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Equistatina como inibidor da reabsorção radicular ortodonticamente induzida: a essência não está no resumo e conclusões

INSIGHT ORTODÔNTICO

Equistatina como inibidor da reabsorção radicular ortodonticamente induzida: a essência não está no resumo e conclusões

Alberto Consolaro

Professor Titular em Patologia Bucal pela Faculdade de Odontologia de Bauru - USP

A ciência procura sempre a verdade absoluta, mas o relativismo da vida faz a verdade ser passageira, contextual, frágil e substituída a qualquer momento por uma nova forma de ver o mesmo fenômeno.

Na essência, o conhecimento científico deve ser metódico, reproduzível em qualquer lugar do mundo, desde que sob as mesmas condições e, principalmente, deve ser público, publicado ou disponibilizado. Quando um conhecimento novo é gerado e utilizado para ganhar dinheiro e poder, passamos para o campo da tecnologia.

Um trabalho, só porque foi publicado, não tem a chancela de bom, verdadeiro e inquestionável. Pelo contrário, agora publicado passará a ser analisado por todos, criticado, desprezado ou valorizado pela sua qualidade, ou seja, será citado como bom ou ruim, ou apenas ignorado, citado por poucos ou por ninguém.

Uma nova cultura poder-se-ia estabelecer e remover dos trabalhos os resumos e as conclusões. Muitos dos melhores periódicos do mundo não têm estas partes em seus artigos. Em trabalhos científicos, na medida do possível, recomenda-se evitar os adjetivos, priorizar os substantivos e verbos. Os resumos e conclusões representam a parte mais subjetiva de um trabalho, a mais carregada de adjetivos, talvez porque são feitos pelos próprios autores. Se nos trabalhos não houvessem resumos ou conclusões os leitores obrigatoriamente haveriam de ler o material e métodos e os resultados. Haveriam necessariamente que analisar melhor os artigos. Muitos colegas se atualizam pelos resumos, verdadeiros cartões de visitas de um artigo, carregados de adjetivos e argumentos implícitos de que o trabalho só apresenta virtudes e verdades inquestionáveis. Afinal, todos caprichamos muito em nossos cartões de visita ... ou não?

As conclusões são interpretativas e muitas vezes representam verdadeiras sínteses dos resultados. Muitas vezes, o início das conclusões está precedido por... com base na metodologia utilizada... ! E se a metodologia não foi adequada e apropriada, ao ler apenas o resumo e/ou as conclusões o leitor pode estar consumindo informação e conhecimento equivocados! E claro, retransmitirá isto para seus colegas, alunos e aplicará este "conhecimento" em sua prática clínica, ou melhor, em seus pacientes.

Quantas monografias, dissertações, teses e trabalhos são publicados com base apenas em leituras apressadas de resenhas, resumos e conclusões?

Em fevereiro de 2006, no American Journal of Orthodontics and Dentofacial Orthopedics, uma equipe de pesquisadores liderados por Talic8, de Riad, na Arábia Saudita, com outros pesquisadores de Chicago, nos Estados Unidos, avaliaram o efeito da equistatina como inibidor da reabsorção radicular induzida ortodonticamente (Inhibition of orthodontically induced root resorption with echistatin, an RGD-containing peptide).

No referido trabalho8 foram usados 14 ratos machos, divididos em 2 grupos experimentais: 7 receberam equistatina e 7 constituíram o grupo controle. O modelo experimental de movimentação dentária induzida escolhido utilizou bandas de elásticos aplicadas entre o primeiro e segundo molares superiores, preconizado em 1954 por Waldo e Rothblatt10.

A equistatina foi infundida em cateter na jugular interna durante 8h e 30min, imediatamente após a colocação da banda de elástico. Após 24h de movimento dentário, os animais foram mortos e o material coletado para análise com colorações especiais para os clastos. Na histomorfometria quantificou-se a quantidade de clastos e de reabsorção radicular, quanto ao percentual e número de lacunas na raiz mesiovestibular do primeiro molar superior. Não se apresentou fotomicrografias com clastos e lacunas na superfície, como se mostrou na superfície óssea.

Nos dentes do lado movimentado dos animais que receberam equistatina a quantidade de reabsorções radiculares foi estatisticamente semelhante à dos dentes do lado não movimentado. Ou seja o movimento dentário não aumentou ou diminuiu o número de clastos no ligamento periodontal. A diferença quanto ao percentual e superfície reabsorvida foi com o grupo de animais controle no lado movimentado com o lado movimentado do grupo experimental. O número de clastos não revelou diferenças entre os lados de pressão e de tensão nos dentes movimentados, quando imunomarcados e quantificados histomorfometricamente, tanto na raiz como na superfície óssea.

A conclusão foi: a equistatina, sistemicamente aplicada, inibe a reabsorção radicular induzida ortodonticamente e sugere o uso clínico deste esquema terapêutico. Conclui-se ainda que a equistatina não afeta a diferenciação, a proliferação e a migração de células clásticas.

Os questionamentos surgidos após a leitura deste trabalho nos remetem à necessidade de novos trabalhos sobre o tema, mas principalmente aflora a necessidade de critérios e design de metodologia adequados. Os corpos editoriais dos periódicos poderiam estar mais atentos. Estas são as razões que nos remeteram a estas reflexões, neste trabalho:

1) O modelo de movimentação dentária induzida em ratos com elásticos, na literatura, é reconhecidamente ruim, pois não se tem controle sobre a força aplicada, direção e tempo, enfim, é aleatório e impreciso. Não é metódico, não é reproduzível com segurança.

2) Sete animais em cada grupo, para tão nobre objetivo, é muito pouco. O tão nobre objetivo é: descobrir uma droga que inibe a reabsorção radicular em Ortodontia. No caso, a referida droga foi infundida em cateter por 8h e 30min, mas mesmo assim sugeriu-se, nas conclusões, a aplicação clínica do protocolo.

3) O primeiro molar superior de ratos representa um modelo maravilhoso de movimentação dentária experimental, principalmente quando se usa aparelhos fixos e não elásticos4. A raiz mesiovestibular é ideal, neste modelo, para se verificar o efeito de forças leves e moderadas. Nos períodos de 3, 5, 7 e 9 dias não se observam reabsorções nesta raiz, mesmo quando as forças aplicadas sobre este dente são intensas ou severas. Esta raiz é a maior do primeiro molar superior do rato e difunde homogeneamente as forças aplicadas. Quando ocorrem reabsorções neste modelo, elas ocorrem nas demais raízes do primeiro molar superior5,6,9.

4) O tempo experimental neste modelo para que ocorram reabsorções microscopicamente detectadas inicia em torno de 3 a 5 dias após a aplicação da força na raiz distovestibular e demais raízes e não na mesiovestibular2.

5) Nas primeiras 24h o ligamento se comprime e o osso alveolar sofre deflexão óssea e estes dois fenômenos permitem uma movimentação passiva do dente no alvéolo7. Neste período os clastos ainda não chegaram e se instalaram, não há organização de unidades osteorremodeladoras, lacunas de Howship, enfim neste período de 24 horas o ligamento periodontal está desorganizado, o mesmo ocorrendo com os osteoblastos e eventualmente com os cementoblastos1,3,7. Quantificar os clastos e estudá-los neste período não é exeqüível. É bem provável que os clastos analisados já estivessem ali presentes quando os animais foram submetidos ao experimento de 24h de duração.

6) Nas raízes dos molares de ratos eventualmente existem micro-áreas de reabsorção cementária e até dentinária. São áreas minúsculas e muito eventuais e esparsas, de tal modo que nem são consideradas nos estudos experimentais; provavelmente decorrentes de microtraumatismos na vestibular e mesial destes dentes durante a alimentação. Provavelmente foram estas as reabsorções detectadas pelos autores neste período experimental e nesta raiz. As fotomicrografias revelam estes aspectos morfológicos típicos da normalidade. A reabsorção dentária franca, explícita neste modelo experimental, ocorre na raiz distovestibular e não na mesiovestibular. Nos parece que o que foi observado faz parte habitual das variações morfológicas próprias dos dentes de ratos. O trabalho não mostra o que ocorreu com a raiz mesiodistal e nem porque não foi a escolhida para determinar a eficiência do medicamento. Há de se considerar ainda que neste período experimental, o uso de apenas 7 animais pode levar a equívocos interpretativos pelas casualidades proporcionadas pelo pequeno número de animais.

7) O microscópio de luz e a metodologia utilizada não oferecem oportunidade para avaliar a diferenciação, proliferação e migração de células. Para isto requer-se modelos de cultura celular, imunomarcação, marcadores de proliferação celular e radioautografia para detectar movimentação celular, e estas não foram aplicadas no trabalho examinado.

Depois de uma análise criteriosa do trabalho, estimulada pelos maravilhosos título, resumo e conclusões, percebi que deveria expressar minha esperança de que resumos e conclusões não fizessem parte de um trabalho científico. Assim aumentaria a possibilidade de que material e métodos, resultados e discussão fossem mais apreciados.

O resumo e as conclusões como porta de entrada de um trabalho científico têm grande valor. Mas me parece óbvio que todos compreendam que criei uma situação extrema ao sugerir a eliminação do resumo e conclusões, mas me parece mais óbvio ainda, reflexivo e extremo, que ao persistirem ambos os tópicos a maior parte das pessoas continuarão a lê-los exclusivamente, ignorando as demais partes tão importantes de um trabalho científico, pensando que estão adequadamente atualizadas.

REFERÊNCIAS

1. ANDREWS L. F. Forces (ten-hours theory) in the straigth-wire appliance: syllabus of philosophy and techniques. San Diego, 1975.

2. CONSOLARO, A. Reabsorções dentárias nas especialidades clínicas. 2. ed. Maringá: Dental Press International, 2005.

3. CUOGHI, O. A. Avaliação dos primeiros momentos da movimentação dentária induzida. Estudo microscópico em macacos Cebus apella. 1996. Tese (Doutorado)–Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo, Bauru, 1996.

4. HELLER, I. J.; NANDA, R. Effect of metabolic alteration of periodontal fibers on orthodontic tooth movement. An experimental study. Am J Orthod, St. Louis, v. 75, no. 3, p. 239-258, Mar. 1979.

5. MARTINS-ORTIZ, M. F. Influência dos bisfosfonatos na movimentação dentária induzida, na freqüência e nas dimensões das reabsorções radiculares associadas. 2004. Tese (Doutorado)-Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo, Bauru, 2004.

6. PEREIRA, A. A. C. Avaliação microscópica da influência de anticoncepcionais e gravidez na movimentação dentária induzida, em especial nos fenômenos da reabsorção dentária. Dissertação (Mestrado)-Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São Paulo, Bauru, 1995.

7. ROBERTS W. E.; GARETTO L. P.; KATONA, T. R. Principles of orthodontic biomechanics: metabolic and mechanical control mechanisms. In: CARLSON, D. S.; GOLDSTEIN, S. A. Bone biodynamics in orthodontic and orthopedic treatment. Ann Arbor: University of Michigan; Center for Human Growth and Development, 1992. Craniofacial Growth Series, v. 27.

8. TALIC, N. F.; EVANS, C.; ZAKI, M. Inhibition of orthodontically induced root resorption with echistatin, a RGD-containing peptide. Am J Orthod Dentofacial Orthop, St. Louis, v. 129, p. 252-260, 2006.

9. VASCONCELOS, M. H. F.; PEREIRA, A. A. C.; TAVEIRA, L. A. A.; CONSOLARO, A. A histologic movement in rats under contraceptive use. In: DAVIDOVITCH, A. (Ed.). Biological mechanisms of tooth eruption and replacement by implants. Boston: Harvard Society for the Advancement of Orthodontics, 1998. p. 539-543.

10. WALDO, C. M.; ROTHBLATT, J. M. Histologic response to tooth movement in the laboratory rat, procedure and preliminary observations. J Dent Res, Alexandria, v. 33, p. 481-486, 1954.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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