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Formas reificadas de referenciação relativas a personagens de narrativas afiliadas ao lendário amazônico

Reified forms of reference related to narrative characters affiliated with the legendary amazonian

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar, a partir dos pressupostos da Linguística Textual e do Sociocognitivismo, formas reificadas de referenciação relativas a personagens de narrativas afiliadas ao lendário amazônico. Tomo como fundamento teórico as postulações de Marcuschi (2007), Fillmore (1976FILLMORE, C.J. 1976. Frame semantics and the nature of language. In: HARNARD, S.R. (ed.). Origins and evolution of language and speech. New York: New York Academy of Sciences. p. 20-32., 1977_______. 1977. Scenes-and-frames semantics. In: ZAMPOLLI, A. (ed.). Linguistic Structures Processing: Fundamental Studies in Computer Science, No. 59, North Holland Publishing. p. 55-88., 1982_______. 1982. Frame semantics. In: The Linguistic Society of Korea (Eds.). Linguistics in the Morning Calm. Seoul: Hanshin. p. 111-37., 1985_______. 1985. Frames and semantics of understanding. Quaderni di semantica, v. 6, n. 2. p. 222-253.), Feltes (2007), Goffman (1974, 1988), Tomasello (1988, 1992a, 1995_______. 1995a. Joint attention as social cognition. In: MOORE, C.; DUNHAM, P. Joint attention: its origins an role in development. Hillsdale, NJ: Erlbaum. p. 103-130.a, 2003), Koch (2004, 2006_______. 2006. Desvendando os segredos do texto. 5. ed. São Paulo: Cortez.), Geertz (2008), Ferreira (1986), Abbagnano (1962), para os quais, sob diversas perspectivas teóricas, as formas-processos referencial-reificatórios são resultados de reconstruções sociocognitivas e culturais de entidades e eventos em mobilização nas narrativas em estudo.

Palavras-chave:
linguística textual; sociocognitivismo; narrativas; entidades afiliadas ao lendário; reificação

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyze, from the assumptions of Textual Linguistics and Sociocognitivism, reified reference forms related to characters from narratives affiliated with the legendary Amazonian. I take as a theoretical basis the postulates of Marcuschi (2007), Fillmore (1976, 1977, 1982, 1985), Feltes (2007), Goffman (1974, 1988), Tomasello (1988, 1992a, 1995a, 2003), Koch 2004, 2006), Geertz (2008), Ferreira (1986), Abbagnano (2007), for whom, from various theoretical perspectives, referential-reification processes are results of sociocognitive and cultural reconstructions of entities and events in mobilization in narratives.

Key-words:
textual linguistics; sociocognitivism; narratives; entities affiliated with the legendary; reification

1. Introdução

Este artigo tem por objetivo analisar, na perspectiva da referenciação - com base nos postulados de Linguística Textual e do Sociocognitivismo - processos de reificação presentes em narrativas afiliadas ao lendário amazônico. Tais processos reificatórios, expressos em formas de estabilização1 1 . A expressão formas de estabilização de âmbito cultural não significa que os processos culturais, construídos nessas formas, se constituam como congelados ou estanques, mas como contendo uma certa estabilidade relativa aos sentidos aí representados. de âmbito cultural, reafirmam a premissa de que as entidades, ligadas ao lendário, constituem modos de reconstrução dos contextos sociocognitivos em que essas entidades ou personagens transitam, especificamente nos ambientes que as narrativas em estudo são produzidas.

Para as análises, tomo como referencial teórico as postulações de Marcuschi (2007MARCUSCHI, L.A.A. 2007. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna.), Fillmore (1976FILLMORE, C.J. 1976. Frame semantics and the nature of language. In: HARNARD, S.R. (ed.). Origins and evolution of language and speech. New York: New York Academy of Sciences. p. 20-32., 1977, 1982, 1985), Feltes (2007FELTES, H.P.D.M. 2007. Semântica Cognitiva: ilhas, pontes e teias. Porto Alegre: Edipucrs.), Goffman (1974GOFFMAN, E. 1974. Frame Analysis: an assay on the organization of experience. New York: Haper Colophon Books., 1988), Tomasello (1988TOMASELLO, M. 1988. The role of joint attentional process in early language development. Language Sciences 10. p. 69-88., 1992a, 1995a, 2003), Koch (2004KOCH, I.G.V. 2004. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes., 2006), Geertz (2008GEERTZ, C. 2008. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.), Mondada e Dubois (2003MONDADA, L; DUBOIS, D. 2003. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M.M; RODRIGUES, B.B; CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto. p. 17-52.), Apothéloz (2003APOTHÉLOZ, D. 2003. Papel e funcionamento da anáfora na dinâmica textual. In: CAVALCANTE, M.M; RODRIGUES, B.B. e CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto. p. 53-84.), Ferreira (1986FERREIRA, A.B.D.H. 1986. Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 1476-1477.), Abbagnano (1962ABBAGNANO, N. 1962. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou. p. 808.), para os quais, sob diferentes ângulos teóricos, as formas-processos referencial-reificatórios são reconstruções simbólicas de entidades e eventos em circulação nas histórias sob investigação.

2. Bases teóricas

As produções textual-discursivas são instrumentos portadores de estruturas conceitual-culturais que permeiam as mensagens realizadas pelos diversos interactantes. Assim, é válido dizer que as expressões referenciais são formas por meio das quais essas estruturas conceituais são reconstruídas, passando a veicular conceitos, pré-conceitos2 2 . A expressão pré-conceitos indica, nesse caso, antecipações acerca de determinados significados a serem ditos em certos contextos de interação. , tabus, interpretações acerca de relações sociais diversas, sentidos atribuídos a certos referentes, significados ligados a relações espaciais e temporais, significados resultantes de recategorização de referentes de âmbito cultural, dentre outros elementos conceituais associados às práticas das comunidades em que circulam as mencionadas produções textuais.

Tendo em vista a relação de implicação entre atividades referenciadoras e os componentes socioculturais envolvidos na construção dos quadros sociocognitivos e discursivos de referência,3 3 . A expressão quadros sociocognitivos e discursivos de referência expressa, nesse âmbito, as diversas relações referenciais implicadas nos contextos de interação. observemos o que nos porpõe Marcuschi (2007MARCUSCHI, L.A.A. 2007. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna.):

Hoje é comum ouvir-se que as coisas não estão no mundo da maneira como as dizemos aos outros. A maneira como nós dizemos as coisas aos outros é decorrência de nossa atuação linguística sobre o mundo com a língua, de nossa inserção sócio-cognitiva no mundo e de componentes culturais e conhecimentos diversos. A experiência não é um dado, mas uma construção cognitiva, assim como a percepção não se dá diretamente com os sentidos, mas é a organização de sensações primárias. O mundo comunicado é sempre fruto de uma ação cognitiva e não de uma identificação de realidades discretas apreendidas diretamente. O mundo é um contínuo de sensações e a realidade empírica não tem um contorno imediatamente apreensível. A ação de discretização do mundo na forma como o comunicamos é um trabalho sócio-cognitivo sistemático. (MARCUSCHI 2007MARCUSCHI, L.A.A. 2007. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna.: 64-65)4 4 . As palavras em itálico são grifos do autor. .

Postulo, então, que as formas ou expressões de referenciação constituem em determinadas produções textuais não somente elementos por meio dos quais a materialidade linguística se manifesta, já que não são artefatos, mas propriamente reelaborações ou reconstruções de construtos culturais mais amplos e/ou específicos. Por esse ângulo, é possível afirmar que os modos de estruturação das formas referenciais estão também ancorados em e/ou associados a certos “modelos” ou padrões de natureza cultural5 5 . O meu entendimento acerca da expressão “modelos” ou padrões de natureza cultural é que estes exercem uma certa regulação no que tange às formas de estruturação de elementos referenciais nas atividades textual-discursivas. .

Compreendendo-se que nas atividades referenciais estão embutidos tipos de esquemas conceituais, faz-se necessário discutir aqui a noção de frame, que, de maneira direta e indireta, contribui para o esclarecimento do sentido do uso de recursos referenciais participantes dessas atividades. Assim, tomando como pressuposto teórico as postulações de Fillmore (1976FILLMORE, C.J. 1976. Frame semantics and the nature of language. In: HARNARD, S.R. (ed.). Origins and evolution of language and speech. New York: New York Academy of Sciences. p. 20-32., 1977, 1982, 1985), mencionadas por Feltes (2007FELTES, H.P.D.M. 2007. Semântica Cognitiva: ilhas, pontes e teias. Porto Alegre: Edipucrs.), frames são estruturas cuja função consiste em representar entidades conceituais. Tais estruturas têm a propriedade de emoldurar uma gama de conhecimentos acerca de um dado conceito. Elas têm o papel de caracterizar uma cena ou situação abstrata como uma espécie de mecanismo de construção cognitiva, sendo algumas porções indexadas por unidades lexicais associadas a elas e utilizadas no processo de compreensão. Assim, palavras ou expressões linguísticas convocam frames, sendo estes conduzidos da memória de longo prazo para a memória estratégica, não como elementos estocados e congelados, mas como estruturas em contínua mobilidade e construção a partir da experiência sociocultural.

Para Goffman (1974GOFFMAN, E. 1974. Frame Analysis: an assay on the organization of experience. New York: Haper Colophon Books., 1988), a noção de frame remete à maneira como certos sentidos são postos a serviço de determinadas noções, as quais estão imbricadas em comportamentos sociais mais ou menos definidos, reafirmando formas de gerenciamento de papéis dentro da estrutura social.

Assim, o gerenciamento de certas funções está ligado a contextos predeterminados, dos quais se esperam tipos de performances em relação aos atores aí envolvidos. Por esse âmbito, os sentidos relativos às ações não são neutros ou dados a priori pela língua(gem), mas estão engatilhados a valorações e códigos socioculturais, construídos por todo um conjunto de relações, que são históricas e ideológicas em sua própria gênese e constitutividade.

O que posso adicionar acerca das concepções de Goffman (1974GOFFMAN, E. 1974. Frame Analysis: an assay on the organization of experience. New York: Haper Colophon Books., 1988) é que os sentidos estruturados e veiculados pelos frames estão na base da mobilização dos processos referenciais, já que a introdução, reintrodução, ativação, reativação, recategorização e/ou reconstrução de referentes são propiciadas por redes de frames associados, por meio das quais é possível haver a recuperação de elementos contidos ou estabelecidos na memória sociocognitiva e sociodiscursiva dos sujeitos participantes de um dado contexto.

Considerando a noção de frame, mais precisamente a partir das bases formalizadas por Goffman (1974GOFFMAN, E. 1974. Frame Analysis: an assay on the organization of experience. New York: Haper Colophon Books., 1988), e tendo em conta que essa noção engloba a acepção de frame cultural, proponho, com fundamento nas postulações de Tomasello (2003_______. 2003. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes.), que a construção de objetos culturais se dá em razão da circulação ou mobilização de estruturas de sentido constituídas historicamente que, por sua vez, passam a ser operacionalizadas no próprio processo de (re)construção desses objetos. Estes recobrem um conjunto variado de práticas de linguagem, que apresentam tipos característicos de frames sociais e culturais, consorciados, logicamente, com a natureza e objetivos de tais práticas.

Tendo em conta o fato de que comentei aqui as noções de frame social e frame cultural, conceituo os dois com base nas postulações de Goffman (1988_______. 1988. Estigma: notas sobre a manipulação de identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Editora Guanabara. ), propondo que os frames sociais consistem de um conjunto de estruturas conceituais que regram as ações dos sujeitos nos contextos em que atuam e transitam, considerando que esses contextos possuem elementos reguladores que norteiam os sentidos incorporados por essas ações. Proponho, por conseguinte, que os frames culturais residem em estruturas conceitual-valorativas que “justificam” as maneiras por meio das quais um grupo cultural interage entre si e com outros grupos. Nessas estruturas, estão incluídas regras de comportamento/ação e de compreensão dos valores que norteiam as atividades desse grupo.

Trazendo as noções de frame social e frame cultural para a questão da referenciação e, consequentemente, para os objetivos a que me proponho neste artigo, postulo que as produções textual-narrativas incorporam tipos de frames associados às atividades sociais e culturais de comunidades que consomem tais produções. Portanto, levando em conta os aspectos sociocognitivos e cognitivo-culturais implicados na construção desses frames, vejamos o que nos diz Koch (2004KOCH, I.G.V. 2004. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes.):

Postula-se que os parceiros da comunicação possuem saberes acumulados quanto aos diversos tipos de atividades da vida social em que se acham envolvidos, isto é, têm conhecimentos representados na memória que necessitam ser ativados para que sua atividade seja coroada de sucesso. Assim, eles já trazem, para a situação comunicativa, determinadas expectativas e ativam dados conhecimentos e experiências quando da motivação e estabelecimento de metas, em todas as fases preparatórias da construção textual, não apenas na tentativa de traduzir seu projeto em signos verbais (comparando entre si diversas possibilidades de concretização dos objetos e selecionando aquelas que, em sua opinião, são as mais adequadas), mas, também quando empenhados na compreensão de textos. (KOCH 2004KOCH, I.G.V. 2004. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes.: 21).

Com base nas formulações teóricas do Sociocognitivismo, mas também do Sociointeracionismo e dos estudos de Cognição Cultural, é possível validar a proposta de que os processos embutidos na construção da arquitetura dos textos são advindos de significados intrinsecamente ligados às experiências sociais e culturais dos sujeitos. Pelo lado oposto, ao interagirem com esses textos, tais sujeitos passam a reconfigurar e/ou reconstituir as vivências de que são coparticipantes. No entanto, o que se pode trazer aqui, à tona, é a ideia de que a reconstituição dos sentidos ligados a essas experiências depende também do modo como o produtor (re)organiza as estruturas textuais relativas ao seu projeto intercomunicativo, que, logicamente, encontra-se submetido aos efeitos e/ou consequências das construções conceitual-culturais.

Assim, considerando os efeitos de uma metacognição para a (re)construção de objetos culturais e simbólicos, torna-se plausível pensar as produções textuais como contentoras e/ou reconstituidoras de formas simbólicas, por meio das quais os conteúdos passam a ser materializados. Nesse sentido, as formas narrativas não constituem simples artefatos linguísticos orais ou escritos e sim espaços sociointerativos nos quais podemos encontrar processos analógicos, metafóricos, inferenciais, referenciais, meronímicos e de várias outras ordens, que, de modo diverso, traduzem experiências decorrentes de uma herança cultural compartilhada.

É importante pensar sobre os próprios efeitos da metacognição, no sentido de que a produção textual-cultural constitui um produto de processos metacognitivos acerca de significados culturais pré-situados e/ou preconstruídos. Logo, tendo em conta os pressupostos teóricos que conduzem a essa perspectiva, observe-se o que propõe Tomasello (2003_______. 2003. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes.):

A linguagem também está estruturada para simbolizar de maneira complexa e variada eventos e seus participantes, o que é instrumental para que as crianças “esmiúcem” sua experiência dos eventos de muitas maneiras complexas. Construções linguísticas abstratas podem então ser usadas para pensar e intercambiar cenas experienciais de modo analógico e metafórico. As narrativas agregam ainda mais complexidade ao ligarem entre si eventos simples de uma maneira que incita à análise causal e intencional, e que, na verdade, exige marcadores explicitamente causais ou intencionais para torná-las coerentes. E conversas prolongadas bem como outros tipos de interações sociais com adultos levam as crianças para espaços cognitivos ainda mais esotéricos, ao possibilitarem que elas compreendam perspectivas conflituosas sobre coisas que têm de ser conciliadas de alguma forma. Por fim, aquele tipo de interação na qual o adulto comenta as atividades cognitivas da criança, ou a instrui explicitamente, a leva a adotar uma perspectiva externa sobre sua própria cognição em atos de metacognição, autorregulação e redescrição representacional, o que resulta em estruturas cognitivas mais sistemáticas em formatos dialógicos. (TOMASELLO 2003_______. 2003. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes.: 299-300).

Alicerçando-me nas considerações acima realizadas - as quais têm como base as formulações de Tomasello (1988TOMASELLO, M. 1988. The role of joint attentional process in early language development. Language Sciences 10. p. 69-88., 1992a, 1995a) - postulo a existência de uma metacognição cultural6 6 . Entendo, segundo os autores aqui apresentados, a expressão metacognição cultural como um conjunto de refrações de sentido que estabelecemos acerca de nossa própria cultura, o que também subentende um metaconhecimento sobre a forma como uma cultura atua sobre os indivíduos que nela estão inseridos. que subsidia e regula as produções textuais. Dada essa perspectiva, ao construir certos textos orais ou escritos, principalmente narrativas, contos e relatos, o produtor textual se utiliza de estruturas conceituais e de conhecimento, de modelos sociocognitivos, proposições preconstruídas de natureza cultural, que, de maneira mais direta ou indireta, exercem uma espécie de regulação sobre a forma de condução dos elementos que compõem a arquitetura desses textos e sobre a forma de condução sociodiscursiva da atividade textual como um todo. Por esse viés, há uma espécie de autorreflexividade do produtor/escritor ao conduzir e/ou gerenciar os sentidos ligados aos significados culturais já estabelecidos por uma comunidade ou cultura.

Como postula Tomasello (2003_______. 2003. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes.), a internalização de sentidos/formas, já construídos pelo mundo cultural, cria também uma refração ou reflexividade acerca do modo como tais sentidos/formas atuam nesse mesmo mundo, provocando, consequentemente, uma reelaboração destes pelos indivíduos quando da mobilização dos processos interativos na arena social. Vejamos o que nos propõe diretamente Tomasello:

[...]. O que estou postulando aqui é que, assim como ocorre com muitas habilidades cognitivas, as crianças vão se aprimorando nesse processo de internalização a ponto de conseguirem generalizá-lo e, consequentemente, refletir sobre seu próprio comportamento e cognição como se fossem outra pessoa olhando para ele. Assim, a sistematização de conceitos matemáticos básicos tende a ocorrer quando os sujeitos refletem sobre suas próprias atividades de matemática rudimentar (Piaget, 1970). E é provável que na aquisição da linguagem as crianças construam suas estruturas gramaticais mais complexas (por exemplo, sujeito de uma frase nas línguas que usam essa estrutura) quando refletem sobre o uso produtivo que fazem de construções linguísticas abstratas (Tomasello, 1992_______. 1992a. The social bases of language acquisition. Social development 1(I). p. 67-87.b; Tomasello e Brooks, 1999). Como foi sublinhado acima, essa reflexão sobre o próprio comportamento e cognição emprega habilidades básicas de categorização, esquematização, analogia etc., usadas no trato com o mundo externo, de modo que a criança categoriza, organiza e esquematiza suas próprias habilidades cognitivas da mesma maneira que o faz com fenômenos externos. É provável que o fato de que tudo isso ocorra no mesmo formato linguístico - ou seja, tanto os comentários da criança sobre o mundo como os comentários do adulto sobre os comentários da criança são expressões linguísticas normais - facilita o processo por meio do qual as crianças adquirem a capacidade de usar suas habilidades cognitivas básicas em atividades reflexivas.

A suposição é, portanto, de que as adaptações evolutivas voltadas para capacidade dos seres humanos de coordenar seus comportamentos sociais entre si - compreenderem-se como seres intencionais - talvez também estejam por trás, depois de muita elaboração ontogenética, da capacidade dos seres humanos de refletir sobre o próprio comportamento e assim criar estruturas sistemáticas de conhecimento explícito como as teorias científicas (ver também Humphrey, 1983). Segundo Gould (1982), a capacidade humana de compor sistemas pode ser uma exaptação das capacidades reflexivas dos humanos, que derivam, em última instância, de suas capacidades sociocognitivas. (TOMASELLO 2003_______. 2003. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes.: 274-275).

Podemos então dizer que, no entrelaçamento indissociável entre a cognição cultural e os processos referenciais, estes últimos incluem estratégias metarreferenciais, precisamente no que concerne ao fato de que, neste caso, o ato de referenciar pressupõe atividades sociocognitivas de reflexividade acerca de construções e processos referenciais inscritos e mobilizados nas práticas culturais. Indo nessa direção teórica, é importante postular a noção de que, na ativação de estruturas de referência, há a reativação ou reconstrução de processos referenciais, nos quais elementos constituídos nesses processos conduzem a novas referenciações, diretamente consorciadas aos contextos sociointeracionais e/ou sociodiscursivos em que estão inseridas.

Como os processos referenciais não são originários ou remanescentes de elementos presentes na superfície dos textos, eles demandam então a execução de processos sociocognitivos e cognitivo-culturais contidos nas memórias estratégica e de longo prazo (memória histórica), por meio dos quais a construção de objetos de discurso está na dependência da mobilização de recursos referenciais, concretizados quando das atividades sociointerativas de constituição dos mais variados textos. Sendo assim, as instruções de sentido guiadas pelos processos referenciais não estão restritas às relações cotextuais, mas, se pudermos ir mais longe, apenas indiciadas por estas últimas, pois são as relações contextuais e/ou sociodiscursivas que, na verdade, direcionam os sentidos carreados por tais processos.

Por sua vez, levando em consideração a função dos contextos social e cultural para a construção de objetos de discurso e que esses próprios objetos constroem a realidade, cogita-se da importância da “manipulação” dos elementos referenciais para a estruturação dos contextos de referência7 7 . Compreendo a expressão contextos de referência como todas as situações sociodiscursivas e/ou sociointerativas através das quais os processos referenciais se realizam. , já que é por meio destes que as interações humanas passam a ter sentido dentro do universo biossocial.

Dada a importância dos padrões culturais para a organização dos contextos sociointerativos e, por conseguinte, para o estabelecimento dos processos referenciais, observemos as afirmações de Geertz:

Quaisquer que sejam suas outras diferenças, tanto os símbolos ou sistemas de símbolos chamados cognitivos como os chamados expressivos têm pelo menos uma coisa em comum: eles são fontes extrínsecas de informações em termos das quais a vida humana pode ser padronizada - mecanismos extrapessoais para a percepção, compreensão, julgamento e manipulação do mundo. Os padrões culturais - religioso, filosófico, estético, científico, ideológico - são “programas”: eles fornecem um gabarito ou diagrama para a organização dos processos sociais e psicológicos, de forma semelhante aos sistemas genéticos que fornecem tal gabarito para a organização dos processos orgânicos. (GEERTZ 2008GEERTZ, C. 2008. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.: 123).

As postulações de Geertz (2008GEERTZ, C. 2008. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.) constituem-se como apropriadas para os objetivos aqui delineados porque estão assentadas na perspectiva de que as configurações simbólicas tanto de âmbito cognitivo quanto de natureza expressiva são portadoras de estruturas conceituais e/ou informacionais acerca dos modos por meio dos quais a vida humana pode ser padronizada e/ou organizada, fornecendo uma espécie de paradigma para o gerenciamento dos processos sociais e psicológicos necessários à condução das atividades humanas. Por essa perspectiva, os padrões cultural-simbólicos fornecem “modelos” para a formação dos quadros referenciais implementados nas atividades verbais. Como as formações culturais são diferentes, os padrões cultural-simbólicos que as sustentam também o são, de modo a ter-se “modelos” diversificados de quadros referenciais entre as várias culturas, os quais são adaptáveis ou ajustáveis à natureza das situações de interação existentes numa dada comunidade.

Por considerar, nos diferentes textos, a construção/ativação de referentes e os processos sociocognitivos e/ou cognitivo-culturais aí implicados, tem-se a presença de formas de reificação, por meio das quais certos entes/seres e eventos passam a ser concebidos e/ou compreendidos em algumas atividades sociodiscursivas. Conforme Holanda Ferreira (1986FERREIRA, A.B.D.H. 1986. Novo dicionário Aurélio de língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. p. 1476-1477.: 1476-1477), reificação é “o momento em que, no processo de alienação, a característica de uma coisa se torna típica da realidade objetiva”, o que gera a alienação. Segundo Abbagnano (1962ABBAGNANO, N. 1962. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou. p. 808.: 808), na acepção filosófica, constitui um “processo ligado essencialmente à ação, à consciência e à situação dos homens, e pelo qual se oculta [...] como indiferente, independente ou superior aos homens, seus criadores”. Nessa perspectiva, os indivíduos, personagens e referentes passam a ser vistos como entes institucionalizados dentro dos contextos, lugares ou instâncias dos quais fazem parte ou em que circulam.

Dado o modo como alguns objetos culturais são construídos e fazem sentido para determinadas comunidades, é possível observar que em nível simbólico passam a existir como formas reificadas, como entidades com uma espécie de vida independente em relação às crenças que sustentam. Logo, em se tratando de certas narrativas ou contos populares, essas reificações podem ser fruto não só de propriedades intrínsecas aos gêneros textuais de que participam, mas também de elementos ou caracteres embutidos na rede conceitual do modelo do mundo textual (Cf. KOCH, 2004KOCH, I.G.V. 2004. Introdução à linguística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes., 2006), que, do ponto de vista sociocognitivo, passam a ser reconstruídos ou reativados quando da tarefa de produção de determinados textos orais e escritos. Segundo Mondada e Dubois (2003MONDADA, L; DUBOIS, D. 2003. Construção dos objetos de discurso e categorização: Uma abordagem dos processos de referenciação. In: CAVALCANTE, M.M; RODRIGUES, B.B; CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto. p. 17-52.), os sujeitos constroem, por meio de práticas discursivas, sociocognitivas e culturalmente situadas versões públicas do mundo pelo qual agem e transitam. Para Apothéloz (2003APOTHÉLOZ, D. 2003. Papel e funcionamento da anáfora na dinâmica textual. In: CAVALCANTE, M.M; RODRIGUES, B.B. e CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto. p. 53-84.), as construções referenciais são produto das inserções dos indivíduos no mundo biossocial, o qual convocam quando da construção dos seus discursos, sendo o próprio discurso instrumento (re)construtor das instâncias sociais pela qual o sujeito mobiliza-se emprestando sentido, na linguagem e pela linguagem, a tudo que o rodeia.

3. Procedimentos metodológicos

Levando em conta o meu interesse relativo à referência cultural amazônica, fiz a escolha do corpus deste artigo: 13 (treze) números da revista Visagens, Assombrações e Encantamentos da Amazônia, de autoria do escritor Walcyr Monteiro. Estes números foram escritos entre os anos de 1997 e 2004 e versam sobre diferentes histórias de Boto; outras têm como tema a Cobra; algumas falam sobre Matintaperera, uma parte tematiza o Curupira e uma boa quantidade se refere a assombrações e visagens propriamente ditas. Os citados números foram publicados pela Editora Smith - Produções Gráficas, na cidade de Belém-PA. Todas as histórias constantes, nessa revista, são (re)criações do mencionado autor, recriações estas ancoradas no universo sociodiscursivo e cultural amazônico.

Acrescente-se que o citado corpus constava inicialmente de 65 (sessenta e cinco) narrativas contidas nas 13 (treze) revistas supracitadas, adquiridas em lojas de artigos regionais, bancas de revistas situadas em vias públicas e shoppings de Belém e Santarém, já que todos os 13 (treze) números não estavam disponíveis em um só destes vários pontos ou estabelecimentos comerciais.

Dentre as 65 (sessenta e cinco) narrativas inicialmente cotadas para este estudo, operei uma seleção baseada nos seguintes critérios: (i) quantidade de narrativas, necessária à realização de uma pesquisa qualitativa; (ii) temas - os quais deveriam versar sobre itens mais importantes e recorrentes dentro do contexto de contação de histórias específicas da Amazônia; (iii) tamanho ou extensão das narrativas, o que poderia contribuir para uma maior ocorrência de fenômenos relacionados ao tema desta pesquisa.

Logo, com base nos itens apresentados, das 65 (sessenta e cinco) narrativas escritas mencionadas, restringi-me a estudar 25 (vinte e cinco). Deste total, 17 (dezessete) referem-se a entidades como Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira, o que vem a corresponder a 68% (sessenta e oito por cento) da totalidade acima expressa, e 08 (oito) são relativas a assombrações e visagens, correspondendo a 32% (trinta e dois por cento) da mesma totalidade. No entanto, por entender que as histórias de assombrações e visagens destoavam, principalmente no que diz respeito às suas várias temáticas, das narrativas de Boto, Cobra, Matintaperera e Curupira, já que estas últimas tratam de temáticas referentes a personagens lendários típicos e que são bastante recorrentes no universo amazônico, resolvi delimitar ainda mais o corpus, ficando este restrito às 17 (dezessete) histórias das entidades lendárias supracitadas. Destas, 04 (quatro) são de Boto, 05 (cinco) de Cobra, 05 (cinco) referem-se à Matinta e 03 (três) são relativas à (o) Curupira.

A delimitação de 25 (vinte e cinco) para 17 (dezessete) refere-se ao fato de que estas últimas, concernentes aos personagens em questão, possuem um significado simbólico próprio, já que tais personagens se instituem como bastante reificados no contexto cultural em que essas narrativas são contadas.

Levando em conta as 04 (quatro) entidades mencionadas, temos, portanto, 04 (quatro) temáticas gerais diferentes, concernentes a tais entidades, o que justifica a divisão em 04 (quatro) blocos distintos. Ressalto também a questão de que os temas gerais, relativos aos 04 (quatro) personagens em pauta, não são homogêneos ou uniformes, pois contêm significados ou subtemas específicos dentro de cada um deles, os quais se referem às características ou particularidades das narrativas que aí estão inseridas.

4. Análise das reificações e resultados obtidos

A estrutura referencial inerente aos textos das narrativas em análise contém a presença de formas reificadas de personagens lendários. Assim, em termos de construção da referência, esses personagens são instituídos e nomeados como entidades que possuem uma espécie de “vida própria”, um sentido de autonomia em relação à crença que lhes é atribuída e reafirmada.

Considero, sobretudo, nesse âmbito, as formas das quais se utiliza o escritor/produtor textual para referir tais personagens dentro das cadeias referenciais postas em ação nos mencionados textos. Nesse sentido, analiso as partes dos textos das narrativas, em que determinadas formas reificadas são usadas, compreendendo também, aí, o emprego de expressões nominais definidas ou indefinidas, a utilização de iniciais maiúsculas ou minúsculas e de sintagmas adjetivais modificadores (ou não) quando do processo de nomeação e referência das entidades afiliadas ao lendário, participantes das mencionadas narrativas.

Para as análises das reificações, tomo, separadamente, cada narrativa, observando as formas como a entidade ou personagem temática em questão é referenciada em cada uma dessas histórias.

Veja-se o excerto 1 relativo a uma narrativa de Boto:

1.

Benevenuto, morador do Rio Tajapuruzinho, no Município de Melgaço, era pessoa que não acreditava nas histórias de encantamento. E, ao ouvir sobre Botos e Bôtas, chegava mesmo a desafiar:

- Pois eu queria que me aparecesse uma, que fosse assim uma mulher muito bonita e que viesse namorar comigo... Aí, sim! Eu acreditaria...

[...]

E ali estava. Benevenuto ficou com medo, muito medo. Ele, Benevenuto, mulherengo e com medo de mulher. Podia um negócio deste? Mas estava. A mulher avançando, ele recuando, até que ela tentou agarrá-lo... Benevenuto sempre usava um pequeno facão no fundo do barco e que naquele instante estava em suas mãos. Com o medo que estava, não pensou duas vezes: passou o facão na cintura da mulher, que caiu na beira da praia, próximo ao barco, morta...!

Benevenuto saiu correndo dali. Contou para os outros o que tinha acontecido. Mas só voltaram lá no dia seguinte. E o que viram? Na praia, no local mencionado em que Benevenuto disse que matara a mulher, estava um corpo morto, sim! Só que não era da mulher loura: era de uma Bôta, cortada bem no meio, à altura daquilo que seria a cintura de uma mulher...

Daquele dia em diante, concluiu Brígida, nunca mais meu avô Benevenuto duvidou das histórias de Botos, Bôtas e outros encantados da Amazônia... (MONTEIRO 2000_______. 2000. Uma namorada e dois irmãos. In: Visagens e Assombrações e Encantamentos da Amazônia. 2ª ed. n. 5, Ano II. Belém: Smith - Produções Gráficas. p. 15-17.: 19-20).

A estrutura referencial geral dos textos relativos às narrativas de Boto apresentam este personagem com características de reificação. Esta diz respeito ao fato de que ele é tomado como entidade institucionalizada8 8 . Quando postulo que uma entidade lendária é tomada como institucionalizada ou objetificada, refiro-me ao fato de que se constitui como um ente dotado de autonomia e atributos próprios na sociedade em que se insere em termos de crença, tendo um estatuto simbólico particular em relação a outros entes e crenças. ou objetificada, tendo-se como uma das marcas indiciadoras desse processo reificador o uso de iniciais maiúsculas para referi-lo. No que tange às narrativas de Boto apresentadas no corpus, boa parte das reificações se dá por meio de expressões nominais indefinidas, tanto por meio da forma genérica - sem uso de artigo - como com o emprego de um artigo indefinido, conforme podemos observar neste excerto 1 em exemplo, no qual o produtor do texto introduz os referentes Botos e Bôtas sem a presença de artigo. Mais adiante, na parte final da mesma história, com o uso de um artigo indefinido, mais especificamente na sequência era de uma Bôta cortada bem no meio. Ainda na parte final, novamente sem a utilização de artigo, como na sequência nunca mais meu avô Benevenuto duvidou de histórias de Botos, Bôtas e outros encantados da Amazônia...; ratificando-se, mais uma vez, o emprego de expressões nominais indefinidas quando do processo de reificação de uma entidade como o Boto, tanto na forma masculina quanto na feminina de predicar esse personagem dentro da cadeia referencial dos textos sob investigação.

Assim, parte do processo reificatório9 9 . Entendo por processo reificatório as formas ou maneiras como uma personagem ou entidade passa a ser compreendida e nomeada num sistema de crenças: como um ente a quem se atribui determinados poderes, dotado de uma identidade específica e predicado segundo certas propriedades que lhe são inerentes. do personagem Boto não acontece por meio de uma expressão definida, o que concede a este um certo estatuto de mistificação no que diz respeito às crenças que lhe são atribuídas, levando em consideração as formas das quais se vale o escritor para nomeá-lo, ou seja, formas que operam com um “distanciamento”10 10 . O termo “distanciamento” (entre aspas) expressa o sentido relacionado a uma característica simbólica ligada ao mesmo tempo a “encante”, fetiche e inacessibilidade em relação a uma entidade e ao seu modo de ingerência na vida das pessoas, o que vem a reforçar a crença nos seus poderes supranaturais. e fetichismo em relação à sua construção sociocognitiva e cognitivo-cultural. Por conseguinte, há uma solidificação da crença nesse personagem, que adquire um significado cultural muito particular, influenciando a vida dos que fazem parte do contexto social de sua construção, sendo, em decorrência disso, referido como portador de atributos simbólicos singulares e supranaturais. Daí o produtor textual se utilizar de uma inicial maiúscula para designá-lo em suas várias narrativas.

Observe-se o excerto 2:

2.

[...] O pai, mais do que desconfiado, começou a espionar. E viu que a mulher, quando chegava à noite, levava comida para eles, que a comiam avidamente. Aí descobriu por que não queriam mais comer a comida que a mãe preparava... Também verificou que Jorge e Júnior ficavam muito tempo tomando banho no rio, como se de lá não quisessem sair... e também estranhou a irresistível atração pela água!

Chamou os filhos para uma conversa séria, dizendo que aquela mulher não deveria ser uma mulher comum, uma mulher qualquer, que ali tinha coisa, que aquela mulher os estava encantando e que não deveriam mais comer da comida que ela levava, pois eles iam cada vez mais ficar interessados por ela e que ela ia acabar levando-os, sabe Deus para onde!

Mas Jorge e Júnior não deram atenção às palavras do pai, que aumentou a vigilância, pois sabia que, se os deixasse sozinhos à noite com ela, ela os levaria...

Então, quando dava uma certa hora, ele chamava os filhos e segurava-os, não os largando de jeito nenhum. A mulher ia embora muito aborrecida, mas continuava indo toda noite, só esperando uma oportunidade de ficar só com os dois...

A vida havia se tornado um inferno para o pai, que se via obrigado àquela vigília forçada todas as noites e todas as horas, pois, durante o dia, era a vontade de se banharem no rio...

Até que resolveu pôr termo àquela situação e livrar os filhos de uma vez por todas. E falou consigo mesmo:

- É, eu vou matar esta Bôta, antes que ela leve meus filhos.

Já não tinha dúvidas: com certeza que se tratava mesmo de uma Bôta.

Cismou que ela ia levá-los no dia seguinte. E antes que ela se dirigisse para a casa deles, foi esperá-la perto do trapiche.

Realmente ela veio. Ele estava escondido atrás de uma touceira de açaizeiros. Quando ela se aproximou, ele saiu e, com um revólver, atirou à queima-roupa em cima do peito da mulher, que caiu morta na praia.

Jorge e Júnior, ao darem falta do pai em casa, tinham saído atrás dele. E viram tudo. Quando a mulher caiu, os dois foram pra cima dela, chorando muito, abraçando e beijando o cadáver.

Aí o pai falou:

- Meus filhos, não chorem por causa desta mulher que ela não é gente igual a nós. Ela é uma Bôta...

Os dois discutiram muito com o pai, até que este disse:

- Vocês querem ver de quem estavam gostando?

Pegou então a mulher pelas pernas e colocou no rio. Ante os olhos incrédulos de Jorge e Júnior, a parte inferior da mulher metamorfoseou-se em Bôta, permanecendo da cintura para cima em forma de mulher...

O pai então empurrou o resto do corpo n’água, que foi arrastado pela correnteza. Ainda viram a parte superior ir se transformando em Bôta... [...]. (MONTEIRO 2000MONTEIRO, W. 2000. Uma mulher muito bonita. In: Visagens e Assombrações e Encantamentos da Amazônia. 2ª ed. n. 3, Ano I. Belém: Smith - Produções Gráficas. p. 19-20.: 15-17).

Neste excerto, em nível de cadeia referencial, o referente Bôta - aí grafado com a letra inicial maiúscula e na forma feminina - é introduzido por uma expressão nominal definida: esta Bôta; no entanto, após essa introdução, passa a se apresentar somente por expressões indefinidas, conforme podemos observar nas seguintes sequências que estruturam o tópico em andamento: Já não tinha dúvidas: com certeza que se tratava mesmo de uma Bôta; - Meus filhos, não chorem por causa desta mulher que ela não é gente igual a nós. Ela é uma Bôta...; Ante os olhos incrédulos de Jorge e Júnior, a parte inferior da mulher metamorfoseou-se em Bôta; logo, como em outras sequências que constam do texto, a construção da referência daquilo que se entende como Bôta se faz por meio de um processo de reificação indefinida, no qual estão embutidos elementos do maravilhoso11 11 . Segundo Dicionário Online de Português, Maravilhoso diz respeito a tudo que é capaz de provocar admiração, tudo aquilo que interfere no componente sensorial dos indivíduos e que foge aos fenômenos comuns da vida cotidiana. e do fantástico12 12 . Fantástico refere, segundo o Dicionário Online de Português, a tudo aquilo que só existe na imaginação, não tendo, portanto, uma existência real no universo físico ou biossocial. .

Por outro lado, nesta mesma história, quando se trata do referente mulher, este vem manifesto, na maioria das vezes, por uma expressão nominal definida. É o que se verifica em sequências como estas, as quais se antecipam à introdução do referente Bôta: O pai [...] começou a espionar. E viu que a mulher, quando chegava à noite, levava comida para eles; A mulher ia embora muito aborrecida, mas continuava indo toda noite, só esperando uma oportunidade de ficar só com os dois... Desse modo, podemos dizer que o referente mulher, animado e humano, se institui como mais concreto e definido em relação ao referente Bôta, embora este último possua um estatuto simbólico próprio, uma existência também definida e autônoma no universo sociodiscursivo em que é colocado e em que passa a ser uma entidade simbolicamente “reconhecida”13 13 . A expressão entidade simbolicamente “reconhecida”, usada entre aspas, é empregada na acepção de que tal entidade faz parte das construções conceituais que integram determinadas crenças e valores de uma comunidade cultural. , capaz de ativar determinados tipos de crenças, dotada de uma estrutura conceitual que a distingue de outros artefatos culturais. Acrescente-se que, no decurso da cadeia referencial, o elemento (uma) Bôta é quase sempre mantido na indefinição, mas, por outro lado, caracterizado como tendo um sentido ligado ao mistério e ao exotismo, e, ao mesmo tempo, também a uma estrutura preordenada de conceitos já construídos dentro de um contexto social específico, ou seja, aqueles voltados para a noção simbólica de que o Boto/a Bôta é capaz de interferir amorosamente na vida de seres humanos.

Veja-se, agora, o excerto 3 em exemplo:

3.

[...] Conversa vai, conversa vem e Luíza, como é mais conhecida, contou uma história que se passou com o seu pai, de nome Almáquio Ricardo de Matos, lá naquele lugarejo mocorongo.

“ - Tem gente que diz que não acredita em Cobra Grande. Mas ela existe, sim! Aqui na Amazônia tem Cobra Grande e meu pai já se encontrou com uma e saiu vivo por milagre, graças a Deus.”

- E como é que foi isto? perguntei.

“- Foi mais ou menos em 1965. Meu pai era agricultor, plantava malva, juta, melancia, jerimum, mandioca, macaxera, estas coisas. Além disto, ele gostava de caçar e de pescar nas horas em que não estava envolvido com a agricultura. Caçava muitas vezes de noite, passando horas e horas, e uma vez foi até atacado por uma onça. Também nas pescarias ouvia muitas histórias de Cobra Grande, mas não dava bola... Era muito corajoso!

Mas... aconteceu numa noite e toda a coragem de meu pai foi colocada à prova. Era ano de 1965, época da cheia, setembro/outubro. Ele saiu para uma pescaria no rio Amazonas, lá defronte de Barreira do Tapará. No que estava pescando, viu aquela coisa enorme, monstruosa, se mexendo no rio. Era a Cobra Grande, com seus enormes olhos como se fossem tochas de fogo. Quando ela sente cheiro de gente, aumenta o seu apetite porque o nosso cheiro para ela, para o seu olfato, para o seu nariz, é como se fosse cheiro de fruta, um aroma perfumado, assim como de melancia, de manga... Ela tinha sentido o cheiro de meu pai e aí saiu perseguindo ele, provocando um enorme banzeiro nas águas do rio.

Meu pai começou a lembrar de tudo o que tinha ouvido sobre a Cobra Grande. Quantas e quantas histórias! Principalmente a de uma que se desloca da Boca de Alenquer, ou mais precisamente da Boca do Igarapé de Alenquer para a Barreira do Tapará. E começaram a desfilar na sua mente, como num filme muito rápido, os casos de cobra da região: corpos encontrados estraçalhados, corpos devorados sem dó nem piedade, corpos destruídos, corpos de afogados nunca encontrados e ainda todo aquele mistério de pessoas que teriam sido encantadas... Que meu pai era corajoso, isto ele era! Mas naquela situação, vendo aquele monstro querer pegá-lo, quem não sentiria medo? E meu pai, talvez pela primeira vez, soube o que foi sentir medo... Sentindo aquele cheiro de pitiú que a Cobra Grande exala, um turbilhão de pensamentos lhe passava à cabeça, enquanto remava o mais rápido que podia em direção à beira da praia. E a Cobra Grande produzia aquele banzeiro nas águas, que sacudiam violentamente a sua pequena canoa. Papai dando tudo de si, remando com toda a energia de que dispunha, sentia que a Cobra Grande se aproximava... Olhava de esguelha para trás e via os dois grandes fachos de fogo que eram os seus olhos, enquanto sentia cada vez mais forte, o pitiú da Cobra...

Já no limite de suas forças, apavorado, embicou a canoa na praia e aí saiu correndo para a terra, enquanto a Cobra, ao persegui-lo, esbarrou na areia da praia. Aí a areia entrou nas escamas dela e ela parou. Sabe? quando a areia entra nas escamas da Cobra, ela perde totalmente as forças... E foi o que aconteceu! Ela perdeu as forças, não pôde mais perseguir meu pai, porém ficou ali, esperando, esperando... Isto foi até de manhã, quando finalmente ela sentou (desapareceu no fundo do rio) e meu pai pôde sair com vida deste encontro com a Cobra Grande de Barreira do Tapará...”. (MONTEIRO 2002_______. 2002. Suzy e o curupira. In: Visagens e Assombrações e Encantamentos da Amazônia. 2ª ed. n. 7, Ano III. Belém: Smith - Produções Gráficas. p. 12-14.: 15-18).

A observação do exemplo, relativo a uma narrativa de Cobra, nos mostra que esse personagem é apontado inicialmente no texto por meio de expressões nominais indefinidas, mas, logo após os parágrafos introdutórios da história, passa a ser referido por meio de formas nominais definidas. Vale ressaltar que esse referente é também sempre predicado por meio da expressão Cobra Grande, ou seja, com a presença de um modificador adjetival, mesmo não se tratando de uma história conhecida como prototípica e tradicional de Cobra Grande14 14 . Trata-se aqui, de acordo com a lenda clássica, da narrativa referente À Cobra Norato, cujas duas crianças, ao nascerem, são jogadas no rio por sua mãe, e, imediatamente, transformadas em cobras, uma é boa (Norato) e a outra é má (Maria Caninana), a primeira mata a segunda. Norato é desencantado, posteriormente, por um pescador, passando a viver como um homem comum. .

De acordo com observações feitas no corpus, mais especificamente no que concerne às 05 (cinco) narrativas de Cobra, detectei que a maioria das referências a essa entidade se faz por meio de expressões nominais definidas, tanto com o uso de modificador(es) adjetival(is) como sem uso deste(s). Logo, isto coloca em evidência o fato de que o processo de reificação desse personagem vem acompanhado pelo uso cada vez mais constante de formas definidas na cadeia referencial relativa a textos desse tipo de história.

Ainda no que tange às histórias de Cobra, observamos que, em aproximadamente 60% (sessenta por cento) das narrativas em análise, o processo reificatório desse personagem vai sendo construído, predominantemente, no decurso dos textos, não só por meio do emprego de formas nominais definidas, mas também por meio de sintagmas adjetivais, que passam a estender sua qualificação e identificação dentro da estrutura referencial. Tomando por base o exemplo, esse procedimento ocorre quando o produtor do texto usa frequentemente a expressão Cobra Grande e quando passa finalmente a referi-la por meio da forma estendida a Cobra Grande de Barreira do Tapará. Assim, o processo de reificação vem também seguido de sintagmas modificadores ou adjetivais, que consolidam ainda mais a forma como essa entidade se reifica na atividade narrativa.

De acordo com as análises feitas, proponho que as formas de reificação do referente Cobra, considerando que estas se realizam predominantemente por meio de expressões definidas e qualificadoras, constituem-se como decorrentes de estabilizações e preconstruções advindas dos contextos sociodiscursivos em que ocorrem as histórias relativas a essa entidade, nos quais atuam frames culturais específicos. Nestes, estão incluídos procedimentos de referência que atualizam estruturas conceituais e predicadoras próprias, como as ligadas ao personagem Cobra aí descrito.

Vejam-se os excertos 4 e 5 em exemplo:

4.

No Rio Maiuatá - você sabe onde fica o Rio Maiuatá? Não? Fica no Município de Igarapé-Miri, no Pará, e é afluente do Rio Tocantins - no Rio Maiuatá, dizia eu, começaram a ouvir os estridentes assobios da Matinta Perera. Os moradores se perguntavam: Quem será já que vira Matinta por aqui? E nada de descobrir quem era a Matinta do Rio Maiuatá...

A coisa foi aumentando e, além dos assobios, a Matinta começou a assustar as pessoas de outras maneiras. Você sabe, não é? que a Matinta pode se transformar no que quiser. Pois é, a Matinta ora aparecia em forma de onça, ora em forma de queixada, ora em forma de outro animal qualquer, sempre atazanando os pacatos caboclos e seus familiares, metendo medo e não deixando ninguém dormir com os estridentes

- Fiiiiiiiittt...

Ou pior quando dobrava o assobio

- Firifififiuuu...

Teodoro Castro Barboza, 40 anos, filho de Sumaúma, lá em Igarapé-Miri, foi quem contou esta história. E ele continuou dizendo que a Matinta tanto perseguiu os moradores que um deles, mais corajoso, disse que ia dar um jeito naquela situação. Era o João Piraqueira, filho da Tia Podó, que era muito estimado naquelas bandas.

Pois bem, o João Piraqueira procurou um pajé dos bons, explicou a situação e disse queria dar uma solução para aquele problema, a fim de que os moradores do Rio Maiuatá voltassem a ter paz e pudessem dormir sossegados. O pajé ouviu e seguiu junto com o rapaz.

Ah! Você nem imagina o que aconteceu! Pois não é que a Matinta era... Não, estou me precipitando e já chegando ao fim da história. Deixe, pois, que conte o que aconteceu depois o que João Piraqueira falou com o pajé. Como já disse, depois de ouvir atentamente, o pajé seguiu com João Piraqueira para o Rio Maiuatá. Lá chegando, pediu que o rapaz arrumasse duas cuias pitinga e uma sandália e guardou este material.

Quando chegou de noite, assim que a Matinta começou a assobiar, quando se ouviu

- Fiiiiiiittt...!

O pajé saiu da casa em que estava, começou a fazer suas orações, pegou as duas cuias pitinga e colocou em cima da sandália emborcada. Era a fórmula para amarrar Matinta Perera.

Naquela noite ouviu-se ainda um assobio cortado pela metade e um barulho assim como se fosse um pato se debatendo em cima de um galho de uma árvore próxima. Ninguém foi olhar, esperando a manhã seguinte...

Ao amanhecer o pajé chamou João Piraqueira para ir ver a Matinta amarrada pela fórmula...

Veja só o que é o destino!

O pajé disse para o rapaz:

- Agora vamos saber quem é a Matinta Perera do Rio Maiuatá!

Quando chegaram no local, sobre um galho de uma árvore próxima às duas cuias pitinga em cima da sandália emborcada, estava uma mulher que dali não conseguia se mexer, como se estivesse amarrada no galho. O pajé disse para João Piraqueira:

-Esta é a Matinta Perera que estava perturbando vocês...!

Quando João Piraqueira ergueu a vista para o galho da árvore, quase desmaiou. Quem estava lá em cima era a sua própria mãe, a Tia Podó...

Surpresa desagradável para o João Piraqueira, não acha? Ele, que tanto se empenhou em amarrar a Matinta, veio a descobrir que era a sua genitora...

Ele ficou muito envergonhado. Mas o certo é que, depois daquele dia, nunca mais se ouviu ou se viu a Matinta Perera do Rio Maiuatá... Mas os velhos moradores, como Teodoro Castro Barboza, até hoje se lembram e contam a história... (MONTEIRO 2007_______. 2007. A tia Podó. In: Visagens e Assombrações e Encantamentos da Amazônia. 2ª ed. n. 8, Ano IV. Belém: Smith - Produções Gráficas. p. 15-18.: 15-18).

5.

[...] - Nasci em Belém. Mas minha família possui uma fazenda de nome Candeua, no atual Município de Santa Bárbara, onde brincava muito com meus primos Eraldo, de 14 anos, e Tiago, de 8 anos.

Nesse dia - e já se vão onze anos, pois foi em 1987 - meus primos iam tomar banho numa cachoeira existente na fazenda, mas que era muito distante da casa principal. Desobedecendo minha mãe, D. Lídia, que tinha proibido de ir, fugi e acompanhei meus primos. Aí seguimos por uma trilha dentro da mata para chegar à cachoeira. Íamos cantando e brincando. Já tínhamos andado mais de um quilômetro quando escutamos um barulho como que de passos amassando folhas secas. Paramos. Olhamos em todas as direções e nada vimos. Apenas a sensação de estarmos sendo observados...

Suzy fez uma pausa, procurando reviver o momento.

- Senti muito medo e meus primos também. Era como se estivessem nos olhando, só que não víamos nada nem ouvíamos nada também. Continuamos andando mais devagar. Já não brincávamos nem cantávamos... e de repente, como que saído do nada, lá estava ele...

Suzy descreve o ser que viram.

- Tinha mais ou menos um metro e meio de altura; cabelos lisos, como os dos índios, só que mais grossos, e iam até a altura dos ombros, eram pretos, porém como se estivessem sujos de terra; olhos bem grandes, redondos, pretos e sem a parte branca; nariz meio chato; a boca normal; a pele... a pele era assim como que esverdeada, de um verde musgo, e grossa, rugosa, lembrando a casca das árvores; as pernas e os joelhos eram normais, porém os pés eram voltados para trás... Aí o primo Eraldo gritou:

- É o Curupira...

Suzy desmaiou.

O pequeno ser não se mexeu do lugar. Seus primos depois contaram que ficou olhando fixamente nos olhos dos dois, ao mesmo tempo. Eles ficaram imobilizados, não conseguiram se mexer, como se hipnotizados estivessem. Ficaram um bom tempo assim. Curupira olhando, Suzy desmaiada, e os dois primos sem poder se mexer. Mas o Curupira não fez nada. Depois de algum tempo, tal como chegara, se foi, entrando na mata...!

Tão logo puderam se mexer, os primos bateram no rosto de Suzy, que continuava desmaiada. Quando retornou a si, Eraldo e Tiago pegaram pela sua mão e retornaram com a pressa que a trilha na mata permitia, quase correndo, e com muito, muito medo...

E Suzy concluiu:

- Fiquei tão apavorada - embora não houvesse até razão pra isto, pois ele não fez mal a ninguém, só ficou olhando - mas tão apavorada eu fiquei que desse dia em diante ficava brincando só perto da sede da fazenda, sem querer mais saber de tomar banho na cachoeira...

E foi assim que vi o Curupira...! (MONTEIRO 2002_______. 2002. A cobra grande de Barreira do Tapará. In: Visagens e Assombrações e Encantamentos da Amazônia. 2ª ed. n. 7, Ano III. Belém: Smith - Produções Gráficas. p. 15-18. : 12-14).

No excerto 4, aqui tomado como representativo das 05 (cinco) narrativas de Matintaperera, detectamos que o processo de reificação dessa personagem se dá predominantemente por meio de expressões nominais definidas. Assim, como nos outros personagens em análise, a reificação do tipo definido se sobrepõe na estrutura referencial. Por conseguinte, o uso de expressões indefinidas nessa reificação é menor. O que comprova que o processo ligado ao uso de formas definidas já se consolidou no âmbito sociodiscursivo, manifestando-se na produção textual-narrativa inerente às histórias de Matintaperera, mais precisamente no que tange às histórias escritas aqui mostradas.

Por outro lado, ainda de acordo com o excerto 4, o uso de expressões qualificadoras mais amplas, como a Matinta Perera do Rio Maiuatá, não se revelaram tão significativas no processo de reificação dessa entidade, mas evidenciam que esta se tornou muito mais “próxima”15 15 . Ao afirmar que expressões do tipo a Matinta Perera do Rio Maiuatá, que constitui uma forma nominal mais estendida e específica em relação à forma Matinta Perera, torna tal entidade mais “próxima” e rotineira dentro do universo sociodiscursivo em que está integrada, pretendo dizer, na verdade, que ela compõe um conjunto de elementos simbólico-culturais bastante característico de certas práticas ainda veiculadas no contexto amazônico. e rotineira nas atividades cotidianas/sociodiscursivas relativas a histórias de personagens afiliados ao lendário que compõem o universo cultural amazônico, passando, por sua vez, a ser relacionada e referida a um contexto social mais particular ou específico.

Quanto ao excerto 5, exemplificativo do que ocorre nas narrativas de Curupira sob análise, observamos que essa entidade é sempre referida por meio de uma forma definida, o que reafirma o fato de que a referência definida é a mais recursiva quando dos processos de reificação em jogo. Portanto, dado esse fenômeno, esse(a) personagem tem como característica simbólica o fato de possuir uma certa estabilidade quanto ao modo como é referido(a) e nomeado(a). Nesse sentido, tanto no campo da referência como no da nomeação, a entidade tem propriedades discursivas e simbólicas mais ou menos definidas, com desdobramentos nas atividades textuais em que se configura e nas quais “aparece”16 16 . O termo “aparece”, usado em relação à configuração semiótica da entidade Curupira, está ligado a um tipo de construção através do qual esse(a) personagem se apresenta mais recorrentemente descrito nos textos narrativos orais e escritos produzidos nas comunidades amazônicas. como um ser ligado à floresta, geralmente masculino, uma espécie de caboclinho que assusta as pessoas e tem os pés virados para trás. Talvez por isso, é que possui uma forma mais fixa de referência: - o Curupira - uma expressão genérica pela qual tal ente é predicado e reconhecido.

Diante do que aqui foi proposto, é possível dizer que, no campo da referenciação, os processos reificatórios atuam como recursos importantes na construção das cadeias básicas de sentido requeridas pela natureza da atividade sociodiscursiva, mais precisamente no que concerne aos personagens ou entidades protagonistas constituintes das narrativas em pauta, pois estes possuem formas de referência que se instituem como prototípicas, recursivas e estabelecidas. Tais formas passam a compor, portanto, a estrutura textual escrita das histórias em estudo. Assim, em termos de cadeia referencial, essas formas têm a função de organizar a atividade tópica, tendo em conta o tipo de personagem que está sendo narrado e os recursos de que se vale o autor para implementar tal atividade, em conexão com os contextos sociocognitivo e cultural de produção da ação verbal.

Dada a natureza do(s) contexto(s) sociodiscursivo(s) em que as narrativas estudadas são construídas, constitui-se como relevante propor que o processo de reificação das entidades afiliadas ao lendário, em pauta, se dê em razão de estabilizações cognitivo-culturais implicadas na própria construção das mencionadas histórias. Nesse sentido, tais entidades passam a ser referenciadas e/ou referidas como detentoras de características simbólicas definidas, a partir do que são re-conhecidas e nomeadas nas atividades de produção textual-discursivas nas quais entram como protagonistas ou personagens.

Mediante o exposto, postulo ainda a favor do fato de que, nesse âmbito, os processos de referenciação também são resultado de elaborações culturais indexadas aos contextos de produção de sentido, nos quais certos referentes se constituem como já “formalizados” ou dados, com desdobramentos incondicionais e insustentáveis nos processos de produção de textos orais e escritos.

A tabela 1 que segue traz as ocorrências das formas Reificadas e Não-reificadas relativas às entidades-tema das histórias sob estudo:

Tabela 1
Formas reificadas de referenciação relativas a personagens de afiliadas ao lendário

A partir dos dados expostos na tabela, observamos um total de 141 (cento e quarenta e uma) Formas Reificadas e Não-reificadas referentes aos personagens em questão. Desse total, 121 (cento e vinte e uma) são Reificadas e 20 (vinte) Não-reificadas, tendo-se um percentual de 85,81% e 14,18% respectivamente. Isto referenda o fato de que os personagens afiliados ao lendário possuem um atributo simbólico ligado a uma existência própria e independente no universo sociodiscursivo em que são construídos, com reflexos e desdobramentos no modo como o produtor textual os (re)constrói sociocognitivamente nas mencionadas narrativas.

Se olharmos por outro ângulo, constatamos que, da totalidade de reificações já mencionadas, 80 (oitenta) constituem formas nominais definidas e 41 (quarenta e uma) formas indefinidas, equivalendo, em termos percentuais, a 66,11% e 33,88% respectivamente. Logo, como podemos ver, a maioria das reificações se dá por meio de expressões definidas, o que evidencia a questão de que as reificações expressas por definições constituem um procedimento recursivo e característico no processo de construção das entidades protagonistas das histórias analisadas.

Considerando as reificações específicas de cada tipo de narrativa, pude constatar que a entidade Cobra é a que mais se institui como reificada, totalizando 38 (trinta e oito) formas, com um índice percentual de 31,40%. Logo após, vem a Matinta, com 37 (trinta e sete) expressões reificadoras, o que corresponde a 30,57% do total. Mais abaixo, o Boto, com 32 (trinta e duas) ocorrências e cujo índice percentual correspondente a 26,44% e, em último caso, o(a) Curupira, com 14 (quatorze) expressões, equivalendo a 11,57% do geral. Portanto, consoante as descrições feitas, concluímos que os entes Cobra, Matinta e Boto são os que mais configuram o processo de reificação. No caso do(a) Curupira, é possível dizer que o índice se deu menos elevado talvez em função do número de narrativas referentes a esse personagem, ou seja, 03 (três); contudo, podemos afirmar que isso pode não se constituir como um fator propriamente determinante, já que esse personagem só se apresenta como reificado nas histórias em que está inserido.

Por outro lado, tendo em vista a quantidade total de reificações relativas às entidades em foco, verificamos uma média 7,11 expressões por narrativas. Posso dizer, então, que o fenômeno da reificação, mais especificamente dos personagens aqui descritos, apresenta-se como um recurso textual-discursivo e socionarrativo importante, a partir do qual tais entes são constituídos/construídos nos textos das histórias em pauta, com implicações nas formas de condução das ações referenciais típicas desses artefatos socioculturais.

As narrativas de Cobra foram as que apresentaram o mais elevado índice de reificações, com percentual de 31,40% dessas formas, sendo, portanto, essa entidade a mais reificada de todas, o que vem a demonstrar a importância dessa estratégia para a composição/estruturação discursiva das citadas narrativas. Evidencia também, do ponto de vista sociocognitivo, o amplo conhecimento desse personagem e de suas histórias no contexto sociocultural em que o escritor produziu tais relatos. Logo, postulo que a grande circulação de episódios concernentes ao personagem em questão pode ter influído no seu processo reificatório, como se este pudesse se tornar cada vez mais “instituicionalizado” e/ou personificado no ambiente sociodiscursivo em que foi construído e continua a existir.

Conforme os dados, as narrativas de Cobra, Matintaperera e Boto foram as que mais apresentaram formas reificadas, o que traz evidências acerca do fato de que esses personagens lendários são bastante conhecidos no ambiente cultural em que suas histórias circulam. Por conseguinte, tais personagens adquirem uma espécie de existência autônoma, uma independência simbólica na forma como são referidos nesse locus sociodiscursivo, com características também definidas, reconhecíveis e típicas. Dado esse fato, passam a ser nomeados como se fossem entes quase humanos, ou que já sendo humanizados, não precisam ser evocados como pertencendo a um universo à parte do universo biossocial no qual foram criados, existem e estão em circulação.

Considerações finais

Enfim, é possível postular que as formas ou construções referencial-reificadoras por meio das quais o Boto, a Cobra, a Matinta e o(a) Curupira são construídos - compreendendo, aí, as várias estratégias citadas - são resultantes não só de processos sociocognitivos e cognitivo-culturais complexos e heterogêneos, mas também de estabilidades/instabilidades sociodiscursivas17 17 . O uso da expressão instabilidade sociodiscursiva está relacionada à concepção de que as atividades sociodiscursivas são adotadas de mobilidade e transformação. Isto se dá em razão da dinâmica e emergência de que são constituídas as interações sociais. relativas às diversas formas de reelaboração sociocultural dessas entidades, que se mostram sempre ecléticas e multifacetadas, estando implicados, nesse âmbito, os modos como o escritor/produtor se apropria de recursos semântico-discursivos referentes a essas socioconstruções e também dos instrumentos propriamente textuais de que se utiliza para implementar essa tarefa, compreendendo-se, nesses contextos, estabilizações e autonomizações de entidades/personagens simbólicos específicos, constitutivos desses loci culturais.

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  • _______. 2003. Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes.
  • 1
    . A expressão formas de estabilização de âmbito cultural não significa que os processos culturais, construídos nessas formas, se constituam como congelados ou estanques, mas como contendo uma certa estabilidade relativa aos sentidos aí representados.
  • 2
    . A expressão pré-conceitos indica, nesse caso, antecipações acerca de determinados significados a serem ditos em certos contextos de interação.
  • 3
    . A expressão quadros sociocognitivos e discursivos de referência expressa, nesse âmbito, as diversas relações referenciais implicadas nos contextos de interação.
  • 4
    . As palavras em itálico são grifos do autor.
  • 5
    . O meu entendimento acerca da expressão “modelos” ou padrões de natureza cultural é que estes exercem uma certa regulação no que tange às formas de estruturação de elementos referenciais nas atividades textual-discursivas.
  • 6
    . Entendo, segundo os autores aqui apresentados, a expressão metacognição cultural como um conjunto de refrações de sentido que estabelecemos acerca de nossa própria cultura, o que também subentende um metaconhecimento sobre a forma como uma cultura atua sobre os indivíduos que nela estão inseridos.
  • 7
    . Compreendo a expressão contextos de referência como todas as situações sociodiscursivas e/ou sociointerativas através das quais os processos referenciais se realizam.
  • 8
    . Quando postulo que uma entidade lendária é tomada como institucionalizada ou objetificada, refiro-me ao fato de que se constitui como um ente dotado de autonomia e atributos próprios na sociedade em que se insere em termos de crença, tendo um estatuto simbólico particular em relação a outros entes e crenças.
  • 9
    . Entendo por processo reificatório as formas ou maneiras como uma personagem ou entidade passa a ser compreendida e nomeada num sistema de crenças: como um ente a quem se atribui determinados poderes, dotado de uma identidade específica e predicado segundo certas propriedades que lhe são inerentes.
  • 10
    . O termo “distanciamento” (entre aspas) expressa o sentido relacionado a uma característica simbólica ligada ao mesmo tempo a “encante”, fetiche e inacessibilidade em relação a uma entidade e ao seu modo de ingerência na vida das pessoas, o que vem a reforçar a crença nos seus poderes supranaturais.
  • 11
    . Segundo Dicionário Online de Português, Maravilhoso diz respeito a tudo que é capaz de provocar admiração, tudo aquilo que interfere no componente sensorial dos indivíduos e que foge aos fenômenos comuns da vida cotidiana.
  • 12
    . Fantástico refere, segundo o Dicionário Online de Português, a tudo aquilo que só existe na imaginação, não tendo, portanto, uma existência real no universo físico ou biossocial.
  • 13
    . A expressão entidade simbolicamente “reconhecida”, usada entre aspas, é empregada na acepção de que tal entidade faz parte das construções conceituais que integram determinadas crenças e valores de uma comunidade cultural.
  • 14
    . Trata-se aqui, de acordo com a lenda clássica, da narrativa referente À Cobra Norato, cujas duas crianças, ao nascerem, são jogadas no rio por sua mãe, e, imediatamente, transformadas em cobras, uma é boa (Norato) e a outra é má (Maria Caninana), a primeira mata a segunda. Norato é desencantado, posteriormente, por um pescador, passando a viver como um homem comum.
  • 15
    . Ao afirmar que expressões do tipo a Matinta Perera do Rio Maiuatá, que constitui uma forma nominal mais estendida e específica em relação à forma Matinta Perera, torna tal entidade mais “próxima” e rotineira dentro do universo sociodiscursivo em que está integrada, pretendo dizer, na verdade, que ela compõe um conjunto de elementos simbólico-culturais bastante característico de certas práticas ainda veiculadas no contexto amazônico.
  • 16
    . O termo “aparece”, usado em relação à configuração semiótica da entidade Curupira, está ligado a um tipo de construção através do qual esse(a) personagem se apresenta mais recorrentemente descrito nos textos narrativos orais e escritos produzidos nas comunidades amazônicas.
  • 17
    . O uso da expressão instabilidade sociodiscursiva está relacionada à concepção de que as atividades sociodiscursivas são adotadas de mobilidade e transformação. Isto se dá em razão da dinâmica e emergência de que são constituídas as interações sociais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2017
  • Aceito
    01 Ago 2017
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