez; Lazzarato, 2020, p.343). significa que não há um front definido, e que a população mesma é o terreno sobre o qual se atua. A população torna-se ator e fator preponderante e, sobre ela, múltiplas ações devem ser desenvolvidas, em longa duração, e com especial atenção para a comunicação (ibidem, p.342). A supressão física do adversário não está excluída, mas antes disso o objetivo primário é a ocupação dos espaços intangíveis da subjetividade e da cognição (memória, atenção e linguagem), com vistas a exercer o “controle da percepção do inimigo” (ibidem, p.348). A mídia de massas (digital ou convencional) torna-se, pois, arma fundamental, e a disrupção psicológica, tão importante quanto a destruição material.23 23 Papa Francisco, em julho de 2016, fez lúcido comentário sobre o tema das guerras: “O mundo está em estado de guerra, em pedaços... Não é uma guerra de religião. Não. Há uma guerra de interesses. Há uma guerra por dinheiro. Há uma guerra pelos recursos naturais. Há uma guerra pela dominação dos povos. Esta é a guerra” (apud Lazzarato; Alliez, 2016). A ação militar passa destarte a pautar-se pela compreensão situacional do terreno humano, penetrando rente à realidade “na microescala da vida civil cotidiana” (Alliez; Lazzarato, 2020ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerras e capital. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu, 2020., p.349).

Influenciar percepções, formar opiniões e despertar sensibilidades são os alvos centrais dos movimentos aos quais chamaremos guerras estéticas.24 24 Empregamos a palavra “estética” na acepção filosófica clássica que nos remete a Aristóteles: estética como aisthesis, como percepção sensorial que provê material para formar o entendimento e o conhecimento. Nesta acepção, “estética” adquire sentido epistemológico dizendo respeito a sentimentos, representações e conceitos. A literatura militar especializada trabalha o conceito de “guerra de percepção” envolvendo não apenas a resposta dos adversários, mas também dos aliados (Sousa, 2008) (Friman, 1999). Propomos o conceito de “guerras estéticas” por enfatizar a resposta das populações às ações que afetam sensibilidades, gostos e modificam condutas. São modos de combate, voltados à gestão da percepção, e cujas medidas “visam atrair ou desorientar [...] o sentimento de segurança que uma sociedade [...] experimenta em relação ao conhecimento que tem de si...” (Alliez; Lazzarato, 2020ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerras e capital. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu, 2020., p.351). Entendemos que as ações de guerra pela percepção, as guerras estéticas, compõem o arsenal de ferramentas das guerras híbridas, mas com estas não se confundem. Guerras híbridas se caracterizam pela “interação ou fusão de instrumentos convencionais e não convencionais de poder e ferramentas de subversão [...] para explorar vulnerabilidades de um antagonista e obter efeitos sinérgicos”. Nesta perspectiva, a linha que separa as guerras, dos tempos de paz, torna-se pouco nítida, e os ataques (híbridos) tendem a ser marcados pela imprecisão. Essa nebulosidade é intencionalmente induzida pelos agentes de campo, de modo a complicar tanto a atribuição quanto a resposta. “Em outras palavras, o país visado não é capaz de detectar um ataque híbrido ou não é capaz de atribuí-lo a um estado que possa perpetrá-lo ou patrociná-lo” (Bilal, 2021BILAL, A. Hybrid Warfare - New Threats, Complexity, and “Trust” as the Antidote. Nato Review, 30 de novembro de 2021. Disponível em: <https://www.nato.int/docu/review/articles/2021/11/30/hybrid-warfare-new-threats-complexity-and-trust-as-the-antidote/index.html>. Acesso em: 25 set. 2022.
https://www.nato.int/docu/review/article...
).

Exemplos concretos de guerras estéticas e híbridas25 25 Para efeito deste trabalho, deixaremos de lado a distinção entre guerras híbridas e guerras políticas (Panait, 2015). são as diversas revoluções “coloridas” que varreram nações do Leste Europeu, do Oriente Médio e da América Latina, a partir dos 2000. Via de regra, tomando lugar em países com democracias frágeis, essas intervenções foram marcadas por ações diretas por parte da população (algumas vezes brutalmente reprimidas por forças de segurança), e abastecidas por discursos liberalizantes pró-ocidentais por exemplo, ao redor de pautas autonomistas, étnicas ou identitárias (Leirner 2020LEIRNER, C. P. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida. São Paulo: Alameda, 2020., p.173). Em maior ou menor grau, tais movimentos se beneficiaram extraordinariamente do poder de engajamento e de propagação próprio das plataformas digitais. O Brasil não foi exceção na lista de nações afetadas por incursões híbridas de desestabilização política (ibidem, p.25).

Propomos que guerras estéticas sejam compreendidas como modalidades de disputa pela formação de sensibilidades (o que emociona ou captura atenção) e de percepções (p. ex.: o que é bom ou é justo e o que é mau). No âmbito de guerras híbridas, guerras estéticas servem a objetivos militares ou geopolíticos. Mas há outros territórios para exercício de guerras estéticas: a competição por mercados de consumo e de opinião. Campanhas publicitárias e de comunicação são instrumentos para guerras estéticas que elegem targets, para informar opções e influenciar preferências. Da mesma forma, guerras estéticas podem ser deflagradas para influenciar a opinião de setores ou populações inteiras, como ocorre(u) no Brasil por ocasião do Projeto de Lei n.2630, de 2020 (a Lei das Fake News). Nesse episódio específico, os media tech players foram weaponizados (por usuários e por si próprios) para atuar sobre sensibilidades e percepções de milhões de brasileiros. A capilaridade das plataformas digitais e a semiose de suas interfaces de uso, tornou-as um espaço de combate privilegiado e permanente para guerras estéticas - de concorrência de marcas a preferências musicais, de conteúdos verdadeiros a perfis pessoais, tudo está em disputa na guerra do “fazer crer”, na guerra pelas subjetividades.

Weaponização das plataformas

Importa notar a posição central que os media tech players ocupam na cena ao prover meios técnicos de conectividade e serviços, essenciais à implementação das guerras estéticas. Há características desses ambientes que os tornam altamente instrumentalizáveis como armas de combate (weapons): sua audiência massiva e global, acesso móvel e sem fronteiras geográficas, agilidade na publicação de conteúdos e mensagens, anonimato, propagação rápida, e o mais estratégico: o registro permanente de todas as interações dos usuários entre si e com a plataforma. Em especial, a coleta e análise de mensagens, publicações e comentários a partir de critérios como geolocalização, sentimento e temática, tem enorme valor. Ao cruzar tais análises com o perfil dos usuários, suas redes e históricos, tem-se valiosíssimo material para compreensão situacional, antecipação de crises, escolha de alvos e orientação de ações de comunicação (ex.: peças publicitárias, fake news) e distração de grupos, populações e da opinião pública local e global (OTAN, 2016).

E é assim que o teatro de operações do capitalismo contemporâneo tem agora, a seu dispor, a infraestrutura semiótica das redes sociais e dos serviços de busca cujo alcance é transnacional e, ao mesmo tempo, hiperlocal! Potencialmente qualquer pessoa ou objeto26 26 A assim chamada “internet das coisas” - formada por sensores, smart tags, e software embarcado em qualquer objeto físico - parece constituir-se em um novo vetor de ataque, no contexto das guerras híbridas. é univocamente endereçável em tempo real podendo ser interceptado e instado a uma ação. Conteúdo e propaganda são os meios para levar a mensagem a esse(s) alvo(s). Pessoas em qualquer contexto (doméstico, pessoal ou de trabalho - pois já não há mais distinção!) podem ser impactadas. E quanto mais se responde ao conteúdo recebido, menos diversificado ele se torna, mais nítido o alvo se torna para a vigilância. A cada nova e singular busca por conteúdo emerge um micro momento da verdade que no linguajar militarizado do próprio Google, é como uma “batalha por corações, mentes e dólares (a ser) vencida ou perdida...” (Ramaswamy, 2015RAMASWAMY, S. How Micro-Moments Are Changing the Rules. Think with Google, 2015. Disponível em: <https://www.thinkwithgoogle.com/marketing-strategies/app-and-mobile/how-micromoments-are-changing-rules/>. Acesso em: 25 set. 2022.
https://www.thinkwithgoogle.com/marketin...
). Micromomentos que abrem janelas de acesso às intenções e às necessidades corriqueiras das populações, “na microescala da vida civil cotidiana”. Micromomentos que disparam conteúdos para (de)formação de opinião ou (des)informação, alinhados aos objetivos estratégicos da guerra híbrido-estética em andamento.

Tomemos um exemplo: em 2016, o Google lançou o “The Redirect Method”, uma técnica de programação na web criada para interceptar usuários que procurassem conteúdos extremistas, e redirecioná-los para conteúdos opostos, contrários a ideologias radicais. Quando tal campanha se encerrou, o Google abriu essa tecnologia para outros programadores.27 27 Disponível em: <https://moonshotteam.com/the-redirect-method/>. Patrick Berlinquette,28 28 Disponível em: <https://www.nytimes.com/2019/07/07/opinion/google-ads.html?smid=url-share>. um especialista em marketing digital, usou então a mesma técnica para direcionar, com sucesso, usuários suicidas para uma linha direta de ajuda. Como analisar essa interessante aplicação da tecnologia de busca do Google que tem o mérito de servir ao interesse público? Essa técnica explicita a natureza intrinsecamente biopolítica da engine de busca e propaganda do Google. A cada procura, a cada micromomento, vê-se a máquina de software da plataforma, by design, agir a um só tempo na vigilância e no mapeamento de condutas.

Temos nas disputas de narrativa ao redor do Projeto de Lei n.2630 um exemplo muito semelhante. Pesquisa promovida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro demonstra que media tech players como Google, Meta e Spotify anunciaram e veicularam conteúdos contra o PL, influenciando, de forma intensa o debate público e burlando seus próprios termos de uso.29 29 “A guerra das plataformas contra o PL 2630”, NetLab Blog (2023), disponível em: <https://www.netlab.eco.ufrj.br/blog/a-guerra-das-plataformas-contra-o-pl-2630.amp>.

Alliez e Lazzarato (2020ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerras e capital. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu, 2020., p.346) alertam-nos que, na era da guerra como governamentalidade, antes de apontar para a destruição (seja no campo doméstico, seja no estrangeiro) tem-se por objetivo “as ações, as condutas, a subjetividade do adversário”. Mas quem são os civis? Quem são os combatentes? Onde estão os focos de combate? Em toda a parte: a nova forma da guerra mimetiza a paz.

Conclusão

O capitalismo plataformizado dos intangíveis modela dividualidades por intermédio de volumes massivos de dados extraídos dos “rastros” digitais deixados por transações comerciais e financeiras, atividades de navegação on-line, fatos declarados, ou bases de dados existentes. Tais identidades virtualizadas, calculadas e aperfeiçoadas por sistemas de governamentalidade (vigilância, avaliação, CEM, CRM etc.) entram em cena habilitando o consumo experiencial e a vida ficcionalizada (Reis, 2011REIS, A. Marcas e mundos virtuais. In: BEIGUELMAN, G. (Org.) HTTPpix HTTPvideo: criação e crítica nas redes de imagens. São Paulo: Instituto Sergio Motta, 2011. p.62-65., p.64). Identidades virtuais não se definem por corpos, mas por comportamentos. Importa a previsibilidade de tais comportamentos porque, desse modo, condutas podem ser monitoradas e ainda comercializadas na forma de mídia altamente segmentada, e de produtos personalizados30 30 Gilmore e Pine (2000, p.18), em Markets of One, celebram a chegada das economias de mercado à era onde cada cliente, seja consumidor ou empresa, já não precisará mais sujeitar suas necessidades específicas, às ofertas padronizadas em escala industrial. on demand. Vigilância e mídia são itens de primeira escolha nas guerras estéticas - da publicidade comercial às guerras geopolíticas.

O capitalismo de dados dá ensejo à fantasmagoria31 31 No sentido próximo ao que Walter Benjamim adota, a saber, o de uma criação social que carrega consigo a ilusão de naturalidade, sendo que na prática é apenas um constructo humano de base econômica e técnica. de uma fake-subjetividade algorítmica, erguida por sobre dados e sistemas computacionais, sendo modulável, de tempo real, micro endereçável, global e amena à dinâmica da obsolescência contínua de produtos, processos e métodos de produção (Reis, 2011REIS, A. Marcas e mundos virtuais. In: BEIGUELMAN, G. (Org.) HTTPpix HTTPvideo: criação e crítica nas redes de imagens. São Paulo: Instituto Sergio Motta, 2011. p.62-65., p.65).

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Notas

  • 1
    Duas edições da pesquisa “State of the Connected Customer“ foram consideradas para esta investigação: a terceira edição - pré-pandemia da Covid-19 - realizada entre 2 e 18 de abril de 2019, junto a pouco mais de 8 mil clientes corporativos e consumidores finais de 16 mercados, excluindo Brasil; e a quinta edição, a mais recente, conduzida entre 8 de dezembro de 2021 e 1 de fevereiro de 2022, cobrindo quase 17 mil clientes corporativos e consumidores finais, em 29 mercados, incluindo Brasil.
  • 2
    Isso representa uma elevação em relação à terceira edição da pesquisa cujo índice para essa consulta foi de 84%.
  • 3
    Ante os 66% da edição de 2020 da pesquisa “State of the Connected Customer”.
  • 4
    É o caso das situações de consumo viciante (ex.: jogos) ou de endividamento descontrolado.
  • 5
    Como apontado na terceira edição da pesquisa “State of the Connected Customer”.
  • 6
    Sistemas de CEM podem ser encarados como engenhos computacionais dedicados à gestão de subjetividades ou, em termos deleuzianos (Mischke, 2021MISCHKE, D. Deleuze and the Digital: On the Materiality of Algorithmic Infrastructures, Deleuze and Guattari Studies, v.15, n.4, p.593-609, 2021., p.601), instrumentos de controle postos a transformar pessoas em agentes de desejos modulados.
  • 7
    Pine e Gilmore (1998, p.30) falam sobre tal “fantasma” como momentos do mercado no quais “diferenciação desaparece, margens despencam, e clientes compram apenas com base em preço”.
  • 8
    Pesquisas recentes confirmam correlação entre o uso intensivo de mídias sociais, em especial as que oferecem interfaces visuais (ex.: Facebook), e o reforço em seus usuários de traços de personalidade narcísica, do tipo exibicionista (Reed, 2019REED, P. Narcissism and Social Media: Should We Be Afraid? Psychology Today. Junho de 2019. Disponível em: <https://www.psychologytoday.com/gb/blog/digital-world-real-world/201909/narcissism-and-social-media-should-we-be-afraid>.
    https://www.psychologytoday.com/gb/blog/...
    ).
  • 9
    Neologismo criado pelo sociólogo George Ritzer (2009RITZER, G. Enchanting a Disenchanted World: Continuity and Change in the Cathedrals of Consumption. 3.ed. s.l.: SAGE Publications, 2009., p.178) para explicar a convergência do marketing de varejo com o entretenimento. É o caso de varejistas de tênis que conectam street art, música e estilo de vida ao posicionamento de seus produtos.
  • 10
    “O valor de mercado da Microsoft em 2006 era de cerca de US$ 250 bilhões. [...] De acordo com os livros contábeis da empresa [...] cerca de US$ 60 bilhões eram dinheiro em caixa e outros instrumentos financeiros [...] os tradicionais ativos de instalações e equipamentos representavam apenas US$ 3 bilhões [...] 1% de seu valor de mercado” (Haskel; Westlake, 2018HASKEL, J.; WESTLAKE, S. Capitalism without capital: the rise of the intangible economy. Princeton University Press, 2018., p.5).
  • 11
    As oportunidades de crescimento e inovação que se apresentam para a assim chamada economia dos intangíveis, são significativas; porém, não menos relevantes são os desafios à frente. Como bem observado por (Hazan et al., 2021HAZAN, E.; HASKEL, J.; WESTLAKE, S. The Rise of Intangible Capitalism. Project Syndicate, 12 de novembro de 2021. Disponível em: <https://www.project-syndicate.org/commentary/intangible-assets-new-model-for-capitalism-by-eric-hazan-et-al-2021-11>.
    https://www.project-syndicate.org/commen...
    , s.p.), “Essa nova forma emergente de capitalismo é potencialmente maravilhosa para pessoas qualificadas com habilidades altamente portáveis, mas um pouco mais assustadora para os menos qualificados e menos experientes digitalmente. As empresas que não têm recursos para fazer os investimentos necessários em intangíveis também podem ficar para trás. A economia desmaterializada, se não for bem administrada, corre o risco de ser uma receita para a desigualdade”.
  • 12
    Metadados são dados de segunda ordem. Metadados capturam aspectos do comportamento de usuários que não são declarados ou indicados de forma direta. Por exemplo, localização geográfica, dia e hora em que uma ação é executada, ou ainda o tipo de dispositivo usado para conexão.
  • 13
    Segundo Deleuze, “a linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação [...] Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’” (Deleuze, 1992, p.222). Nessa formulação antecipatória de Deleuze, as sociedades de controle têm no marketing um “instrumento de controle social” (ibidem, p.224) por meio do qual indivíduos são segmentados numericamente de forma contínua e tem seus traços dividualizantes, combinados de modo a atender necessidades de governos (ex.: políticas de estado) e corporações (ex.: campanhas de cross-selling e up-selling).
  • 14
    Havia, em junho de 2022, aproximadamente, 3 bilhões de usuários globalmente ativos na rede social do Meta. Disponível em: <https://www.statista.com/statistics/264810/number-of-monthly-active-facebook-users-worldwide/>.
  • 15
    Disponível em: <https://www.wired.com/story/hackers-at-30-hackers-and-information-wants-to-be-free/>.
  • 16
    Disponível em: <https://uscpublicdiplomacy.org/blog/treating-facebook-geopolitical-actor>.
  • 17
    Disponíveis em: <https://www.publichealth.columbia.edu/public-health-now/news/just-how-harmful-social-media-our-experts-weigh />. E <https://www.ft.com/content/1f409239-9e4a-4988-b6fa-cad4dbe7c344>.
  • 18
    Fundador do Twitter Jack Dorsey transformou seu primeiro tweet na plataforma, em NFT. Disponível em: <https://www.coindesk.com/business/2022/04/13/jack-dorseys-first-tweet-nft-went-on-sale-for-48m-it-ended-with-a-top-bid-of-just-280/>.
  • 19
    Ver: <https://tribaldata.com>.
  • 20
    Sir Rupert Smith, destacado oficial e estrategista militar que atuou por décadas em diferentes postos e campanhas militares, da Ásia aos conflitos na Bósnia.
  • 21
    Conceito elaborado no livro The Utility of Force onde enuncia: “nosso combate é no seio das populações, não no campo de batalha” (apud Alliez; Lazzarato, 2020ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerras e capital. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu, 2020., p.340).
  • 22
    O termo “população” não descreve um todo monolítico, um coletivo social de máximo anonimato. Populações são agrupamentos formados por religiões, etnias, famílias, funcionários de estado, empresários e outros agentes cuja diversidade e dinâmica de interesses, reduz a previsibilidade de qualquer intervenção (Alliez; Lazzarato, 2020ALLIEZ, E.; LAZZARATO, M. Guerras e capital. Trad. Pedro Paulo Pimenta. São Paulo: Ubu, 2020., p.343).
  • 23
    Papa Francisco, em julho de 2016, fez lúcido comentário sobre o tema das guerras: “O mundo está em estado de guerra, em pedaços... Não é uma guerra de religião. Não. Há uma guerra de interesses. Há uma guerra por dinheiro. Há uma guerra pelos recursos naturais. Há uma guerra pela dominação dos povos. Esta é a guerra” (apud Lazzarato; Alliez, 2016LAZZARATO, M.; ALLIEZ, E. To our enemies. e-flux Journal, #78, Dezembro de 2016. Disponível em: <https://www.e-flux.com/journal/78/82697/to-our-enemies/>.
    https://www.e-flux.com/journal/78/82697/...
    ).
  • 24
    Empregamos a palavra “estética” na acepção filosófica clássica que nos remete a Aristóteles: estética como aisthesis, como percepção sensorial que provê material para formar o entendimento e o conhecimento. Nesta acepção, “estética” adquire sentido epistemológico dizendo respeito a sentimentos, representações e conceitos. A literatura militar especializada trabalha o conceito de “guerra de percepção” envolvendo não apenas a resposta dos adversários, mas também dos aliados (Sousa, 2008SOUSA, N. Guerra da Percepção. Trabalho de investigação individual. Instituto Universitário Militar / Estado-Maior-Geral das Forças Armadas, Portugal. Lisboa, 2008. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10400.26/11639>. Acesso em: 24 set. 2022.
    http://hdl.handle.net/10400.26/11639...
    ) (Friman, 1999FRIMAN, H. Perception Warfare: a perspective for the future. Discussion Paper. The Sweedish National Defense College, Department of Operational Studies, 1999. Disponível em: <https://universityofleeds.github.io/philtaylorpapers/pmt/exhibits/746/Friman(1999)PW.pdf>. Acesso em: 24 set. 2022.
    https://universityofleeds.github.io/phil...
    ). Propomos o conceito de “guerras estéticas” por enfatizar a resposta das populações às ações que afetam sensibilidades, gostos e modificam condutas.
  • 25
    Para efeito deste trabalho, deixaremos de lado a distinção entre guerras híbridas e guerras políticas (Panait, 2015PANAIT, I. The Hybrid War Concept - Arguments for and versus. Research and Science Today Journal, n.3, p.130-41, 2015.).
  • 26
    A assim chamada “internet das coisas” - formada por sensores, smart tags, e software embarcado em qualquer objeto físico - parece constituir-se em um novo vetor de ataque, no contexto das guerras híbridas.
  • 27
    Disponível em: <https://moonshotteam.com/the-redirect-method/>.
  • 28
    Disponível em: <https://www.nytimes.com/2019/07/07/opinion/google-ads.html?smid=url-share>.
  • 29
    “A guerra das plataformas contra o PL 2630”, NetLab Blog (2023), disponível em: <https://www.netlab.eco.ufrj.br/blog/a-guerra-das-plataformas-contra-o-pl-2630.amp>.
  • 30
    Gilmore e Pine (2000GILMORE, J. H.; PINE II, J. B. Introduction: Customization That Counts. In: ___. (Org.) Markets of One - Creating Customer-Unique Value. Harvard Business Review Press, 2000. p.vii-xxv., p.18), em Markets of One, celebram a chegada das economias de mercado à era onde cada cliente, seja consumidor ou empresa, já não precisará mais sujeitar suas necessidades específicas, às ofertas padronizadas em escala industrial.
  • 31
    No sentido próximo ao que Walter Benjamim adota, a saber, o de uma criação social que carrega consigo a ilusão de naturalidade, sendo que na prática é apenas um constructo humano de base econômica e técnica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2022
  • Aceito
    01 Jul 2023
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