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Política Externa no Governo Bolsonaro (2019-2021): Disputas Discursivas e Rupturas Institucionais nas Políticas De Gênero*

Foreign Policy in the Bolsonaro Government (2019-2021): Discursive Disputes and Institutional Ruptures in Gender Policies

La Politique Étrangère sous le Gouvernement Bolsonaro (2019-2021) : Disputes Discursives et Ruptures Institutionnelles dans les Politiques de Genre

Política Exterior en el Gobierno Bolsonaro (2019-2021): Disputas Discursivas y Rupturas Institucionales en las Políticas de Género

Resumo

O artigo investiga a Política Externa Brasileira (PEB) dos primeiros anos do governo Bolsonaro com relação às políticas de gênero e realiza uma revisão dos marcos conceituais da PEB e de gênero a partir das epistemologias feministas. Utiliza a metodologia da Análise de Conteúdo (AC), conforme proposta por Bardin (1977), para analisar um corpus textual não estruturado de 65 discursos oficiais. Encontra evidências que apontam significativas rupturas institucionais da “nova PEB”, entre 2019 e 2021. O combate à “ideologia de gênero” marca o reposicionamento neoconservador do Brasil nos planos doméstico e internacional, notadamente em relação às políticas de gênero, sexualidade e direitos humanos.

Política Externa Brasileira; análise de conteúdo; neoconservadorismo; ideologia de gênero; direitos humanos

Abstract

This article investigates Brazilian Foreign Policy (PEB) concerning gender policies in the early years of the Bolsonaro government. It reviews the conceptual frameworks of PEB and gender from feminist epistemologies. It employs Bardin’s (1977) proposed Content Analysis (CA) method to analyze an unstructured corpus of 65 official speeches. The findings suggest significant institutional ruptures within the “new PEB” between 2019 and 2021. The fight against “gender ideology” marks the neoconservative repositioning of Brazil on domestic and international fronts – particularly regarding gender, sexuality, and human rights policies.

Brazilian foreign policy; content analysis; neoconservatism; gender ideology; human rights

Résumé

Cet article examine la Politique Étrangère Brésilienne (PEB) au cours des premières années du gouvernement Bolsonaro en ce qui concerne les politiques de genre, et propose une révision des cadres conceptuels de la PEB et du genre à partir des épistémologies féministes. L’article utilise la méthodologie de l’Analyse de Contenu (AC), telle que proposée par Bardin (1977), pour analyser un corpus textuel non structuré de 65 discours officiels. Des preuves sont identifiées, indiquant des ruptures institutionnelles significatives dans la «nouvelle PEB», entre 2019 et 2021. La lutte contre «l’idéologie de genre» marque le repositionnement néoconservateur du Brésil sur les scènes nationale et internationale, notamment en ce qui concerne les politiques de genre, de sexualité et des droits humains.

Politique étrangère brésilienne; analyse de contenu; néoconservatisme; idéologie du genre; droits de l'homme

Resumen

El artículo investiga la Política Exterior Brasilera (PEB) de los primeros años del gobierno Bolsonaro con relación a las políticas de género y realiza una revisión de los marcos conceptuales de la PEB y de género a partir de las epistemologías feministas. Se utiliza la metodología del Análisis de Contenido (AC), a partir de la propuesta de Bardin (1977) para analizar un corpus textual en un conjunto de 65 discursos oficiales. Se encuentran evidencias que apuntan significativas rupturas institucionales de la “nueva PEB”, entre 2019 y 2021. El combate a la “ideología de género” marca el reposicionamiento neoconservador de Brasil en los planos doméstico e internacional, especialmente en relación con las políticas de género, sexualidad y derechos humanos.

Política exterior brasileña; análisis de contenido; neoconservadurismo; ideología de género; derechos humanos

Introdução

Este artigo tem como propósito identificar as questões de gênero e sexualidade no campo da Política Externa Brasileira (PEB) durante o governo de Jair Bolsonaro. Foi realizada uma revisão de literatura a respeito da PEB pós 1988 e dos estudos de gênero. Foi analisado também um corpus textual formado por 12 discursos oficiais proferidos pelo Presidente Jair Bolsonaro, e outros 53 proferidos pelo Chanceler Ernesto Araújo, no período entre 01/01/2019 a 31/03/2021. O recorte temporal inicial se refere à data da posse de Bolsonaro, enquanto o final se refere à saída de Araújo do cargo de Ministro das Relações Exteriores. Compõe o rol de documentos analisados todos os textos dos 65 discursos oficiais de Bolsonaro e Araújo disponibilizados em texto no site oficial do Ministério das Relações Exteriores na aba “Discursos, artigos e entrevistas”. Diante desse corpus textual não estruturado nos interessou identificar como as políticas de gênero estão presentes na PEB durante o recorte temporal indicado.

Em conjunto com o marco teórico da pesquisa, que tem nas epistemologias feministas seus fundamentos prioritários, utilizamos a metodologia da Análise de Conteúdo (AC) – conforme proposta por Bardin (1977)Bardin, Laurence. (1977), Análise de Conteúdo. Lisboa, Edições 70. – como uma estratégia técnica para pesquisas empiricamente orientadas1 1 . A técnica de AC vem sendo utilizada por pesquisas na área de PEB. Ver Silva; Hernández (2020). . Para tanto, usamos uma ferramenta de mineração de texto2 2 . SOBEK é um software livre de mineração de texto desenvolvido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Com essa ferramenta foi possível extrair os termos recorrentes do corpus textual analisado e representá-lo na forma de um grafo. cujas principais atribuições foram: (i) extrair os termos mais recorrentes no corpus textual e (ii) apresentar as relações intertextuais entre esses termos. Como técnica, a AC possibilita transformar documentos textuais em dados. Os índices lexicais obtidos por meio do minerador de texto, portanto, foram explorados através de uma análise qualitativa cujo escopo central foi produzir um conjunto de inferências suficientemente abrangentes e compreensivas para explicar o fenômeno que nos interessa nesse trabalho: identificar uma gender sensitive na PEB nos primeiros anos do Governo Bolsonaro (2019-2021).

Para identificar esses elementos nos discursos analisados, realizamos uma leitura intencional dos mesmos (Bardin, 1977Bardin, Laurence. (1977), Análise de Conteúdo. Lisboa, Edições 70.), com foco prioritário na identificação do modo como as questões de gênero são elaboradas nos discursos e, em alguns casos, nas instituições. Consideramos a frequência com que estes termos aparecem, seu contexto e significado. Abaixo listamos alguns dos principais índices analisados:

Tabela 1
: Índices lexicais e frequência no corpus textual

Não se trata de uma pesquisa quantitativa. Os índices lexicais e a indicação da respectiva frequência dos termos serviram somente para auxiliar na identificação prévia dos marcadores mais recorrentes e seus contextos. Ao longo deste trabalho nos subsidiamos da metodologia da AC e apresentamos sínteses das inferências a partir do modo como estes índices lexicais aparecem nos discursos, mas também como eles estão relacionados com outros elementos não-linguísticos do contexto político mais amplo. Trata-se, portanto, de uma abordagem que analisa as sequências discursivas de duas lideranças brasileiras em seus aspectos linguísticos e os efeitos que produzem na construção de uma identidade política representativa do governo Bolsonaro.

Compartilhamos o entendimento de que a política externa é uma forma de política pública. Reconhecemos o papel central dos governos nacionais em sua elaboração e execução sem desconsiderar os múltiplos agentes que influenciam nas tomadas de decisões em ambos os níveis (doméstico e internacional) (Salomón, Pinheiro, 2013). Sem perder de vista a multiplicidade de elementos que compõem a PEB, entendemos que “[...] em última instância, a responsabilidade pelas políticas públicas, entre elas a política externa, é do governo que as implementa” (Milani, Pinheiro, 2013:21). A análise da atuação dos governos, especialmente agentes do Poder Executivo federal, no caso do Brasil, é um tema relevante no campo da Análise de Política Externa (APE) que pode ser feita a partir de distintos eixos temáticos.

Assim, esta pesquisa contribui para a compreensão das mudanças no cenário político brasileiro a partir de 2019. Por meio desta investigação, identificamos que gênero e sexualidade emergem ora como negação da sua existência social e política, ora como inimigos que devem ser eliminados. Identificamos, portanto, marcas de uma PEB que se afastou da interlocução com os movimentos feministas e LGBTQIA+, posicionando-os como “forças inimigas”, ao mesmo tempo em que novos atores com agendas neoconservadoras passaram a integrar esses espaços. Nossa hipótese é de que o período em análise representou um expressivo distanciamento frente a perspectiva que existia até então na história republicana da PEB. Foi constatado o predomínio de um moralismo religioso essencialista que impactou na produção discursiva e de agendas de interesse político prioritário, em âmbito doméstico e internacional.

Políticas de gênero e direitos humanos na Política Externa Brasileira

A promoção da igualdade de gênero, eixo estrutural para a consolidação da agenda de direitos humanos, faz referência a um conceito que surge no âmbito teórico e político dos feminismos, alcançando, ao longo do século XX, visibilidade nos fóruns multilaterais de formulações normativas no Direito Internacional Público. Gênero, conforme a definição clássica de Scott (1995Scott, Joan. (1995), “Gênero: Uma Categoria Útil de Análise Histórica”. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, pp. 71-99. Disponível em: < https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721.
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:21) “[...] é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder”. Em outras palavras, o gênero conceitua a distribuição binária e desigual de recursos, poder e prestígio entre mulheres e homens, bem como a forma como essa desigualdade estrutura e organiza a vida em distintas sociedades.

Apesar de um amplo leque de formas de compreender as agendas prioritárias e as estratégias de mobilizações feministas, o consenso mínimo comum entre os feminismos é uma reivindicação pela construção de uma sociedade igualitária e equitativa para mulheres e homens que perpassa, inclusive, mas não somente, o acesso aos direitos humanos. Uma das estratégias para alcançar tal propósito foi a inserção dos direitos das mulheres na gramática do Direito Internacional dos Direitos Humanos – ainda que esta não seja uma estratégia unânime dos feminismos. Importante registrar que, a despeito da previsão direta de proibição de discriminação entre mulheres e homens desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), somente na Conferência de Direitos Humanos de Viena (1993) é que a categoria política dos Direitos Humanos das Mulheres, mobilizada pelos movimentos feministas desde os anos de 1990, no Brasil e na América Latina (Alvarez, 2003Alvarez, Sonia. (2003), “Um Outro Mundo (Também Feminista...) é Possível: Construindo Espaços Transnacionais e Alternativas Globais a Partir dos Movimentos”. Revista Estudos Feministas, v. 11, n. 2, pp. 533-540. DOI: < https://doi.org/10.1590/S0104-026X2003000200012.
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), foi acolhida para marcar o caráter sexista da universalidade seletiva dos direitos humanos.

O campo dos direitos humanos, desde meados do século XX, tornou-se tão relevante no cenário político-jurídico global quanto o de soft power (Alves, 2015Alves, José Augusto Lindgren. (2015), Os Direitos Humanos Como Tema Global. São Paulo, Perspectiva.). A partir da redemocratização brasileira a PEB assumiu contornos progressistas no que diz respeito à agenda dos direitos das mulheres, tendo se transformado em “[...] uma tendência crescente de sensibilidade às questões de gênero, principalmente nos anos de 2003 e 2015” (Araújo, 2017Araújo, Dandara de Souza. (2017), A Política Externa e os Direitos das Mulheres: Efeitos da Atuação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.:31). Desde a redemocratização do país, até o governo Dilma Rousseff (PT), a PEB demostrava uma sensibilidade à temática de gênero (gender sensitive), com a adesão de diversos instrumentos internacionais de combate à discriminação e à violência contra as mulheres (Salomón, 2016Salomón, Monica. (2016), “Processos e Influências no Aprofundamento da Dimensão de Gênero da Política Externa Brasileira”. Anais do X Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política. Belo Horizonte, ABCP.). Além da adesão a esses instrumentos político-jurídicos internacionais, os discursos oficiais de representantes do Brasil em foros multilaterais apresentavam, em diferentes graus, uma postura de transversalização de gênero nos temas de interesse nacional. Até 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff (e em especial com a chegada de Jair Bolsonaro na Presidência da República, em 2019), houve uma crescente expansão do tema da igualdade de gênero na PEB. Esse processo se deu não apenas como um elemento pontual, mas como um processo de caráter progressista no que diz respeito aos direitos das mulheres – em especial durante o governo Dilma (Araújo, 2017Araújo, Dandara de Souza. (2017), A Política Externa e os Direitos das Mulheres: Efeitos da Atuação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.:31). A PEB pode ser considerada sensível ao gênero por “[...] diversos elementos e agentes [que] estiveram nela envolvidos, como as diretrizes governamentais, a atuação de movimentos feministas e a interação de diferentes órgãos da administração pública” (Araújo, 2017Araújo, Dandara de Souza. (2017), A Política Externa e os Direitos das Mulheres: Efeitos da Atuação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.:31). Não significa, por outro lado, dizer que se trate de uma política externa feminista – como a da Suécia –, ou que não apresente limitações importantes no que diz respeito à paridade de gênero – como a baixa presença de mulheres nos espaços de decisão (Salomón, 2016Salomón, Monica. (2016), “Processos e Influências no Aprofundamento da Dimensão de Gênero da Política Externa Brasileira”. Anais do X Encontro da Associação Brasileira de Ciência Política. Belo Horizonte, ABCP.). Adicionamos, ainda, que um olhar interseccional sobre essa ausência contribui para compreender como aspectos estruturais influenciam no acesso das mulheres a esse espaço de poder, sobretudo de mulheres negras, indígenas, pobres e LGBTQIA+.

Em 2016, com a interrupção do mandato da presidenta eleita Dilma Rousseff, assumiu o governo o seu vice, Michel Temer (MDB). Após novo processo eleitoral teve início, em 2019, o mandato de Jair Bolsonaro (eleito pelo PSL). Essas alterações governamentais impactaram na PEB de um modo geral, bem como na forma como as questões de gênero passam a receber um enquadramento substancialmente diverso do período precedente. Nesse cenário de ascensão de um populismo bolsonarista observamos algumas de suas marcas também na PEB, ainda que os aspectos internacionais das experiências populistas não tenham sido amplamente explorados pela literatura especializada (Guimarães, Oliveira e Silva, 2021). Há uma variedade de movimentos políticos caracterizados como populistas, com origens em contextos de crise e de desordem social. Da mesma forma, não observamos um consenso sobre o conceito e a definição de populismo (Laclau, 2013Laclau, Ernesto. (2013), A Razão Populista. São Paulo, Três Estrelas.; Mudde, Kaltwasser, 2017; Chryssogelos, 2017Chryssogelos, Angelos. (2017), “Populism in Foreign Policy”, in Thompson, William R. (ed.), Oxford Research Encycolopedia of Politics. Oxford University Press.). Segundo Cesarino, no caso do populismo bolsonarista:

[...] a liderança carismática ascende, supostamente a partir de fora do establishment, como aquele que reivindica a pureza necessária para reintroduzir a ordem em um sistema irreversivelmente corrompido. Não resta muita dúvida de que os anos que precederam as eleições de 2018, desde as Jornadas de 2013, passando pela ascensão da Lava Jato e o movimento anticorrupção e pró-impeachment, conformam um contexto desse tipo (2019:534).

Marcas de rupturas na PEB e na agenda política de gênero

Desde o governo Michel Temer há uma narrativa de construção de uma “nova PEB” pautada por elementos de ruptura com os governos anteriores, destacadamente a assim chamada “desideologização da PEB” (Moreira, 2020Moreira, Danilo Sorato. (2020), “As Semelhanças entre os Governos Temer e Bolsonaro na Política Externa (2016-2019)”. Revista Neiba, v. 9, n. 1, pp. 1-19. DOI: < https://doi.org/10.12957/neiba.2020.47941.
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). O referido termo surgiu a partir de políticos de direita que buscavam demonstrar que atuariam de modo diferente de seus antecessores (de esquerda), por meio, portanto, de uma “desideologização” da Política Externa; tendo sido utilizado pela primeira vez pela Chanceler de Mauricio Macri, na Argentina, em 2015 (Moreira, 2020Moreira, Danilo Sorato. (2020), “As Semelhanças entre os Governos Temer e Bolsonaro na Política Externa (2016-2019)”. Revista Neiba, v. 9, n. 1, pp. 1-19. DOI: < https://doi.org/10.12957/neiba.2020.47941.
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:7).

No Brasil, os governos Temer e Bolsonaro construíram uma narrativa na qual esses líderes e suas equipes de governo seriam capazes de tomar decisões sem serem pautados por qualquer ideologia3 3 . O termo ideologia, tal como utilizado nas narrativas dos governos Temer e Bolsonaro, se refere a noção de que os governos de direita não adotariam as mesmas premissas sobre como a política internacional deveria ser conduzida quando comparadas às dos seus antagonistas, os governos de esquerda. O uso simplório desse termo tem por objetivo tornar a sua compreensão essencialmente vaga e imprecisa, para um público leigo. Não pretendemos, nesse trabalho, aprofundar o problema da falta de apropriação teórica do conceito de ideologia em tais narrativas, ou mesmo sobre as tensões entre ideologia e pragmatismo na Política Externa (Saraiva, Costa Silva, 2019; Gardini, Lambert, 2011). Nos interessa aqui destacar que essa estratégia de “ideologização” da PEB não é uma experiência inovadora. . O argumento da ideologização dos governos de esquerda, vale ressaltar, já era articulado publicamente quanto à formulação e operacionalização da PEB (Almeida, 2004Almeida, Paulo Roberto. (2004), “Uma Política Externa Engajada: a Diplomacia do Governo Lula”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 47, n. 1, pp. 162-184. DOI: < https://doi.org/10.1590/S0034-73292004000100008.
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; Lafer, 2018Lafer, Celso. (2018), “Partidarização da Política Externa (2009)”, in Lafer, Celso (org.), Relações Internacionais, Política Externa e Diplomacia Brasileira: Pensamento e Ação. Brasília, FUNAG, pp. 1195-1198.; Ricupero, 2010Ricupero, Rubens. (2010), “Carisma e Prestígio: a Diplomacia do Período Lula de 2003 a 2010”. Revista Política Externa, v. 19, n. 1, pp. 27-42. Disponível em: < https://ieei.unesp.br/portal/wp-content/uploads/2010/07/Politica-Externa-19-01-Rubens-Ricupero.pdf.
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). A atribuição da característica da “ideologização” se expressava nas qualificações de diferentes períodos históricos da PEB, como a “política externa independente”, o “pragmatismo responsável”, entre outras (Jacobsen, 2013Jacobsen, Kjeld Aagaard. (2013), “Desventuras de Alguns Críticos da Política Externa do Governo Lula”. Lua Nova, 89, pp. 275-295. DOI: < https://doi.org/10.1590/S0102-64452013000200011.
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). Para Lafer (2009), entre 2003 e 2010 a PEB impôs uma visão política particular do Partido dos Trabalhadores nas decisões sobre seus rumos, rompendo o “consenso” construído ao longo de anos de que ela seria uma política de Estado e não de governo. Almeida (2004)Almeida, Paulo Roberto. (2004), “Uma Política Externa Engajada: a Diplomacia do Governo Lula”. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 47, n. 1, pp. 162-184. DOI: < https://doi.org/10.1590/S0034-73292004000100008.
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afirma que nas relações exteriores e na política internacional o governo do presidente Lula se pareceu mais com o discurso do Partido dos Trabalhadores, dada a “filiação genética” com as teses programáticas, declarações e textos das lideranças do partido ao longo dos últimos vinte anos – como nas iniciativas tomadas desde o início de 2003 no âmbito da diplomacia. As apreciações, em geral, negativas, comparavam a PEB dos governos Lula com aquela desenvolvida particularmente nos dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso (Jacobsen, 2013Jacobsen, Kjeld Aagaard. (2013), “Desventuras de Alguns Críticos da Política Externa do Governo Lula”. Lua Nova, 89, pp. 275-295. DOI: < https://doi.org/10.1590/S0102-64452013000200011.
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). O mecanismo retórico de imputação da ideologização da PEB nos governos de esquerda, portanto, não é novo. No período atual, tal acusação busca promover a ideia de que os governos de esquerda tomam decisões por razões ideológicas, enquanto a direita seria capaz de atuar de forma imparcial, neutra, por um bem comum genuinamente desejado pela nação. É notório que não há neutralidade/objetividade de perspectivas individuais ou governamentais/partidárias, sejam de esquerda ou direita.

A tendência de centralização baseada em princípios4 4 . De acordo com Saraiva (2011: 54), os princípios que marcam a continuidade do Itamaraty e a estabilidade da PEB são: a importância da autonomia, a ação universalista e a ideia de que o Brasil um dia poderá ocupar um lugar de maior destaque na política internaciontal (“the destiny of grandeur”). , a partir do Itamaraty, contribuiu para a estabilidade da PEB. Para Gardini (2011)Gardini, Gian Luca. (2011), “Latin American Policies: Between Ideology and Pragmatism: a Framework for Analysis”, in: Gardini, Gian Luca; Lambert, Peter (eds), Latin American Foreign Policies: Between Ideology and Pragmatism. New York, Palgrave Macmillan, pp. 13-33., uma política externa ideológica enfatiza princípios e soluções doutrinárias em detrimento de sua real viabilidade ou utilidade. Da mesma forma que está associada a um planejamento de curto prazo e a uma visão personalizada das Relações Internacionais de um determinado líder ou administração. O lado ideológico da política externa do governo Bolsonaro foi impulsionado pelo Chanceler Ernesto Araújo, com influência de Olavo de Carvalho, Eduardo Bolsonaro e, em menor medida, grupos neopentecostais (Saraiva, Costa Silva, 2019).

Desse modo, o “[...] conceito de desideologização usado na retórica dos governos Temer e Bolsonaro se tornaram vazios em virtude da efetiva ideologia que possuem em suas escolhas” (Moreira, 2020Moreira, Danilo Sorato. (2020), “As Semelhanças entre os Governos Temer e Bolsonaro na Política Externa (2016-2019)”. Revista Neiba, v. 9, n. 1, pp. 1-19. DOI: < https://doi.org/10.12957/neiba.2020.47941.
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:7). Uma suposta anti-ideologização influenciou a construção da agenda governamental e de sua atuação no campo das políticas públicas, dentre as quais a Política Externa, repercutindo, por exemplo, nos parceiros comerciais e nas estratégias e alianças econômicas (Moreira, 2020Moreira, Danilo Sorato. (2020), “As Semelhanças entre os Governos Temer e Bolsonaro na Política Externa (2016-2019)”. Revista Neiba, v. 9, n. 1, pp. 1-19. DOI: < https://doi.org/10.12957/neiba.2020.47941.
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).

De modo geral, a PEB dos primeiros anos do governo Bolsonaro se diferencia dos períodos anteriores ao promover uma inversão em termos de alianças estratégicas e parceiros políticos prioritários – como, por exemplo, o alinhamento “sem recompensas” aos Estados Unidos, em especial ao ex-presidente estadunidense Donald Trump. Outras inovações decorrem da “[...] multiplicação de formuladores oficiais e semioficiais de política externa; uma cruzada retórica contra os moinhos de vento do ‘globalismo’ e da integração regional; o enfrentamento veemente – no campo dos valores e da moral – à desocidentalização da matriz diplomática do Itamaraty [...]” (Lopes, 2021Lopes, Dawisson Belém. (2021), “Dois Anos de Uma Política Externa Rudimentar”, in Avritzer, Leonardo; Kerche, Fabio; Marona, Marjorie (orgs.), Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política. Belo Horizonte, Autêntica, pp. 229-240.:229).

Essas mudanças consolidam uma ruptura do governo Bolsonaro a partir da retórica da desideologização associada com a anti-ideologização. A marca da “nova PEB” seria precisamente a anti-ideologização, a partir da sua diferenciação “em direção ao progresso”, em oposição ao “atraso e a incapacidade das políticas dos governos de esquerda”.

Hoje começamos um trabalho árduo para que o Brasil inicie um novo capítulo de sua história. Um capítulo no qual o Brasil será visto como um país forte, pujante, confiante e ousado. A política externa retomará o seu papel na defesa da soberania, na construção da grandeza e no fomento ao desenvolvimento do Brasil. [...] Montamos nossa equipe de forma técnica, sem o tradicional viés político que tornou o Estado ineficiente e corrupto (Bolsonaro, 2019a).

Nós entramos e estamos tentando limpar tudo isso para chegar aos tesouros e libertá-los para o povo brasileiro (Araújo, 2019d).

O anúncio do Presidente Jair Bolsonaro, de uma equipe de governo “técnica e sem viés político”, se alinhava com a perspectiva de que pessoas capazes tecnicamente e “não ideológicas” têm um determinado sexo e uma cor de pele particulares. Vale mencionar como exemplo o gabinete governamental do ex-presidente Michel Temer, logo após a deposição de Dilma Rousseff, composto exclusivamente por homens brancos, os quais promoveram uma interrupção nos diálogos com os movimentos de mulheres existentes até então (Biroli, 2018Biroli, Flávia. (2018), “Violence against Women and Reactions to Gender Equality in Politics”. Politics & Gender, v. 14, n. 4, pp. 681-685. DOI: < https://doi.org/10.1017/S1743923X18000600.
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).

No corpus textual analisado, o termo “ideologia” foi repetido 84 vezes, sendo usado em uma conotação negativa, tanto por Bolsonaro quanto por Araújo, como algo: a) a ser derrotado; b) muito presente nos governos anteriores; c) que contamina o Estado e as instituições; d) identificado como próprio dos governos de esquerda; e e) pouco ou nada conectado com a vontade do povo.

Ideologia é ter uma teoria e aplicá-la aos fatos e, quando os fatos contrariam a teoria, pior para os fatos. Escolhemos outros fatos que a comprovem ou simplesmente os ignoramos (Araújo, 2019d).

A ideologia se instalou no terreno da cultura, da educação e da mídia, dominando meios de comunicação, universidades e escolas. A ideologia invadiu nossos lares para investir contra a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família. Tentam ainda destruir a inocência de nossas crianças, pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica. O politicamente correto passou a dominar o debate público para expulsar a racionalidade e substituí-la pela manipulação, pela repetição de clichês e pelas palavras de ordem. A ideologia invadiu a própria alma humana para dela expulsar Deus e a dignidade com que Ele nos revestiu (Bolsonaro, 2019d).

A agenda da anti-ideologização propõe uma reorientação pragmática e conceitual em temas sensíveis como economia, meio ambiente, direitos humanos, soberania, comércio internacional e integração regional – para citar os mais recorrentes no corpus analisado. Embora a agenda anti-ideologização esteja bastante presente, deve-se compreendê-la a partir de sua instrumentalidade para combater o “globalismo”5 5 . Os índices lexicais “globalismo” e “globalista”, da forma como usados por Bolsonaro e Araújo, possuem uma conotação depreciativa dos processos de globalização e do multilateralismo contemporâneos. Araújo (2017: 353) toma o globalismo por padrões liberais antinacionais e antitradicionais na vida social e do mercado globalizado sem fronteiras na vida econômica. De acordo com Magalhães (2022: 122), o globalismo de Bolsonaro, Araújo, Olavo de Carvalho e outros se refere a um plano de domínio mundial e a constituição de um governo mundial, o que implica a ruína dos Estados-nação e dos valores nacionais e civilizacionais contidos nestes. , termo repetido 14 vezes nos discursos analisados.

A “ideologia de gênero”, a “ideologia do clima” (climatismo), a “oikofobia” (ódio à nação) e o “racialismo” (divisão da sociedade por raça) são supostamente os instrumentos para a consolidação de um “pacto globalista”, como se observa principalmente nos discursos de Araújo. A luta contra o “globalismo” é a chave para compreender as características de um projeto de renovação da PEB que se assume anti-ideológica, liberal no campo econômico e conservadora na esfera dos valores.

Há quase 30 anos vimos no mundo uma economia liberal, globalizada, o que é ótimo, mas está no topo de uma ausência total de valores, ou no topo de valores ideológicos, o que se chama politicamente correto. E isso não está funcionando. [...] A maior esperança que temos hoje é criar um amálgama sólido que una uma economia aberta, competitiva, liberal, com base em valores conservadores. Devemos quebrar o perverso amálgama da economia livre com uma estrutura ideológica oposta à liberdade. E devemos preparar um novo amálgama de economia liberal e valores conservadores, ou seja, uma economia aberta e uma sociedade aberta. Uma sociedade construída em torno do politicamente correto é essencialmente uma sociedade fechada, onde o pensamento está fechado para o sentimento, onde o caminho entre o homem e Deus está bloqueado, onde as palavras estão bloqueadas para longe da realidade (tradução nossa) (Araújo, 2019b).

Esse “projeto de renovação da PEB” integra um movimento mais amplo e global de ascensão de um certo populismo e de reorganização de novos arranjos neoliberais reativos à crise financeira global de 2008. Segundo Cesarino (2019)Cesarino, Letícia. (2019), “Identidade e Representação no Bolsonarismo: Corpo Digital, Bivalência Conservadorismo-Neoliberalismo e Pessoa Fractal”. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3, pp. 530-557. DOI: < https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2019.165232.
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, a versão brasileira da “guerra cultural” entre liberais e conservadores no cenário político recente espelha essa tendência global que teve continuidade e um lugar central na campanha que elegeu Bolsonaro.

A “nova PEB” apresenta duas estratégias narrativas articuladas no corpus textual analisado: uma de diferenciação e outra de equivalência. A estratégia de diferenciação é marcada por um processo de construção de um inimigo a ser vencido. A oposição a esse inimigo se dá pelo contraste, ou seja, pela narrativa de que o que havia antes ameaçava a democracia e as liberdades, ambos os termos usados no mesmo plano de relevância. Em articulação à estratégia anteriormente referida, observamos a de equivalência entre o líder e o povo. Para eliminar o inimigo é preciso acionar uma narrativa de esperança, produzida a partir da correspondência entre a história pessoal do líder com a história do seu povo. Dessa forma, para derrotar esse inimigo deve-se projetar algo novo, a nova política, uma nova PEB que vai ao encontro da “verdade e dos interesses dos brasileiros”: a soberania, a liberdade, o direito de nascer, o porte de armas, a identidade nacional, o patriotismo, o nacionalismo, os valores da família e da dignidade humana. Aproximamo-nos do entendimento de Cesarino (2019)Cesarino, Letícia. (2019), “Identidade e Representação no Bolsonarismo: Corpo Digital, Bivalência Conservadorismo-Neoliberalismo e Pessoa Fractal”. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3, pp. 530-557. DOI: < https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2019.165232.
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ao pontuar que o bolsonarismo é uma política marcada tanto pela diferenciação antagonística externa quanto pela intensificação do pertencimento interno.

No sistema multilateral político, especialmente na ONU, vamos reorientar a atuação do Brasil em favor daquilo que é importante para os brasileiros – não do que é importante para as ONGs. Defenderemos a soberania. Defenderemos a liberdade – a liberdade de expressão, a liberdade de crença, a liberdade na internet, a liberdade política. Defenderemos os direitos básicos da humanidade, o principal dos quais talvez seja, se me permitem usar o título de uma novela dos anos 60, o direito de nascer (Araújo, 2019a).

Se não houver nação, família, cultura, história, heróis ou tradição, a economia não poderá preencher o seu coração e o seu coração será ocupado pela ideologia (Araújo, 2019b).

Para ativar a estratégia de distanciamento e diferenciação da “velha política” observamos a frequência de expressões difusas como comunismo, socialismo, marxismo cultural, gramscismo, leninismo, Escola de Frankfurt, Revolução Cultural dos anos 1960, entre outros. Esses termos, desconhecidos no debate político nacional, passaram a circular através da campanha eleitoral de Bolsonaro de 2018. Nas proximidades do período eleitoral, esses termos foram difundidos para um público mais amplo principalmente através de memes, textos, áudios e vídeos curtos por meio do WhatsApp (Cesarino, 2019Cesarino, Letícia. (2019), “Identidade e Representação no Bolsonarismo: Corpo Digital, Bivalência Conservadorismo-Neoliberalismo e Pessoa Fractal”. Revista de Antropologia, v. 62, n. 3, pp. 530-557. DOI: < https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2019.165232.
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). Concordamos com Miguel (2016)Miguel, Luis Felipe. (2016), “Da ‘Doutrinação Marxista’ à ‘Ideologia de Gênero’: Escola Sem Partido e as Leis da Mordaça no Parlamento Brasileiro”. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 15, pp. 590-621. DOI: < https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/25163.
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, no sentido de que o atual contexto político é uma conjuntura formada a partir de um certo “libertarianismo”, do fundamentalismo religioso e do antigo e ainda atual combate ao comunismo.

O problema é que, depois de 1989, justamente com a vitória desse Ocidente, dessa linha liberal-conservadora, alguém achou que não precisava mais do coração conservador, da fé cristã no centro das democracias liberais. [...] Resolveram expulsar Deus do coração da sociedade liberal e deixaram Deus do lado de fora, ali no frio. Não se deram conta, mas há muito o comunismo vinha-se preparando para ocupar a sociedade liberal por dentro, com a teoria de Gramsci, com a Escola de Frankfurt, com a Revolução Cultural dos anos 60. E, com essa abertura no coração da sociedade liberal, que expulsa Deus, o caminho ficou livre para que o marxismo cultural, o gramscismo, como quer que se chame, ocupasse o coração da sociedade liberal, que tinha sido deixado vazio. Isso é o globalismo, o momento em que o comunismo, o fisiologismo, o gramscismo, como quer que se chame, ocupa o coração que tinha sido deixado vazio da sociedade liberal (Araújo, 2019c).

Em apoio à luta contra o comunismo e todos os seus derivados, o Chanceler Araújo cita, em diferentes momentos, personagens como Olavo de Carvalho, Ronald Reagan, Papa João Paulo II, Donald Trump e o resultado da consulta popular que aprovou a saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit. Tratam-se, pois, de elementos que alimentam e se inter-relacionam com um ideário de “insurgência universal”, de um “zeitgeist pela liberdade em todo o mundo”, de uma “avant-garde revolucionária” da qual é portadora o povo comum, aquele que elegeu Bolsonaro e Trump, bem como decidiu pelo Brexit.

Mas o que é que mobilizou os eleitores brasileiros, Brexiters e estadunidenses do MAGA [Make America Great Again]? Eu acho que é, para colocar em um termo mais elegante, uma revolta contra a ideologia. A constatação de que havíamos sido enganados, de que tínhamos sido desprezados por uma elite que tentou nos governar e nos abater em nome da justiça social, ou em nome da integração europeia, ou em nome de um mundo sem fronteiras, em nome do progresso ou qualquer outra coisa. Todos os nomes sonantes que não existem para descrever a realidade, mas para impor uma certa estrutura de poder à realidade (tradução nossa) (Araújo, 2019e).

O combate ao comunismo e outras dessas imagens fantasmagóricas é acionado a partir da representação idealizada de Bolsonaro como uma figura mítica, aquele que faz o “grande chamado”, cujas palavras soam como um “toque de clarim”.

A partir de 2017 ficou cada vez mais claro que ele era o único líder político capaz de levar o povo ao poder, o único que acreditava na liberdade, na nacionalidade, em Deus e nas suas interações. Podemos dizer que Trump e Bolsonaro fazem parte da mesma insurgência, o que eu chamaria de insurgência universal contra baboseiras [bullshit] (tradução nossa) (Araújo, 2019e).

[...] o senhor [Presidente JB] nos dizia também a alguns ministros e outros funcionários que o acompanhávamos na ocasião: “Nós temos uma oportunidade única de mudar o Brasil”. Eu tomei essas palavras não somente como uma pertinente avaliação do quadro político, mas como um chamamento, como o toque de um clarim, como uma missão (Araújo, 2019a).

Desde a campanha eleitoral de 2018, o bolsonarismo tem se esforçado para se diferenciar dos governos anteriores com relação à defesa dos direitos humanos e da igualdade de gênero. Em nossa pesquisa foi possível identificar como as questões de gênero são parte desse mesmo contexto de pretensa desideologização da PEB. Para isso, recorrem a um termo criado nas últimas décadas: “ideologia de gênero”, cujo primeiro registro se deu no informe “Ideologia de gênero: seus perigos e alcances”, divulgado pela Comissão da Mulher da Conferência Episcopal Peruana, em 1998 (Biroli, Machado e Vaggione, 2020).

O fundamentalismo surge como um dos elementos centrais na construção política bolsonarista, especialmente no que diz respeito à agenda de gênero e de direitos humanos na PEB. De acordo com Ruibal (2014)Ruibal, Alba. (2014), “Feminismo Frente a Fundamentalismos Religiosos: Mobilização e Contramobilização em Torno dos Direitos Reprodutivos na América Latina”. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 14, pp. 111-138. DOI: < https://doi.org/10.1590/0103-335220141405.
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, o fundamentalismo tem como base um discurso que não oferece razões públicas ou argumentos que sejam compreensíveis sem que se recorra a crenças religiosas ou morais de uma parcela da sociedade. No corpus textual analisado observamos, em diversas passagens dos discursos, uma espécie de pregação da necessidade de “reintrodução de Deus”, outrora expulso da “cidadela da sociedade liberal e do coração dos homens”, tendo sido posto em seu lugar a “religião ateia do politicamente correto”. Identificamos 42 vezes em que a palavra Deus foi repetida no corpus textual analisado. São recorrentes termos e expressões como “Deus acima de todos”, “graças a Deus”, “glória a Deus”, “Deus em Davos”, “bom Deus”, “Deus abençoe essa nação”, “fé como instrumento para ações políticas”, bem como citações de trechos do Evangelho – tanto nos discursos de Araújo quanto nos de Bolsonaro.

Outro termo associado a esse fundamentalismo particular é violência. Nos discursos de Araújo e de Bolsonaro, a violência aparece repetidas vezes para se referir ao Presidente Nicolás Maduro, da Venezuela, para tratar dos índices de violência urbana, do deslocamento forçado de venezuelanos, da violência contra mulheres, meninas, missionários, minorias religiosas e policiais em serviço. Ainda que tenham sido realizadas poucas referências, o tema aparece relacionado às violências impetradas contra o pertencimento religioso, em especial o cristão, pela “cultura dominante do politicamente correto”, na medida em que esta trataria: “[...] a fé com desprezo e hostilidade. Isso talvez não seja menos sério do que a violência física e a perseguição. É mais sutil e pernicioso do que a violência porque deslegitima a fé nas mentes das pessoas” (Araújo, 2020g).

Além dessas expressões de evocação a um fundamentalismo religioso, observamos que a palavra Deus aparece relacionada com socialismo, globalismo e marxismo. A inter-relação entre esses termos se dá mediante a necessidade de apontar a “falsa liberdade prometida pelo marxismo-socialismo-globalismo”, na medida em que aqueles promovem a “separação do homem da sua verdadeira essência”, da sua “filiação com Deus” e, portanto, da sua dimensão moral e espiritual. O povo brasileiro, de acordo os discursos de Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo, teria rejeitado a “morte de Deus” no pleito eleitoral de 2018, da mesma forma que teria optado por um “outro projeto de nação e de família”, profundamente ancorado na retomada de valores conservadores e de religiões cristãs.

A luta pela nação é a mesma luta pela família e a mesma luta pela família, pela humanidade em sua dignidade infinita de criatura (Araújo, 2019a).

Se não houver nação, família, cultura, história, heróis ou tradição, a economia não poderá preencher o seu coração e o seu coração será ocupado pela ideologia (Araújo, 2019b).

O uso do dispositivo religioso, portanto, é associado como categoria de oposição ao socialismo/globalismo, mas também tem a plasticidade de funcionar como equivalente, na medida em que o discurso de Bolsonaro estabelece uma metáfora na qual o Presidente é alçado ao lugar de interlocução entre Deus e os seus fiéis/eleitores. Deus, como sugere o corpus textual, aparece junto a esses termos porque é quem irá se opor ao socialismo, globalismo e marxismo, sendo Bolsonaro seu messias e mensageiro.

Em uma lógica de construção de antagonismos, a defesa da religião e da moralidade cristã são necessárias em razão da suposta perseguição ao cristianismo que teria se instaurado no Brasil a partir dos governos de esquerda e do avanço da globalização. Por esse motivo, Bolsonaro (2020a), na abertura do Debate Geral da LXXV Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, afirmou: “Faço um apelo a toda a comunidade internacional pela liberdade religiosa e pelo combate à cristofobia”; e encerrou o mesmo discurso reforçando que “o Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família sua base. Deus abençoe a todos” (Bolsonaro, 2020a).

A ascensão do fundamentalismo religioso bolsonarista guarda estreita correlação com o combate aos discursos e práticas voltadas à igualdade de gênero e à diversidade sexual. O conceito de “igualdade de gênero” já era conhecido por intelectuais e ativistas feministas, tendo sido incorporado em conferências internacionais promovidas pela ONU como elemento fundamental dos direitos humanos, chamando a atenção também da cúpula da Igreja Católica, de organizações conservadoras estadunidenses e dos países de tradição corânica (Miguel, 2016Miguel, Luis Felipe. (2016), “Da ‘Doutrinação Marxista’ à ‘Ideologia de Gênero’: Escola Sem Partido e as Leis da Mordaça no Parlamento Brasileiro”. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 15, pp. 590-621. DOI: < https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/25163.
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). Trata-se de um cenário de coalizões políticas entre diferentes atores, religiosos ou não, cujo objetivo é a manutenção da ordem patriarcal e do sistema capitalista a partir de uma racionalidade que se expressa pela forte regulação da moralidade sexual (Biroli, Machado e Vaggione, 2020).

No Brasil, o movimento de oposição à “ideologia de gênero” aparece como “[...] uma ameaça única, indistinta, de subversão dos arranjos familiares que são vistos, a um só tempo, como naturais, de origem divina e indispensáveis à reprodução da vida social” (Miguel, 2016Miguel, Luis Felipe. (2016), “Da ‘Doutrinação Marxista’ à ‘Ideologia de Gênero’: Escola Sem Partido e as Leis da Mordaça no Parlamento Brasileiro”. Revista Direito e Práxis, v. 7, n. 15, pp. 590-621. DOI: < https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/25163.
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:597). Segundo Biroli, Machado e Vaggione (2020), a “ideologia de gênero” performa uma estratégia política de amplas coalizões desde os anos 1990, tendo aumentado sua mobilização popular nos anos 2000 e adquirido centralidade, na América Latina, na segunda metade do século XXI. O termo acaba por servir como um eixo articulador de distintos movimentos de direita e conservadores, ao que Birolli (2019) denominou como sendo uma “cola simbólica” em diversos locais no mundo, inclusive no Brasil.

A Igreja Católica, tanto no Brasil como em outros países da América Latina, se aliou a outras denominações religiosas na narrativa de crise da família e da cruzada contra a “ideologia de gênero” com significativo impacto na realização de políticas públicas focadas na igualdade de gênero (Ruibal, 2014Ruibal, Alba. (2014), “Feminismo Frente a Fundamentalismos Religiosos: Mobilização e Contramobilização em Torno dos Direitos Reprodutivos na América Latina”. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 14, pp. 111-138. DOI: < https://doi.org/10.1590/0103-335220141405.
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). A alta hierarquia católica, representada particularmente pelos Papas Bento XVI e Francisco, exerceu um papel ativo de disseminação da contraofensiva à “ideologia de gênero”. A atuação do alemão e do argentino são destacadas por Gago (2020)Gago, Verônica. (2020), A Potência Feminista ou o Desejo de Transformar Tudo. São Paulo, Ed. Elefante., particularmente na proposição de uma correlação entre a “ideologia de gênero” com uma suposta prática colonizadora de organismos internacionais e de organizações não-governamentais. Assim, essa e outras pesquisas ressaltam que “[...] o papa vindo do ‘Terceiro Mundo’ mobiliza uma retórica pseudoanti-imperialista para liderar a batalha contra os direitos de mulheres e LGBTQ+” (Gago, 2020Gago, Verônica. (2020), A Potência Feminista ou o Desejo de Transformar Tudo. São Paulo, Ed. Elefante.:257). Além de ter sido o responsável por “[...] unificar diferentes credos (especialmente católicos, evangélicos e mórmons) na cruzada contra a ‘ideologia de gênero’, amalgamados pela expansão da ‘ameaça’. Foi nos anos recentes que a doutrina eclesiástica se transformou em hashtag multiuso e ferramenta de mobilização que saiu a disputar as ruas: #NoALaIdeologíaDeGenero” (Gago, 2020Gago, Verônica. (2020), A Potência Feminista ou o Desejo de Transformar Tudo. São Paulo, Ed. Elefante.:257).

No campo da PEB, as estratégias de promoção dos direitos de cidadania e da igualdade de gênero são influenciadas por uma perspectiva particular de família natural e pelo conservadorismo religioso. A pesquisa de Ruibal (2014)Ruibal, Alba. (2014), “Feminismo Frente a Fundamentalismos Religiosos: Mobilização e Contramobilização em Torno dos Direitos Reprodutivos na América Latina”. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 14, pp. 111-138. DOI: < https://doi.org/10.1590/0103-335220141405.
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demonstrou que desde a década de 1990 os ativismos religiosos alteraram suas estratégias e passaram também a atuar em espaços como as conferências internacionais de direitos humanos, formulando discursos e propostas através da linguagem dos direitos e das políticas públicas. Na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD, 1994), Alves (1995)Alves, José Augusto Lindgren. (1995), “A Conferência do Cairo sobre População e Desenvolvimento e o Paradigma de Huntington”. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 12, n. 1, pp. 3-20. Disponível em < https://rebep.org.br/revista/article/view/452.
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relata sobre a formação de uma “unholy alliance” entre a Santa Sé e os países de tradição corânica para a manutenção dos colchetes6 6 . A expressão “colocar em colchetes” é um jargão diplomático usado para identificar a falta de consenso ou a oposição dos atores internacionais nas negociações sobre textos normativos, recomendações ou comunicados no sistema da ONU. em dois pontos primordiais: igualdade de gênero e direitos reprodutivos. Naquela ocasião, o Brasil não se alinhou à Santa Sé (Sawyer, 2019Sawyer, Donald. (2019), “Palco e Bastidores da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento”. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 36, pp.1-9. DOI: < https://doi.org/10.20947/S0102-3098a0091.
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).

No corpus textual analisado observamos que as políticas de gênero são tratadas pelo governo Bolsonaro como uma espécie de farsa deliberadamente construída pelo “globalismo” para sequestrar as liberdades (de expressão e de crença) e os valores morais tradicionais supostamente compartilhados pela maioria do povo brasileiro. Ernesto Araújo afirmou: “Creio que não é apenas no Brasil, creio que é um fenômeno mundial. Querem destruir a infância e a inocência, querem dessensibilizar as pessoas com a violência, querem criar uma massa de atomatas para poder controlar com mais facilidade” (tradução nossa) (Araújo, 2020a). No mesmo discurso, afirmou ainda que esse projeto de destruição da infância e da família surgiu no começo da globalização, quando se buscava “[...] construir essa estrutura de uma economia eficiente, globalizada, com base em uma sociedade, uma sociedade fragmentada, sem nações, sem famílias, sem identidades” (tradução nossa).

A expressão “ideologia de gênero” foi veiculada apenas cinco vezes, sendo quatro por Ernesto Araújo e apenas uma por Jair Bolsonaro.

Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um País livre das amarras ideológicas (Bolsonaro, 2019a).

Então para o homem unidimensional existem apenas palavras e as palavras são a realidade. Para ele, por exemplo, homens e mulheres são apenas palavras, e são intercambiáveis. Então é isso que dá origem à ideologia de gênero. Para eles não há essência porque a essência pertence ao reino do simbólico. E é aí que estamos no Globalismo, é o mundo sem símbolos, essa é outra maneira de dizer (tradução nossa) (Araújo, 2019e).

No entanto, essa ideologia, em especial, é um dos eixos articuladores da política bolsonarista desde o período eleitoral. O combate à “ideologia de gênero” na PEB pode ser compreendido como um desdobramento dos protestos populares ocorridos desde 2016, na América Latina, com as campanhas #ConMisHijosNoTeMetas e “A mis hijos los educo yo”. De origem peruana, a mobilização de pais e mãe #ConMisHijosNoTeMetas contesta as políticas educacionais do Presidente Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018) e seus sucessores. Segundo o manifesto daquele coletivo, a imposição da “ideologia de gênero” nos currículos escolares ataca as liberdades fundamentais, ameaça a família peruana e violam o direito dos pais de educar seus filhos segundo suas convicções. Realizada em San José, na Costa Rica, no ano de 2017, “A mis hijos los educo yo” é um movimento de oposição às políticas de educação sexual do governo de Luis Guillermo Solís Rivera (2014-2018). As duas campanhas estão inseridas em uma série de manifestações políticas realizadas em diversos países latino-americanos convocados pela luta contra a “ideologia de gênero” (Solano, 2022Solano, Sindy. Mora. (2022), “A Mis Hijos los Educo Yo: Reflexiones Entorno a Una Manifestación Política Conservadora em Costa Rica”. Revista Rupturas, v. 12, n. 1, pp. 1-26. Disponível em < https://revistas.uned.ac.cr/index.php/rupturas/article/view/3994/5321.
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). Essas campanhas tinham como alvos: (1) os currículos dos estabelecimentos de educação que incluem discussões sobre sexualidade e gênero; (2) as legislações ou decisões judiciais que asseguraram o direito ao casamento igualitário; e (3) o direito à adoção por casais LGBTQIA+ e o acesso às tecnologias reprodutivas (Biroli, 2019Biroli, Flávia. (2019), A Reação contra o Gênero e a Democracia. Nueva Sociedad, v. 23, n. 65, pp. 76-87.; Gago, 2020Gago, Verônica. (2020), A Potência Feminista ou o Desejo de Transformar Tudo. São Paulo, Ed. Elefante.).

Em diferentes países europeus também são cada vez mais expressivas as manifestações públicas de caráter reativo e contraofensivo ao reconhecimento dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos. Na França, por exemplo, La Manif Pour Tous é uma das organizações responsáveis pelas marchas em Paris contra o uso das tecnologias reprodutivas por pessoas solteiras ou casais do mesmo sexo. O escopo central de suas campanhas é a manutenção dos dispositivos normativos que reconhecem a filiação em termos exclusivamente de biparentalidade entre pessoas de sexos diferentes, partindo da exigência de que a filiação deva ser o mais verossímil das leis biológicas que governam a procriação humana. As reverberações na América Latina e no Brasil das campanhas desses contra-movimentos têm sido objeto de investigações, cujo escopo são a compreensão da capacidade de atualização dos repertórios de mobilização e dos efeitos da sua transnacionalização para contextos sociais distintos. Nesse caso, é interessante observar como esses movimentos internacionalizam aspectos domésticos sob o fundamento de uma libertação do internacionalismo liberal que afronta uma certa orientação de nacionalismo e das identidades tradicionais locais. Nessa articulação entre católicos e evangélicos “[...] a Igreja permanece atuante na produção de uma matriz ideológica na qual a ‘ideologia de gênero’ seria uma realidade e os ‘feminismos radicais’, um risco para a humanidade e a família.” (Biroli, 2019Biroli, Flávia. (2019), A Reação contra o Gênero e a Democracia. Nueva Sociedad, v. 23, n. 65, pp. 76-87.:81).

Ressalta-se que não há nos discursos qualquer referência à população LGBTQIA+ ou às experiências de dissidência sexual e às de identidade de gênero. A forma como o termo ideologia surge diz muito sobre como a temática de gênero e dos feminismos está subjacente à retórica da “nova PEB”.

Vamos libertar todas essas boas e nobres causas, como direitos humanos, justiça e meio ambiente. Vamos libertá-las da manipulação e da escravização pelas ideologias totalitárias. [...] Palavras terminadas em “ismo” normalmente designam ideologias: Fascismo, Nazismo e Comunismo. Não vamos fazer do “multilateralismo” uma ideologia. O oposto de todas as ideologias não é outra ideologia. O oposto de todas as ideologias é a liberdade (Araújo, 2020b).

Do mesmo modo, o termo gênero aparece pouquíssimas vezes nos discursos, algo coerente com a perspectiva essencialista e conservadora-cristã. A forma como é compreendido fica bastante evidente na seguinte exposição de Araújo:

Um Brasil materialista, do ser humano sem sua dimensão espiritual, esse grande roubo do espírito que na época se realizava pela redução de tudo ao aspecto econômico (e com uma péssima noção de economia, diga-se de passagem) e ao conceito de classe, e que hoje atua pela redução de tudo a conceitos como gênero, raça e outros (Araújo, 2020f).

Podemos afirmar que o neoconservadorismo e sua versão brasileira mimetizada no populismo bolsonarista têm em comum a oposição à “ideologia de gênero” porque compartilham um discurso de repúdio às questões de diversidade sexual, de autonomia reprodutiva e tem apelo ao retorno das funções e papéis da família tradicional (leia-se: matrimonial, cis-heterossexual e hierarquizada).

“Nova PEB”, Direitos Humanos e Família

O termo “direitos humanos” foi repetido 58 vezes no corpus textual. Em seu discurso de recebimento da faixa presidencial, Bolsonaro (2019b) indicou que os grandes desafios do Brasil seriam: a crise econômica, o desemprego recorde, a ideologização das crianças, o desvirtuamento dos direitos humanos e a desconstrução da família.

Nas questões do clima, da democracia, dos direitos humanos, da igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, tudo o que precisamos é isto: contemplar a verdade, seguindo João 8:32: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Bolsonaro, 2019d).

Vamos defender a família, os verdadeiros direitos humanos; proteger o direito à vida e à propriedade privada e promover uma educação que prepare nossa juventude para os desafios da quarta revolução industrial, buscando, pelo conhecimento, reduzir a pobreza e a miséria (Bolsonaro, 2019c).

O Chanceler apresentou o tema dos direitos humanos de maneira semelhante:

Também reposicionamos o Brasil nos foros de direitos humanos. Por exemplo, para defender o direito à vida, à liberdade, à liberdade de expressão e à liberdade religiosa, contra a cultura da morte, contra a instrumentalização das tecnologias de comunicação para fins de controle social, contra a perseguição dos praticantes de qualquer religião, não apenas em defesa concreta do direito de praticar uma ou outra religião específica, mas também em defesa da própria religiosidade e espiritualidade intrínseca do ser humano (Araújo, 2020f).

Uma das primeiras marcas de descontinuidades do governo Bolsonaro foi a realização de uma reforma ministerial que reposicionou as agendas e as estratégias de promoção dos direitos humanos. Esse reposicionamento foi precedido por uma reorganização, em 2015, no Governo Dilma, decorrente de diversas pressões sofridas para que três Secretarias que tinham status ministerial fossem unificadas em uma única pasta: Secretaria de Política paras as Mulheres (SPM), a Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SEPIR) e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SNDH); consolidando o Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Em 2017, o Presidente Temer extinguiu esse Ministério e incorporou suas secretarias ao Ministério da Justiça e da Cidadania. Foi extinta a SPM, que tinha uma importante interlocução intergovernamental com outros órgãos do Poder Executivo federal na inserção das questões de gênero de forma transversal – inclusive com o Ministério das Relações Exteriores e na elaboração da PEB (Araújo, 2017Araújo, Dandara de Souza. (2017), A Política Externa e os Direitos das Mulheres: Efeitos da Atuação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.).

Em 2019, o Governo Bolsonaro criou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), transformando o descaso da gestão Temer para com as temáticas de gênero: “A partir de 1º de janeiro de 2019, iniciado o Governo de Jair Bolsonaro, a agenda da igualdade de gênero passou a ser combatida” (Biroli e Quintela, 2021Biroli, Flávia; Quintela, Débora Francolin. (2021), “Mulheres e Direitos Humanos sob a Ideologia da ‘Defesa da Família’”, in Avritzer, Leonardo; Kerche, Fabio; Marona, Marjorie (orgs.), Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política. Belo Horizonte, Autêntica, pp. 229-240.:345).

O MMFDH é peça-chave para as políticas anti-gênero do governo Bolsonaro. As credenciais da Ministra Damares Alves são assim apresentadas: “Mãe, advogada, educadora, pastora evangélica. [...] Também participou do movimento pró-vida e foi assessora parlamentar, atuando no Congresso Nacional durante mais de 20 anos” (Brasil, 2021)7 7 . Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/composicao/quem-e-quem/damares-alves. . É relevante considerar que existe um Ministério da Mulher (sic) mas não existe o gênero, posto que na retórica bolsonarista a mulher seria um signo exclusivamente biológico e essencialista. “A mulher vem deslocada das abordagens das desigualdades de gênero, mesmo em políticas para a redução da violência contra as mulheres e para a ampliação da participação política das mulheres” (Biroli e Quintela, 2021Biroli, Flávia; Quintela, Débora Francolin. (2021), “Mulheres e Direitos Humanos sob a Ideologia da ‘Defesa da Família’”, in Avritzer, Leonardo; Kerche, Fabio; Marona, Marjorie (orgs.), Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política. Belo Horizonte, Autêntica, pp. 229-240.:347).

O termo família, no novo ministério, e sua presença no campo da PEB a partir dos discursos analisados, é coerente com a “desideologização” mobilizada pelo Governo Bolsonaro. A família nuclear e cis-heterossexual é o modelo “a ser protegido”, quando diversos países no mundo tornam o casamento igualitário um direito, ao mesmo tempo em que as políticas de austeridade limitam o acesso às políticas sociais. Além disso, vincula de forma naturalizada os direitos das mulheres ao tema da família, reforçando os binarismos de gênero que demarcam as mulheres ao espaço doméstico, às tarefas de cuidado daqueles(as) que estão mais vulneráveis (crianças, pessoas idosas, pessoas com deficiência e enfermas) e de produção de indivíduos funcionais para os encargos demandados na esfera pública.

Ernesto Araújo afirmou o compromisso do Brasil com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos: “Também advogamos, firmemente, em favor da liberdade religiosa e da família, bem como da plena igualdade entre homens e mulheres” (Araújo, 2020e). Este é um trecho exemplar de como o tema da igualdade entre homens e mulheres aparece ao lado da defesa da família, ao mesmo tempo em que não há menções às desigualdades estruturais de gênero. Nesse sentido, “A perspectiva naturalista que rejeita agendas igualitárias em nome de supostos valores familiares, anda de mãos dadas com a normalização de desigualdades e violências” (Biroli e Quintela, 2021Biroli, Flávia; Quintela, Débora Francolin. (2021), “Mulheres e Direitos Humanos sob a Ideologia da ‘Defesa da Família’”, in Avritzer, Leonardo; Kerche, Fabio; Marona, Marjorie (orgs.), Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política. Belo Horizonte, Autêntica, pp. 229-240.:346).

O termo família também foi relativamente frequente no corpus discursivo analisado, totalizando 31 menções – sendo, portanto, mais recorrente que violência, discriminação, mulher(es), gênero, raça/racismo ou direitos fundamentais. De fato, não é a mera inserção do termo família no nome do Ministério e a sua frequente aparição nos discursos analisados o elemento mais relevante. Concordamos com Biroli e Quintela (2021)Biroli, Flávia; Quintela, Débora Francolin. (2021), “Mulheres e Direitos Humanos sob a Ideologia da ‘Defesa da Família’”, in Avritzer, Leonardo; Kerche, Fabio; Marona, Marjorie (orgs.), Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política. Belo Horizonte, Autêntica, pp. 229-240. quando afirmam que a inserção da palavra família no MMFDH é reflexo de uma vasta redefinição dos propósitos políticos do Governo Bolsonaro que se deu a partir da criação desse Ministério e lançando mão da sua capacidade pautar uma agenda transversal – particularmente nas pastas que articulam políticas econômicas e sociais.

Na abertura do Debate Geral da LXXV Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, Bolsonaro afirmou: “O Brasil é um país cristão e conservador, e tem na família sua base” (Bolsonaro, 2020). Nota-se a sintonia com essa concepção específica de família cis-hetero-patriarcal e branca. Evidencia-se, portanto, a conexão direta com uma perspectiva política antigênero, posto que a concepção cristã e conservadora de família exclui todas as famílias LGBTQIA+.

A disputa criada em torno do conceito de família perpassa o debate sobre o modelo econômico e social individualista do neoliberalismo aliado ao neoconservadorismo moral e religioso. Não há incompatibilidade entre neoconservadorismo e neoliberalismo, muito pelo contrário. “O neoliberalismo restringiria a capacidade política e estatal, enquanto o neoconservadorismo moralizaria o poder estatal nas esferas doméstica e internacional”, como sintetiza Biroli (2020:147-148). A relação entre a política neoliberal de direita e os valores centrados na família, na religião e no patriotismo tem sido teorizada como uma relação de complementaridade ou de compatibilidade perfeita, de acordo com Brown (2020)Brown, Wendy. (2020), Nas Ruínas do Neoliberalismo: a Ascensão da Política Antidemocrática no Ocidente. São Paulo, Ed. Politeia.. A chave que conecta, portanto, as dimensões econômica e moral, é a família. Nesse sentido, em um contexto de narrativas de crise, de insegurança e de Estados débeis frente ao capitalismo financeiro, a família é, uma vez mais, o lugar da “esfera pessoal protegida”; mas também de controle, de produção da disciplina e da manutenção das “hierarquias tradicionais” (Biroli, 2020; Brown, 2020Brown, Wendy. (2020), Nas Ruínas do Neoliberalismo: a Ascensão da Política Antidemocrática no Ocidente. São Paulo, Ed. Politeia.).

Para proteger e controlar a família, as mulheres têm um papel fundamental nas políticas familistas do Governo Bolsonaro. Dada a divisão sexual do trabalho e as restrições de políticas e de equipamentos públicos de cuidado (Biroli, 2019Biroli, Flávia. (2019), A Reação contra o Gênero e a Democracia. Nueva Sociedad, v. 23, n. 65, pp. 76-87.), as mulheres são as principais guardiãs das responsabilidades naturais das famílias. Paradoxalmente, houve apenas duas menções no corpus textual ao termo mulher(es). Para Araújo (2020d), as mulheres chefes de família que recebem o auxílio emergencial são responsáveis pela manutenção da vida em meio ao caos econômico e sanitário da COVID-19. De outra parte, há o reconhecimento de que a promoção de perspectivas liberais nos negócios, na economia e no comércio internacional deve valorizar o papel das mulheres nas interações sociais:

Valorizamos essa iniciativa, na medida em que se refere ao crescimento econômico inclusivo, uma vez que visa a fortalecer o papel das mulheres nos negócios e no empreendedorismo, e ao aperfeiçoamento das interações sociais entre nossas sociedades. Apesar de constituírem a maioria da população brasileira e de serem muito atuantes em diversos ramos da economia, as mulheres ainda estão sub-representadas em cargos de comando em empresas e no comércio internacional, como sabemos. Promover suas perspectivas em questões empresariais é um complemento importante e necessário para as discussões de negócios no BRICS (Araújo, 2020c).

As marcas de rupturas no governo Bolsonaro refletem uma acentuada disputa sobre o que são gênero e direitos humanos no Brasil e como esses elementos estão expressos na PEB e na participação do país em fóruns internacionais. O Estado brasileiro, anteriormente reconhecido como “[...] um empreendedor de normas como igualdade civil em uniões homoafetivas e defesa da multiculturalidade” (Lopes, 2021Lopes, Dawisson Belém. (2021), “Dois Anos de Uma Política Externa Rudimentar”, in Avritzer, Leonardo; Kerche, Fabio; Marona, Marjorie (orgs.), Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política. Belo Horizonte, Autêntica, pp. 229-240.:230), uniu-se a líderes de Hungria e Polônia, além do próprio Trump, para formar a “Parceria pelas Famílias”. Em outubro de 2020, junto a outros 31 Estados, o Brasil assinou outra declaração “[...] conhecida como Consenso de Genebra, que tutela os direitos reprodutivos da mulher. O país mudou seus votos sobre temas de gênero no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas [....]” (Lopes, 2021Lopes, Dawisson Belém. (2021), “Dois Anos de Uma Política Externa Rudimentar”, in Avritzer, Leonardo; Kerche, Fabio; Marona, Marjorie (orgs.), Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política. Belo Horizonte, Autêntica, pp. 229-240.:230).

De acordo com os discursos analisados, podemos inferir que a “nova PEB” tem como escopo “[...] reconquistar os conceitos que estavam manipulados por um sistema corrupto, como o conceito de justiça, o conceito de direitos humanos, o conceito de igualdade” (tradução nossa) (Araújo, 2020a). No mesmo discurso, Ernesto Araújo continua:

Abro um parêntese: me parece que esse é o grande mecanismo, ou um dos principais mecanismos, dos projetos totalitários que tentaram confirmar seu poder sobre a nossa região e nossos países. Um mecanismo de sequestrar e perverter, pegar conceitos, ideais que são nobres, e manipulá-los para que se transformem em instrumentos de poder. Direitos humanos, por exemplo. [...] E, sempre que possível, combater a falsidade do politicamente correto, que tem a ver com esse sistema de capturar bons conceitos, conceitos nobres, como justiça, como direitos humanos, e transformá-los em alguma outra coisa. É uma proposta que faço, de estudo, que o politicamente correto do Primeiro Mundo é o primo rico do ‘socialismo do século XXI’ latino-americano (tradução nossa) (Araújo, 2020a).

Desse modo, sendo a PEB uma política pública, acreditamos que os dados até aqui discutidos revelam rupturas no modo como as políticas de gênero e de direitos humanos estão sendo reposicionadas – pelo populismo bolsonarista, pelo neoconservadorismo e pelo neoliberalismo – no governo Bolsonaro. Nesse sentido, concordamos com Biroli (2019)Biroli, Flávia. (2019), A Reação contra o Gênero e a Democracia. Nueva Sociedad, v. 23, n. 65, pp. 76-87., porque o atual conservadorismo não inova no campo político brasileiro ao se opor à igualdade de direitos e às dissidências sexuais. O que pode ser considerado original nesse neoconservadorismo são as estratégias de mobilização que reforçam tendências iliberais e buscam legitimar condutas autoritárias e as desigualdades sociais. Além disso, reforça sua identidade pública a partir da construção de um antagonismo com os movimentos sociais que se fizeram presentes enquanto atores políticos expressivos nas últimas décadas no cenário nacional e internacional.

Considerações finais

Assumindo os riscos que envolvem realizar uma análise de um campo em constante mudança, esta pesquisa buscou identificar como as questões de gênero e sexualidade estão presentes na PEB do governo Bolsonaro entre janeiro de 2019 e março de 2021. Para isso, além de uma ampla revisão de literatura tomamos como subsídio os discursos oficiais do Presidente Jair Bolsonaro e do Chanceler Ernesto Araújo disponíveis no site do MRE.

É relevante frisar que os dados coletados evidenciam algumas das indicações que outras pesquisas na área têm apontado sobre as profundas rupturas na política nacional e externa brasileira. O que destacamos, em primeiro plano, é o alinhamento cada vez mais explícito entre política interna e política externa. Os discursos analisados de ambos os agentes apontam para uma simbiose entre a sequência discursiva direcionada para as bases eleitorais e aquela endereçada a fóruns internacionais tradicionais, como a abertura da Assembleia das Nações Unidas ou as cúpulas do Mercosul. Desde o final do século XIX, nos acostumamos a identificar as contradições e omissões entre a PEB e as políticas de governos. Na política bolsonarista há um esforço para nivelar as ações e os discursos dirigidos ao sistema internacional com os interesses de um segmento particular da sociedade brasileira, especialmente aquele que elegeu Jair Bolsonaro no pleito eleitoral de 2018.

Uma segunda mudança que entendemos relevante são as disputas sobre os significados de conceitos caros à política e à democracia brasileira, bem como ao sistema internacional. Nesse sentido, as disputas discursivas sobre termos como direitos humanos, mulheres, gênero e família que marcam este cenário não são algo novo. Contudo, as articulações de diversos atores transnacionais e a construção desses conceitos a partir de uma perspectiva neoconservadora e iliberal apontam para indícios de ineditismo.

As ações diretas que configuram exemplos de ruptura e descontinuidade na PEB do governo Bolsonaro são amplamente conhecidas: mudança de postura comercial com a China; abandono da equidistância no conflito árabe-palestino; menosprezo pelas relações regionais com países do Sul global (BRICS e Mercosul); negação dos princípios de direitos humanos na ONU; antipolítica de gênero como diretriz para a diplomacia brasileira; mudança de votos sobre temas relacionados a gênero na ONU; negação da ciência, entre outros. Do ponto de vista estrito, o corpus textual analisado indica a defesa de uma concepção muito particular e restritiva de direitos humanos. Entendemos que há uma inflexão na linguagem para modalizar o sentido de direitos humanos a partir de um monismo ético, de matriz cristã, conservadora e iliberal. Nesse caso, há uma negação e um ataque aos consensos mínimos da ONU, sem ignorar todas as críticas já identificadas em relação aos problemas epistêmicos, ontológicos e políticos sobre tais consensos. Esses exemplos são demonstrações de uma prática política fundada no conjunto das ideias e das representações que estão presentes nos dados que observamos a partir do corpus analisado e das lentes teóricas empregadas.

O corpus analisado demonstra como os discursos de Bolsonaro e Araújo são representativos de uma reação que ocorre em distintos países e nos fóruns internacionais à “proliferação de sexualidades e gênero” (Biroli, Machado e Vaggione, 2020), de redefinição de direitos e de políticas públicas, quando movimentos sociais, como os feministas e LGBTQIA+, passaram a ser reconhecidos como agentes políticos no ambiente transnacional capazes de promover impactos no âmbito doméstico e internacional. Não ocorreu apenas um afastamento dos movimentos sociais do governo Bolsonaro, mas também o ingresso e avanço de novos agentes com pautas neoconservadoras (Biroli e Quintela, 2021Biroli, Flávia; Quintela, Débora Francolin. (2021), “Mulheres e Direitos Humanos sob a Ideologia da ‘Defesa da Família’”, in Avritzer, Leonardo; Kerche, Fabio; Marona, Marjorie (orgs.), Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política. Belo Horizonte, Autêntica, pp. 229-240.; Campos, 2021). O reposicionamento discursivo para as audiências doméstica e internacional e suas consequências políticas mais amplas são empiricamente demonstrados pela frequência de termos como Deus e família, como analisamos no decorrer do texto. Esse alinhamento produziu benefícios eleitorais para Bolsonaro, pois se comunicou com suas bases a partir de uma ideia de “guerra cultural” e resultou, de acordo com Lopes (2021)Lopes, Dawisson Belém. (2021), “Dois Anos de Uma Política Externa Rudimentar”, in Avritzer, Leonardo; Kerche, Fabio; Marona, Marjorie (orgs.), Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e Degradação Política. Belo Horizonte, Autêntica, pp. 229-240., em uma instrumentalização da PEB sem precedentes.

Ao concluir este trabalho nos perguntamos sobre qual seria a maior ruptura promovida pelo governo Bolsonaro na PEB em termos de políticas de gênero. Entendemos que já se consolidou um relevante distanciamento frente a perspectiva que existia até então na história republicana da PEB, que era pautada pelo pluralismo ético. A “nova PEB” apostou na promoção de uma ausência de inteligibilidade de conceitos relativamente estáveis, bem como no desalinhamento com os consensos mínimos em direitos humanos, em âmbito doméstico e transnacional. O reforço do signo família – em uma perspectiva excludente, já que necessariamente cis-hetero-branca – deslocou as discussões das desigualdades sociais, raciais e de gênero para o campo do essencialismo biológico e da prática política de oposição e desumanização daqueles(as) que subvertem expectativas e desafiam estruturas de dominação social.

Torna-se um desafio ao tempo presente construir estratégias de análises capazes de compreender os modos como a política interna e externa têm gerido as questões concernentes aos direitos humanos e às dissidências sexuais e de gênero. Entendemos que um dos limites desse trabalho é o foco prioritário nos discursos oficiais proferidos por Bolsonaro e Araújo. Nosso esforço foi desenvolvido no sentido de conectar as sequências discursivas das duas lideranças ao processo político de construção da “nova PEB” e compreender sua afinidade com uma identidade política de caráter populista e fundamentalista. Ainda que não seja adequado realizar uma separação entre discurso e prática política, pesquisas futuras poderão, a partir dos elementos aqui sistematizados, dedicar-se diretamente à compreensão das mudanças institucionais na atuação política internacional durante este mesmo período de governo. Este texto é, portanto, uma contribuição ao campo dos estudos sobre a política brasileira no governo Bolsonaro elaborada a partir da análise de conteúdo de seus discursos.

Compreender a Política Externa Brasileira nesse período não é um desafio menor, posto que a aliança entre o neoconservadorismo de extrema direita e o neoliberalismo, nos termos como aqui já elaboramos, tem sido a tônica da postura dos agentes cujos discursos foram analisados nesta pesquisa. Essa prática se afasta das linguagens e condutas esperadas no cenário público e democrático na medida em que produz lógicas de guerra, se apoia em antagonismos excludentes e corrói o secularismo nas instituições políticas no país; aspectos que, se não inviabilizam por completo, no mínimo reduzem drasticamente as possibilidades de construção coletiva cívica da democracia e de respeito aos direitos humanos. Nesse sentido, reconhecemos que as agendas de gênero e direitos humanos não são temas periféricos para a compreensão da “nova PEB” ou mesmo das especificidades do Governo Bolsonaro. Parece, portanto, que as rupturas instauradas na política nacional e externa, acentuadas a partir de 2019, contribuem para o esfacelamento do espaço público e da organização política democrática como postulada pela Constituição Federal de 1988, em âmbito doméstico, e pelo regime internacional de direitos humanos.

https://minio.scielo.br/documentstore/1678-4588/GBMF6cWHmQwzDF4qzpq7Qmd/cc7e64fcface03962ec578288bbc8480bcd36277.pdf

*Agradecemos às contribuições das discussões realizadas no âmbito do Grupo de Pesquisa Interseccionalidades e Decolonialidade nas Relações Internacionais (INDERI/FURG/CNPq). Uma versão preliminar do artigo foi apresentada e publicada nos Anais eletrônicos do 12º Seminário Internacional Fazendo Gênero, em 2021.

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  • Saraiva, Miriam Gomes. (2011), “Brazilian Foreign Policy: Causal Beliefs in Formulation and Pragmatism in Practice”, in Gardini, Gian Luca; Lambert, Peter (eds.), Latin American Foreign Policies: Between Ideology and Pragmatism. New York, Palgrave Macmillan, pp. 53-66.
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  • Silva, Danielle Costa da; Hernández, Lorena Granja. (2020), “Aplicação Metodológica da Análise de Conteúdo em Pesquisas de Análise de Política Externa”. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 33, pp. 1-48. DOI: < https://doi.org/10.1590/0103-3352.2020.33.218584
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  • Souza, André Luiz Coelho Faria de; Santos, Vinícius, Silva dos. (2014), “A Análise da Política Externa do Governo Dilma Rousseff na Perspectiva dos Pronunciamentos Oficiais na ONU”. Mural Internacional, v. 5, n. 2, pp. 128-138. DOI: < https://doi.org/10.12957/rmi.2014.10760
    » https://doi.org/10.12957/rmi.2014.10760

Notas

  • 1
    . A técnica de AC vem sendo utilizada por pesquisas na área de PEB. Ver Silva; Hernández (2020)Silva, Danielle Costa da; Hernández, Lorena Granja. (2020), “Aplicação Metodológica da Análise de Conteúdo em Pesquisas de Análise de Política Externa”. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 33, pp. 1-48. DOI: < https://doi.org/10.1590/0103-3352.2020.33.218584.
    https://doi.org/10.1590/0103-3352.2020.3...
    .
  • 2
    . SOBEK é um software livre de mineração de texto desenvolvido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Com essa ferramenta foi possível extrair os termos recorrentes do corpus textual analisado e representá-lo na forma de um grafo.
  • 3
    . O termo ideologia, tal como utilizado nas narrativas dos governos Temer e Bolsonaro, se refere a noção de que os governos de direita não adotariam as mesmas premissas sobre como a política internacional deveria ser conduzida quando comparadas às dos seus antagonistas, os governos de esquerda. O uso simplório desse termo tem por objetivo tornar a sua compreensão essencialmente vaga e imprecisa, para um público leigo. Não pretendemos, nesse trabalho, aprofundar o problema da falta de apropriação teórica do conceito de ideologia em tais narrativas, ou mesmo sobre as tensões entre ideologia e pragmatismo na Política Externa (Saraiva, Costa Silva, 2019; Gardini, Lambert, 2011). Nos interessa aqui destacar que essa estratégia de “ideologização” da PEB não é uma experiência inovadora.
  • 4
    . De acordo com Saraiva (2011Saraiva, Miriam Gomes. (2011), “Brazilian Foreign Policy: Causal Beliefs in Formulation and Pragmatism in Practice”, in Gardini, Gian Luca; Lambert, Peter (eds.), Latin American Foreign Policies: Between Ideology and Pragmatism. New York, Palgrave Macmillan, pp. 53-66.: 54), os princípios que marcam a continuidade do Itamaraty e a estabilidade da PEB são: a importância da autonomia, a ação universalista e a ideia de que o Brasil um dia poderá ocupar um lugar de maior destaque na política internaciontal (“the destiny of grandeur”).
  • 5
    . Os índices lexicais “globalismo” e “globalista”, da forma como usados por Bolsonaro e Araújo, possuem uma conotação depreciativa dos processos de globalização e do multilateralismo contemporâneos. Araújo (2017: 353) toma o globalismo por padrões liberais antinacionais e antitradicionais na vida social e do mercado globalizado sem fronteiras na vida econômica. De acordo com Magalhães (2022Magalhães, Diego Trindade. (2022), “Efeitos do Antiglobalismo Brasileiro sobre as Relações Brasil-China (2018-2020)”. Revista de Ciências Humanas, v. 1, n. 22, pp. 119-138. Disponível em: < https://periodicos.ufv.br/RCH/article/view/13748.
    https://periodicos.ufv.br/RCH/article/vi...
    : 122), o globalismo de Bolsonaro, Araújo, Olavo de Carvalho e outros se refere a um plano de domínio mundial e a constituição de um governo mundial, o que implica a ruína dos Estados-nação e dos valores nacionais e civilizacionais contidos nestes.
  • 6
    . A expressão “colocar em colchetes” é um jargão diplomático usado para identificar a falta de consenso ou a oposição dos atores internacionais nas negociações sobre textos normativos, recomendações ou comunicados no sistema da ONU.
  • 7

Disponibilidade de dados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2022
  • Revisado
    27 Out 2022
  • Aceito
    12 Dez 2022
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