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CHICO BUARQUE NA ITÁLIA: UMA ANÁLISE DA TRADUÇÃO DE ASPECTOS SOCIOCULTURAIS EM “LA TV”

CHICO BUARQUE IN ITALY: AN ANALYSIS OF THE TRANSLATION FF SOCIOCULTURAL ASPECTS IN “LA TV”

Resumo

O objetivo deste artigo é identificar a maneira pela qual Sergio Bardotti, letrista e tradutor italiano, lidou com aspectos socioculturais em sua versão italiana da canção “A televisão” (1967), composta por Chico Buarque de Hollanda. Preliminar à análise linguística, apresentamos um sucinto levantamento das circunstâncias de produção e de recepção do álbum Chico Buarque de Hollanda na Itália (1968), no qual “La tv” (1968) foi gravada. Com isso, pretende-se brevemente contextualizar nosso objeto de estudo, demonstrando certos fatores pragmáticos que permeavam o processo tradutório, além da forma como essas traduções foram recebidas pelo público italiano. Em relação à perspectiva teórica adotada, tomamos como base o modelo hermenêutico de tradução proposto por Lawrence Venuti (2010; 2013; 2019a, 2019c), o qual entende a tradução como um ato interpretativo a partir de conceitos provenientes da semiótica peirceana e do pós-estruturalismo derridiano. Assim, por meio do enfoque em traços socioculturais inscritos no texto de partida, espera-se propiciar uma discussão que não apenas identifique a interpretação do próprio tradutor agindo sobre o texto, mas que reconheça como ela pode suscitar escolhas que acabam por simplificar, aculturar e esvaziar os valores e os sentidos provenientes de determinado produto cultural.

Palavras-chave
Contra-instrumentalismo; Análise sociocultural; Tradu- ção de Chico Buarque; Tradução italiana; Tradução de canção

Abstract

This paper attempts to identify how Sergio Bardotti, Italian lyricist and translator, deals with sociocultural aspects in his Italian translation of the song “A televisão” (1967), composed by the Brazilian singer Chico Buarque de Hollanda. At first, we present an overview of the circumstances surrounding the production and the reception of the album Chico Buarque de Hollanda na Itália (1968), in which “La tv” (1968) was recorded. In doing so, we intend to briefly contextualize the object of study by demonstrating certain pragmatic factors that permeated the translation process and how the Italian public received those translations. With regard to theorical approach, the analysis is based on the hermeneutic model of translation proposed by Lawrence Venuti (2010; 2013; 2019a, 2019c), who understands translation as an interpretative act according to Peircean semiotics and Derridean poststructuralism. Therefore, focusing on sociocultural traces inscribed on the source text, the aim is to provoke a discussion that not only identifies the translator’s interpretation acting on the text, but also recognizes how those actions can give rise to choices that simplify, acculturate and erase meanings and values from a cultural product.

Keywords
Contra Instrumentalism; Sociocultural analysis; Translation of Chico Buarque; Italian translation; Song translation

Introdução

Ao tomar a canção como objeto de análise, partimos do preceito de que lidamos com um texto híbrido, cuja linearidade contínua da melodia se entrelaça à linearidade articulada do texto (Tatit, 1996Tatit, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.). Para além dessa relação, diversas variáveis extratextuais somam-se à multiplicidade de fatores que atravessam o objeto-canção e agem sobre os sentidos produzidos a partir de sua escuta e recepção. Dentre esses variados fatores, destaca-se o fato de que sua realização difere da leitura de um gênero textual não-vocalizado — visto que a canção só ocorre, de fato, por meio de uma performance que a vocaliza e que se renova a cada ocorrência, a depender daquele que a performa, do contexto sociocultural em que se situa e do público que a recebe. Portanto, diante dos variados fatores que permeiam desde sua produção e divulgação até seu consumo e recepção, ao analisar a tradução desse tipo de produto cultural, faz-se necessário uma abordagem interdisciplinar a fim de uma investigação não-reducionista do objeto abordado.

No entanto, ainda que o trabalho aqui apresentado derive de uma pesquisa que reconheça e leve em conta tais fatores extralinguísticos, tanto da área da música quanto do contexto sócio-histórico, limitamo-nos a apresentar apenas uma breve contextualização do cenário mercadológico de produção e de recepção da tradução analisada — “La tv” (1968), originalmente composta por Chico Buarque e traduzida por Sergio Bardotti. Em seguida, apresentaremos o cerne da teoria de Lawrence Venuti (2010Venuti, Lawrence. “Genealogies of translation theory: Jerome”. Boundary 2, 37(3), p. 5-28, 2010. DOI: https://doi.org/10.1215/01903659-2010-014
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; 2013Venuti, Lawrence. Translation changes everything: theory and practice. Abingdon: Routledge, 2013.; 2019aVenuti, Lawrence. Contra instrumentalism: a translation polemic. Lincoln: University of Nebraska Press, 2019a., 2019c)Venuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf.
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, o qual sugere uma análise hermenêutica da tradução que compreenda o ato tradutório com base no pós-estruturalismo e na semiótica.

Assim, por meio desta breve investigação à luz da teoria venutiana, objetivamos identificar as maneiras pelas quais Sergio Bardotti lidou com aspectos socioculturais brasileiros em sua versão para o público italiano.

Contexto de produção e recepção das traduções

A tradução aqui analisada, “La tv” (1968), originalmente intitulada “A televisão” (1967), pertence ao álbum italiano Chico Buarque de Hollanda na Italia (1968)1 1 Chico Buarque de Hollanda na Italia (1968), no qual a palavra “Itália” é grafada sem acento agudo, como na língua italiana, foi o título do álbum lançado no Brasil pela gravadora RGE. Já o álbum lançado originalmente na Itália pela gravadora RCA, com exatamente as mesmas gravações, é intitulado apenas Chico Buarque de Hollanda. Optamos por utilizar o título divulgado no Brasil para que não se confunda com o primeiro álbum brasileiro da carreira do cantor, cujo título é homônimo ao álbum vendido na Itália. . Sua produção, assim como a produção do disco Per un pugno di samba (1970)Per Un Pugno di samba. Compositor e intérprete: Chico Buarque de Hollanda. Arranjos: Ennio Morricone. Roma: RCA Italiana, 1970. 1 disco vinil (40 min)., foi realizada durante o autoexílio de Chico, período em que morou por dois anos na Itália devido ao endurecimento da censura e da perseguição do regime militar aos artistas brasileiros. Grande parte dessas traduções são de autoria de Sergio Bardotti, letrista italiano e amigo íntimo de Chico.

Para além disso, há certos fatores de destaque no contexto de produção dessas traduções; como o fato de que Chico Buarque, além de compositor das canções originais, também desempenhou o papel de performer das traduções e participou diretamente do processo de tradução, compartilhando com o tradutor suas opiniões e sugestões. Já em relação ao escopo que motivou a tradução das canções, tanto Chico quanto Bardotti afirmam que o intuito era estritamente comercial, especialmente porque buscavam um sucesso de vendas que pudesse manter o artista exilado, junto a sua esposa e filha, no país europeu. Assim, Bardotti relata que,

[...] no fim das contas, o motivo é sempre industrial, comercial: é preciso vender, ganhar alguma coisa. [...] trata-se de uma ambição: conseguir vender, tornar um produto não tanto comercial no mais comercializável possível (Bardotti, 2014 apud La Via, 2014La via, Stefano. “Una Lezione con Sergio Bardotti”. Entrevistado: Sergio Bardotti. In: La Via, Stefano. Chico Buarque: canzoni. Pavia: Pavia University Press, 2014. p. 503-522., p. 506, tradução nossa)2 2 No original: “[...] la ragione, alla fine, è sempre industriale, commerciale: bisogna vendere, ricavarne qualcosa.[...] si trata di una speranza: quella di vendere, rendere il prodotto non tanto commerciale quanto più commerciabile.” .

Todavia, apesar do objetivo proposto, Chico assume que a recepção das traduções pelo público italiano não superou as expectativas de sua produção. Em suas palavras:

Comecei a tentar me virar por lá, fazer shows, mas a barra era pesada. A música brasileira não era o que hoje é lá fora. Ninguém se interessava. Os shows eram muito vagabundos, os empresários davam o cano, era um horror

(Zappa, 2016Zappa, Regina. Chico Buarque para todos. Rio de Janeiro: Ímã editorial, 2016., p. 103).

Diante disso, lidamos com a análise de um produto que, na visão de seus autores, obteve um fracasso de público.

Modelo hermenêutico de tradução

Venuti (2010Venuti, Lawrence. “Genealogies of translation theory: Jerome”. Boundary 2, 37(3), p. 5-28, 2010. DOI: https://doi.org/10.1215/01903659-2010-014
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; 2013Venuti, Lawrence. Translation changes everything: theory and practice. Abingdon: Routledge, 2013.; 2019aVenuti, Lawrence. Contra instrumentalism: a translation polemic. Lincoln: University of Nebraska Press, 2019a., 2019c)Venuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf.
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elabora seu posicionamento tomando como base a possibilidade de existência de modelos de tradução, cujo funcionamento se assemelha à noção de episteme definida por Michel Foucault em L’Archéologie du Savoir (1969) ou Arqueologia do saber (2008). Para Foucault (2008, p. 214)Foucault, Michel. A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008., uma episteme seria “o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados”. Portanto, de maneira semelhante, um modelo de tradução representaria um conjunto de regularidades discursivas sobre a tradução, composto por parâmetros e procedimentos que delimitam a maneira pela qual se entende a tradução, por conceitos teóricos e estratégias práticas que guiam o fazer tradutório e, consequentemente, regem os discursos sobre tradução em diversas áreas, campos e disciplinas (Venuti, 2019aVenuti, Lawrence. Contra instrumentalism: a translation polemic. Lincoln: University of Nebraska Press, 2019a.).

Contudo, diferentemente da duração das epistemes definidas por Foucault — divididas em conjuntos de práticas discursivas vigentes em períodos menores que dois séculos —, Venuti propõe que os modelos de tradução seriam apenas dois, o instrumental e o hermenêutico, e suas permanências ultrapassariam os períodos definidos por Foucault. Sendo assim, as formações discursivas dos modelos de tradução não desaparecem; na verdade, elas coexistem. Enquanto o modelo instrumental ocorre em declarações sobre tradução desde a antiguidade até a atualidade, o modelo hermenêutico, embora mais recente, coexiste com o modelo instrumental desde o fim do séc. XVIII até a atualidade (Venuti, 2019aVenuti, Lawrence. Contra instrumentalism: a translation polemic. Lincoln: University of Nebraska Press, 2019a.). A seguir, vejamos as características de cada um desses modelos:

O modelo instrumental representa um conjunto de formações discursivas que frequentemente estão presumidas em ideias presentes nos mais diversos âmbitos sociais — tanto em provérbios de culturas populares quanto em discursos elitistas, dentro e fora da academia, nas instituições editoriais e no jornalismo (Venuti, 2019aVenuti, Lawrence. Contra instrumentalism: a translation polemic. Lincoln: University of Nebraska Press, 2019a.). Esse modelo é tão enraizado que possibilita e restringe (Venuti, 2019cVenuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf.
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) a maneira pela qual geralmente se entende a tradução e, embora se transmute nas mais variadas formas de compreensão do fazer tradutório, tem como discurso central a noção de que o tradutor seria responsável por reproduzir ou transferir “uma forma, [...] um significado ou [...] um efeito invariante que está contido no texto fonte ou é causado por ele” (Venuti, 2019aVenuti, Lawrence. Contra instrumentalism: a translation polemic. Lincoln: University of Nebraska Press, 2019a., p. 1, tradução nossa)3 3 No original: “[…] translation as the reproduction or transfer of an invariant that is contained in or caused by the source text, an invariant form, meaning, or effect.” .

Em contrapartida, o modelo hermenêutico tem sua origem nas discussões modernas de pensadores como Schleiermacher e compreende a tradução como ato interpretativo. Venuti, entretanto, propõe que nos afastemos dessa hermenêutica influenciada pela episteme moderna e passemos a nos guiar por uma proposta que represente uma mudança epistemológica pós-moderna, baseada no pós-estruturalismo derridiano e na abordagem semiótica. Dessa forma, sugere que “precisamos adotar um modelo hermenêutico que veja a tradução como ato interpretativo que varia a forma, o sentido e o efeito do material fonte de acordo com as condições — linguísticas, culturais e sociais — que o tradutor seleciona para estruturar a interpretação” (Venuti, 2019aVenuti, Lawrence. Contra instrumentalism: a translation polemic. Lincoln: University of Nebraska Press, 2019a., p. 136, tradução nossa)4 4 No original: “[...] we need to adopt a hermeneutic model in which translation is seen as an interpretive act that varies the form, meaning, and effect of the source material according to the conditions—linguistic, cultural, and social— that the translator selects to frame the interpretation.” .

De maneira resumida, Venuti estrutura sua proposta hermenêutica a partir de dois conceitos: o de inscrição — proveniente do pós-estruturalismo de Jacques Derrida — e o de interpretante — derivado da abordagem semiótica de Charles Sanders Peirce e ampliada por Umberto Eco5 5 Sobre os conceitos semióticos utilizados, especialmente sobre a noção de “interpretante”, Venuti sugere a consulta dos seguintes trabalhos: The Writings of Charles S. Peirce: A Chronological Edition (Peirce, 1984), A Theory of Semiotics (Eco, 1976a) e Peirce’s Notion of Interpretant (Eco, 1976b). . Para o autor:

[...] a tradução recontextualiza o texto fonte na língua e na cultura alvo ao aplicar um conjunto de interpretantes [...] que inscrevem uma interpretação. Com base no conceito de inscrição de Jacques Derrida, [Venuti] entend[e] que o texto fonte sempre chega ao processo tradutório como um texto já interpretado, marcado por um discurso cultural, e submetido a outra inscrição, talvez divergente, quando traduzido. Com base no conceito de interpretante de Charles Peirce, [Venuti] entend[e] o processo tradutório como a aplicação de mediadores formais e temáticos que realizam a inscrição, transformando o texto fonte no texto traduzido

(Venuti, 2012Venuti, Lawrence. Translation changes everything: theory and practice. Abingdon: Routledge, 2013., p. 495-499 apud Venuti, 2013Venuti, Lawrence. Translation changes everything: theory and practice. Abingdon: Routledge, 2013., p. 4, tradução nossa)6 6 No original: “[…] a translation recontextualizes the source text in the translating language and culture by applying a set of formal and thematic interpretants to inscribe an interpretation. Following Jacques Derrida’s concept of inscription, I saw the source text not only as coming to the translation process as always already interpreted, traced with a cultural discourse, but also as undergoing a further, perhaps divergent inscription when translated; following Charles Peirce’s concept of interpretant, I saw the translation process as the application of formal and thematic mediators that perform the inscription, turning the source into the translated text.” .

No que tange a semiótica peirceana, o conceito de interpretante seria, resumidamente, a noção de um signo interpretado. A princípio, parte-se do pressuposto de que um signo pode ser qualquer coisa que represente outra coisa — ou seja, que represente o “objeto do signo”, o qual também pode ser de qualquer natureza —, desde uma palavra, um livro, até um grito, um vídeo etc. Quando esse signo é identificado por alguém, ele produz um efeito interpretativo na mente desse receptor e se transforma em um novo signo, denominado interpretante do signo (Santaella, 2018Santaella, Maria Lúcia. “Bases teóricas para a aplicação”. In: Santaella, Maria Lúcia (Ed.). Semiótica Aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2018. p. 1-28.). Em suma, basta compreender que um “objeto”, que pode ser qualquer coisa, é representado por um signo que, quando identificado por uma pessoa, é interpretado e se transforma em um novo signo: o interpretante.

Ressaltamos ainda que esse produto do processo interpretativo está sujeito a interferências culturais e sociais, variando a depender do contexto no qual o sujeito está inserido. Além disso, embora os interpretantes possam ser um único signo mental, eles também podem tomar a forma de um discurso complexo — a exemplo de “todo o silogismo deduzido a partir de premissas como /todo homem é mortal/ ou /Sócrates é um homem/” (Eco, 1976aEco, Umberto. “Theory of Codes – The interpretant”. In: Eco, Umberto. (Ed.). A Theory of Semiotics. London: Indiana University Press, 1976a. p. 68-72., p. 70, tradução nossa)7 7 No original: “[...] the entire syllogism deduced from such premises as /all men are mortal/ or /Socrates is a man/.” .

Assim, filiado à proposta pós-estruturalista, Venuti entende que o texto traduzido não é portador dos sentidos de seu original, mas um novo texto no qual o tradutor, situado em um contexto sociocultural específico, insere interpretantes produzidos a partir de um processo interpretativo dos signos que constituem o texto partida. Da mesma forma, posteriormente, esse texto traduzido será interpretado por outros leitores, que produzirão seus próprios interpretantes em “uma infinita série de representações” (Peirce, 1903Peirce, Charles Sanders. The Writings of Charles Sanders Peirce: A Chronological Edition, 1867-1871. Edição de Edward C. Moore. Bloomington: Indiana University Press, 1984., p. 1553 apud Eco, 1976bEco, Umberto. “Peirce’s Notion of Interpretant”. MLN, 91(6), p. 1457-1472, 1976b. DOI: https://doi.org/10.2307/2907146
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, p. 1464, tradução nossa)8 8 No original: “‘an endless series of representations’.” , sujeito a um processo infinito de semiose que se renova a cada leitura.

A partir disso, Venuti propõe quatro tipos de classificação para os signos interpretados — dominantes ou subordinados, formais ou temáticos —, entendendo que todo tipo de interpretante deriva de materiais9 9 Por materiais, Venuti entende: “[...] formas e práticas culturais: padrões de uso na língua traduzida, arcaicas e atuais, padrão e não-padrão; tradições e convenções de produção do texto original, como estilos, gêneros e discursos; tradições e convenções da crítica e da prática da tradução, como conceitos teóricos e estratégias práticas; padrões de recepção, históricos e atuais, como traduções antecedentes dos textos do autor do TF e de outros autores da LF; e valores, crenças e representações que possuem força ideológica (Venuti, 2019c, p. 11, tradução nossa).” , 10 10 No original: “[…] cultural forms and practices: patterns of usage in the translating language, past and present, standard and nonstandard; traditions and conventions of producing original compositions, including styles, genres, and discourses; traditions and conventions of translation commentary and practice, including theoretical concepts and practical strategies; patterns of reception, historical as well as recent, including previous translations from the work of the source-text author as well as other source-language authors; and values, beliefs, and representations that have acquired ideological force.” preexistentes na cultura de chegada. A seguir, vejamos uma breve explicação dessa divisão:

Quando o interpretante aplicado deriva de materiais prestigiados, validados por instituições sociais e ideologias dominantes, ele será dominante e, consequentemente, canônico. Esse tipo de interpretação, entretanto, acaba aculturando e domesticando o texto de partida a tudo que é mais familiar ao contexto de chegada e, embora tenha a capacidade de fazer com que a tradução alcance uma maior circulação, sua inscrição pode ser antiética, uma vez que mantém o status quo do contexto de chegada sem que traços da diferença sejam registrados (Venuti, 2019cVenuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf.
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).

Em contrapartida, os interpretantes subordinados derivam de materiais pouco validados pelas instituições sociais — os quais podem ser tanto obsoletos, gerando interpretantes ultrapassados, quanto inovadores, introduzindo usos que ainda não atingiram ampla aceitação da comunidade linguística. Escolhas subordinadas também costumam inscrever aspectos estrangeirizados, menos familiares ao público-alvo, e assim podem acabar sendo estigmatizados por influência de ideologias dominantes e potencialmente limitar a circulação da tradução. Todavia, vale destacar que a inscrição desse tipo de interpretante é entendida por Venuti como um ato ético dentro da tradução, visto que questiona a dominância de formas e práticas canônicas sobre textos e culturas estrangeiras (Venuti, 2019cVenuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf.
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).

Já os interpretantes formais são relacionados a tentativas de equivalência, incluindo, por exemplo, a aproximação semântica com base em definições cristalizadas por dicionários, ou também a aproximação estilística, que guia as escolhas tradutórias a fim de ser “fiel” a determinado estilo (Venuti, 2013Venuti, Lawrence. Translation changes everything: theory and practice. Abingdon: Routledge, 2013.). Venuti define, pois, que os interpretantes formais são estruturas — isto é, são guiados por aspectos estruturais da língua, como convenções gramaticais, estilísticas e definições dicionarizadas. Desse modo, até mesmo as tentativas de se traduzir “fielmente” por meio de aproximações semânticas são derivadas de escolhas interpretativas inscritas na tradução; logo, a “tradução pode manter uma correspondência semântica, mas é claro que essa relação com o texto fonte não pode ser confundida com uma transmissão inalterada de seu tema” (Venuti, 2019aVenuti, Lawrence. Contra instrumentalism: a translation polemic. Lincoln: University of Nebraska Press, 2019a., p. 44, tradução nossa)11 11 No original: “Translation can maintain a semantic correspondence, but surely this relation to the source text shouldn’t be confused with giving back its theme unaltered.” .

Por fim, temos os interpretantes temáticos, que adentram o plano ideológico ao se relacionarem a níveis mais amplos e subjetivos das convenções. Para Venuti (2013)Venuti, Lawrence. Translation changes everything: theory and practice. Abingdon: Routledge, 2013., essa categoria se refere a códigos, visto que representam algum discurso específico influenciado por crenças, representações e valores afiliados a entidades e grupos sociais específicos. Somado a isso, a função ou a finalidade que se objetiva na tradução também pode ser entendida como uma variável influente na aplicação de interpretantes temáticos (Venuti, 2019cVenuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf.
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).

Como desdobramento, Venuti enfim destaca que o uso desses conceitos não se limita apenas à tentativa de explicar as lógicas de funcionamento do ato tradutório, pois espera que também sirvam como “categorias conceituais e ferramentas analíticas” (Venuti, 2010Venuti, Lawrence. “Genealogies of translation theory: Jerome”. Boundary 2, 37(3), p. 5-28, 2010. DOI: https://doi.org/10.1215/01903659-2010-014
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, p. 24) que podem ser utilizadas na prática, fornecendo uma metodologia que auxilie a análise crítica de traduções — a partir da qual nos orientaremos ao longo da análise a seguir.

Análise da Canção

Tabela 1
Letra original de “A televisão” e tradução italiana de Sérgio Bardotti

Em “A televisão” (1967), a narrativa é construída a partir da elaboração de dois personagens: o homem e a lua. Ao longo da letra, a lua — símbolo da natureza — tenta seduzir o homem, que a ignora e progressivamente se entristece até finalmente ceder aos encantos da televisão — símbolo tecnológico. A tristeza do personagem, contudo, é motivada por uma razão bastante específica: o fim dos encontros sociais e, consequentemente, a impossibilidade de expressão cultural por meio da música e da dança. Esse fim, metaforicamente representado pelo silenciamento dos elementos musicais, tem como causa o advento da televisão e o consumo dos produtos de massa por ela vendidos. Dessa forma, Chico elabora um tensionamento entre cultura popular versus cultura de massa.

No que diz respeito aos elementos que elaboram o cenário citado, inicialmente destacamos vocábulos que podem ser relacionados ao campo associativo12 12 Vide Lara (2006, p. 181-211). da música e festividades, sendo eles: “roda” (5 e 7); “tamborim” (18); “escola” (20); “batuque” (23) e “samba” (32). Em todos os casos, esses vocábulos são apresentados de maneira nostálgica, pois retrata-se a falta dos elementos de outrora, que não estão mais presentes.

Em relação à “roda” — que pode ser entendida tanto como “roda de samba” ou “roda de conversa” —, afirma-se que esse elemento personificado mudou: agora ela é triste e muda, em volta da televisão. Assim, o silenciamento, o fim do diálogo da “roda de conversa”, ou da música da “roda de samba”, é encarado como motivo de tristeza; enquanto a figura personificada da “roda”, na tradução, passa a ser representada por um elemento humano: “la gente” (5). Dessa forma, embora os excertos de partida e de chegada pareçam emanar sentidos semelhantes — a ideia de “pessoas reunidas”, como ocorreria em uma roda de samba ou de conversa — é possível notar a inscrição de uma interpretação dominante, visto que a escolha tradutória acultura o texto ao utilizar uma forma mais genérica e canônica, eliminando a possibilidade de se identificar um elemento que insere a trama da canção num contexto cultural especificamente brasileiro: a “roda de samba”. De maneira semelhante, o uso dos vocábulos “tamborim”, “escola [de samba]”, “batuque” e “samba” desempenha a função de elaborar a trama imagética da canção e inseri-la exatamente no universo do samba; assim como elabora o motivo da tristeza do personagem: o fim da música e dos encontros sociais.

Na tradução, entretanto, os vocábulos selecionados pelo tradutor passam a se referir a um outro campo associativo que, como consequência, insere a narrativa do texto de chegada em um novo contexto, totalmente diverso do cenário brasileiro. Vejamos: no texto de Bardotti, o personagem não está desolado pelo silêncio da solidão, tampouco pela ausência da música; na verdade, seu incômodo parece advir da busca por um interlocutor com quem possa ter uma discussão argumentativa, debater. Assim, a crítica à televisão parece ser menos associada ao fim dos encontros sociais, das manifestações culturais, e mais direcionada ao suposto fim de um movimento dialético, pois não se debate mais, não se produz conhecimento por meio do diálogo, apenas se consome “tiritera” (23) apresentada pela televisão. Os vocábulos que podem ser associados a esse campo associativo referente à dialética são: “argomenti” (18); “avversari” (20); “nemico” (31); “Si bisticcia” (32) e “filosofia” (42). De maneira semelhante, as adjetivações do personagem contribuem para o deslocamento desse contexto, já que o “homem da rua” passa a ser caracterizado de formas diversas a “da rua”, como em “L’uomo distratto13 13 O vocábulo distratto, de acordo com o dicionário italiano-português Martins Fontes, pode ser lido tanto como adjetivo, com os sentidos de “distraído, desatento”, quanto como particípio passado do verbo distrarre, com os sentidos de “1. distrair, desviar 2. retirar, tirar, subtrair 3. estirar 4. puxar, deslocar”. (13 e 29) e “L’uomo con filosofia” (42). Essas adjetivações parecem ser escolhas resultantes de uma leitura que não inscreve interpretantes formais, pautados na aproximação semântica, mas traduz os adjetivos de acordo com o cenário que se pretende construir na canção.

Nestes excertos, pode-se facilmente identificar a maneira pela qual os vocábulos são inseridos na canção a fim de se elaborar um novo tensionamento poético:

17. O homem da rua18. Com seu tamborim calado19. Já pode esperar sentado20. Sua escola não vem não 17. L’uomo da solo18. Coi suoi soliti argomenti19. Può aspettar tranquillamente20. Avversari non ne avrà 31. E por falta doutro nego32. Samba só com seus botões 31. E in mancanza di un nemico32. Si bisticcia tra di sé 41. O homem da rua42. Por ser nego conformado43. Deixa a lua ali de lado44. E vai ligar os seus botões 41. È mezzanotte42. L’uomo con filosofia43. Fa la pace con sé stesso44. Ed in silenzio se ne va

Assim, é também possível inferir que a interpretação inscrita pelo tradutor foi motivada pela seguinte lógica: tratando-se de uma canção cuja temática é crítica à mídia, a representação de um personagem solitário, “con filosofia” e insatisfeito com o fim dos debates, seria uma escolha razoável. Nesse caso, é possível identificar como as escolhas lexicais utilizadas para construir tal tensionamento não partem apenas da tradução de vocábulos específicos, mas da inscrição de um discurso complexo (Eco, 1976aEco, Umberto. “Theory of Codes – The interpretant”. In: Eco, Umberto. (Ed.). A Theory of Semiotics. London: Indiana University Press, 1976a. p. 68-72.), de um silogismo produzido a partir da interpretação da temática apresentada no texto de partida.

Contudo, essa interpretação e recontextualização de Bardotti, além de desfazer o universo do samba e apagar todas as referências culturais, também acaba por deslocar o tensionamento “cultura popular versus cultura de massa” em direção ao conflito entre “cultura de elite versus cultura de massa”. Dessa forma, a crítica buarqueana ao fim do convívio social e da expressão cultural compartilhada nas rodas de samba, suscitado pelo surgimento dos produtos massificados da televisão, surge na tradução como um julgamento ao fim do pensamento erudito, como defensora do saber promovido apenas pelo debate lógico de um grupo de homens “con filosofia”. Por consequência, ainda que possam soar mais familiares ao público italiano, essas escolhas modificam o texto a ponto de fazer com que Chico não mais emerja na canção como compositor adepto do convívio de uma juventude popular, dos encontros boêmios, mas como apoiador da erudição do pensamento, de uma tradição clássica.

Destacamos também outros dois fatores relevantes: a dicotomia “natureza versus tecnologia” e a referência à população afro-brasileira nas ocorrências de “nego” (31 e 42).

No que se refere à ambientação da canção, há um jogo dicotômico entre “natureza versus tecnologia”, representado pelas imagens da “lua versus televisão” e da “cidade versus sertões”. A temática dos sertões, recorrente na literatura regionalista brasileira, assume significações que variam a depender do ponto de vista pelo qual é compreendida, a exemplo da noção espacial, em que o sertão é visto como interior ermo e despovoado; da econômica, na qual o sertão mantém uma economia agrária e subdesenvolvida em oposição à economia industrial das metrópoles; e da social, que identifica costumes e hábitos específicos, com destaque para uma relação comunitária entre seus membros (Vicentini, 2008Vicentini, Albertina. “Regionalismo literário e sentidos do sertão”. Sociedade e Cultura, 10(2), p. 187-196, 2008. DOI: https://doi.org/10.5216/sec.v10i2.3140
https://doi.org/10.5216/sec.v10i2.3140...
, p. 189). Somado a isso, como ocorre em “A televisão”, a temática sertaneja também tem sido historicamente apresentada por meio da dicotomia “campo versus cidade”, bastante explorada por autores como José de Alencar e Guimarães Rosa, “imperiosa até hoje na música ou na literatura” (Vicentini, 2008Vicentini, Albertina. “Regionalismo literário e sentidos do sertão”. Sociedade e Cultura, 10(2), p. 187-196, 2008. DOI: https://doi.org/10.5216/sec.v10i2.3140
https://doi.org/10.5216/sec.v10i2.3140...
, p. 189).

É, pois, evidente que tratamos de um único vocábulo cujos usos na língua brasileira são heterogêneos, carregados de expressiva atuação cultural e tensões sociais. Portanto, embora o tradutor aplique um interpretante temático que altere “sertões” para “città” a partir de um silogismo que pode ser deduzido a partir da premissa de que, se a lua vai embora, a cidade fica no escuro, sua escolha é também dominante na medida em que inscreve na tradução uma interpretação mais canônica, apagando todas as referências à tradição sertaneja que poderiam ser suscitadas a partir de “sertões”. Naturalmente, poderíamos justificar a escolha ao afirmar que o vocábulo seria um regionalismo dificilmente reconhecido pelo público italiano; porém, a decisão de Bardotti em traduzi-lo especificamente por “cidade”, um termo de significação convencional, demonstra sua preferência por usos mais estandardizados do ponto de vista da recriação referencial, cultural e imagética do texto traduzido — tendência de Bardotti que previamente analisamos e identificamos em outras traduções do mesmo álbum, a exemplo de “Juca”, “Rita” e “Maddalena è andata via”.

Por fim, a referência à população afro-brasileira por meio do vocábulo “nego”, nos versos 31 e 42, demonstram mais um exemplo de aculturação que, neste caso, embranquece o texto ao apagar a referência a esse corpo negro, cuja existência insere a canção em um contexto social especificamente brasileiro. Também é preciso reforçar o fato de que lidamos com um gênero musical de matriz africana — ainda que outras tradições também tenham influenciado os desdobramentos do samba —, especialmente no que diz respeito ao seu ritmo e seus instrumentos que, juntos à letra, constituem a canção. Diante disso, é fato que o tradutor não reescreveu a letra de um produto destituído de sentidos, tampouco desprovido de historicidade. Como afirma Tatit (1996, p. 21)Tatit, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. sobre a dicção do cancionista, “por trás da voz que canta há uma voz que fala”, e esse corpo, cuja voz se apresenta na letra da canção, fala a partir de uma situação sociocultural carregada de sentidos específicos à sua constituição histórica.

Nesse ponto, ao debater a questão da apropriação cultural, Djamila Ribeiro (2019, p. 72)Ribeiro, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. nos alerta sobre a necessidade de compreendermos “em que medida um elemento cultural foi esvaziado de sentido”. Assim, no caso da canção analisada, não basta limitarmo-nos a afirmar que um tradutor branco europeu atuou na exportação de um produto brasileiro de ancestralidade africana, mas compreender como esse tradutor agiu no texto e simbolicamente reordenou, esvaziou e embranqueceu os elementos culturais embutidos na letra da canção. Como destaca Venuti (2019c)Venuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf.
https://shre.ink/c9Mf...
, é preciso nos atentarmos ao poder da tradução como formadora de identidades, que pode tanto criar possibilidades para a resistência cultural e a inovação quanto reprimir a inserção da heterogeneidade na cultura doméstica.

Diante disso, no caso aqui analisado, deparamo-nos com a inscrição de interpretantes dominantes que parecem derivar de um discurso e uma lógica de viés racista, que escolhe esvaziar os sentidos, reprimir o diferente, apagar a cor da canção — possivelmente em virtude das expectativas mercadológicas e dos valores predominantes na hierarquia de prestígio14 14 Para Venuti (2019c, p. 14), “as hierarquias de prestígio definem a conjuntura em vigor do contexto de chegada enquanto as instituições regulam como e até que ponto elas podem mudar. Hierarquias de modelos e de práticas variam não apenas entre os períodos históricos, mas também em um mesmo período, entre e dentro de diferentes grupos”. da sociedade italiana. Isso posto, fica evidente como a exportação desse produto cultural mediado e modificado pela visão estrangeira — isto é, o samba modificado pelos apagamentos culturais a nível linguístico — em muito se assemelha à lógica de expropriação e apropriação de materiais culturais ao longo dos processos de colonização, nos quais os colonizadores impunham suas próprias visões de cultura aos povos dominados enquanto saqueavam e exportavam seus bens culturais (Ribeiro, 2019Ribeiro, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).

Considerações Finais

Como já explicitado, a investigação aqui proposta não visou avaliar casos em que o tradutor teria sido “fiel” ou “infiel” aos vocábulos do texto de partida; mas, com base no modelo hermenêutico de Venuti, procuramos compreender de que maneira o tradutor atuou no texto ao inscrever sua própria interpretação. Dessa forma, ao longo da análise, buscamos identificar possíveis lógicas e motivações interpretativas que suscitaram as escolhas tradutórias para que, assim, pudéssemos compreender a maneira pela qual Bardotti lidou com aspectos socioculturais provenientes do texto buarqueno, tanto a nível lexical quanto a nível poético.

Foi então, a partir desse processo analítico, que constatamos variados fatores que se destacam ao demonstrar a tendência do tradutor em aculturar traços socioculturais do texto de partida por meio da inscrição de interpretantes que agem de maneira dominante, sendo eles: o apagamento de vocábulos associados ao universo do samba, a estandardização da referência ao sertão brasileiro e o embranquecimento da canção — tanto no apagamento do samba como expressão cultural de matriz africana quanto no apagamento do “nego”, sujeito afro-brasileiro.

Pudemos também observar que, para além do apagamento desses vocábulos específicos — nas ocorrências de “roda”; “tamborim”; “escola”; “batuque”, “samba”, “sertões”, “nego” —, a alteração do campo associativo a partir do qual o tradutor selecionou suas escolhas fez com que a temática da canção fosse recontextualizada de maneira estrutural, sendo deslocada para uma nova situação sociocultural totalmente diversa àquela do texto de partida. Com isso, percebe-se que não nos bastou apenas analisar de que maneira determinados vocábulos foram traduzidos, mas foi necessário compreender de que forma os interpretantes inscritos atuam no texto de maneira ampla, visto que a interpretação do tradutor não age apenas em escolhas isoladas.

Assim, pudemos enfim compreender que Bardotti atuou nesta tradução por meio da inscrição de interpretantes majoritariamente dominantes, causando aculturações, apagamentos e, consequentemente, esvaziando os sentidos provenientes da cultura brasileira em direção a um texto mais canônico e estandardizado ao público italiano, sem que traços da diferença fossem registrados. Esse tipo de tradução é produto de uma postura que não busca redirecionar o movimento naturalmente etnocêntrico da tradução (Venuti, 2019bVenuti, Lawrence. Escândalos da tradução: Por uma ética da diferença. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéa Marcelino Villela, Marileide Dias Esqueda & Valéria Biondo. São Paulo: Editora Unesp, 2019b.) e, nesse sentido, acaba por ser antiética e reducionista na medida em que impede que o público italiano entre em contato com a alteridade do que é estrangeiro.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

  • 1
    Chico Buarque de Hollanda na Italia (1968), no qual a palavra “Itália” é grafada sem acento agudo, como na língua italiana, foi o título do álbum lançado no Brasil pela gravadora RGE. Já o álbum lançado originalmente na Itália pela gravadora RCA, com exatamente as mesmas gravações, é intitulado apenas Chico Buarque de Hollanda. Optamos por utilizar o título divulgado no Brasil para que não se confunda com o primeiro álbum brasileiro da carreira do cantor, cujo título é homônimo ao álbum vendido na Itália.
  • 2
    No original: “[...] la ragione, alla fine, è sempre industriale, commerciale: bisogna vendere, ricavarne qualcosa.[...] si trata di una speranza: quella di vendere, rendere il prodotto non tanto commerciale quanto più commerciabile.”
  • 3
    No original: “[…] translation as the reproduction or transfer of an invariant that is contained in or caused by the source text, an invariant form, meaning, or effect.”
  • 4
    No original: “[...] we need to adopt a hermeneutic model in which translation is seen as an interpretive act that varies the form, meaning, and effect of the source material according to the conditions—linguistic, cultural, and social— that the translator selects to frame the interpretation.”
  • 5
    Sobre os conceitos semióticos utilizados, especialmente sobre a noção de “interpretante”, Venuti sugere a consulta dos seguintes trabalhos: The Writings of Charles S. Peirce: A Chronological Edition (Peirce, 1984Peirce, Charles Sanders. The Writings of Charles Sanders Peirce: A Chronological Edition, 1867-1871. Edição de Edward C. Moore. Bloomington: Indiana University Press, 1984.), A Theory of Semiotics (Eco, 1976aEco, Umberto. “Theory of Codes – The interpretant”. In: Eco, Umberto. (Ed.). A Theory of Semiotics. London: Indiana University Press, 1976a. p. 68-72.) e Peirce’s Notion of Interpretant (Eco, 1976bEco, Umberto. “Peirce’s Notion of Interpretant”. MLN, 91(6), p. 1457-1472, 1976b. DOI: https://doi.org/10.2307/2907146
    https://doi.org/10.2307/2907146...
    ).
  • 6
    No original: “[…] a translation recontextualizes the source text in the translating language and culture by applying a set of formal and thematic interpretants to inscribe an interpretation. Following Jacques Derrida’s concept of inscription, I saw the source text not only as coming to the translation process as always already interpreted, traced with a cultural discourse, but also as undergoing a further, perhaps divergent inscription when translated; following Charles Peirce’s concept of interpretant, I saw the translation process as the application of formal and thematic mediators that perform the inscription, turning the source into the translated text.”
  • 7
    No original: “[...] the entire syllogism deduced from such premises as /all men are mortal/ or /Socrates is a man/.”
  • 8
    No original: “‘an endless series of representations’.”
  • 9
    Por materiais, Venuti entende: “[...] formas e práticas culturais: padrões de uso na língua traduzida, arcaicas e atuais, padrão e não-padrão; tradições e convenções de produção do texto original, como estilos, gêneros e discursos; tradições e convenções da crítica e da prática da tradução, como conceitos teóricos e estratégias práticas; padrões de recepção, históricos e atuais, como traduções antecedentes dos textos do autor do TF e de outros autores da LF; e valores, crenças e representações que possuem força ideológica (Venuti, 2019cVenuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf.
    https://shre.ink/c9Mf...
    , p. 11, tradução nossa).”
  • 10
    No original: “[…] cultural forms and practices: patterns of usage in the translating language, past and present, standard and nonstandard; traditions and conventions of producing original compositions, including styles, genres, and discourses; traditions and conventions of translation commentary and practice, including theoretical concepts and practical strategies; patterns of reception, historical as well as recent, including previous translations from the work of the source-text author as well as other source-language authors; and values, beliefs, and representations that have acquired ideological force.”
  • 11
    No original: “Translation can maintain a semantic correspondence, but surely this relation to the source text shouldn’t be confused with giving back its theme unaltered.”
  • 12
    Vide Lara (2006, p. 181-211)Lara, Luis Fernando. “El estúdio cualitativo del significado léxico”. In: Lara, Luis Fernando. Curso de Lexicología. Cidade do México: El Colegio de México, 2006. p. 181-211..
  • 13
    O vocábulo distratto, de acordo com o dicionário italiano-português Martins Fontes, pode ser lido tanto como adjetivo, com os sentidos de “distraído, desatento”, quanto como particípio passado do verbo distrarre, com os sentidos de “1. distrair, desviar 2. retirar, tirar, subtrair 3. estirar 4. puxar, deslocar”.
  • 14
    Para Venuti (2019c, p. 14)Venuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf.
    https://shre.ink/c9Mf...
    , “as hierarquias de prestígio definem a conjuntura em vigor do contexto de chegada enquanto as instituições regulam como e até que ponto elas podem mudar. Hierarquias de modelos e de práticas variam não apenas entre os períodos históricos, mas também em um mesmo período, entre e dentro de diferentes grupos”.

Referências

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  • Eco, Umberto. “Peirce’s Notion of Interpretant”. MLN, 91(6), p. 1457-1472, 1976b. DOI: https://doi.org/10.2307/2907146
    » https://doi.org/10.2307/2907146
  • Foucault, Michel. A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
  • Lara, Luis Fernando. “El estúdio cualitativo del significado léxico”. In: Lara, Luis Fernando. Curso de Lexicología Cidade do México: El Colegio de México, 2006. p. 181-211.
  • La via, Stefano. “Una Lezione con Sergio Bardotti”. Entrevistado: Sergio Bardotti. In: La Via, Stefano. Chico Buarque: canzoni Pavia: Pavia University Press, 2014. p. 503-522.
  • Peirce, Charles Sanders. The Writings of Charles Sanders Peirce: A Chronological Edition, 1867-1871 Edição de Edward C. Moore. Bloomington: Indiana University Press, 1984.
  • Per Un Pugno di samba. Compositor e intérprete: Chico Buarque de Hollanda. Arranjos: Ennio Morricone. Roma: RCA Italiana, 1970. 1 disco vinil (40 min).
  • Ribeiro, Djamila. Pequeno manual antirracista São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • Santaella, Maria Lúcia. “Bases teóricas para a aplicação”. In: Santaella, Maria Lúcia (Ed.). Semiótica Aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2018. p. 1-28.
  • Tatit, Luiz. O cancionista: composição de canções no Brasil São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.
  • Venuti, Lawrence. “Genealogies of translation theory: Jerome”. Boundary 2, 37(3), p. 5-28, 2010. DOI: https://doi.org/10.1215/01903659-2010-014
    » https://doi.org/10.1215/01903659-2010-014
  • Venuti, Lawrence. Translation changes everything: theory and practice Abingdon: Routledge, 2013.
  • Venuti, Lawrence. Contra instrumentalism: a translation polemic Lincoln: University of Nebraska Press, 2019a.
  • Venuti, Lawrence. Escândalos da tradução: Por uma ética da diferença Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéa Marcelino Villela, Marileide Dias Esqueda & Valéria Biondo. São Paulo: Editora Unesp, 2019b.
  • Venuti, Lawrence. “Theses on translation: an organon for the current moment”. Flugschriften, 5, p. 4-26, 2019c. https://shre.ink/c9Mf
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  • Vicentini, Albertina. “Regionalismo literário e sentidos do sertão”. Sociedade e Cultura, 10(2), p. 187-196, 2008. DOI: https://doi.org/10.5216/sec.v10i2.3140
    » https://doi.org/10.5216/sec.v10i2.3140
  • Zappa, Regina. Chico Buarque para todos Rio de Janeiro: Ímã editorial, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2022
  • Aceito
    04 Fev 2023
  • Publicado
    Mar 2023
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