Acessibilidade / Reportar erro

Curiosidade Feminista nas Relações Internacionais: Olhares, Vozes e Reflexões para Além do Cânone

Feminist Curiosity in International Relations: Perspectives, Voices, and Reflections Beyond the Canon

La Curiosité Féministe dans les Relations Internationales: Regards, Voix et Réflexions au-delà du Canon

Curiosidad Feminista en las Relaciones Internacionales: Miradas, Voces y Reflexiones más Allá del Canon

Resumo

Como a curiosidade feminista aprofunda as reflexões epistemológicas e metodológicas nos estudos feministas nas RI, de modo a produzir pesquisas críticas e engajadas com as mulheres e os sujeitos generificados? A partir de uma discussão filosófica, argumento que a curiosidade feminista fornece o instrumental crítico para interpelar acerca do quem, onde e como nas pesquisas feministas e de gênero, estabelecendo, com isso, rumos epistemológicos e metodológicos alicerçados na natureza reflexiva dos feminismos. Ademais, apresento um panorama bibliométrico da produção feminista recente em dois periódicos brasileiros de RI, de modo a avaliar como a curiosidade feminista ali se manifesta. Concluo que a pesquisa feminista no país assume uma postura crítica vis-à-vis a literatura euroamericana, centrando-se epistemológica e tematicamente nas abordagens do Sul Global.

feminismo nas Relações Internacionais; gênero e Relações Internacionais; mulheres e Relações Internacionais

Abstract

How does feminist curiosity deepen epistemological and methodological reflections in feminist IR studies so as to produce critically engaged research on women and gendered subjects? Departing from a philosophical discussion, I argue that feminist curiosity provides a critical tool to interrogate the meanings of who, where and how in feminist and gender research, thereby establishing epistemological and methodological directions based on the reflexive nature of feminisms. Furthermore, I present a bibliometric panorama of the recent feminist output in two Brazilian IR journals in order to assess the way their pages express feminist curiosity. I conclude that national feminist research takes a critical stance in the country vis-à-vis Euro-American literature, focusing epistemologically and thematically on approaches emerging from the Global South.

feminist International Relations; gender and International Relations; women and International Relations

Résumé

Comment la curiosité féministe approfondit les réflexions épistémologiques et méthodologiques dans les études féministes en Relations Internationales, afin de produire des recherches critiques et engagées envers les femmes et les sujets genrés ? À partir d’une discussion philosophique, j’argumente que la curiosité féministe fournit l’outil critique pour questionner le qui, le où et le comment dans les recherches féministes et de genre, établissant ainsi des orientations épistémologiques et méthodologiques ancrées dans la nature réflexive des féminismes. De plus, je présente un panorama bibliométrique de la production féministe récente dans deux revues brésiliennes de Relations Internationales, afin d’évaluer comment la curiosité féministe s’y manifeste. Je conclus que la recherche féministe dans le pays adopte une position critique vis-à-vis de la littérature euro-américaine, se concentrant épistémologiquement et thématiquement sur les approches du Sud Global.

féminisme en Relations Internationales; genre et Relations Internationales; femmes et Relations Internationales

Resumen

¿Cómo la curiosidad feminista profundiza las reflexiones epistemológicas y metodológicas en los estudios feministas en las Relaciones Internacionales para producir investigaciones críticas y vinculadas con las mujeres y los sujetos generificados? A partir de una discusión filosófica, argumento que la curiosidad feminista ofrece el instrumental crítico para interpelar sobre el quién, el dónde y el cómo en las investigaciones feministas y de género, estableciendo, así, rumbos epistemológicos y metodológicos arraigados en la naturaleza reflexiva de los feminismos. Además, presento un panorama bibliométrico de la producción feminista reciente en dos revistas brasileiras de Relaciones Internacionales, con el fin de evaluar cómo la curiosidad feminista se manifiesta allí. Concluyo que la investigación feminista en el país asume una postura crítica en relación con la literatura euroamericana, centrándose epistemológica y temáticamente en los abordajes del Sur Global.

feminismo en las Relaciones Internacionales; género y Relaciones Internacionales; mujeres y Relaciones Internacionales

Introdução

Passadas mais de três décadas desde a inauguração formal dos debates feministas em Relações Internacionais, uma ampla literatura vem-se desenvolvendo de modo a refletir sobre a presença das mulheres na arena internacional e nos fenômenos internacionais. O dossiê publicado na revista Millennium: Journal of International Studies em 1988 e o livro pioneiro de J. Ann Tickner, Gender in International Relations: Feminist Perspectives on Achieving Global Security (1992), marcaram não só a (necessária) introdução do feminismo nas teorias das RI, como lançaram luz sobre um elemento frequentemente ignorado na disciplina: os indivíduos – e neles, evidentemente, as mulheres (Ackerly, Stern e True, 2006; Tickner e True, 2018Tickner, J. Ann; True, Jacqui. (2018), “A Century of International Relations Feminism: From World War I Women’s Peace Pragmatism to the Women, Peace and Security Agenda”. International Studies Quarterly, v. 62, n. 2, pp. 221-233.). Se a disciplina se caracterizou, até os anos 1980, por uma construção teórica centrada no Estado, a partir dos movimentos pós-positivistas a agenda de pesquisa se amplia, principalmente em diálogo com outras disciplinas – Sociologia, Antropologia, Linguística (Tickner e Sjoberg, 2013Tickner, J. Ann; Sjoberg, Laura. (2013), “Feminism”, in T. Dunne, M. Kurki e S. Smith (eds.), International Relations Theories: Discipline and Diversity. Oxford, Oxford University Press, 3ª edição, pp. 205-222.). Os aportes epistemológicos feministas adentram as RI nesse contexto (Monte, 2013Monte, Izadora Xavier do. (2013), “O Debate e os Debates: Abordagens Feministas para as Relações Internacionais”. Estudos Feministas, v. 21, n. 1, pp. 59-80.).

Essa ressignificação feminista das agendas de pesquisa e das epistemologias em RI é operada frente ao desiderato de se levantarem questões antes ignoradas pelo cânone disciplinar. Em larga medida, o que as feministas trazem para as RI é um conjunto de problemáticas ligadas às desigualdades de gênero subjacentes aos fenômenos e sistema internacionais e que, seja por escolha espitemológica, seja por “distração”, passavam invisíveis aos olhos do mainstream, tanto nas análises de nível micro (i.e., ao nível dos indivíduos), como nas de nível macro (i.e., ao nível do sistema internacional de Estados e organismos internacionais) (Hudson et al., 2014Hudson, Valerie M. et al. (2014), Sex and World Peace. New York, Columbia University Press.). Ao lançarem luz sobre tais desigualdades, as feministas não só chamaram a atenção para questões antes negligenciadas, como também inseriram o gênero como chave analítica nos estudos internacionais (Sylvester, 1994Sylvester, Christine. (1994), Feminist Theory and International Relations in a Postmodern Era. Cambridge, Cambridge University Press.; Tickner, 2006; Whitworth, 1994Whitworth, Sandra. (1994), Feminism and International Relations. New York, St Martin’s Press.). Essa revolução se deu tanto em termos das epistemologias quanto das metodologias em RI, algo que já se observava em outras ciências que passaram pelo escrutínio feminista (Harding, 1991Harding, Sandra. (1991), Whose Science? Whose Knowledge? Ithaca, Cornell University Press, 1991.; Hay, 2020Hay, Carol. (2020), Think like a Feminist: the Philosophy behind the Revolution. New York, W. W. Norton Company.; Zerilli, 2006Zerilli, Linda. (2006), “Feminist Theory and the Canon of Political Thought”, in J.S. Dryzek, B. Honig e A. Phillips (eds.), The Oxford Handbook of Political Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 106-124.). O resultado se vê na diversidade e pluralidade de agendas, refletidas nas intersecções com os estudos de teoria das RI (Brown, 1988Brown, Sarah. (1988), “Feminism, International Theory, and International Relations of Gender Inequality”. Millennium: Journal of International Studies, v. 17, n. 3, pp. 461-475.; Sylvester, 1994Sylvester, Christine. (1994), Feminist Theory and International Relations in a Postmodern Era. Cambridge, Cambridge University Press., 2002Sylvester, Christine. (2002), Feminist International Relations: An Unfinished Journey. Cambridge, Cambridge University Press.; True, 2017True, Jacqui. (2017), “Feminism and Gender Studies in International Relations Theory”. Oxford Research Encyclopedia, International Studies [12 nov. 2021]. Oxford. Disponível em https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190846626.013.46.
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
; Whitworth, 1994Whitworth, Sandra. (1994), Feminism and International Relations. New York, St Martin’s Press.; Youngs, 2004Youngs, Gillian. (2004), “Feminist International Relations: a Contradiction in Terms? Or: Why Women and Gender are Essential to Understanding the World ‘We’ Live in”. International Affairs, v. 80, n. 1, pp. 75-87.), economia política (Peterson, 2003Peterson, V. Spike. (2003), A Critical Rewriting of Global Political Economy: Integrating Reproductive, Productive and Virtual Economies. London, Routledge.; Runyan e Peterson, 2014; Tickner, 2001Tickner, J. Ann. (2001), Gendering World Politics. New York, Columbia University Press.), violência (Drumond, 2019Drumond, Paula. (2019), “What about Men? Towards a Critical Interrogation of Sexual Violence against Men in Global Politics”. International Affairs, v. 95, n. 6, pp. 1271-1287.; Shepherd, 2008Shepherd, Laura J. (2008), Gender, Violence & Security. London, Zed Books.; Sjoberg, 2016Sjoberg, Laura. (2016), Women as Wartime Rapists: Beyond Sensation and Stereotyping. New York, New York University Press.; True, 2012True, Jacqui. (2012), The Political Economy of Violence Against Women. Oxford, Oxford University Press., 2021True, Jacqui. (2021), Violence Against Women: What Everyone Needs to Know®. Oxford, Oxford University Press.), masculinidades (Duriesmith, 2018Duriesmith, Daniel. (2018), “Manly States and Feminist Foreign Policy: Revisiting the Liberal State as an Agent of Change”, in S. Parashar, J. A. Tickner e J. True (eds.), Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the States in International Relations. Oxford, Oxford University Press, pp. 51-68.; Hooper, 2001Hooper, Charlotte. (2001), Manly States: Masculinities, International Relations and Gender Politics. New York, Columbia University Press.; Parpart e Zalewski, 2008Parpart, Jane L.; Zalewski, Marysia (eds.). (2008), Rethinking The Man Question: Sex, Gender and Violence in International Relations. London, Zed Books.; Zalewski e Parpart, 1997Zalewski, Marysia; Parpart, Jane (orgs.). (1997), The “Man” Question in International Relations. Boulder, Westview Press, 1997.), segurança (Cohn, 2013Cohn, Carol. (2013), “Women and Wars: Toward a Conceptual Framework”, in C. Cohn (ed.), Women & Wars. Cambridge, Polity Press, pp. 1-35.; Enloe, 2000Enloe, Cynthia. (2000), Maneuvers: The International Politics of Militarizng Women’s Lives. Berkeley, University of California Press., 2014Enloe, Cynthia. (2014), Bananas, Beaches, and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. Berkeley, University of California Press.; Sjoberg, 2014Sjoberg, Laura. (2014), Gender, War & Conflict. Cambridge, Polity Press.; Tickner, 1992Tickner, J. Ann. (1992), Gender in International Relations: Feminist Perspectives on Achieving Global Security. New York, Columbia University Press.), e diplomacia (Aggestam e Towns, 2018Aggestam, Karin; Towns, Ann E. (2018), “Introduction: The Study of Gender, Diplomacy and Negotiation”, in K. Aggestam e A. E. Towns (eds.), Gendering Diplomacy and International Negotiation. Cham, Palgrave Macmillan, pp. 1-22.; Amparo e Moreira, 2021Amparo, Gabrielly Almeida Santos do; Moreira, Julia Bertino. (2021), “A Diplomacia Não Tem Rosto de Mulher: o Itamaraty e a Desigualdade de Gênero”. Meridiano 47, v. 22, pp. e22001.; Lenine e Sanca, 2022Lenine, Enzo; Sanca, Naentrem. (2022), “Gênero, Feminismo e Diplomacia: Analisando a Instituição pelas Lentes Feministas das Relações Internacionais”. Organizações & Sociedade, v. 29, n. 100, pp. 100-124.; Rossone de Paula, 2019Rossone de Paula, Francine. (2019), “Brazil’s Non-Indifference: A Case for a Feminist Diplomatic Agenda or Geopolitics as Usual?” International Feminist Journal of Politics, v. 21, n. 1, pp. 47-66.), apenas para mencionar algumas.

Entretanto, e apesar dos avanços, as agendas feministas em RI ainda enfrentam limitações dentro da disciplina. Se de um lado houve reconhecimento de sua importância, de outro o mainstream (ou malestream) ainda oferece resistências à sua inclusão como núcleo teórico da disciplina (Keohane, 1998Keohane, Robert O. (1998), “Beyond Dicothomy: Conversations Between International Relations and Feminist Theory”. International Studies Quarterly, v. 42, pp. 193-198.; Tickner, 2005Tickner, J. Ann. (2005), “What Is your Research Program? Some Feminist Answers to International Relations Methodological Questions”. International Studies Quarterly, v. 49, pp. 1-21.; Zalewski, 2006Zalewski, Marysia. (2006), “Distracted Reflections on the Production, Narration, and Refusal of Feminist Knowledge in International Relations”, in B.A. Ackerly, M. Stern e J. True (eds.), Feminist Methodologies for International Relations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 42-61.). Isso se reflete na persistente e flagrante marginalização das pesquisas feministas nos principais periódicos internacionais de RI (Breuning, Bredehoft e Walton, 2005). Nas academias sul-americanas, o cenário não é diferente: menos de 4% dos artigos publicados em periódicos de alto prestígio em Ciência Política e RI valem-se de abordagens feministas; no Brasil, em particular, esse número não alcança os 3% (Medeiros et al., 2016Medeiros, Marcelo de Almeida et al. (2016), “What Does the Field of International Relations Look like in South America?”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 59, n. 1, pp. e004.: 12).1 1 . Em contrapartida, as teorias tradicionais das RI, comumente associadas ao denominado mainstream, quais sejam, liberalismos e realismos, respondem por aproximadamente 48% das preferências teóricas dos artigos publicados em periódicos brasileiros (Medeiros et al., 2016). Se avaliamos ainda o estado dos estudos feministas do Sul Global em RI, a situação é mais desalentadora, refletindo uma marginalização dentro da própria marginalização do feminismo (Ballestrin, 2021Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2021), “Para uma Abordagem Feminista e Pós-Colonial das Relações Internacionais”, in A. Toledo (ed.), Perspectivas Pós-coloniais e Decoloniais em Relações Internacionais. Salvador, Edufba, pp. 179-204.; Spivak, 1998Spivak, Gayatri Chakravorty. (1998), “Gender and International Studies”. Millennium: Journal of International Studies, v. 27, n. 4, pp. 809-831.).

Nesse cenário, em que os estudos feministas no Brasil se encontram às margens da disciplina de RI, há uma dupla necessidade de fomentar a pesquisa orientada pelos aportes teóricos e metodológicos dos feminismos (aqui percebidos em uma visão plural) e estabelecer marcos norteadores sobre como realizar tal tipo de investigação. Se há particularidades na análise feminista – características da própria análise de gênero –, faz-se mister compreender como tais particularidades informam as pesquisas dessa natureza dentro de RI. Portanto, o presente artigo visa a contribuir para o preenchimento de tal lacuna teórica e metodológica, objetivando discutir as questões centrais para o exercício da curiosidade feminista nas Relações Internacionais. Parto da seguinte pergunta de pesquisa: como a curiosidade feminista aprofunda as reflexões epistemológicas e metodológicas nos estudos feministas nas RI, de modo a produzir pesquisas críticas e engajadas com as mulheres e os sujeitos generificados? Argumento, por meio de um debate teórico e filosófico, que a curiosidade feminista, compreendida como um instrumento analítico crítico de interpelação sobre quem, onde e como se realiza a investigação feminista, impõe os desideratos de refletirmos sobre as escolhas epistemológicas e metodológicas da pesquisa, considerando o fundamento relacional das abordagens feministas; como também a assumirmos uma posição responsiva aos sujeitos e seus contextos sobre os quais se produz conhecimento, reconhecendo, ademais, a nossa própria posicionalidade como pesquisadoras nesse processo. Essa curiosidade, portanto, adquire a um só tempo a sensibilidade às questões que envolvem com quem, onde e como se produz conhecimento, bem como um caráter libertador do gênero e suas interseccionalidades (Zurn, 2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.).

O artigo está estruturado em quatro seções. Na primeira, ofereço um panorama das abordagens feministas em RI, retomando sua história recente, os principais conceitos e epistemologias que informam a pesquisa feminista na disciplina. Na segunda seção, discuto o que são as metodologias feministas em RI. Assentadas na tradição reflexivista, as feministas tomam decisões metodológicas imbuídas de reflexões ontológicas e epistemológicas, o que é per se um caráter distintivo de desenho de pesquisa, especialmente se comparado às tradições neopositivistas e racionalistas do mainstream. Na terceira seção, delineio os significados da curiosidade feminista na pesquisa em RI. Esse conceito é recorrente nos escritos de Cynthia Enloe e serve de provocação e convite para o questionamento feminista das relações internacionais. Finalmente, na quarta seção, apresento um panorama do exercício da curiosidade feminista em publicações recentes em dois periódicos nacionais de RI.

Relações Internacionais feministas: breve panorama

Embora o movimento feminista tenha uma longa história,2 2 . Tradicionalmente, a história do feminismo no Ocidente é narrada por meio de três ondas (Hay, 2020; Zerilli, 2006). A primeira onda refere-se aos primeiros movimentos sufragistas, que visavam à expansão das garantias e proteções liberais para as mulheres. A segunda onda, por sua vez, problematiza as estruturas e instituições sociais, políticas e econômicas por meio da chave de gênero, apontando como aquelas estão organizadas de forma a distribuir o poder de maneira desigual entre homens e mulheres. A terceira onda, finalmente, caracteriza o momento mais recente, questionando a própria noção categórica de gênero e mulher, objetivando incluir aqueles e aquelas excluídos por uma visão limitada de tais categorias, as quais foram construídas com base nas experiências de um único tipo de mulher: branca, de classe média e dos países do Norte Global. É o momento da inclusão das experiências de LGBTQIAPN+, mulheres negras, mulheres do Sul Global entre diversos outros indivíduos e grupos. Essa narrativa, porém, não é a única possível: Hawkesworth e Disch (2018) preferem descrever a trajetória feminista por meio dos grandes temas que a informam; Goredema (2010), escrevendo sobre os feminismos africanos, aponta que os movimentos feministas na África são melhor entendidos por uma divisão em eras políticas cujo nexo central é o colonialismo; Pinto (2010) descreve o feminismo no Brasil em referência às três ondas, mas salientando as especificidades contextuais do país, principalmente no contexto da ditadura militar. é apenas a partir das últimas décadas do século passado que a disciplina de RI começa a considerar as epistemologias feministas na produção de conhecimento sobre os fenômenos internacionais (Grecco, 2020Grecco, Gabriela de Lima. (2020), “Feminismos y Género en los Estudios Internacionales”. Relaciones Internacionales, v. 44, pp. 127-145.; Lenine, 2021Lenine, Enzo. (2021), “Relaciones Internacionales Feministas: Silencios, Diálogos y Ausencias”. Estudios Internacionales, v. 200, pp. 79-104.). Esse ingresso tardio nas discussões teóricas e empíricas não foi fortuito: a construção da disciplina, desde o começo do século XX, pautou suas agendas em um olhar para o sistema internacional como composto por Estados, os quais interagiam entre si em nome dos indivíduos, mas como se dispusessem de uma vida própria (Dougherty e Pfaltzgraff, 2006). Mesmo quando as temáticas assentam-se na ideia de segurança, a qual, em última análise, envolveria a segurança dos cidadãos e cidadãs nacionais, os indivíduos apenas se fazem presentes marginalmente nas considerações teóricas e empíricas (Cohn, 2013Cohn, Carol. (2013), “Women and Wars: Toward a Conceptual Framework”, in C. Cohn (ed.), Women & Wars. Cambridge, Polity Press, pp. 1-35.). Tal enfoque origina-se da própria construção epistemológica das teorias mainstream de RI, quais sejam: realismo, neorrealismo, neoliberalismo/neoinstitucionalismo (Monte, 2013Monte, Izadora Xavier do. (2013), “O Debate e os Debates: Abordagens Feministas para as Relações Internacionais”. Estudos Feministas, v. 21, n. 1, pp. 59-80.).3 3 . Mais do que uma listagem de teorias, o mainstream caracteriza-se por seu fundamento filosófico residir no empiricismo e positivismo lógico, que presumem a dissociabilidade entre realidade e sujeito (especialmente, a pesquisadora), permitindo, assim, a apreensão objetiva dos fenômenos reais (Steans, 2003).

A partir do debate iniciado em 1988 na revista Millennium, diferentes agendas feministas são imediatamente lançadas como fruto não só do dossiê, como também das frentes teóricas e empíricas abertas nessa ocasião. No campo teórico, uma das preocupações iniciais mais prementes tratou de reposicionar as teorias de RI por meio do questionamento dos seus pressupostos, os quais não só construíam um sistema internacional moldado em experiências de um tipo de indivíduo (no caso, os homens), como também eram orientados por ideias de papéis de gênero, nomeadamente dentro de uma óptica masculinista e masculinizante (Connell, 2005Connell, R. W. (2005), Masculinities. Berkeley, University of California Press.; Elshtain, 1988Elshtain, Jean Bethke. (1988), “The Problem with Peace”. Millennium: Journal of International Studies, v. 17, n. 3, pp. 441-449.; Peterson, 1992Peterson, V. Spike. (1992), “Introduction”, in V.S. Peterson (ed.), Gendered States: Feminist (Re)Visions of International Relations Theory. Boulder, Lynne Rienner, pp. 1-29.; Tickner, 1999Tickner, J. Ann. (1999), “Searching for the Princess? Feminist Perspectives in International Relations”. Harvard International Review, v. 21, n. 4, pp. 44-48.). Ao denunciar essa natureza epistemológica da construção de teorias na disciplina, as feministas buscaram a um só tempo perturbar conceitos fundamentais, tais como o de segurança, soberania, Estado e poder; questionar as implicações das teorias, supostamente elaboradas sob um preceito de neutralidade axiológica; inserir as epistemologias feministas na disciplina; e reposicionar as mulheres nos fenômenos internacionais, de modo a assegurar sua centralidade nas pesquisas (Ackerly, Stern e True, 2006; Tickner, 1988Tickner, J. Ann. (1988), “Hans Morgenthau’s Principles of Political Realism: A Feminist Reformulation”. Millennium: Journal of International Studies, v. 17, n. 3, pp. 429-440., 1999Tickner, J. Ann. (1999), “Searching for the Princess? Feminist Perspectives in International Relations”. Harvard International Review, v. 21, n. 4, pp. 44-48., 2001Tickner, J. Ann. (2001), Gendering World Politics. New York, Columbia University Press.; Weldon, 2006Weldon, S. Laurel. (2006), “Inclusion and Understanding: a Collective Methodology for Feminist International Relations”, in B.A. Ackerly, M. Stern e J. True (eds.), Feminist Methodologies for International Relations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 62-87.; Whitworth, 1994Whitworth, Sandra. (1994), Feminism and International Relations. New York, St Martin’s Press.). Não por acaso, os feminismos em RI desafiam a disciplina ao propor epistemologias feministas centradas em três ideias nucleares para a condução da pesquisa: 1. Uma certa compreensão das mulheres como grupo, reconhecendo seus diversos contextos sociais, econômicos e culturais que as tornam diversas; 2. O objetivo político de avançar os direitos, status e condição das mulheres como grupo, seja na esfera privada, seja na esfera pública; 3. O desejo de reduzir ou erradicar as hierarquias de gênero que produzem as desigualdades entre homens e mulheres (Mazur, 2018Mazur, Amy G. (2018), “A Feminist Empirical and Integrativ Approach in Political Science: Breaking Down the Glass Wall?”, in H. Kincaid (ed.), The Oxford Handbook of the Philosophy of Social Science. Oxford: Oxford University Press, pp. 533-558.: 535).

As epistemologias feministas, entretanto, traduzem-se em diferentes fundamentos, os quais têm influenciado os feminismos em RI. Nas discussões originárias do campo, três abordagens animaram os debates: epistemologias pós-modernas, do ponto de vista e empiricistas. As epistemologias pós-modernas fundamentam-se em um questionamento a respeito do caráter do conhecimento como verdade, perguntando-se como a posicionalidade do indivíduo incide sobre como ele vê o poder (Hawkesworth, 1989Hawkesworth, Mary. (1989), “Knowers, Knowing, Known: Feminist Theory and Claims of Truth”. Signs, v. 14, n. 3, pp. 533-557.; Mazur, 2018Mazur, Amy G. (2018), “A Feminist Empirical and Integrativ Approach in Political Science: Breaking Down the Glass Wall?”, in H. Kincaid (ed.), The Oxford Handbook of the Philosophy of Social Science. Oxford: Oxford University Press, pp. 533-558.). Nesse sentido, o questionamento do caráter universal dos conceitos e do conhecimento estabelecidos pela estrutura patriarcal da sociedade e, nas RI, do sistema internacional é essencial para as feministas pós-modernas, principalmente porque lhes permite revelar as desigualdades de poder e rejeitar todos os elementos tidos como definitivos, finitos e carregados de sentido na sociedade (Kristeva, 1980Kristeva, Julia. (1980), “Oscillation Between Power and Denial”, in E. Marks e I. Courtivron (eds.), New French Feminisms. Amherst, University of Massachusetts Press, pp. 185-223.: 166 apudMazur, 2018Mazur, Amy G. (2018), “A Feminist Empirical and Integrativ Approach in Political Science: Breaking Down the Glass Wall?”, in H. Kincaid (ed.), The Oxford Handbook of the Philosophy of Social Science. Oxford: Oxford University Press, pp. 533-558.: 538). Há, aqui, portanto, uma problematização da suposta objetividade da ciência, que desconsidera os próprios sujeitos que produzem o conhecimento e como sua subjetividade incide sobre a natureza da ciência (Harding, 1991Harding, Sandra. (1991), Whose Science? Whose Knowledge? Ithaca, Cornell University Press, 1991.), bem como na hierarquização de epistemologias que acaba por privilegiar determinadas abordagens sobre o mundo e o conhecimento (notadamente, as que dialogam com o racionalismo) em detrimento de outras (como, por exemplo, aquelas que emanam das experiências e vivências dos indivíduos) (Intemann, 2018Intemann, Kristen. (2018), “Feminist Standpoint”, in L. Disch e M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 261-282.). Nessa senda, as feministas pós-modernas em RI têm lançado luz sobre como o sistema internacional está estruturado em torno de significados patriarcais tidos como universais, interrogando-se a respeito de como as bases da masculinidade estão por trás não só dos conflitos e violências, como da própria exclusão e insegurança das mulheres nas várias dimensões de suas vidas individuais e em coletividade (Hutchings, 2002Hutchings, Kimberly. (2002), “Feminist International Relations: An Unfinished Journey, Christine Sylvester (New York: Cambridge University Press, 2002), 350 pp., $65 cloth, $25 paper”. Ethics & International Affairs, v. 16, n. 2, pp. 171-173.; Sylvester, 1994Sylvester, Christine. (1994), Feminist Theory and International Relations in a Postmodern Era. Cambridge, Cambridge University Press.; Tickner, 2006; Zalewski, 2000Zalewski, Marysia. (2000), Feminism After Postmodernism: Theorising Through Practice. London, Routledge., 2013Zalewski, Marysia. (2013), Feminist International Relations: Exquisite Corpse. Abingdon, Routledge.).

Contrastando, inicialmente, com as epistemologias pós-modernas, os feminismos do ponto de vista tomam como marco inicial o reposicionamento das mulheres e reconhecem que os diferentes sistemas de opressão social incidem sobre os indivíduos produzindo experiências particulares e distintas – e, por conseguinte, conhecimentos sobre essas experiências – de acordo com sua posição social (Intemann, 2018Intemann, Kristen. (2018), “Feminist Standpoint”, in L. Disch e M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 261-282.). No caso das mulheres, as suas experiências e vivências, uma vez consideradas como fonte legítima de apreensão do mundo e produção do conhecimento, proporcionam um ponto de vista próprio em relação às opressões que enfrentam (Harding, 1991Harding, Sandra. (1991), Whose Science? Whose Knowledge? Ithaca, Cornell University Press, 1991., 2004Harding, Sandra. (2004), “A Socially Relevant Philosophy of Science? Resources from Standpoint Theory’s Controversiality”. Hypatia, v. 19, n. 1, pp. 25-47.; Hartsock, 1983Hartsock, Nancy C. M. (1983), Money, Sex, and Power: Toward a Feminist Historical Materialism. New York, Longman.). Mais especificamente, o feminismo do ponto de vista “enfatiza o papel chave das mulheres e de suas experiências como analistas e objetos de análise e afirma que as mulheres precisam identificar a natureza patriarcal da produção de conhecimento, bem como os métodos e conceitos usados e então criar um novo modo de conduzir pesquisa para produzir novos (...) conceitos, teorias e conhecimentos” (Mazur, 2018Mazur, Amy G. (2018), “A Feminist Empirical and Integrativ Approach in Political Science: Breaking Down the Glass Wall?”, in H. Kincaid (ed.), The Oxford Handbook of the Philosophy of Social Science. Oxford: Oxford University Press, pp. 533-558.: 538).

Finalmente, a epistemologia feminista empiricista parte do realismo científico ao aceitar que a existência do mundo independe do agente humano que o investiga (Hawkesworth, 1989Hawkesworth, Mary. (1989), “Knowers, Knowing, Known: Feminist Theory and Claims of Truth”. Signs, v. 14, n. 3, pp. 533-557.), contrastando radicalmente com as perspectivas anteriores. Ao assentar o conhecimento nessas bases filosóficas, a epistemologia empiricista se vale dos modelos empiricistas de observação e mensuração (e posterior teste) dos fenômenos sociais, desassociando-os de relações de poder entre objeto e sujeito de pesquisa (Mazur, 2018Mazur, Amy G. (2018), “A Feminist Empirical and Integrativ Approach in Political Science: Breaking Down the Glass Wall?”, in H. Kincaid (ed.), The Oxford Handbook of the Philosophy of Social Science. Oxford: Oxford University Press, pp. 533-558.). No contexto feminista, isso implica recorrer aos métodos tradicionais, inclusive reconhecendo-os como capazes de eliminar o viés masculinista da ciência (Hawkesworth, 1989Hawkesworth, Mary. (1989), “Knowers, Knowing, Known: Feminist Theory and Claims of Truth”. Signs, v. 14, n. 3, pp. 533-557.; Harding, 1991Harding, Sandra. (1991), Whose Science? Whose Knowledge? Ithaca, Cornell University Press, 1991.). Nas RI, as epistemologias feministas empiricistas têm-se refletido em trabalhos eminentemente quantitativos (Caprioli, 2004Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.; Davies e True, 2015Davies, Sara E; True, Jacqui. (2015), “Reframing conflict-related sexual and gender-based violence: Bringing gender analysis back in”. Security Dialogue, v. 46, n. 6, pp. 495-512.; Wood, 2006Wood, Elizabeth Jean. (2006), “Variation in Sexual Violence during War”. Politics and Society, v. 34, n. 3, pp. 307-342.), aderindo à lógica de causalidade covariacional.

À medida que o campo feminista nas RI se estabelece, e em paralelo com os avanços dos movimentos e das teorias feministas no fim século XX e no século XXI, novas epistemologias passam a informar e problematizar não só a disciplina, como a própria agenda feminista. Se, de um lado, a centralidade do indivíduo é mantida, de outro esse indivíduo passa a ser visto em sua pluralidade de experiências e contextos, recuperando suas particularidades locais e, sobremaneira, sua agência (Parashar, Tickner e True, 2018Tickner, J. Ann; True, Jacqui. (2018), “A Century of International Relations Feminism: From World War I Women’s Peace Pragmatism to the Women, Peace and Security Agenda”. International Studies Quarterly, v. 62, n. 2, pp. 221-233.). Destaca-se, nesse processo, a incorporação dos debates pós-coloniais e decoloniais, que trazem à cena disciplinar os sujeitos do Sul Global. Capitaneada por pensadoras dessa ampla e diversa região e na diáspora, os feminismos do Sul Global denunciam a pouca abertura não só do cânone de RI, como também das próprias feministas do Norte Global às agendas e demandas específicas dos demais povos do mundo (Ballestrin, 2017Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2017), “Feminismos Subalternos”. Estudos Feministas, v. 25, n. 3, pp. 1035-1054.; Grecco, 2020Grecco, Gabriela de Lima. (2020), “Feminismos y Género en los Estudios Internacionales”. Relaciones Internacionales, v. 44, pp. 127-145.; Mendoza, 2018Mendoza, Breny. (2018), “Coloniality of Gender and Power: From Postcoloniality to Decoloniality”, in L. Disch e M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 100-121.). A aparente universalidade das agendas feministas contrasta com a diversidade de questões que atravessam as realidades socioeconômicas de mulheres e sujeitos generificados em contextos de perpetuação de estruturas coloniais de exploração e discriminação étnico-racial (hooks, 2019hooks, bell. (2019), Olhares Negros: Raça e Representação. São Paulo: Elefante.; Mohanty, 2003Mohanty, Chandra Talpade. (2003), Feminism without Borders: Decolonizing theory, practicing solidarity. Durham, Duke University Press.; Segato, 2016Segato, Rita Laura. (2016), La Guerra contra las Mujeres. Madrid, Traficantes de Sueños.; Oyewùmí, 2003Oyewùmí, Oyèrónké. (2003), “Introduction: Feminism, Sisterhood, and Other Foreign Relations”, in O. Oyewùmí (ed.), African Women & Feminism: Reflecting On The Politics Of Sisterhood. Trenton, Africa World Press, pp. 1-24.). A persistência dessas estruturas resulta das dicotomias herdadas como legado da colonização, hierarquizando a distribuição de poder dentro das chaves de Ocidente/Oriente, civilizado/bárbaro, moderno/primitivo, branco/negro, indígena (Mendoza, 2018Mendoza, Breny. (2018), “Coloniality of Gender and Power: From Postcoloniality to Decoloniality”, in L. Disch e M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 100-121.). No que tange ao gênero, a colonialidade do poder estrutura as relações de violação dos corpos e subjetividades das mulheres colonizadas, demonstrando que a colonização invade inclusive as fronteiras do indivíduo expressas na materialidade do seu corpo, assim como na sua consciência e individualidade, extirpando-os de significado, autonomia e agência (Lugones, 2010Lugones, María. (2010), “Toward a Decolonial Feminism”. Hypatia, v. 25, n. 4, pp. 742-759.). Em uma dura crítica aos estudos internacionais, Spivak (1998)Spivak, Gayatri Chakravorty. (1998), “Gender and International Studies”. Millennium: Journal of International Studies, v. 27, n. 4, pp. 809-831. aponta justamente as dicotomias que caracterizam a inserção das feministas do Sul Global dentro de uma lógica colonizadora do conhecimento: de um lado, as agendas de feministas euroamericanas, compreendidas como universais, modernas, racionais e avançadas; de outro, as feministas do Sul Global, consideradas primitivas, culturais e subalternas (Lenine, 2021Lenine, Enzo. (2021), “Relaciones Internacionales Feministas: Silencios, Diálogos y Ausencias”. Estudios Internacionales, v. 200, pp. 79-104.: 96).

Similar e complementarmente a esta crítica, feministas negras interrogam as diversas exclusões promovidas por uma estrutura social mais ampla de subordinação que acopla diversas clivagens sociais com o consequente estabelecimento de novas modalidades de opressão (Cooper, 2018Cooper, Brittney. (2018), “Interseccionality”, in L. Disch; M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 385-406.; Crenshaw, 1989Crenshaw, Kimberlé. (1989), “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics”. The University of Chicago Legal Forum, v. 140, pp. 139-167.; Gonzalez, 2020Gonzalez, Lélia. (2020), Por um Feminismo Afrolatinoamericano. Rio de Janerro, Zahar.). Rejeitando o tratamento exclusivista e aditivo de opressões, estas feministas se valem do conceito de interseccionalidade para compreender como raça, gênero, classe, sexualidade e demais marcadores de identidade operam conjuntamente para subordinar indivíduos e grupos sociais de maneiras específicas. A interseccionalidade é analiticamente mobilizada para “investigar como relações de poder que se cruzam influenciam as relações sociais em diversas sociedades bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade vê categorias de raça, classe, gênero, sexualidade, nação, habilidade, etnia e idade – entre outras – como interrelacionadas e mutuamente moldando uma à outra” (Collins e Bilge, 2020Collins, Patricia Hill; Bilge, Sirma. (2020), Intersectionality. Cambridge, Polity Press.: 2). Não por acaso, feministas do Sul Global recorrem frequentemente a essa chave analítica para problematizar não só os contextos locais de opressão, como também para situar as variadas epistemologias, agendas e perspectivas dos povos locais (inclusive, dos povos originários) (Ballestrin, 2021Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2021), “Para uma Abordagem Feminista e Pós-Colonial das Relações Internacionais”, in A. Toledo (ed.), Perspectivas Pós-coloniais e Decoloniais em Relações Internacionais. Salvador, Edufba, pp. 179-204.; Drumond e Rebelo, 2020Drumond, Paula; Rebelo, Tamya. (2020). “Global Pathways or Local Spins? National Action Plans in South America”. International Feminist Journal of Politics, v. 22, n. 4, pp. 462-484.; Gill e Pires, 2019Gill, Andréa; Pires, Thula. (2019). “From Binary to Intersectional to Imbricated Approaches: Gender in a Decolonial and Diasporic Perspective”. Contexto Internacional, v. 41, n. 2, pp. 275-302.; Gomes e Marques, 2021Gomes, Mariana Selister; Marques, Renata Rodrigues (2021), “Can Securitization Theory be Saved from Itself? A Decolonial and Feminist Intervention”. Security Dialogue, v. 52, n. S, pp. 78-87.; Lee-Koo, 2018Lee-Koo, Katrina. (2018), “The Gendered State and the Emergence of a Postconflict, Postdisaster, Semiautonomous State: Aceh, Indonesia”, in S. Parashar, J. A. Tickner e J. True (eds.), Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the State in International Relations. Oxford: Oxford University Press, pp. 138-154.; Pruitt, 2018Pruitt, Lesley J. (2018), “A Global South State’s Challenge to Gendered Global Cultures of Peacekeeping”, in S. Parashar, J. A. Tickner, J. True (eds.), Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the State in International Relations. Oxford: Oxford University Press, pp. 1-15.; Souza, 2019Souza, Natália Maria Félix de. (2019), “When the Body Speaks (to) the Political: Feminist Activism in Latin America and the Quest for Alternative Democratic Futures”. Contexto Internacional, v. 41, n. 1, pp. 89-111.; Souza e Selis, 2022Souza, Natália Maria Félix de; Selis, Lara Martim Rodrigues. (2022), “Gender Violence and Feminist Resistance in Latin America”. International Feminist Journal of Politics, v. 24, n. 1, pp. 5-15.).

Completa o quadro das epistemologias críticas contemporâneas o esforço teórico e metodológico dos estudos LGBTQIAPN+ e da teoria queer. Tomando como impulso às problematizações de gênero postuladas por Butler (2016)Butler, Judith. (2016), Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., as epistemologias queer aprofundam os debates sobre a sexualidade nas RI, partindo dos estudos LGBTQIAPN+ para interrogar as teorias e práticas da disciplina. São preocupações centrais para tais epistemologias as formas como a heteronormatividade, homonormatividade e cisnormatividade configuram as relações de poder na arena internacional (Dias e Arcângelo, 2017Dias, Júlia Machado; Arcângelo, Élton de Mello. (2017), “Feminismo Decolonial e Teoria Queer: Limites e Possibilidades de Diálogo nas Relações Internacionais”. Monções, v. 6, n. 11, pp. 121-151.; Weber, 2015Weber, Cynthia. (2015), “Why is there no Queer International Theory?”. European Journal of International Relations, v. 21, n. 1, pp. 27-51., 2016Weber, Cynthia. (2016), Queer International Relations. Oxford, Oxford University Press.). Como resultado, sujeitos marginalizados e invisibilizados em virtude das injunções heteronormativas e cisnormativas da sociedade são trazidos ao centro das análises, perturbando não só a ordem de gênero estabelecida, como também a própria academia feminista e a disciplina de RI.

Como consequência dessa pluralidade de abordagens epistemológicas,4 4 . Saliento que diversas outras contribuições epistemológicas informam as pesquisas feministas em RI, porém, um completo mapeamento extrapola os objetivos deste artigo. as agendas feministas em RI passaram a se perguntar onde estavam as mulheres (Enloe, 2014Enloe, Cynthia. (2014), Bananas, Beaches, and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. Berkeley, University of California Press.), buscando nelas as experiências dos fenômenos internacionais e recorrendo, nesse processo, ao conceito de gênero para investigá-los. O gênero ocupa posição central nas abordagens feministas, principalmente como instrumento analítico das diversas desigualdades de poder entre homens, mulheres e demais sujeitos generificados (Hawkesworth, 2019Hawkesworth, Mary. (2019), Gender and Political Theory. Cambridge: Polity Press.). Tais desigualdades se manifestam em diversas dimensões e níveis, tendo como eixo central as maneiras como a perspectiva masculina se torna sistêmica e hegemônica (Connell, 2005Connell, R. W. (2005), Masculinities. Berkeley, University of California Press.; Young, 2003Young, Iris Marion. (2003), “The Logic of Masculinist Protection: Reflections on the Current Security State”. Signs, v. 29, n. 1, pp. 1-25.). Abre-se, com isso, uma pluralidade de agendas de pesquisa nas mais distintas disciplinas, cada qual operacionalizando o gênero de forma a revelar as supracitadas desigualdades e suas relações com a masculinidade hegemônica. Como consequência, a diversidade de operacionalizações desse conceito nos estudos feministas torna o mapeamento do mesmo um desafio per se, uma vez que:

[o] ‘gênero’ abriu todo um conjunto de questões analíticas sobre como e em que condições diferentes papéis e funções foram definidos para cada sexo; como os próprios significados das categorias ‘homem’ e ‘mulher’ variaram de acordo com o tempo, o contexto e o lugar; como as normas regulatórias de conduta sexual foram criadas e aplicadas; como questões de poder e direitos influenciaram definições de masculinidade e feminilidade; como as estruturas simbólicas afetaram as vidas e práticas das pessoas comuns; como as identidades sexuais foram forjadas dentro e contra as prescrições sociais (Scott, 2010Scott, Joan Wallach. (2010), “Gender: Still a Useful Category of Analysis?”. Diogenes, v. 225, pp. 7-14.: 9).

Nas RI, as abordagens centradas no conceito de gênero precisaram superar a concepção de meramente contar homens e mulheres, e, com isso, promover a igualdade entre eles e elas; para então compreender como as estruturas internacionais, tanto as formais (e, nestas, o Estado em particular) como as informais, estão organizadas sob hierarquias de gênero que favorecem os interesses dos homens (Tickner, 2001Tickner, J. Ann. (2001), Gendering World Politics. New York, Columbia University Press.: 20-22). Ao mesmo tempo, a pluralidade de experiências individuais ao redor do mundo requer uma conceituação suficientemente abrangente para ser capaz de operar nos mais diversos contextos sociais, políticos, econômicos e culturais. Afinal, se a pesquisa feminista em RI necessitava extrapolar da investigação do caráter de gênero dos Estados para entender como o próprio sistema internacional é generificado, fazia-se mister reconhecer novos sujeitos e objetos de investigação, e como a ideia de gênero se aplicava aos mesmos. Nesse sentido, as feministas em RI,

[a]o compreender[em] os diferentes significados de gênero, bem como as formas como se articulam, o eixo conceitual que os une é este: gênero é, em sua essência, uma relação estrutural de poder. Assim como o colonialismo, a escravidão, a classe, a raça e a casta são sistemas de poder, o gênero também o é. Cada um é baseado em um conjunto central de distinções entre diferentes categorias de pessoas, valoriza umas em detrimento das outras e organiza o acesso a recursos, direitos, responsabilidades, autoridade e opções de vida ao longo das linhas que demarcam esses grupos (Cohn, 2013Cohn, Carol. (2013), “Women and Wars: Toward a Conceptual Framework”, in C. Cohn (ed.), Women & Wars. Cambridge, Polity Press, pp. 1-35.: 4).

Essa amplitude conceitual se faz necessária, porque o “feminismo requer um revisionismo ontológico: um reconhecimento de que é necessário ir além das aparências e examinar como o poder diferenciado e generificado constrói as relações sociais que formam a realidade” (Youngs, 2004Youngs, Gillian. (2004), “Feminist International Relations: a Contradiction in Terms? Or: Why Women and Gender are Essential to Understanding the World ‘We’ Live in”. International Affairs, v. 80, n. 1, pp. 75-87.: 77). Nesse sentido, ao colocar as clivagens que interseccionam com o gênero no núcleo das preocupações, as feministas nas RI objetivam problematizar as pesquisas para além das categorias homem e mulher. Trata-se, portanto, de eliminar uma categorização única e universal, bem como de reconhecer que, mesmo quando a pesquisa se volta para a mulher como indivíduo e como grupo, a chave de gênero apenas faz sentido quando associada às outras chaves conceituais que permitem explorar as variadas relações de poder.

Tal pluralidade é particularmente importante no contexto de uma disciplina que se volta para o internacional. A diversidade de processos de generificação subjacentes às hierarquias de gênero e às desigualdades que estas produzem conclama olhares que não se reduzam somente a um tipo de mulher, ou que negligenciem a própria maneira como a masculinidade hegemônica estrutura o sistema internacional (Hooper, 2001Hooper, Charlotte. (2001), Manly States: Masculinities, International Relations and Gender Politics. New York, Columbia University Press.; Zalewski, 1997Zalewski, Marysia. (1997), “From the ‘Woman Question’ to the ‘Man’ Question in International Relations”, in M. Zalewski e J. Parpart (eds.), The “Man” Question in International Relations. Boulder, Westview Press, pp. 1-13.). Consequentemente, a necessidade de olhares a partir do Sul Global, principalmente no diálogo próximo com as epistemologias pós-coloniais e decoloniais, tem-se revelado urgente nas agendas feministas de RI (Ballestrin, 2021Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2021), “Para uma Abordagem Feminista e Pós-Colonial das Relações Internacionais”, in A. Toledo (ed.), Perspectivas Pós-coloniais e Decoloniais em Relações Internacionais. Salvador, Edufba, pp. 179-204.; Grecco, 2020Grecco, Gabriela de Lima. (2020), “Feminismos y Género en los Estudios Internacionales”. Relaciones Internacionales, v. 44, pp. 127-145.; Mohanty, 2003Mohanty, Chandra Talpade. (2003), Feminism without Borders: Decolonizing theory, practicing solidarity. Durham, Duke University Press.; Spivak, 1998Spivak, Gayatri Chakravorty. (1998), “Gender and International Studies”. Millennium: Journal of International Studies, v. 27, n. 4, pp. 809-831.), assim como com as teorias queer (Dias e Arcângelo, 2017Dias, Júlia Machado; Arcângelo, Élton de Mello. (2017), “Feminismo Decolonial e Teoria Queer: Limites e Possibilidades de Diálogo nas Relações Internacionais”. Monções, v. 6, n. 11, pp. 121-151.; Weber, 2015Weber, Cynthia. (2015), “Why is there no Queer International Theory?”. European Journal of International Relations, v. 21, n. 1, pp. 27-51.). Essas intersecções respondem pela incorporação das questões de intereseccionalidade entre raça, gênero, classe e sexualidade nos feminismos das RI, bem como para a análise da geopolítica do conhecimento subjacente não só à academia de RI, como aos próprios feminismos de RI, os quais são ainda preponderantemente influenciados pelas perspectivas ocidentais (Carty e Mohanty, 2018Carty, Linda E.; Mohanty, Chandra Talpade. (2018), “Introduction: An Archive of Feminist Activism”, in C.T. Mohanty e L.E. Carty. (eds.), Feminist Freedom Warriors: Genealogies, Justice, Politics, and Hope. Chicago, Haymarket Books, Ebook.; Chowdhry e Nair, 2002Chowdhry, Geeta; Nair, Sheila. (2002), “Introduction: Power in a Postcolonial World: Race, Gender, and Class in International Relations”, in G. Chowdhry e S. Nair (eds.) Power, Postcolonialism and International Relations: Reading Race, Gender and Class. London, Routledge, pp. 1-32.; Riley, Mohanty e Pratt, 2008; Spivak, 2010Spivak, Gayatri Chakravorty. (2010), Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.). Em síntese:

As abordagens feministas e pós-coloniais nas RI recolocam e redimensionam problemas fundamentais para a compreensão das desigualdades globais tanto em um nível micro quanto macroestrutural, sobretudo a partir da década de 1990. É importante notar que as intervenções internacionalistas feministas e/ou pós-coloniais também possuem uma forte inclinação transdisciplinar, ainda que o objetivo de aplicar ambas correntes à disciplina das RI seja francamente anunciado por suas autoras e autores (Ballestrin, 2021Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2021), “Para uma Abordagem Feminista e Pós-Colonial das Relações Internacionais”, in A. Toledo (ed.), Perspectivas Pós-coloniais e Decoloniais em Relações Internacionais. Salvador, Edufba, pp. 179-204.: 192).

Metodologia(s) feminista(s) em RI

As epistemologias mencionadas anteriormente informam a construção das pesquisas feministas em RI, influenciando principalmente as escolhas metodológicas. Essa, inclusive, é uma particularidade das abordagens feministas, as quais tendem a não separar, em fronteiras completamente demarcadas, epistemologia de metodologia e método (Harding, 1987Harding, Sandra. (1987), “Introduction: Is There a Feminist Method?”, in S. Harding (ed.), Feminism and Methodology. Bloomington, Indiana University Press, pp. 1-14.). Em uma investigação feminista, questões sobre como se coletam evidências a respeito das experiências de mulheres, se as mulheres podem ser “conhecedoras” ou se as teorias vigentes são suficientes para compreender as problemáticas das mulheres se entrelaçam em uma reflexão iterativa (Harding, 1987Harding, Sandra. (1987), “Introduction: Is There a Feminist Method?”, in S. Harding (ed.), Feminism and Methodology. Bloomington, Indiana University Press, pp. 1-14.: 2-3).

Os feminismos das RI adotam esse caráter reflexivo, que envolve o constante requestionamento da própria pesquisa, constituindo a base da metodologia feminista. Como apontam Ackerly, Stern e True (2006: 4), “as acadêmicas feministas das RI desenvolveram não apenas um conjunto de ferramentas de métodos, mas maneiras de incorporar a reflexão ontológica e epistemológica nas escolhas metodológicas que as levam a repensar os limites da disciplina de RI”. Tal postura se faz necessária devido à natureza das questões que interessam às feministas: “(1) o poder em todas as suas formas visíveis e invisíveis; (2) os limites e seus potenciais de exclusão, marginalização e inclusão incompleta ou superficial, (3) relações de poder e obrigação (entre pessoas em diferentes partes da economia global, entre homens e mulheres, pais e filhos, pesquisadores e sujeitos da pesquisa, leitor e público), e (4) o papel da humildade autorreflexiva em manter a atenção a essas preocupações” (Ackerly, 2008Ackerly, Brooke. (2008), “Feminist Methodological Reflection”, in A. Klotz e D. Prakash (eds.), Qualitative Methods in International Relations: A Pluralist Guide. New York, Palgrave Macmillan, pp. 28-42.: 28).

Essa perspectiva, à primeira vista, contrapõe-se ao estilo de pesquisa canônico na disciplina. O modus operandi do mainstream em RI está profundamente associado à concepção de ciência sintetizada por King, Keohane e Verba (doravante, KKV) e disseminada nas academias de todo o mundo (King, Keohane e Verba, 2021 [1994]). Segundo essa leitura, o objetivo das ciências sociais consiste em produzir explicações sobre os fenômenos políticos, econômicos e internacionais a partir de uma lógica inferencial profundamente enraizada no consenso estatístico estabelecido, principalmente, após o modelo de Holland-Rubin.5 5 . Holland (1986) discute o problema fundamental da inferência causal como um desenvolvimento a partir do modelo inferencial de Donald Rubin, propondo para ele uma solução estatística. O modelo basicamente pondera o estabelecimento de relações de causalidade entre fenômenos considerando as implicações da variável de tratamento (ou a causa proposta pela pesquisadora) e a de controle (ou contrafactual à causa proposta). Fazer ciência significa, portanto, encontrar relações de causa e efeito mensuráveis, testáveis e, mais importante, controláveis para outras variáveis potencialmente intervenientes (Kellstedt e Whitten, 2015Kellstedt, Paul M.; Whitten, Guy D. (2015), Fundamentos da Pesquisa em Ciência Política. São Paulo, Blucher.).6 6 . Keohane (1998: 196) resume a ideia da pesquisa causal em RI: “o método básico da ciência social permanece o mesmo: faça uma conjectura causal; formule essa conjectura como uma hipótese consistente com a teoria estabelecida (e talvez deduzida dela, ao menos em parte); especifique as implicações observáveis da hipótese; teste se essas implicações ocorrem no mundo real; e, sobretudo, assegure que os procedimentos são conhecidos publicamente e replicáveis”. Tal lógica seria comum tanto a abordagens quantitativas quanto às qualitativas (King, Keohane e Verba, 2021).

Evidentemente, o argumento de KKV e seus apoiadores não passou despercebido e sem questionamentos nas academias de Ciência Política e RI. Não cabe aqui, entretanto, retomar esse debate, que envolve desde reconsiderações sobre a natureza da causalidade (Gerring, 2017Gerring, John. (2017), “Qualitative Methods”. Annual Review of Political Science, v. 20, pp. 15-36.; Goerz e Mahoney, 2012Goerz, Gary; Mahoney, James. (2012), A Tale of Two Cultures: Qualitative and Quantitative Research in the Social Sciences. Princeton, Princeton University Press.; Ragin e Amoroso, 2018; para uma discussão sobre concepções alternativas de “causação” nas RI, ver Kurki, 2008Kurki, Milja. (2008), Causation in International Relations: Reclaiming Causal Analysis. Cambridge, Cambridge University Press.; Lebow, 2015Lebow, Richard Ned. (2015), Constructing Cause in International Relations. Cambridge, Cambridge University Press., 2022Lebow, Richard Ned. (2022), The Quest for Knowledge in International Relations: How do we know? Cambridge, Cambridge University Press.; Patomäki, 2017Patomäki, Heikki. (2017), “Praxis, Politics and the Future: a Dialectical Critical Realist Account of World-Historical Causation”. Journal of International Relations and Development, v. 20, pp. 805-825.; Suganami, 1996Suganami, Hidemi. (1996), On the Causes of War. Oxford, Clarendon Press.), como também um reposicionamento da filosofia interpretativista e seu locus na pesquisa dos fenômenos políticos e internacionais (Jackson, 2015Jackson, Patrick Thaddeus. (2015), “Making Sense of Making Sense: Configurational Analysis and the Double Hermeneutic”, in D. Yanow e P. Schwartz-Shea (eds.), Interpretation and Method: Empirical Research Methods and the Interpretive Turn. London, Routledge, 2ª edição, pp. 267-283.; Yanow, 2015Yanow, Dvora. (2015), “Thinking Interpretively: Philosophical Pressupositions and the Human Sciences”, in D. Yanow e P. Schwartz-Shea (eds.), Interpretation and Method: Empirical Research Methods and the Interpretive Turn. London, Routledge, pp. 5-26.). Porém, a despeito dos debates ensejados, uma parcela significativa de ambas disciplinas adotou a ideia da inferência causal como advogada por KKV, e a qual King e Keohane, em uma nova edição de sua obra, apontam como norteadora do léxico epistemológico e metodológico das pesquisas (segundo os autores, em torno de 71% dos artigos publicados em prestigiosos periódicos de Ciência Política e RI valem-se da linguagem inferencial) (King e Keohane, 2021: xiii-xiv).

Não por acaso, as epistemologias feministas empiricistas aproximam-se do entendimento sintetizado por essa visão de ciência. Importantes estudos feministas nas RI adotam o modelo de pesquisa do mainstream, recorrendo a indicadores estatísticos variados sobre gênero e a modelos probabilísticos para testar relações de causalidade (Caprioli, 2004Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.; Hudson et al., 2014Hudson, Valerie M. et al. (2014), Sex and World Peace. New York, Columbia University Press.). Destacam-se, nessa linha de pesquisa científica, os estudos de segurança que utilizam indicadores de igualdade de gênero em suas diversas dimensões (política, social e econômica) como proxies para compreender as relações, por exemplo, entre segurança das mulheres e segurança dos Estados (Caprioli, 2000Caprioli, Mary. (2000), “Gendered Conflict”. Journal of Peace Research, v. 37, n. 1, pp. 51-68., 2005Caprioli, Mary. (2005), “Primed for Violence: The Role of Gender Inequality in Predicting Internal Conflict”. International Studies Quarterly, v. 49, n. 2, pp. 161-178.; Caprioli e Boyer, 2001Caprioli Mary; Boyer, Mark A. (2001), “Gender, Violence, and International Crisis”. Journal of Conflict Resolution, v. 45, n. 4, pp. 503-518.; Melander, 2005Melander, Erik. (2005), “Gender Equality and Interstate Armed Conflict”. International Studies Quarterly, v. 49, n. 4, pp. 695-714.); violência sexual e conflitos (Butler et al. 2007Butler, Christopher K.; Glutch, Tali; Mitchell, Neil J. (2007), “Security Forces and Sexual Violence: A Cross-National Analysis of a Principal-Agent Argument”. Journal of Peace Research, v. 44, n. 6, pp. 669-687.; Cohen, 2013Cohen, Dara Kary. (2013), “Explaining Rape during Civil War: Cross-National Evidence (1980-2009)”. American Political Science Review, v. 107, n. 3, pp. 461-477.; Wood, 2006Wood, Elizabeth Jean. (2006), “Variation in Sexual Violence during War”. Politics and Society, v. 34, n. 3, pp. 307-342.); e opinião pública e conflito internacional (Tessler e Warriner, 1997Tessler, Mark; Warriner, Ina. (1997), “Gender, Feminism, and Attitudes toward International Conflict”. World Politics, v. 49, n. 2, pp. 250-281.; Tessler, Nachtwey e Grant, 1999), apenas para citar alguns. Tais pesquisas fundamentam-se no uso de modelos estatísticos para a construção de explicações causais, frequentemente em uma dimensão comparativa. Suas proponentes recorrem ao método científico clássico para construir o desenho da pesquisa, gerando hipóteses a partir de fenômenos observáveis e mensuráveis, e testando-as, seja por meio de modelos estatísticos (Hudson et al. 2014Hudson, Valerie M. et al. (2014), Sex and World Peace. New York, Columbia University Press.), seja por meio de métodos qualitativos causais (Goerz e Mahoney, 2012Goerz, Gary; Mahoney, James. (2012), A Tale of Two Cultures: Qualitative and Quantitative Research in the Social Sciences. Princeton, Princeton University Press.).

Nessa lógica de pesquisa, o gênero é operacionalizado por meio de suas implicações reais para os indivíduos, as relações sociais e os fenômenos internacionais (Caprioli, 2004Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.: 260), o que per se atesta o compromisso com o realismo científico (Mazur, 2018Mazur, Amy G. (2018), “A Feminist Empirical and Integrativ Approach in Political Science: Breaking Down the Glass Wall?”, in H. Kincaid (ed.), The Oxford Handbook of the Philosophy of Social Science. Oxford: Oxford University Press, pp. 533-558.). Subjacente a tal postulado reside a concepção de que as desigualdades e discriminações de gênero possuem uma realidade material observável e, portanto, mensurável. Nesse sentido,

A pesquisa quantitativa pode ser usada para analisar a importância do gênero, desde que (1) o gênero seja reconhecido como socialmente construído, (2) os resultados sociopolíticos sejam demonstrados como resultado da construção de gênero, e (3) “um relato empírico convincente das maneiras pelas quais a crença operada para restringir, habilitar ou constituir os resultados em questão” (...) seja fornecido (Caprioli, 2004Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.: 261).

Entretanto, essa visão de ciência, embora utilizada em uma parte da literatura, é criticada por feministas associadas a abordagens críticas e interpretativas dos fenômenos internacionais (Steans, 2003Steans, Jill. (2003), “Engaging from the Margins: Feminist Encounters with the ‘Mainstream’ of International Relations”. British Journal of Politics and International Relations, v. 5, n. 3, pp. 428-454.; Sylvester, 1994Sylvester, Christine. (1994), Feminist Theory and International Relations in a Postmodern Era. Cambridge, Cambridge University Press., 2002Sylvester, Christine. (2002), Feminist International Relations: An Unfinished Journey. Cambridge, Cambridge University Press.; Tickner, 1999Tickner, J. Ann. (1999), “Searching for the Princess? Feminist Perspectives in International Relations”. Harvard International Review, v. 21, n. 4, pp. 44-48.). No cerne destas críticas reside o fato de que uma abordagem puramente causal elide o caráter elementar da análise de gênero, qual seja, o de que “a desigualdade de gênero é um conceito multifacetado e não uma variável única” (Davies e True, 2015Davies, Sara E; True, Jacqui. (2015), “Reframing conflict-related sexual and gender-based violence: Bringing gender analysis back in”. Security Dialogue, v. 46, n. 6, pp. 495-512.: 507), dependente portanto do ambiente social e de como este molda as atitudes, os valores, as crenças e os interesses dos indivíduos. São esses valores que definem a posição das mulheres na sociedade, bem como as relações sociais, políticas e econômicas delas com os homens (Davies e True, 2015Davies, Sara E; True, Jacqui. (2015), “Reframing conflict-related sexual and gender-based violence: Bringing gender analysis back in”. Security Dialogue, v. 46, n. 6, pp. 495-512.: 507). Por tal razão, o reducionismo da concepção de ciência causal advogada por KKV e seguida pelo mainstream contrasta radicalmente com o olhar multifacetado da análise de gênero e com sua própria natureza autorreflexiva e questionadora, elementos de suma importância para compreender os significados do caráter generificado do sistema internacional (Cohn, 2013Cohn, Carol. (2013), “Women and Wars: Toward a Conceptual Framework”, in C. Cohn (ed.), Women & Wars. Cambridge, Polity Press, pp. 1-35.: 11-15; Sylvester, 2002Sylvester, Christine. (2002), Feminist International Relations: An Unfinished Journey. Cambridge, Cambridge University Press.).7 7 . Faz-se mister salientar que o reconhecimento dessa crítica não implica necessariamente a adoção de um único modelo de pesquisa feminista em RI, qual seja, a interpretativa fundada na análise de gênero. Como Hutchings (2002) pondera, isso significaria reconhecer que o diálogo entre feministas e o mainstream de RI falhou, quando, na verdade, o que existe é uma pluralidade de formas de se produzir pesquisa feminista. Nesse caso, algumas dessas formas apenas optam por seguir os métodos convencionais das RI positivistas.

Ao adotarem tal abordagem, tais feministas subscrevem às epistemologias pós-modernas, do ponto de vista, pós-coloniais e/ou decoloniais, estando em constante diálogo com outras disciplinas, nomeadamente Antropologia, Línguistica e Sociologia (Ballestrin, 2021Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2021), “Para uma Abordagem Feminista e Pós-Colonial das Relações Internacionais”, in A. Toledo (ed.), Perspectivas Pós-coloniais e Decoloniais em Relações Internacionais. Salvador, Edufba, pp. 179-204.; Peterson, 1992Peterson, V. Spike. (1992), “Introduction”, in V.S. Peterson (ed.), Gendered States: Feminist (Re)Visions of International Relations Theory. Boulder, Lynne Rienner, pp. 1-29.; Sylvester, 1994Sylvester, Christine. (1994), Feminist Theory and International Relations in a Postmodern Era. Cambridge, Cambridge University Press., 2002Sylvester, Christine. (2002), Feminist International Relations: An Unfinished Journey. Cambridge, Cambridge University Press.). Seu ponto de partida é a interpretação dos fenômenos internacionais, entendida como “um processo de montar (mesmo que de uma maneira inconsciente) recursos culturais existentes para formar padrões específicos”, o que “envolve a manipulação de recursos intersubjetivos de significação” em um processo de conversação (Jackson, 2015Jackson, Patrick Thaddeus. (2015), “Making Sense of Making Sense: Configurational Analysis and the Double Hermeneutic”, in D. Yanow e P. Schwartz-Shea (eds.), Interpretation and Method: Empirical Research Methods and the Interpretive Turn. London, Routledge, 2ª edição, pp. 267-283.: 270). Essa virada interpretativa rompe com a lógica de ciência mainstream não só nas suas bases epistemológicas, como também nas questões temáticas e nos métodos para coletar evidências.

Subjacente à perspectiva interpretativa está uma crítica mais ampla sobre a maneira como o conhecimento é produzido em RI. A alegada objetividade das teorias e agendas mainstream de RI visa a construir uma ciência pautada na neutralidade dos conhecimentos gerados, como se a separação entre pesquisador e realidade internacional fosse possível e descomplicada (Hawkesworth, 2015Hawkesworth, Mary. (2015), “Contending Conceptions of Science and Politics: Methodology and the Constitution of the Political”, in D. Yanow e P. Schwartz-Shea (eds.), Interpretation and Method: Empirical Research Methods and the Interpretive Turn. London: Routledge, 2ª edição, pp. 27-49.; Steans, 2003Steans, Jill. (2003), “Engaging from the Margins: Feminist Encounters with the ‘Mainstream’ of International Relations”. British Journal of Politics and International Relations, v. 5, n. 3, pp. 428-454.). Na leitura crítica e interpretativa, a realidade é permeada de relações intersubjetivas que incidem sobre sua própria materialidade, tornando indissociável o conhecedor do conhecimento (Jackson, 2015Jackson, Patrick Thaddeus. (2015), “Making Sense of Making Sense: Configurational Analysis and the Double Hermeneutic”, in D. Yanow e P. Schwartz-Shea (eds.), Interpretation and Method: Empirical Research Methods and the Interpretive Turn. London, Routledge, 2ª edição, pp. 267-283.). Por conseguinte, analisar os fenômenos internacionais perpassa necessariamente por engajar-se com os indivíduos (excluídos das teorias mainstream), apreender suas realidades e compreensões dessas realidades, especialmente dentro das desigualdades de poder e, especificamente, de gênero (Tickner, 1999Tickner, J. Ann. (1999), “Searching for the Princess? Feminist Perspectives in International Relations”. Harvard International Review, v. 21, n. 4, pp. 44-48.; True, 2017True, Jacqui. (2017), “Feminism and Gender Studies in International Relations Theory”. Oxford Research Encyclopedia, International Studies [12 nov. 2021]. Oxford. Disponível em https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190846626.013.46.
https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190...
). Não por acaso, para as feministas das RI, o ato de conversar é fundamental para recuperar as experiências e vivências das mulheres e reposicioná-las não só no “internacional”, como também na própria disciplina (Ackerly, Stern e True, 2006; Steans, 2003Steans, Jill. (2003), “Engaging from the Margins: Feminist Encounters with the ‘Mainstream’ of International Relations”. British Journal of Politics and International Relations, v. 5, n. 3, pp. 428-454.).

Essas divergências internas nos feminismos nas RI têm suscitado questionamentos sobre os próprios objetivos da pesquisa feminista. A exarcebada preocupação com aspectos metodológicos frequentemente coloca pesquisadoras quantitativas e qualitativas de lados opostos (Caprioli, 2004Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.; Steans, 2003Steans, Jill. (2003), “Engaging from the Margins: Feminist Encounters with the ‘Mainstream’ of International Relations”. British Journal of Politics and International Relations, v. 5, n. 3, pp. 428-454.; Sylvester, 1994Sylvester, Christine. (1994), Feminist Theory and International Relations in a Postmodern Era. Cambridge, Cambridge University Press.; Tickner, 1997Tickner, J. Ann. (1997), “You Just Don’t Understand: Troubld Engagements Between Feminists and IR Theorists”. International Studies Quarterly, v. 41, pp. 611-632.), como se o debate feminista se resumisse aos métodos empregados mais do que aos temas investigados (Caprioli, 2004Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.: 253-254). Nesse sentido, as suspeitas acendem questões sobre hierarquizações dentro da produção intelectual feminista em RI, na qual se privilegiariam as abordagens críticas, próximas das epistemologias do ponto de vista, pós-modernas, pós-coloniais e decoloniais, em detrimento das empiricistas e dos métodos associados ao cânone da disciplina (especificamente, à noção de ciência e ao compromisso com concepções de causalidade covariacionais ou mecanicistas). Verifica-se, portanto, um cisma que contrasta com a ideia de Harding (1987)Harding, Sandra. (1987), “Introduction: Is There a Feminist Method?”, in S. Harding (ed.), Feminism and Methodology. Bloomington, Indiana University Press, pp. 1-14. de que não existe uma metodologia feminista própria, e que, portanto, qualquer metodologia pode contribuir para alcançar objetivos feministas. Como afirma Caprioli:

A academia feminista e de gênero, independentemente da metodologia, pode promover objetivos feministas, focalizando o papel que as normas de desigualdade e dominação desempenham na construção do mundo político internacional, incluindo o comportamento do Estado, em vez de apenas no preconceito inerente à pesquisa centrada no homem e no impacto desigual da violência estatal sobre as mulheres (Caprioli, 2004Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.: 256).

No Brasil, cabe destacar que as abordagens metodológicas utilizadas na literatura feminista têm preferencialmente optado pela análise de gênero de natureza qualitativa, com uma ocorrência significativa menor de métodos quantitativos e modelos formais (Medeiros et al., 2016Medeiros, Marcelo de Almeida et al. (2016), “What Does the Field of International Relations Look like in South America?”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 59, n. 1, pp. e004.: 20). Dentro do que se entende por abordagens metodológicas qualitativas, é marcante, na literatura recente, um giro epistemológico decolonial/pós-colonial (Dias e Arcângelo, 2017Dias, Júlia Machado; Arcângelo, Élton de Mello. (2017), “Feminismo Decolonial e Teoria Queer: Limites e Possibilidades de Diálogo nas Relações Internacionais”. Monções, v. 6, n. 11, pp. 121-151.; Gill e Pires; 2019Gill, Andréa; Pires, Thula. (2019). “From Binary to Intersectional to Imbricated Approaches: Gender in a Decolonial and Diasporic Perspective”. Contexto Internacional, v. 41, n. 2, pp. 275-302.; Gomes e Marques, 2021Gomes, Mariana Selister; Marques, Renata Rodrigues (2021), “Can Securitization Theory be Saved from Itself? A Decolonial and Feminist Intervention”. Security Dialogue, v. 52, n. S, pp. 78-87.), que sinaliza uma nova modalidade de interação não só com os feminismos do Norte Global, como também com as teorias e os métodos do mainstream. Ademais, a pluralidade de temas que trazem à cena a América Latina (Drumond, 2019Drumond, Paula. (2019), “What about Men? Towards a Critical Interrogation of Sexual Violence against Men in Global Politics”. International Affairs, v. 95, n. 6, pp. 1271-1287.; Drumond e Rebelo, 2020Drumond, Paula; Rebelo, Tamya. (2020). “Global Pathways or Local Spins? National Action Plans in South America”. International Feminist Journal of Politics, v. 22, n. 4, pp. 462-484.; Souza, 2019Souza, Natália Maria Félix de. (2019), “When the Body Speaks (to) the Political: Feminist Activism in Latin America and the Quest for Alternative Democratic Futures”. Contexto Internacional, v. 41, n. 1, pp. 89-111.; Souza e Selis, 2022Souza, Natália Maria Félix de; Selis, Lara Martim Rodrigues. (2022), “Gender Violence and Feminist Resistance in Latin America”. International Feminist Journal of Politics, v. 24, n. 1, pp. 5-15.) e o Brasil (Amparo e Moreira, 2021Amparo, Gabrielly Almeida Santos do; Moreira, Julia Bertino. (2021), “A Diplomacia Não Tem Rosto de Mulher: o Itamaraty e a Desigualdade de Gênero”. Meridiano 47, v. 22, pp. e22001.; Lenine e Naentrem, 2022; Rossone de Paula, 2019Rossone de Paula, Francine. (2019), “Brazil’s Non-Indifference: A Case for a Feminist Diplomatic Agenda or Geopolitics as Usual?” International Feminist Journal of Politics, v. 21, n. 1, pp. 47-66.) denotam rumos teóricos e metodológicos inovadores para os feminismos nas RI, nos quais a preferência pelo modelo de análise de gênero interpretativa é evidente. Completa esse quadro metodológico a centralidade na teorização do gênero e dos feminismos a partir do Sul Global (Ballestrin, 2021Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2021), “Para uma Abordagem Feminista e Pós-Colonial das Relações Internacionais”, in A. Toledo (ed.), Perspectivas Pós-coloniais e Decoloniais em Relações Internacionais. Salvador, Edufba, pp. 179-204.; Gill e Pires, 2019Gill, Andréa; Pires, Thula. (2019). “From Binary to Intersectional to Imbricated Approaches: Gender in a Decolonial and Diasporic Perspective”. Contexto Internacional, v. 41, n. 2, pp. 275-302.), em um diálogo crítico com as concepções feministas do Norte Global. Percebe-se, portanto, uma reconfiguração da pesquisa feminista em RI caracterizada pelo tensionamento da disciplina a partir de marcos epistemológicos críticos e profundamente enraizados nas experiências do Sul Global, nomeadamente naquelas vinculadas ao fenômeno colonial e seu legado nas sociedades latinoamericanas, incluindo a brasileira. O foco em teorização e o recurso a métodos interpretativos alinham-se a essa proposta de transformação disciplinar na medida em que propõem instrumentos alternativos para reposicionar indivíduos e grupos subordinados e marcados pelo gênero.

Em síntese, a diversidade de abordagens metodológicas nos feminismos das RI reflete as diferentes concepções epistemológicas adotadas. Porém, independentemente das escolhas particulares de cada pesquisa, há um compromisso em “explorar a ausência, o silêncio, a diferença e a opressão”, especialmente em suas relações com o poder (Ackerly, 2008Ackerly, Brooke. (2008), “Feminist Methodological Reflection”, in A. Klotz e D. Prakash (eds.), Qualitative Methods in International Relations: A Pluralist Guide. New York, Palgrave Macmillan, pp. 28-42.: 29-30). Esse compromisso informa a ética feminista de produzir conhecimento com vistas à mudança social, principalmente no que tange à eliminação das desigualdades produzidas pelo gênero, e nutre a curiosidade feminista, a qual discuto na sequência.

Da curiosidade à lógica da pesquisa feminista em RI

As discussões epistemológicas e metodológicas anteriores estruturam as pesquisas feministas sobre fenômenos internacionais. Mais significativamente, elas convidam as pesquisadoras a atentar a fenômenos frequentemente ignorados – quando não rechaçados – pelas agendas tradicionais. Isso significa o desenvolvimento da curiosidade feminista: uma curiosidade que leva a pesquisadora a constantemente olhar para as mulheres e os corpos feminizados e generificados; a masculinidade e suas manifestações; o gênero, suas desigualdades e hierarquias (Enloe, 2004Enloe, Cynthia. (2004), The Curious Feminist: Searching for Women in a New Age of Empire. Berkeley, University of California Press.; Zurn, 2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.).

Segundo Enloe (2000Enloe, Cynthia. (2000), Maneuvers: The International Politics of Militarizng Women’s Lives. Berkeley, University of California Press.: 294), as feministas exercem a sua curiosidade em diferentes níveis: se, inicialmente, a pergunta era “onde estão as mulheres”, o avanço das pesquisas levou aos questionamentos “quais mulheres estão lá”, “como essas mulheres chegaram lá” e “o que essas mulheres pensam sobre estar lá”, nos quais o se refere ao locus analítico de cada pesquisa. Esse locus não se tem resumido a um único espaço nem a um viés estadocêntrico: muito pelo contrário, as feministas em RI lançam suas curiosidades de pesquisa sobre os mais variados fenômenos nos níveis local, regional, nacional e internacional; dentro e fora do Estado; na sociedade civil e nos seus vínculos com a arena internacional; nas organizações internacionais e nos movimentos de base; nas fronteiras geográficas e em suas porosidades, entre diversos outros loci imagináveis (Enloe, 2014Enloe, Cynthia. (2014), Bananas, Beaches, and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. Berkeley, University of California Press.). Em outras palavras, “a feminilidade como um conceito e as mulheres como atrizes precisam ser transformadas em objetos de curiosidade analítica quando estamos tentando conferir sentido a processos políticos internacionais” (Enloe, 2000Enloe, Cynthia. (2000), Maneuvers: The International Politics of Militarizng Women’s Lives. Berkeley, University of California Press.: 300). Não surpreende, portanto, que a agenda feminista em RI seja tão diversa, interdisciplinar e plural.

O exercício da curiosidade feminista, por sua vez, possui desenvolvimentos próprios que requerem um maior detalhamento sobre seus significados e sua instrumentalização na pesquisa feminista. As histórias da curiosidade feminista apontam para uma ampla variedade de interpretações, epistemologias e coalizões que, se não encerram um único conceito, ao menos estabelecem uma postura de contestação e confrontamento da ordem patriarcal e suas intersecções com o racismo, a heteronormatividade, o colonialismo, o elitismo, o classismo, entre outras formas de subordinação dos indivíduos (Zurn, 2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.). É no cerne dessa contestação que emana não só a dimensão política da pesquisa feminista, como também o desiderato de tecer a análise feminista a partir de marcos epistemológicos e metodológicos distintos, que reconheçam a um só tempo com quem se olha para a vida das mulheres e dos sujeitos feminizados/generificados; para onde se olha, reconhecendo a centralidade do mundo real, em detrimento de abstrações divorciadas da realidade e incapazes de revelar suas estruturas opressivas fundadas no gênero e suas interseccionalidades; e como se investigam as questões de interesse feminista (Zurn, 2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.). Cabe explorar como estas preocupações orientam as pesquisas feministas, principalmente em sua dimensão norteadora das questões a serem investigadas e por quais instrumentos metodológicos.

A primeira preocupação perpassa a atitude relacional e reflexiva característica da pesquisa feminista (Ackerly, Stern e True, 2006). Seja quanto ao eu, seja quanto ao outro, a atitude curiosa significa interpelar-se a respeito das múltiplas opressões que incidem sobre os indivíduos e os grupos, principalmente no entrelaçamento entre suas experiências e vivências de subordinação. Essa natureza relacional e coalizacional da investigação feminista fundamenta-se na necessidade de tratar com seriedade a vida das mulheres (Enloe, 2004Enloe, Cynthia. (2004), The Curious Feminist: Searching for Women in a New Age of Empire. Berkeley, University of California Press.) e sujeitos feminizados e/ou generificados (Zurn, 2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.), entendendo-os não como átomos dispersos no espaço social, mas como sujeitos localizados socialmente dentro de hierarquias de gênero. Isso não significa, porém, invisibilizar sua agência: muito pelo contrário, a visão de coalizões reconhece o potencial feminista de aliar-se, debater e confrontar as estruturas generificadas e generificantes da sociedade, revelando as suas múltiplas interseccionalidades com o colonialismo, a exploração de classes, o racismo, a xenofobia, a LGBTfobia (Gago, 2020Gago, Verónica. (2020), A Potência Feminista, ou o Desejo de Transformar Tudo. São Paulo, Elefante.). É desse olhar crítico e fundado em alianças que a curiosidade feminista desmascara, no ato de pesquisa e análise, as injunções perniciosas da sociedade que colocam em desvantagem determinados indivíduos e grupos em detrimento de outros, ao mesmo tempo que desvela as diversas formas pelas quais as vítimas das opressões de gênero formulam suas resistências.

A preocupação com o onde assenta-se no desiderato de investigar a realidade material e seus sistemas de opressão, apoiados em diversas interseccionalidades de gênero, raça, classe, sexualidade e colonialidade. Como Zurn (2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.: 4) sentencia: “[as feministas curiosas] olham para onde elas foram treinadas para não olhar”. Isso significa tanto perturbar os espaços privados de interação social, como também os espaços oficiais e públicos das instituições e da política (Enloe, 2000Enloe, Cynthia. (2000), Maneuvers: The International Politics of Militarizng Women’s Lives. Berkeley, University of California Press., 2014Enloe, Cynthia. (2014), Bananas, Beaches, and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. Berkeley, University of California Press.). Nesse processo, a re-historicização dos fenômenos e contextualização dos agentes é fundamental para compreender como as estruturas de opressão emergem, sustentam-se, consolidam-se e reinventam-se. Destarte, a curiosidade feminista convida as pesquisadoras a sintonizar-se com diferentes temporalidades de investigação, repensando o passado, o presente e o futuro (Zurn, 2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.).

Finalmente, como a curiosidade feminista é exercida constitui uma das preocupações de maior relevância para a pesquisa feminista. Como as investigações dessa natureza reposicionam os indivíduos no centro da análise, a maneira como esse reposicionamento se conforma determina a relação entre aqueles, a pesquisadora e sua audiência. Busca-se evitar a espetacularização dos indivíduos e sua consequente objetificação.8 8 . Um caso emblemático de espetacularização que preocupa feministas de diversos matizes é o de Sarah Baartman (a “Vênus Hotentote”), que foi levada da África austral para a Europa para ser apresentada em feiras como um “fenômeno bizarro”. Após sua morte, seu corpo foi desmembrado para estudos em um museu parisiense. Este caso choca audiências de africanas e africanos no continente e na diáspora, representando um dos exemplos mais violentos da colonização dos corpos das mulheres de origem africana. Para mais detalhes, ver hooks (2019). Para tanto, a curiosidade feminista “usa questões e investigações, explorações e indagações para ouvir, seguir e responder em um espaço interdependente de investigação coletiva” (Zurn, 2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.). É no caráter relacional com os sujeitos que a pesquisa feminista adquire a sensibilidade para reconhecer as manifestações da opressão sem ela mesma reproduzir novas modalidades opressivas. Nesse sentido, a curiosidade feminista se indaga constantemente sobre como nos aproximamos daquelas pessoas que compartilham suas vivências e experiências, reconhecendo suas epistemologias, intimidade, autonomia e agência, sem perder de vista o desiderato de entrelaçá-las dentro de uma arquitetura metodológica de pesquisa.

Essas preocupações com quem, onde e como demarcam as reflexões epistemológicas e metodológicas da pesquisa feminista, influenciando cada etapa do processo de produção de conhecimento, desde o reconhecimento da realidade a ser investigada, passando pelo entrelaçamento intersubjetivo com os agentes sociais, até chegar às escolhas teóricas e analíticas da pesquisa. Nesse sentido, há aqui uma distinção clara entre os feminismos das RI e outras abordagens epistemológicas e metodológicas na disciplina: a interdependência entre epistemologia e metodologia, aliada à preocupação com os indivíduos (tanto a pesquisadora como os sujeitos de sua análise), aponta para um modus operandi de caráter iterativo, que não se encerra em escolhas de pesquisa distanciadas daquilo que é investigado. Mesmo epistemologias mais empiricistas e que recorrem a abordagens metodológicas quantitativas sublinham a necessidade do exercício constante da autorreflexão da pesquisa (Caprioli, 2004Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.), uma vez que sem ela corre-se o risco de extirpar a realidade social de significado e crítica, culminando na reificação dos indivíduos e grupos estudados e contribuindo para a reprodução de opressões.

Porém, o que a curiosidade feminista acarreta na prática da pesquisa, nomeadamente no que tange à metodologia? Embora a questão do como aparente ser a mais imediatamente vinculada às escolhas metodológicas, é fundamental reconhecer a centralidade dos indivíduos e grupos sociais generificados e marginalizados diante não só das hierarquias de gênero que os envolvem, como também ante as dinâmicas internacionais, que privilegiam olhares distantes das pessoas e dos seus contextos de opressão. Em outras palavras, o ponto de partida de qualquer análise feminista em RI encontra-se nas lacunas e nos silêncios das teorias e agendas mainstream. Nesse sentido, reforçam-se o quem e o onde na medida em que o pessoal se torna internacional a partir dos sistemas generificantes e generificados nos quais os indivíduos estão situados. Esse primeiro passo determina os sujeitos da análise, demarca o contexto e a temporalidade em que se encontram, e informa o arsenal epistemológico da própria pesquisa.

A dimensão metodológica deriva dessas escolhas e com elas interage na medida em que deve assumir uma postura relacional com vistas a complexificar os fenômenos observados e honrar os sujeitos neles envolvidos (Zurn, 2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.). Destarte, o caráter reflexivo da curiosidade feminista requer um uso responsável dos instrumentos metodológicos à disposição da pesquisadora feminista. Por responsabilidade, compreende-se a não espetacularização dos sujeitos e de seus contextos de opressão para audiências internacionais; a perturbação da ordem de gênero estabelecida por meio do desvelamento das estruturas opressivas; a empatia e a solidariedade, visando a recuperar a agência de indivíduos frequentemente posicionados à margem da sociedade, em lugares de subordinação. Não por acaso, a pesquisa feminista que adota métodos interpretativos (como análise do discurso, etnografia, entrevistas entre outros) tem chamado a atenção para tais questões, que são, ao mesmo tempo, metodológicas, éticas e políticas. Ao imergirem-se diretamente nos contextos e temporalidades dos agentes, essas abordagens metodológicas estabelecem uma relação profunda entre pesquisadora e sujeitos de pesquisa, o que é necessário para revelar as interpretações destes sobre os significados de suas experiências e vivências individuais e como grupo social.

Seguindo senda semelhante, as pesquisas feministas de natureza quantitativa, ainda que partam de indicadores e métricas de gênero,9 9 . A proliferação de bases de dados destes indicadores contribui para esse tipo de pesquisa, e hoje são referências o índice Social Institutions & Gender Index, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico; o Gender Statistics, do Fórum Econômico Mundial; várias bases da Organização das Nações Unidas, com destaque para o Gender Inequality Index; e o projeto WomenStats, com mais de 350 variáveis de gênero. sustentam-se na mesma natureza reflexiva, justamente para atender às preocupações de responsabilidade e ética feministas. Os dados e índices utilizados para testes de hipóteses e em modelos estatísticos variados (regressão, análise multivariada entre outros) objetivam, sobremaneira, identificar relações causais capazes de revelar as hierarquias de gênero e seus entrelaçamentos com os contextos locais e internacionais (Hudson et al., 2014Hudson, Valerie M. et al. (2014), Sex and World Peace. New York, Columbia University Press.). Nesse sentido, e independentemente do objetivo da pesquisa, as feministas quantitativas em RI adotam uma postura cautelosa quanto à construção desses indicadores, interrogando-se sobre o que exatamente eles mensuram; como o gênero foi incorporado nos conceitos que originam tais índices; e quais as implicações frente a outros indicadores nos quais o gênero não é uma peça-chave (Caprioli, 2004Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.). A construção epistemológica subjacente à pesquisa feminista quantitativa é tão importante quanto os resultados gerados por um determinado teste ou modelo estatístico, o que reafirma o papel central da curiosidade feminista na provocação das reflexões sobre a própria natureza da investigação.

Em síntese, a curiosidade feminista convida a pesquisadora à constante reflexão, ao passo que orienta suas escolhas epistemológicas e metodológicas dentro de uma ética feminista própria, preocupada com os agentes envolvidos na pesquisa, seus loci contextuais e temporais, e os modos de interação com eles e suas realidades. Ademais, a atenção devotada à dimensão metodológica contribui para dirimir questionamentos sobre o caráter científico do conhecimento feminista. Nos cismas metodológicos da Ciência Política e RI, persistem desentendimentos quanto ao que de fato são pesquisas qualitativas e interpretativas (Moravcsik, 2014Moravcsik, Andrew. (2014), “Transparency: The Revolution in Qualitativa Research”. PS: Political Science and Politics, v. 47, n. 1, pp. 48-53.: 49), com o seu frequente equacionamento a revisões bibliográficas ou ensaios. Contrapor essa visão perpassa, necessariamente, ser capaz de informar os passos da pesquisa qualitativa e interpretativa, e no caso das análises feministas e de gênero, isso requer especificar cada uma das escolhas sublinhadas pela curiosidade feminista. Ao mesmo tempo, a curiosidade feminista contribui para que a própria pesquisa feminista quantitativa não recaia no perfil racionalista favorecido pela academia de ambas disciplinas, sublinhando, em reação e resistência, o caráter relacional, reflexivo e crítico dos dados, indicadores e, em última instância, da análise de gênero.

A curiosidade feminista nas RI no Brasil

A esta altura, cabe interpelar como a curiosidade feminista tem sido exercida nos trabalhos feministas recentes nas RI brasileiras. Como mencionado anteriormente, a pesquisa feminista no país beneficiou-se, nos últimos anos, de suas interações com as teorias pós-coloniais e decoloniais, bem como com os feminismos negros e as teorias queer. Longe de propor um quadro exaustivo dessa literatura, analiso brevemente como a curiosidade feminista se manifesta nos artigos feministas e de gênero publicados em dois prestigiosos periódicos especializados nacionais: Revista Brasileira de Política Internacional e Contexto Internacional. Ambos se definem como espaços para a publicação de pesquisas em RI, um caráter distintivo no país, vez que boa parte da produção intelectual sobre relações internacionais encontra-se dispersa em periódicos de Ciência Política e Ciências Sociais.10 10 . A dispersão dos artigos por periódicos de Ciência Política (e outras Ciências Sociais) dificulta o esforço de análise da produção intelectual exclusivamente de RI, o que, por sua vez, incide sobre a caracterização da pesquisa na disciplina no país. Não por acaso, a RBPI e a Contexto Internacional figuram nos principais estudos bibliométricos em RI, como nos casos de Medeiros et al. (2016), Carvalho, Gabriel e Lopes (2021) e Novelli (2022). Seu prestígio entre as acadêmicas da disciplina no Brasil é notado por sua qualificação no Qualis: ambos estão classificados no estrato A1 na avaliação de 2017-2020 (última disponível na Plataforma Sucupira quando da escrita deste artigo), o que denota seu reconhecimento como periódicos de impacto para a constituição do campo de pesquisa a nível nacional e internacional.

Para caracterizar a produção nos dois periódicos supracitados, recorro a uma análise de conteúdo simplificada, utilizando como categorias analíticas: 1. Marcos epistemológicos, expressos por meio das chaves discutidas anteriormente; 2. Marcos metodológicos, com enfoque em métodos quantitativos, métodos qualitativos e métodos mistos; 3. Abordagens teóricas, especificamente esforços de teorização pura. Para a inclusão de artigos na análise, foram observados os seguintes critérios: 1. Uso das chaves conceituais e teóricas de gênero e feminismo; 2. Temáticas sobre as mulheres e indivíduos generificados; 3. Publicação entre 2018 e 2022. Optou-se por incluir todos os artigos do período que cumprissem com estes critérios, tendo em vista que – e como apontado nos resultados de Medeiros et al. (2016)Medeiros, Marcelo de Almeida et al. (2016), “What Does the Field of International Relations Look like in South America?”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 59, n. 1, pp. e004. – as análises feministas tendem a ocupar pouco espaço nas publicações em RI no Brasil.

Primeiramente, e analisando o Quadro 1, a proporção de artigos com abordagens feministas e/ou de gênero é flagrantemente diferente entre os dois periódicos analisados: enquanto no período apenas 2,83% dos artigos publicados na RBPI filiam-se à pesquisa feminista, na Contexto Internacional essa proporção foi de 28,57%. Essa discrepância merece um esclarecimento: no período em tela, três números da Contexto foram devotados a dossiês sobre gênero e feminismo, bem como suas intersecções com epistemologias pós-coloniais/decoloniais e queer. Nas demais edições, o padrão de ausência de artigos com abordagens feministas e de gênero foi semelhante ao da RBPI, demonstrando que esse tipo de pesquisa continua marginal na disciplina (o que dialoga com os dados de Medeiros et al., 2016Medeiros, Marcelo de Almeida et al. (2016), “What Does the Field of International Relations Look like in South America?”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 59, n. 1, pp. e004.).

Quadro 1
: Artigos feministas publicados, 2018-2022

De todo modo, esse conjunto de artigos permite avaliar as preferências epistemológicas e metodológicas de parcela da pesquisa feminista no país, apresentadas no Quadro 2. Destaca-se, à primeira vista, uma predileção (30,30% das ocorrências) por abordagens próximas dos feminismos subalternos, decoloniais e pós-coloniais para não só estabelecer uma perspectiva crítica em relação ao feminismo do Norte Global, como também para situar temáticas caras ao país, à América Latina e a outras sociedades do Sul Global. Questões sobre violência, movimentos sociais e segurança internacional foram ressignificadas de modos criativos e inovadores nos artigos analisados que se valeram dessas perspectivas. Similarmente, e estabelecendo um frequente diálogo com a literatura pós-colonial e decolonial, 21,21% dos artigos mobilizaram o conceito de interseccionalidade e os feminismos interseccionais, utilizando chaves de raça, gênero e colonialismo para compreender as modalidades de subalternidade de mulheres e outros sujeitos generificados. Ora, como as temáticas situam processos caros não só ao Brasil, mas sobremaneira à América Latina, situar os efeitos persistentes do colonialismo em fenômenos variados como trabalho (Acciari, 2019Acciari, Louisa. (2019), “Decolonising Labour, Reclaiming Subaltern Epistemologies: Brazilian Domestic Workers and the International Struggle for Labour Rights”. Contexto Internacional, v. 41, n. 1, pp. 39-63.) e extrativismo (Muñoz e Villareal, 2019Muñoz, Enara Echart; Villareal, Maria del Carmen. (2019), “Women’s Struggles Against Extractivism in Latin America and the Caribbean”. Contexto Internacional, v. 41, n. 2, pp. 303-325.), apenas para citar alguns, é um desiderato epistemológico para conferir e situar os significados das experiências e vivências das mulheres do continente em seus engajamentos e ativismos locais, regionais e internacionais. Essas escolhas epistemológicas dialogam, portanto, diretamente com os temas que afligem as feministas no Sul Global, ao passo que denotam novos rumos para a academia feminista em RI no país.

Quadro 2
: Curiosidade feminista: frequência de manifestações epistemológicas e metodológicas [%]

Outras abordagens epistemológicas, ainda que menos frequentes nos artigos analisados, merecem comentários. Há um interesse em problematizar temática e teoricamente as questões estabelecidas pela teoria queer, o que se observa em 9,09% dos artigos. Destacam-se estudos sobre LGBTQIAPN+, tanto para efeitos de reflexão teórica quanto para estudos de caso. Mais interessante, porém, é a preocupação dos artigos em tela em trazer à tona debates sobre identidades e sexualidades dissidentes – como mulheres trans (Ferreira, 2018Ferreira, Amanda Álvares (2018), “Queering the Debate: Analysing Prostitution Through Dissident Sexualities in Brazil”. Contexto Internacional, v. 40, n. 3, pp. 525-547.; Silva e Jacobo, 2020Silva, Mariah Rafaela; JACOBO, Jaya. (2020), “Global South Perspectives on Stonewall after 50 Years, Part I—South by South, Trans for Trans”. Contexto Internacional, v. 42, n. 3, pp. 665-683.) e mulheres lésbicas (Belmont e Ferreira, 2020Belmont, Flávia; Ferreira, Amanda Álvares. (2020), “Global South Perspectives on Stonewall after 50 Years, Part II—Brazilian Stonewalls: Radical Politics and Lesbian Activism”. Contexto Internacional, v. 42, n. 3, pp. 685-703.) – e como elas tensionam os projetos feministas (Ferreira, 2018Ferreira, Amanda Álvares (2018), “Queering the Debate: Analysing Prostitution Through Dissident Sexualities in Brazil”. Contexto Internacional, v. 40, n. 3, pp. 525-547.). Outro importante dado refere-se à presença do institucionalismo feminista como conjunto de teorias que informam pesquisas sobre instituições políticas nacionais e internacionais – bem como a própria academia de RI. Além destas ocorrências, em menor grau aparecem menções explícitas ao feminismo do ponto de vista, aos estudos feministas de segurança e, em um profundo e rico debate crítico com outras epistemologias feministas, ao feminismo pós-moderno.

No que tange às preferências metodológicas, as pesquisadoras feministas brasileiras optam primariamente por abordagens qualitativas de natureza interpretativa (45,45% dos artigos utilizam explicitamente tais métodos). Uma pluralidade de técnicas são mobilizadas, como análise do discurso, etnografia, entrevistas em profundidade, análise documental, hermenêutica e análise de política externa. Apenas 3,03% dos artigos mobilizaram métodos quantitativos (survey e estatística descritiva) e 3,03% métodos mistos. Isso demonstra a primazia das abordagens interpretativas para estruturar a pesquisa feminista e a análise de gênero, revelando o enfoque nas experiências e vivências dos indivíduos e grupos generificados diante dos sistemas de opressão estabelecidos pelas hierarquias de gênero em suas interseccionalidades. Em larga medida, essas escolhas metodológicas dialogam com as escolhas epistemológicas das pesquisadoras feministas e de gênero no país, uma vez que a preferência por epistemologias críticas presume a utilização de métodos que evidenciem os padrões de significados e significação subjacentes aos elementos relacionais entre os sujeitos, permitindo sensibilizar e evidenciar as opressões (Zurn, 2021Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.). Ademais, essas metodologias proporcionam uma investigação coletiva na medida em que as reflexões avançadas pelas pesquisadoras resgatam a agência dos sujeitos no conjunto dos fenômenos analisados, alcançando, assim, um dos objetivos elementares da curiosidade feminista, qual seja, honrar os sujeitos que participam da construção do conhecimento.

Por outro lado, a pouca atenção a métodos quantitativos merece ser problematizada. Embora o uso de abordagens quantitativas tenha se tornado anátema para algumas feministas – seja porque se assenta em uma ideia de causalidade muito próxima à do mainstream, seja porque pairam dúvidas sobre como as hierarquias de gênero são incorporadas aos indicadores utilizados nas análises –, sua relevância para a investigação feminista precisa ser ressignificada. Como Caprioli (2004)Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269. sugere, o recurso a epistemologias empiricistas e metodologias quantitativas não prejudica o caráter autorreflexivo das pesquisas feministas, desde que o gênero não seja tratado como mais uma variável sem centralidade na análise. A questão não é, portanto, optar pelo quantitativismo, mas sim elidir qualquer debate sobre como os próprios dados referentes às hierarquias de gênero e suas interseccionalidades são construídos. Se tal obstáculo é superado, há um potencial de utilização dessas abordagens para evidenciar relações entre variáveis importantes em fenômenos internacionais variados, como por exemplo gênero, mulheres e conflitos (Hudson et al., 2014Hudson, Valerie M. et al. (2014), Sex and World Peace. New York, Columbia University Press.). Como no caso brasileiro o uso de métodos quantitativos limita-se a poucos artigos e à estatística descritiva, uma fronteira de investigação encontra-se justamente nessa lacuna, inclusive como forma de demonstrar o potencial analítico da pesquisa feminista para além das metodologias qualitativas.

No tocante a artigos teóricos, os dados (6,06%) sinalizam a importância do debate teórico puro, mas, como apontado anteriormente, não devem ser tomados em isolamento, tendo em vista que a pesquisa feminista reflete constantemente sobre suas escolhas teóricas, metodológicas e de método (Harding, 1987Harding, Sandra. (1987), “Introduction: Is There a Feminist Method?”, in S. Harding (ed.), Feminism and Methodology. Bloomington, Indiana University Press, pp. 1-14.). Não por acaso, todos os artigos analisados devotaram-se extensivamente à reflexão crítica sobre a teoria, especialmente quando em diálogo com os feminismos subalternos, pós-coloniais e decoloniais.

Porém, é importante sublinhar que, ainda que pese o mérito de diversas pesquisas estabelecerem claramente suas escolhas epistemológicas e metodológicas, uma parcela significativa das publicações (21,21%) não fornece de maneira transparente e evidente nenhum desenho de pesquisa. Considerando os diagnósticos de Medeiros et al. (2016)Medeiros, Marcelo de Almeida et al. (2016), “What Does the Field of International Relations Look like in South America?”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 59, n. 1, pp. e004. e Novelli (2022)Novelli, Douglas Henrique. (2022), “A identidade do campo das Relações Internacionais no Brasil: uma análise a partir da produção científica em seus principais periódicos na década de 2010”. Carta Internacional, v. 17, n. 1, pp. e1168., bem como as demandas por maior transparência na pesquisa, esse resultado deve disparar o alerta das pesquisadoras feministas, principalmente para superar as próprias hierarquias do conhecimento presentes na disciplina. De todo modo, é fundamental reafirmar o mérito supracitado, uma vez que ele contrasta com o panorama metodológico geral da disciplina no país, na qual a tendência é não indicar nenhum desenho de pesquisa de forma transparente. Nesse sentido, as feministas, ainda que sua produção seja marginal no cômputo geral dos periódicos nacionais (Medeiros et al., 2016Medeiros, Marcelo de Almeida et al. (2016), “What Does the Field of International Relations Look like in South America?”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 59, n. 1, pp. e004.), seguem protocolos de pesquisa que as alinham com práticas de boa ciência, sem perder de vista as questões reflexivas, éticas e políticas dos feminismos.

Esse retrato nos permite avaliar o exercício da curiosidade feminista na pesquisa em RI no Brasil. Como apontado, a preocupação com a crítica aos feminismos do Norte Global é central na produção intelectual nacional, sinalizando que não se trata apenas de reproduzir modelos de investigação, mas de interpelar-se como esses modelos se ajustam às realidades múltiplas de indivíduos e grupos generificados e marginalizados em sociedades que ainda guardam estruturas opressivas da colonização e do colonialismo. O recurso à interseccionalidade de maneiras criativas para trazer à tona a agência desses indivíduos e grupos revela uma ética feminista voltada para o empoderamento, o compartilhamento de experiências e histórias, o diálogo horizontal e sensível às lutas dos povos do Sul Global. Como resultado, as pesquisas feministas acertadamente elegem os métodos qualitativos interpretativos para articular as vivências e resistências feministas, desvelando seus significados multifacetados vis-à-vis a realidade. Mesmo nas (poucas) pesquisas que se utilizam de métodos quantitativos ou mistos, a importância dos significados não é perdida, interpelando-se não só acerca dos dados brutos, mas refletindo substantivamente como eles reproduzem a ordem de gênero vigente. Trata-se, portanto, de uma curiosidade feminista crítica, que reconhece a importância das coalizões com os agentes locais (quem) nos contextos pós-coloniais do Sul Global (onde), e a partir dos quais são forjadas interpretações específicas sobre a realidade que requerem a conversa, a reflexão e a escuta (como) para desvelar os significados subjacentes às hierarquias de gênero e suas interseccionalidades. Destarte, há uma preocupação premente em reposicionar as mulheres perante a ordem de gênero estabelecida, mas se percebe outrossim um interesse significativo em compreender as posições de indivíduos generificados pela sexualidade, prenunciando uma potencial virada queer na literatura.

Evidentemente, esses resultados oferecem um panorama breve e parcial da pesquisa feminista nas RI do Brasil a partir de dois periódicos especializados de estrato superior. Imediatamente, percebe-se que uma completa caracterização precisaria avançar em outros periódicos especializados nos demais estratos A e B, permitindo, assim, traçar um cenário mais amplo da pesquisa feminista no país. Entretanto, os achados permitem traçar ao menos dois cenários distintos: de um lado um pouco mais pessimista, a pesquisa feminista ainda se encontra marginalizada, angariando espaços por meio de dossiês episódicos; de outro significativamente mais otimista, aquilo que é publicado é cementado em abordagens críticas e autóctones, demonstrando o caráter inovador das investigações feministas na academia nacional e devotando uma atenção a questões metodológicas que é frequentemente ignorada nas demais pesquisas. Diante desse contexto, cabe a reflexão sobre como promover mais espaços de publicação e visibilização das pesquisas feministas em RI nos periódicos brasileiros, sejam eles de natureza geral (como os analisados, que acolhem os mais variados temas e perspectivas epistemológicas e metodológicas em suas páginas), sejam eles especializados (como o caso dos Cadernos Pagu e da Revista de Estudos Feministas). Já no que tange ao segundo cenário, quiçá este seja o mais animador para o exercício da curiosidade feminista, servindo de exemplo e inspiração para as pesquisadoras feministas.

Conclusão

A trajetória dos feminismos nas RI está pavimentada sobre conquistas e obstáculos. Se hoje as perspectivas feministas aparecem em cada vez mais cursos, livros e artigos, isso se deve em larga medida a grande debates travados desde os anos 1980. Mesmo que tensões com o cânone no que tange ao status dos conhecimentos e das lições feministas em RI persistam, é fato que já não se pode mais ignorar suas contribuições.

Apesar disso, as investigações feministas em RI, principalmente no contexto brasileiro, ainda têm um longo caminho a percorrer, principalmente para realizar seus diversos projetos, que, se não são únicos nem consensuais, concordam com o desiderato de situar mulheres e indivíduos generificados e marginalizados nos fenômenos internacionais. Assim como Enloe buscou nas ausências e silêncios das esposas de militares e diplomatas, nas mulheres soldados, nas empregadas domésticas, nas operárias de fábricas e até mesmo em mulheres viajantes as experiências que tornam o pessoal internacional, a pesquisa feminista em RI no século XXI precisa trilhar caminhos semelhantes. Nesse sentido, o exercício da curiosidade feminista é fundamental para a construção de pesquisas inovadoras, capazes de ver o invisível e ecoar a voz dos silenciados.

Nesse processo, as feministas dispõem não só de ferramentas metodológicas, mas de perspicácia reflexiva para lidar com questões que problematizam a realidade material, as identidades dos sujeitos e objetos, e a própria natureza do conhecimento. As diversas epistemologias que informam a pesquisa feminista em RI convidam-nos à constante reflexão sobre o que estudamos, por que estudamos e como estudamos, uma vez que, subjacente a qualquer empreitada analítica, reside o complexo desafio de revelar as diferentes formas pelas quais as desigualdades e hierarquias de gênero incidem sobre os indivíduos. A curiosidade feminista é o primeiro passo nessa desafiante, porém necessária missão de recuperar e reposicionar as mulheres – e, mais amplamente, os indivíduos – nas relações internacionais, principalmente levando em conta sua agência, resistências e confrontamentos das estruturas de opressão em suas variadas interseccionalidades com o gênero. Portanto, mais do que um instrumento epistemológico e metodológico, a curiosidade deve ser um guia para o caráter libertador da pesquisa feminista.

Nesse sentido, a literatura feminista brasileira em RI oferece importantes lições sobre como ser uma feminista curiosa. Seu perfil crítico acerca dos feminismos do Norte Global tem redundado em investigações inovadoras, situadas no Sul Global e, em particular, nos indivíduos. A abordagem interseccional, que entrelaça o gênero com a raça, a sexualidade, a classe e a colonialismo, tem proporcionado o ressurgimento de temas como migrações, violências, movimentos sociais entre diversos outros, lidos sob múltiplas ópticas feministas. Ainda que sua presença nas páginas de periódicos seja marginal, seu impacto é visível e de suma relevância na medida em que tensiona o campo teórico e empírico na disciplina de RI, oferecendo soluções criativas e perspicazes para velhos problemas e cismas epistemológicos e metodológicos. Talvez seja essa porta de entrada para novas gerações de pesquisadoras feministas curiosas: construir, desconstruir e reconstruir as relações internacionais a partir dos marcos curiosos e críticos estabelecidos pelas investigações contemporâneas.

Agradeço à Profª Melina Mörschbächer por seus feedbacks na primeira versão desse texto, bem como às revisoras anônimas, que forneceram valiosos comentários e sugestões ao texto.

Referências

  • Acciari, Louisa. (2019), “Decolonising Labour, Reclaiming Subaltern Epistemologies: Brazilian Domestic Workers and the International Struggle for Labour Rights”. Contexto Internacional, v. 41, n. 1, pp. 39-63.
  • Ackerly, Brooke A.; Stern, Maria; True, Jacqui. (2006), “Feminist Methodologies for International Relations”, in B. A. Ackerly, M. Stern e J. True (eds.), Feminist Methodologies for International Relations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 1-15.
  • Ackerly, Brooke. (2008), “Feminist Methodological Reflection”, in A. Klotz e D. Prakash (eds.), Qualitative Methods in International Relations: A Pluralist Guide New York, Palgrave Macmillan, pp. 28-42.
  • Aggestam, Karin; Towns, Ann E. (2018), “Introduction: The Study of Gender, Diplomacy and Negotiation”, in K. Aggestam e A. E. Towns (eds.), Gendering Diplomacy and International Negotiation. Cham, Palgrave Macmillan, pp. 1-22.
  • Amparo, Gabrielly Almeida Santos do; Moreira, Julia Bertino. (2021), “A Diplomacia Não Tem Rosto de Mulher: o Itamaraty e a Desigualdade de Gênero”. Meridiano 47, v. 22, pp. e22001.
  • Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2017), “Feminismos Subalternos”. Estudos Feministas, v. 25, n. 3, pp. 1035-1054.
  • Ballestrin, Luciana Maria de Aragão. (2021), “Para uma Abordagem Feminista e Pós-Colonial das Relações Internacionais”, in A. Toledo (ed.), Perspectivas Pós-coloniais e Decoloniais em Relações Internacionais Salvador, Edufba, pp. 179-204.
  • Belmont, Flávia; Ferreira, Amanda Álvares. (2020), “Global South Perspectives on Stonewall after 50 Years, Part II—Brazilian Stonewalls: Radical Politics and Lesbian Activism”. Contexto Internacional, v. 42, n. 3, pp. 685-703.
  • Breuning, Marijke; Bredehoft, Joseph; Walton, Eugene. (2005), “Promise and Performance: An Evaluation of Journals in International Relations”. International Studies Perspectives, v. 6, pp. 447-461.
  • Brown, Sarah. (1988), “Feminism, International Theory, and International Relations of Gender Inequality”. Millennium: Journal of International Studies, v. 17, n. 3, pp. 461-475.
  • Butler, Christopher K.; Glutch, Tali; Mitchell, Neil J. (2007), “Security Forces and Sexual Violence: A Cross-National Analysis of a Principal-Agent Argument”. Journal of Peace Research, v. 44, n. 6, pp. 669-687.
  • Butler, Judith. (2016), Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
  • Caprioli, Mary. (2000), “Gendered Conflict”. Journal of Peace Research, v. 37, n. 1, pp. 51-68.
  • Caprioli, Mary. (2004), “Feminist IR Theory and Quantitative Methodology: A Critical Analysis”. International Studies Review, v. 6, n. 2, pp. 253-269.
  • Caprioli, Mary. (2005), “Primed for Violence: The Role of Gender Inequality in Predicting Internal Conflict”. International Studies Quarterly, v. 49, n. 2, pp. 161-178.
  • Caprioli Mary; Boyer, Mark A. (2001), “Gender, Violence, and International Crisis”. Journal of Conflict Resolution, v. 45, n. 4, pp. 503-518.
  • Carty, Linda E.; Mohanty, Chandra Talpade. (2018), “Introduction: An Archive of Feminist Activism”, in C.T. Mohanty e L.E. Carty. (eds.), Feminist Freedom Warriors: Genealogies, Justice, Politics, and Hope. Chicago, Haymarket Books, Ebook.
  • Carvalho, Thales; Gabriel, João Paulo Nicolini; Lopes, Dawisson Belém. (2021), “‘Mind the Gap’: Assessing Differences between Brazilian and Mainstream IR Journals in Methodological Approaches”. Contexto Internacional, v. 43, n. 3, pp. 461-488.
  • Chowdhry, Geeta; Nair, Sheila. (2002), “Introduction: Power in a Postcolonial World: Race, Gender, and Class in International Relations”, in G. Chowdhry e S. Nair (eds.) Power, Postcolonialism and International Relations: Reading Race, Gender and Class. London, Routledge, pp. 1-32.
  • Cohen, Dara Kary. (2013), “Explaining Rape during Civil War: Cross-National Evidence (1980-2009)”. American Political Science Review, v. 107, n. 3, pp. 461-477.
  • Cohn, Carol. (2013), “Women and Wars: Toward a Conceptual Framework”, in C. Cohn (ed.), Women & Wars Cambridge, Polity Press, pp. 1-35.
  • Collins, Patricia Hill; Bilge, Sirma. (2020), Intersectionality. Cambridge, Polity Press.
  • Connell, R. W. (2005), Masculinities Berkeley, University of California Press.
  • Cooper, Brittney. (2018), “Interseccionality”, in L. Disch; M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 385-406.
  • Crenshaw, Kimberlé. (1989), “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics”. The University of Chicago Legal Forum, v. 140, pp. 139-167.
  • Davies, Sara E; True, Jacqui. (2015), “Reframing conflict-related sexual and gender-based violence: Bringing gender analysis back in”. Security Dialogue, v. 46, n. 6, pp. 495-512.
  • Dias, Júlia Machado; Arcângelo, Élton de Mello. (2017), “Feminismo Decolonial e Teoria Queer: Limites e Possibilidades de Diálogo nas Relações Internacionais”. Monções, v. 6, n. 11, pp. 121-151.
  • Dougherty, James E.; Pfaltzgraff, Robert L. Jr. (2001), Contending Theories of International Relations: A Comprehensive Survey. New York, Longman.
  • Drumond, Paula. (2019), “What about Men? Towards a Critical Interrogation of Sexual Violence against Men in Global Politics”. International Affairs, v. 95, n. 6, pp. 1271-1287.
  • Drumond, Paula; Rebelo, Tamya. (2020). “Global Pathways or Local Spins? National Action Plans in South America”. International Feminist Journal of Politics, v. 22, n. 4, pp. 462-484.
  • Duriesmith, Daniel. (2018), “Manly States and Feminist Foreign Policy: Revisiting the Liberal State as an Agent of Change”, in S. Parashar, J. A. Tickner e J. True (eds.), Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the States in International Relations. Oxford, Oxford University Press, pp. 51-68.
  • Elshtain, Jean Bethke. (1988), “The Problem with Peace”. Millennium: Journal of International Studies, v. 17, n. 3, pp. 441-449.
  • Enloe, Cynthia. (2000), Maneuvers: The International Politics of Militarizng Women’s Lives Berkeley, University of California Press.
  • Enloe, Cynthia. (2004), The Curious Feminist: Searching for Women in a New Age of Empire Berkeley, University of California Press.
  • Enloe, Cynthia. (2014), Bananas, Beaches, and Bases: Making Feminist Sense of International Politics. Berkeley, University of California Press.
  • Ferreira, Amanda Álvares (2018), “Queering the Debate: Analysing Prostitution Through Dissident Sexualities in Brazil”. Contexto Internacional, v. 40, n. 3, pp. 525-547.
  • Gago, Verónica. (2020), A Potência Feminista, ou o Desejo de Transformar Tudo São Paulo, Elefante.
  • Gerring, John. (2017), “Qualitative Methods”. Annual Review of Political Science, v. 20, pp. 15-36.
  • Gill, Andréa; Pires, Thula. (2019). “From Binary to Intersectional to Imbricated Approaches: Gender in a Decolonial and Diasporic Perspective”. Contexto Internacional, v. 41, n. 2, pp. 275-302.
  • Goerz, Gary; Mahoney, James. (2012), A Tale of Two Cultures: Qualitative and Quantitative Research in the Social Sciences. Princeton, Princeton University Press.
  • Gomes, Mariana Selister; Marques, Renata Rodrigues (2021), “Can Securitization Theory be Saved from Itself? A Decolonial and Feminist Intervention”. Security Dialogue, v. 52, n. S, pp. 78-87.
  • Gonzalez, Lélia. (2020), Por um Feminismo Afrolatinoamericano. Rio de Janerro, Zahar.
  • Goredema, Ruvimbo. (2010), “African Feminism: The African Women’s Struggle for Identity”. African Yearbook of Rhetoric, v. 1, n. 1, pp. 33-41.
  • Grecco, Gabriela de Lima. (2020), “Feminismos y Género en los Estudios Internacionales”. Relaciones Internacionales, v. 44, pp. 127-145.
  • Harding, Sandra. (1987), “Introduction: Is There a Feminist Method?”, in S. Harding (ed.), Feminism and Methodology. Bloomington, Indiana University Press, pp. 1-14.
  • Harding, Sandra. (1991), Whose Science? Whose Knowledge? Ithaca, Cornell University Press, 1991.
  • Harding, Sandra. (2004), “A Socially Relevant Philosophy of Science? Resources from Standpoint Theory’s Controversiality”. Hypatia, v. 19, n. 1, pp. 25-47.
  • Hartsock, Nancy C. M. (1983), Money, Sex, and Power: Toward a Feminist Historical Materialism New York, Longman.
  • Hawkesworth, Mary. (1989), “Knowers, Knowing, Known: Feminist Theory and Claims of Truth”. Signs, v. 14, n. 3, pp. 533-557.
  • Hawkesworth, Mary. (2015), “Contending Conceptions of Science and Politics: Methodology and the Constitution of the Political”, in D. Yanow e P. Schwartz-Shea (eds.), Interpretation and Method: Empirical Research Methods and the Interpretive Turn. London: Routledge, 2ª edição, pp. 27-49.
  • Hawkesworth, Mary. (2019), Gender and Political Theory. Cambridge: Polity Press.
  • Hawkesworth, Mary; Disch, Lisa. (2018), “Introduction. Feminist Theory: Transforming the Known World”, in L. Disch e M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 1-15.
  • Hay, Carol. (2020), Think like a Feminist: the Philosophy behind the Revolution. New York, W. W. Norton Company.
  • Holland, Paul W. (1986), “Statistics and Causal Inference”. Journal of the American Statistical Association, v. 81, n. 396, pp. 945-960.
  • hooks, bell. (2019), Olhares Negros: Raça e Representação. São Paulo: Elefante.
  • Hooper, Charlotte. (2001), Manly States: Masculinities, International Relations and Gender Politics. New York, Columbia University Press.
  • Hudson, Valerie M. et al. (2014), Sex and World Peace New York, Columbia University Press.
  • Hutchings, Kimberly. (2002), “Feminist International Relations: An Unfinished Journey, Christine Sylvester (New York: Cambridge University Press, 2002), 350 pp., $65 cloth, $25 paper”. Ethics & International Affairs, v. 16, n. 2, pp. 171-173.
  • Intemann, Kristen. (2018), “Feminist Standpoint”, in L. Disch e M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory Oxford, Oxford University Press, pp. 261-282.
  • Jackson, Patrick Thaddeus. (2015), “Making Sense of Making Sense: Configurational Analysis and the Double Hermeneutic”, in D. Yanow e P. Schwartz-Shea (eds.), Interpretation and Method: Empirical Research Methods and the Interpretive Turn. London, Routledge, 2ª edição, pp. 267-283.
  • Silva, Mariah Rafaela; JACOBO, Jaya. (2020), “Global South Perspectives on Stonewall after 50 Years, Part I—South by South, Trans for Trans”. Contexto Internacional, v. 42, n. 3, pp. 665-683.
  • Kellstedt, Paul M.; Whitten, Guy D. (2015), Fundamentos da Pesquisa em Ciência Política São Paulo, Blucher.
  • Keohane, Robert O. (1989), “International Relations Theory: Contributions for a Feminist Standpoint”. Millennium: Journal of International Studies, v.18, n.2, pp. 245-253.
  • Keohane, Robert O. (1998), “Beyond Dicothomy: Conversations Between International Relations and Feminist Theory”. International Studies Quarterly, v. 42, pp. 193-198.
  • King, Gary; Keohane, Robert O. (2021), “Designing Social Inquiries: K and K on KKV”, in G. King, R. O. Keohane e S. Verba (eds.), Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research. Princeton, Princeton University Press, 2ª edição, pp. ix-xiv.
  • King, Gary; Keohane, Robert O.; Verba, Sidney. (2021), Designing Social Inquiry: Scientific Inference in Qualitative Research. Princeton, Princeton University Press, 2ª edição.
  • Kristeva, Julia. (1980), “Oscillation Between Power and Denial”, in E. Marks e I. Courtivron (eds.), New French Feminisms. Amherst, University of Massachusetts Press, pp. 185-223.
  • Kurki, Milja. (2008), Causation in International Relations: Reclaiming Causal Analysis. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Lebow, Richard Ned. (2015), Constructing Cause in International Relations. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Lebow, Richard Ned. (2022), The Quest for Knowledge in International Relations: How do we know? Cambridge, Cambridge University Press.
  • Lee-Koo, Katrina. (2018), “The Gendered State and the Emergence of a Postconflict, Postdisaster, Semiautonomous State: Aceh, Indonesia”, in S. Parashar, J. A. Tickner e J. True (eds.), Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the State in International Relations. Oxford: Oxford University Press, pp. 138-154.
  • Lenine, Enzo. (2021), “Relaciones Internacionales Feministas: Silencios, Diálogos y Ausencias”. Estudios Internacionales, v. 200, pp. 79-104.
  • Lenine, Enzo; Sanca, Naentrem. (2022), “Gênero, Feminismo e Diplomacia: Analisando a Instituição pelas Lentes Feministas das Relações Internacionais”. Organizações & Sociedade, v. 29, n. 100, pp. 100-124.
  • Lugones, María. (2010), “Toward a Decolonial Feminism”. Hypatia, v. 25, n. 4, pp. 742-759.
  • Mazur, Amy G. (2018), “A Feminist Empirical and Integrativ Approach in Political Science: Breaking Down the Glass Wall?”, in H. Kincaid (ed.), The Oxford Handbook of the Philosophy of Social Science. Oxford: Oxford University Press, pp. 533-558.
  • Medeiros, Marcelo de Almeida et al. (2016), “What Does the Field of International Relations Look like in South America?”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 59, n. 1, pp. e004.
  • Melander, Erik. (2005), “Gender Equality and Interstate Armed Conflict”. International Studies Quarterly, v. 49, n. 4, pp. 695-714.
  • Mendoza, Breny. (2018), “Coloniality of Gender and Power: From Postcoloniality to Decoloniality”, in L. Disch e M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 100-121.
  • Mohanty, Chandra Talpade. (2003), Feminism without Borders: Decolonizing theory, practicing solidarity. Durham, Duke University Press.
  • Monte, Izadora Xavier do. (2013), “O Debate e os Debates: Abordagens Feministas para as Relações Internacionais”. Estudos Feministas, v. 21, n. 1, pp. 59-80.
  • Moravcsik, Andrew. (2014), “Transparency: The Revolution in Qualitativa Research”. PS: Political Science and Politics, v. 47, n. 1, pp. 48-53.
  • Muñoz, Enara Echart; Villareal, Maria del Carmen. (2019), “Women’s Struggles Against Extractivism in Latin America and the Caribbean”. Contexto Internacional, v. 41, n. 2, pp. 303-325.
  • Novelli, Douglas Henrique. (2022), “A identidade do campo das Relações Internacionais no Brasil: uma análise a partir da produção científica em seus principais periódicos na década de 2010”. Carta Internacional, v. 17, n. 1, pp. e1168.
  • Oyewùmí, Oyèrónké. (2003), “Introduction: Feminism, Sisterhood, and Other Foreign Relations”, in O. Oyewùmí (ed.), African Women & Feminism: Reflecting On The Politics Of Sisterhood Trenton, Africa World Press, pp. 1-24.
  • Parashar, Swati; Tickner, J. Ann; True, Jacqui. (2018), “Introduction: Feminist Imaginings of Twenty-First-Century Gendered States”, in S. Parashar, J. A. Tickner e J. True (eds.), Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the State in International Relations. Oxford: Oxford University Press, pp. 1-15.
  • Parpart, Jane L.; Zalewski, Marysia (eds.). (2008), Rethinking The Man Question: Sex, Gender and Violence in International Relations. London, Zed Books.
  • Patomäki, Heikki. (2017), “Praxis, Politics and the Future: a Dialectical Critical Realist Account of World-Historical Causation”. Journal of International Relations and Development, v. 20, pp. 805-825.
  • Peterson, V. Spike. (1992), “Introduction”, in V.S. Peterson (ed.), Gendered States: Feminist (Re)Visions of International Relations Theory. Boulder, Lynne Rienner, pp. 1-29.
  • Peterson, V. Spike. (2003), A Critical Rewriting of Global Political Economy: Integrating Reproductive, Productive and Virtual Economies London, Routledge.
  • Pinto, Céli Regina Jardim. (2010), “Feminismo, História e Poder”. Revista Sociologia & Política, v. 18, n. 36, pp. 122-137.
  • Pruitt, Lesley J. (2018), “A Global South State’s Challenge to Gendered Global Cultures of Peacekeeping”, in S. Parashar, J. A. Tickner, J. True (eds.), Revisiting Gendered States: Feminist Imaginings of the State in International Relations. Oxford: Oxford University Press, pp. 1-15.
  • Ragin, Charles C.; Amoroso, Lisa M. (2019), Constructing Social Research: The Unity and Diversity of Method Los Angeles, Sage, 3ª edição.
  • Riley, Robin L.; Mohanty, Chandra Talpade; Pratt, Minnie Bruce (eds.). (2008), Feminism and War: Confronting U.S. Imperialism. London: Zed Books.
  • Rossone de Paula, Francine. (2019), “Brazil’s Non-Indifference: A Case for a Feminist Diplomatic Agenda or Geopolitics as Usual?” International Feminist Journal of Politics, v. 21, n. 1, pp. 47-66.
  • Runyan, Anne Sisson; Peterson, V. Spike. (2014), Global Gender Issues in the New Millennium. Boulder: Westview Press.
  • Scott, Joan Wallach. (2010), “Gender: Still a Useful Category of Analysis?”. Diogenes, v. 225, pp. 7-14.
  • Segato, Rita Laura. (2016), La Guerra contra las Mujeres Madrid, Traficantes de Sueños.
  • Shepherd, Laura J. (2008), Gender, Violence & Security London, Zed Books.
  • Sjoberg, Laura. (2014), Gender, War & Conflict Cambridge, Polity Press.
  • Sjoberg, Laura. (2016), Women as Wartime Rapists: Beyond Sensation and Stereotyping New York, New York University Press.
  • Souza, Natália Maria Félix de. (2019), “When the Body Speaks (to) the Political: Feminist Activism in Latin America and the Quest for Alternative Democratic Futures”. Contexto Internacional, v. 41, n. 1, pp. 89-111.
  • Souza, Natália Maria Félix de; Selis, Lara Martim Rodrigues. (2022), “Gender Violence and Feminist Resistance in Latin America”. International Feminist Journal of Politics, v. 24, n. 1, pp. 5-15.
  • Spivak, Gayatri Chakravorty. (1998), “Gender and International Studies”. Millennium: Journal of International Studies, v. 27, n. 4, pp. 809-831.
  • Spivak, Gayatri Chakravorty. (2010), Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte, Editora UFMG.
  • Steans, Jill. (2003), “Engaging from the Margins: Feminist Encounters with the ‘Mainstream’ of International Relations”. British Journal of Politics and International Relations, v. 5, n. 3, pp. 428-454.
  • Suganami, Hidemi. (1996), On the Causes of War Oxford, Clarendon Press.
  • Sylvester, Christine. (1994), Feminist Theory and International Relations in a Postmodern Era. Cambridge, Cambridge University Press.
  • Sylvester, Christine. (2002), Feminist International Relations: An Unfinished Journey Cambridge, Cambridge University Press.
  • Tessler, Mark; Warriner, Ina. (1997), “Gender, Feminism, and Attitudes toward International Conflict”. World Politics, v. 49, n. 2, pp. 250-281.
  • Tessler, Mark; Nachtwey, Jodi; Grant, Audra. (1999), “Further Tests of the Women and Peace Hypothesis: Evidence from Cross-National Survey Research in the Middle-East”. International Studies Quarterly, v. 43, n. 3, pp. 519-531.
  • Tickner, J. Ann. (1988), “Hans Morgenthau’s Principles of Political Realism: A Feminist Reformulation”. Millennium: Journal of International Studies, v. 17, n. 3, pp. 429-440.
  • Tickner, J. Ann. (1992), Gender in International Relations: Feminist Perspectives on Achieving Global Security New York, Columbia University Press.
  • Tickner, J. Ann. (1997), “You Just Don’t Understand: Troubld Engagements Between Feminists and IR Theorists”. International Studies Quarterly, v. 41, pp. 611-632.
  • Tickner, J. Ann. (1999), “Searching for the Princess? Feminist Perspectives in International Relations”. Harvard International Review, v. 21, n. 4, pp. 44-48.
  • Tickner, J. Ann. (2001), Gendering World Politics New York, Columbia University Press.
  • Tickner, J. Ann. (2005), “What Is your Research Program? Some Feminist Answers to International Relations Methodological Questions”. International Studies Quarterly, v. 49, pp. 1-21.
  • Tickner, J. Ann. (2006), “Feminist Perspectives on International Relations”, in W. Carlsnaes, T. Risse e B.A. Simmons (eds.), Handbook of International Relations. London, Sage, pp. 275-291.
  • Tickner, J. Ann; Sjoberg, Laura. (2013), “Feminism”, in T. Dunne, M. Kurki e S. Smith (eds.), International Relations Theories: Discipline and Diversity Oxford, Oxford University Press, 3ª edição, pp. 205-222.
  • Tickner, J. Ann; True, Jacqui. (2018), “A Century of International Relations Feminism: From World War I Women’s Peace Pragmatism to the Women, Peace and Security Agenda”. International Studies Quarterly, v. 62, n. 2, pp. 221-233.
  • True, Jacqui. (2012), The Political Economy of Violence Against Women Oxford, Oxford University Press.
  • True, Jacqui. (2017), “Feminism and Gender Studies in International Relations Theory”. Oxford Research Encyclopedia, International Studies [12 nov. 2021]. Oxford. Disponível em https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190846626.013.46
    » https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190846626.013.46
  • True, Jacqui. (2021), Violence Against Women: What Everyone Needs to Know® Oxford, Oxford University Press.
  • Weber, Cynthia. (2015), “Why is there no Queer International Theory?”. European Journal of International Relations, v. 21, n. 1, pp. 27-51.
  • Weber, Cynthia. (2016), Queer International Relations Oxford, Oxford University Press.
  • Weldon, S. Laurel. (2006), “Inclusion and Understanding: a Collective Methodology for Feminist International Relations”, in B.A. Ackerly, M. Stern e J. True (eds.), Feminist Methodologies for International Relations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 62-87.
  • Whitworth, Sandra. (1994), Feminism and International Relations New York, St Martin’s Press.
  • Wood, Elizabeth Jean. (2006), “Variation in Sexual Violence during War”. Politics and Society, v. 34, n. 3, pp. 307-342.
  • Yanow, Dvora. (2015), “Thinking Interpretively: Philosophical Pressupositions and the Human Sciences”, in D. Yanow e P. Schwartz-Shea (eds.), Interpretation and Method: Empirical Research Methods and the Interpretive Turn. London, Routledge, pp. 5-26.
  • Young, Iris Marion. (2003), “The Logic of Masculinist Protection: Reflections on the Current Security State”. Signs, v. 29, n. 1, pp. 1-25.
  • Youngs, Gillian. (2004), “Feminist International Relations: a Contradiction in Terms? Or: Why Women and Gender are Essential to Understanding the World ‘We’ Live in”. International Affairs, v. 80, n. 1, pp. 75-87.
  • Zalewski, Marysia. (1997), “From the ‘Woman Question’ to the ‘Man’ Question in International Relations”, in M. Zalewski e J. Parpart (eds.), The “Man” Question in International Relations Boulder, Westview Press, pp. 1-13.
  • Zalewski, Marysia. (2000), Feminism After Postmodernism: Theorising Through Practice. London, Routledge.
  • Zalewski, Marysia. (2006), “Distracted Reflections on the Production, Narration, and Refusal of Feminist Knowledge in International Relations”, in B.A. Ackerly, M. Stern e J. True (eds.), Feminist Methodologies for International Relations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 42-61.
  • Zalewski, Marysia. (2013), Feminist International Relations: Exquisite Corpse. Abingdon, Routledge.
  • Zalewski, Marysia; Parpart, Jane (orgs.). (1997), The “Man” Question in International Relations. Boulder, Westview Press, 1997.
  • Zerilli, Linda. (2006), “Feminist Theory and the Canon of Political Thought”, in J.S. Dryzek, B. Honig e A. Phillips (eds.), The Oxford Handbook of Political Theory Oxford, Oxford University Press, pp. 106-124.
  • Zurn, Perry. (2021), “Feminist Curiosity”. Philosophy Compass, v. 16, n. 9, e12761.

Notas

  • 1
    . Em contrapartida, as teorias tradicionais das RI, comumente associadas ao denominado mainstream, quais sejam, liberalismos e realismos, respondem por aproximadamente 48% das preferências teóricas dos artigos publicados em periódicos brasileiros (Medeiros et al., 2016Medeiros, Marcelo de Almeida et al. (2016), “What Does the Field of International Relations Look like in South America?”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 59, n. 1, pp. e004.).
  • 2
    . Tradicionalmente, a história do feminismo no Ocidente é narrada por meio de três ondas (Hay, 2020Hay, Carol. (2020), Think like a Feminist: the Philosophy behind the Revolution. New York, W. W. Norton Company.; Zerilli, 2006Zerilli, Linda. (2006), “Feminist Theory and the Canon of Political Thought”, in J.S. Dryzek, B. Honig e A. Phillips (eds.), The Oxford Handbook of Political Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 106-124.). A primeira onda refere-se aos primeiros movimentos sufragistas, que visavam à expansão das garantias e proteções liberais para as mulheres. A segunda onda, por sua vez, problematiza as estruturas e instituições sociais, políticas e econômicas por meio da chave de gênero, apontando como aquelas estão organizadas de forma a distribuir o poder de maneira desigual entre homens e mulheres. A terceira onda, finalmente, caracteriza o momento mais recente, questionando a própria noção categórica de gênero e mulher, objetivando incluir aqueles e aquelas excluídos por uma visão limitada de tais categorias, as quais foram construídas com base nas experiências de um único tipo de mulher: branca, de classe média e dos países do Norte Global. É o momento da inclusão das experiências de LGBTQIAPN+, mulheres negras, mulheres do Sul Global entre diversos outros indivíduos e grupos. Essa narrativa, porém, não é a única possível: Hawkesworth e Disch (2018)Hawkesworth, Mary; Disch, Lisa. (2018), “Introduction. Feminist Theory: Transforming the Known World”, in L. Disch e M. Hawkesworth (eds.), The Oxford Handbook of Feminist Theory. Oxford, Oxford University Press, pp. 1-15. preferem descrever a trajetória feminista por meio dos grandes temas que a informam; Goredema (2010)Goredema, Ruvimbo. (2010), “African Feminism: The African Women’s Struggle for Identity”. African Yearbook of Rhetoric, v. 1, n. 1, pp. 33-41., escrevendo sobre os feminismos africanos, aponta que os movimentos feministas na África são melhor entendidos por uma divisão em eras políticas cujo nexo central é o colonialismo; Pinto (2010)Pinto, Céli Regina Jardim. (2010), “Feminismo, História e Poder”. Revista Sociologia & Política, v. 18, n. 36, pp. 122-137. descreve o feminismo no Brasil em referência às três ondas, mas salientando as especificidades contextuais do país, principalmente no contexto da ditadura militar.
  • 3
    . Mais do que uma listagem de teorias, o mainstream caracteriza-se por seu fundamento filosófico residir no empiricismo e positivismo lógico, que presumem a dissociabilidade entre realidade e sujeito (especialmente, a pesquisadora), permitindo, assim, a apreensão objetiva dos fenômenos reais (Steans, 2003Steans, Jill. (2003), “Engaging from the Margins: Feminist Encounters with the ‘Mainstream’ of International Relations”. British Journal of Politics and International Relations, v. 5, n. 3, pp. 428-454.).
  • 4
    . Saliento que diversas outras contribuições epistemológicas informam as pesquisas feministas em RI, porém, um completo mapeamento extrapola os objetivos deste artigo.
  • 5
    . Holland (1986)Holland, Paul W. (1986), “Statistics and Causal Inference”. Journal of the American Statistical Association, v. 81, n. 396, pp. 945-960. discute o problema fundamental da inferência causal como um desenvolvimento a partir do modelo inferencial de Donald Rubin, propondo para ele uma solução estatística. O modelo basicamente pondera o estabelecimento de relações de causalidade entre fenômenos considerando as implicações da variável de tratamento (ou a causa proposta pela pesquisadora) e a de controle (ou contrafactual à causa proposta).
  • 6
    . Keohane (1998Keohane, Robert O. (1998), “Beyond Dicothomy: Conversations Between International Relations and Feminist Theory”. International Studies Quarterly, v. 42, pp. 193-198.: 196) resume a ideia da pesquisa causal em RI: “o método básico da ciência social permanece o mesmo: faça uma conjectura causal; formule essa conjectura como uma hipótese consistente com a teoria estabelecida (e talvez deduzida dela, ao menos em parte); especifique as implicações observáveis da hipótese; teste se essas implicações ocorrem no mundo real; e, sobretudo, assegure que os procedimentos são conhecidos publicamente e replicáveis”.
  • 7
    . Faz-se mister salientar que o reconhecimento dessa crítica não implica necessariamente a adoção de um único modelo de pesquisa feminista em RI, qual seja, a interpretativa fundada na análise de gênero. Como Hutchings (2002)Hutchings, Kimberly. (2002), “Feminist International Relations: An Unfinished Journey, Christine Sylvester (New York: Cambridge University Press, 2002), 350 pp., $65 cloth, $25 paper”. Ethics & International Affairs, v. 16, n. 2, pp. 171-173. pondera, isso significaria reconhecer que o diálogo entre feministas e o mainstream de RI falhou, quando, na verdade, o que existe é uma pluralidade de formas de se produzir pesquisa feminista. Nesse caso, algumas dessas formas apenas optam por seguir os métodos convencionais das RI positivistas.
  • 8
    . Um caso emblemático de espetacularização que preocupa feministas de diversos matizes é o de Sarah Baartman (a “Vênus Hotentote”), que foi levada da África austral para a Europa para ser apresentada em feiras como um “fenômeno bizarro”. Após sua morte, seu corpo foi desmembrado para estudos em um museu parisiense. Este caso choca audiências de africanas e africanos no continente e na diáspora, representando um dos exemplos mais violentos da colonização dos corpos das mulheres de origem africana. Para mais detalhes, ver hooks (2019)hooks, bell. (2019), Olhares Negros: Raça e Representação. São Paulo: Elefante..
  • 9
    . A proliferação de bases de dados destes indicadores contribui para esse tipo de pesquisa, e hoje são referências o índice Social Institutions & Gender Index, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico; o Gender Statistics, do Fórum Econômico Mundial; várias bases da Organização das Nações Unidas, com destaque para o Gender Inequality Index; e o projeto WomenStats, com mais de 350 variáveis de gênero.
  • 10
    . A dispersão dos artigos por periódicos de Ciência Política (e outras Ciências Sociais) dificulta o esforço de análise da produção intelectual exclusivamente de RI, o que, por sua vez, incide sobre a caracterização da pesquisa na disciplina no país. Não por acaso, a RBPI e a Contexto Internacional figuram nos principais estudos bibliométricos em RI, como nos casos de Medeiros et al. (2016)Medeiros, Marcelo de Almeida et al. (2016), “What Does the Field of International Relations Look like in South America?”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 59, n. 1, pp. e004., Carvalho, Gabriel e Lopes (2021) e Novelli (2022)Novelli, Douglas Henrique. (2022), “A identidade do campo das Relações Internacionais no Brasil: uma análise a partir da produção científica em seus principais periódicos na década de 2010”. Carta Internacional, v. 17, n. 1, pp. e1168..

Disponibilidade de dados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2022
  • Aceito
    26 Set 2022
Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) R. da Matriz, 82, Botafogo, 22260-100 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel. (55 21) 2266-8300, Fax: (55 21) 2266-8345 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: dados@iesp.uerj.br