Acessibilidade / Reportar erro

GÊNERO, TRABALHO E TRADUÇÃO NO CONFRONTO NARRATIVO ENTRE LUCIANO BIANCIARDI E MARIA JATOSTI

GENDER, WORK AND TRANSLATION IN THE NARRATIVE CONFRONTATION BETWEEN LUCIANO BIANCIARDI AND MARIA JATOSTI

Resumo

Este artigo propõe um confronto entre dois romances de forte teor autobiográfico, La vita agra (1962), de Luciano Bianciardi, e Tutto d’un fiato (1977), de Maria Jatosti, em que a prática da tradução é tratada como profissão, vínculo interpessoal e definidora de identidades. Nesse embate de narrativas, escritas por um casal conhecido na cena literária italiana da segunda metade do século XX, o foco da análise se concentra na personagem feminina do primeiro romance e na narradora-personagem do segundo. Além de evidenciar a dimensão do gênero nas duas obras, pretende-se propor a leitura da obra de Jatosti como uma intervenção crítica à crítica cultural já reconhecida de Bianciardi.

Palavras-chave
Luciano Bianciardi; Maria Jatosti; gênero e tradução; autobiografia

Abstract

This work proposes a confrontation between two novels characterized by strong autobiographical elements: La vita agra (1962), by Luciano Bianciardi, and Tutto d’un fiato (1977), by Maria Jatosti. In both of them the practice of translation is treated as a profession, an interpersonal bond and an identity marker. In this confrontation between the novels, written by a well-known couple in the Italian literary scene of the second half of the 20th century, the focus of the analysis will be on the female character in the first novel and the narrator in the second. Besides highlighting the dimension of gender in both narratives, this work intends to propose the reading of Jatosti’s novel as a critical intervention to Bianciardi’s already recognized cultural criticism.

Keywords
Luciano Bianciardi; Maria Jatosti; gender and traslation; autobiography

Delineando o confronto

A proposta deste artigo é analisar o entrecruzamento de dois romances de forte teor autobiográfico, em que a prática da tradução aparece como profissão, vínculo interpessoal e definidora de identidades. Nesse embate de narrativas, protagonizado por um casal conhecido na cena literária italiana da segunda metade do século XX, é o homem quem faz o primeiro movimento ficcional, mas é a mulher quem reage, problematiza e manifesta o conflito através da escrita.

Em que pesem sua atuação como tradutora, jornalista, escritora, e sua incansável atividade à frente de revistas, publicações literárias, eventos culturais e espetáculos teatrais, a romana Maria Jatosti, nascida em 1929, é lembrada apenas como a companheira do escritor toscano Luciano Bianciardi (1922-1971). Apesar de nada incomum quando se trata de mulheres que viveram ao lado de homens de prestígio, o caso de Jatosti se complica com o grau a mais de injustiça de que compartilham aquelas que não só contribuíram para tal prestígio, mas tiveram o próprio trabalho individual encoberto.

O escritor, por sua vez, pouco conhecido fora da Itália, garantiu presença marcante na literatura e na crítica cultural italiana do século XX ao tecer reflexões sobre o progresso e a cultura de massa em consolidação nas décadas de cinquenta e sessenta, anos do milagre econômico na península; reflexões, diga-se, também desenvolvidas por Pier Paolo Pasolini e Umberto Eco, posteriormente, com repercussão internacional. Graças à publicação de La vita agra (A vida árdua)1 1 As obras de Jatosti e Bianciardi não foram traduzidas para o português. Convém advertir que todas as passagens citadas dessas obras, bem como de outros textos não traduzidos listados nas Referências, são traduções minhas. , em 1962, Bianciardi conquistou admirável sucesso editorial, o que nunca mudou, porém, sua condição de profissional da tradução: traduziu autores como Henry Miller, William Faulkner e John Steinbeck, paralelamente a obras de escasso valor literário, textos técnicos e de divulgação científica. Parte desse prolífico trabalho como tradutor por 15 anos, até a morte precoce devido ao abuso de álcool, foi realizada ao lado de Maria Jatosti, ignorada nos créditos.

A intenção deste estudo é centrar o foco especificamente na personagem Anna, de La vita agra, e na narradora do romance autobiográfico de Maria Jatosti, Tutto d’un fiato (De um só fôlego) (1977), escrito três anos após a morte de Bianciardi. Ambas são identidades narrativas construídas a partir da figura de Maria Jatosti: a primeira é a companheira do tradutor protagonista que o auxilia datilografando as traduções, a segunda é uma tradutora e profissional do mundo editorial italiano que reivindica reconhecimento e autoria. Além de evidenciar o óbvio caráter gendrado dos dois textos, o que farei a seguir, pretendo propor a leitura da obra de Jatosti como uma intervenção crítica, pouco visibilizada, à crítica cultural já reconhecida de Bianciardi.

As obras em confronto: La vita agra e Tutto d’un fiato

La vita agra, considerado a obra-prima do escritor, é o terceiro volume da chamada “trilogia da raiva”, antecedido por Il lavoro culturale (O trabalho cultural), de 1957, e L’integrazione (A integração), de 1960. O narrador anônimo nos conta de sua mudança para Milão, com o intuito de vingar a morte de 43 mineiros em uma explosão nas proximidades de sua cidade de origem, e do plano de colocar uma bomba na sede milanesa da mineradora. Absorvido pela urgência das contas a pagar e pelo compromisso com as despesas da esposa e do filho, deixados na província, logo se vê enredado em missão bem diferente: num primeiro momento, trabalha para uma revista especializada em cinema, depois, assume a função de redator numa pequena editora – a nascente Feltrinelli da vida real –, até ser afastado por inadequação à rotina diária da empresa e, então, iniciar sua carreira de tradutor no espaço doméstico.

Ainda que as circunstâncias do deslocamento do personagem possam parecer pouco verossímeis, vale dizer que as mortes realmente aconteceram em Ribolla, na Toscana, em 1954, quando Bianciardi, que atuava como bibliotecário e ativista cultural em Grosseto, localizada na mesma região, já havia se aproximado dos mineiros. Na época da tragédia, com a colaboração do amigo e escritor Carlo Cassola, vinha escrevendo um estudo sobre a história e a condição dos trabalhadores do carvão na área, I minatori della Maremma (Os mineiros da Maremma), que viria a ser publicado em 1956. Em paralelo, sabemos que uma motivação de ordem política também existiu para a transferência do autor para Milão, segundo relato do jornalista Pino Corrias, na biografia Vita agra di un anarchico (Vida árdua de um anarquista):

É exatamente naqueles meses que Giangiacomo Feltrinelli recorre ao Partido Comunista para pedir um nome de jovem intelectual, mesmo que não de dentro do partido, para introduzir na nova redação [...]

Como ele toda uma geração de intelectuais, naqueles primeiros anos cinquenta, estava empreendendo a mesma viagem, da Itália provinciana e camponesa (pequenas revistas, bibliotecas, cineclubes, notícias de segunda mão) para a grande cidade da indústria cultural: jornais, editoras, revistas semanais de atualidade, publicidade2 2 “È appunto in quei mesi che Giangiacomo Feltrinelli si rivolge al Partito comunista per chiedere qualche nome di giovane intellettuale, anche non interno al partito, da inserire nella nuova redazione [...] Come lui una intera generazione di intellettuali, in quei primi anni cinquanta, stava intraprendendo lo stesso viaggio, dall’Italia provinciale e contadina (piccole riviste, biblioteche, cineforum, notizie di seconda mano) alla grande città dell’industria culturale: giornali, case editrici, rotocalchi, pubblicità” (Corrias, 2011, p. 79-80).

(Corrias, 2011Corrias, Pino. Vita agra di un anarchico. Luciano Bianciardi a Milano. Milano: Feltrinelli, 2011., p. 79-80, minha tradução).

Quanto à militante Anna, personagem inspirada em Maria Jatosti, descrita como “fanática e sectária [...] mas sem maldade doutrinária”, além de competente no quesito “técnica insurrecional”3 3 “fanatica e settaria [...] ma senza cattiveria dottrinale [...] tecnica insurrezionale” (Bianciardi, 2016, p. 59). (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 59, minha tradução), surge nas páginas do romance durante uma manifestação contra um general norte-americano nas ruas milanesas. A paixão entre os dois jovens é imediata e um envolvimento mais sério não tarda a acontecer. Quando Anna desiste de copiar endereços de uma mala direta para ganhar a vida, oferecendo ajuda na primeira encomenda vultosa do protagonista – trezentas páginas a serem traduzidas em um mês –, o rapaz aceita sem hesitação: “Claro, você fica na máquina e eu me acomodo aqui, todo majestoso na cama, com o livro e o dicionário, e dito”4 4 “Certo, tu stai alla macchina, io mi piazzo qui bello papale sul letto, col libro e il vocabolario, e detto” (Bianciardi, 2016, p. 88). (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 88, minha tradução). E é dessa forma que se consolida a parceria da narrativa, ou seja, a parceria de um tradutor, que, como vemos ao longo da trama, mergulha obsessivo no processo de tradução, e sua datilógrafa, que anota o que é ditado.

Num ritmo de linha de montagem, entre laudas a serem vencidas e contas feitas e refeitas, o casal dá início à sua vida em comum em Milão, lúgubre coração do milagre econômico italiano então em curso. Referindo-se às laudas traduzidas incessantemente, sem esquecer do compromisso com a esposa Mara, o narrador faz seus cálculos:

Vinte laudas de dois mil toques. Todos os dias, porque depois é preciso calcular também o tempo para reler, três ou quatro dias por mês somando tudo, e um dia que se perde para fazer o circuito das entregas, no final do mês.

Portanto, são vinte e cinco dias de laudas cheias, quinhentas laudas mensais no total, que, a quatrocentas liras cada uma, dão duzentas mil liras mensais. Sessenta mil vão para Mara, trinta para o aluguel, dez para luz, gás e telefone (e no inverno até mais porque temos de deixar tudo aceso quase o dia inteiro, enquanto no verão se consome menos luz, mas tomamos mais banhos, e então aquilo que economizamos nas lâmpadas vai para o aquecedor), vinte para as prestações dos móveis, roupas e livros (até podíamos não ler, mas dicionário precisamos comprar), quinze para cigarro, café, jornal e um cinema, cinco para leite e pão, e sobram sessenta mil por mês para queijo, verduras, e para os imprevistos5 5 “Venti cartelle ogni giorno, compresa la domenica. Venti cartelle di duemila battute. Tutti i giorni, perché poi bisogna calcolarci anche il tempo per rileggere, tre o quattro giorni al mese in tutto, e un giorno che va perduto per fare il giro delle consegne, alla fine del mese”. Sono perciò venticinque giorni a cartelle piene, cinquecento cartelle mensili complessive, che a quattrocento lire l’una danno duecentomila lire mensili. Sessanta vanno a Mara, trenta al padrone di casa, dieci fra luce gas e telefono (e d’inverno anche di più, perché bisogna tenere acceso quasi tutto il giorno, mentre d’estate si consuma meno luce, ma bisogna lavarsi più spesso, e allora quello che hai risparmiato di lampadine ti va per lo scaldabagno), venti di rate fra mobili vestiti e libri (si potrebbe anche non leggere, ma i vocabolari li devi comprare), quindici fra sigarette, caffè, giornali e qualche cinema, cinque fra pane e latte, e ti restano sessantamila mensili per il companatico e gli imprevisti” (Bianciardi, 2016, p. 134).

(Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 134, minha tradução).

Seja nos cálculos contínuos, seja nas descrições de infindáveis jornadas, ou nas cenas da cidade industrial transformada em imenso canteiro de obras devido à reestruturação urbana empreendida naqueles anos, lemos a desumanização, deflagrada em nome da eficiência capitalista, e o funcionamento de um sistema cujos tentáculos são capazes de capturar o protagonista desajustado mesmo dentro da própria casa. A tentativa de se colocar à margem, independente e rebelde, frustra-se no quotidiano diante dos prazos de entrega e da interpelação de vendedores e cobradores, corroborando a análise de Marx, para quem “[o] reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas” (Marx, 1986Marx, Karl. O Capital. Crítica da economia política: o processo global da produção capitalista. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1986., p. 273). Assim, logo percebemos que da fúria do progresso não escaparam os mineiros da Maremma nem escaparão o intelectual crítico e a militante apaixonada6 6 Para uma discussão sobre essa crítica, remeto a Chiarini (2019). .

No capítulo 8 – são onze no total –, que basicamente sintetiza o mundo da tradução na Itália nos anos cinquenta-sessenta, o narrador, por vezes, inclui a companheira Anna, usando a primeira pessoa do plural – “Conseguíamos fazer até quinze, mesmo vinte laudas por dia” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 131, minha tradução), “Então, em que ponto estamos?” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 133, minha tradução), “Às três da madrugada tínhamos terminado” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 136)7 7 “Riuscivamo a fare anche quindici, anche venti cartelle al giorno [...] allora, a che punto siamo? [...] alle tre di notte avevamo finito” (Bianciardi, 2016, p. 133-136). . No final do capítulo, depois de se referir à relação com a editora e à atividade em si, com avaliações de ordem prática bastante objetivas, a narração se abre para uma viagem solitária – “Gostaria tanto de visitar a Irlanda”8 8 “Mi piacerebbe tanto visitar l’Irlanda” (Bianciardi, 2016, p. 139). (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 139, minha tradução) –, por cenários dos livros traduzidos, na companhia dos personagens encontrados: “estou aqui sentado a balançar as minhas pernas italianas e repenso em ontem à noite, naquilo que aconteceu com Sebastian, a briga no bar e depois a fuga de bicicleta vestindo o casaco roubado”9 9 “Sto qui seduto a dondolare le mie gambe italiane e ripenso a ieri sera, quel che è capitato a Sebastian, la rissa nel bar e poi la fuga in bicicletta com indosso un cappotto rubato” (Bianciardi, 2016, p. 140). (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 140, minha tradução). Nessa atmosfera onírica, as agruras do trabalho precário desaparecem, enquanto a voz narrativa se decompõe num delírio, dominado por um desfile de nomes e de situações vividas apenas ao traduzir. O capítulo se conclui em inglês, com uma passagem extraída do primeiro romance da trilogia autobiográfica de Bianciardi, Il lavoro culturale, traduzida do italiano.

Cada um deles me tirou um pedaço do fígado, e todos juntos danaram minha alma, subverteram até minha infância. Quando não consigo pegar no sono, penso nas minhas férias, menino, em Streetrock, ou nos campos em torno de Plaincastle, em St. Flower [...] Penso novamente nas longas viagens pelas estradas em direção a Download, Hazely, Copperhill [...] e depois o retorno, pelo lado do cemitério de Scrub, na grande planície open to winds and to strangers. Then from everywhere crowds had rushed to this newly-found Mecca: black dealers from the South, carrying suitcases filled with oil, speculators from the North, determined to start new enterprises in this promising area, prostitutes, shoeblaks, tramps, ballad-singers, pedlars of combs and shoe-laces, fortune tellers with a parrot and an accordion, and little by little all the others; land officers, policemen, insurance brokers, craftsmen, school teachers and priests10 10 “Ciascuno di costoro m’ha portato via un pezzo di fegato, e tutti insieme mi hanno dannato l’anima, mi hanno stravolto persino l’infanzia. Quando non riesco a prendere sonno, penso alle mie vacanze, bambino, su a Streetrock, o nei prati attorno a Plaincastle, St. Flower […] Ripenso ai lunghi viaggi sulle strade verso Download, Hazely, Copperhill […] e poi il ritorno, dalla parte del camposanto di Scrub, nella grande pianura open to winds and to strangers. Then from everywhere crowds had rushed to this newly-found Mecca: black dealers from the South, carrying suitcases filled with oil, speculators from the North, determined to start new enterprises in this promising area, prostitutes, shoeblaks, tramps, ballad-singers, pedlars of combs and shoe-laces, fortune tellers with a parrot and an accordion, and little by little all the others; land officers, policemen, insurance brokers, craftsmen, school teachers and priests” (Bianciardi, 2016, p. 141-142).

(Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 141-142, minha tradução).

A partir desse ponto, nos três últimos capítulos, as digressões tornam-se cada vez mais sombrias: à medida que as dívidas e o cansaço pesam, reflexões sobre doença, morte, depressão e suicídio dos trabalhadores na cidade são mais frequentes. O narrador apresenta-se exausto e solitário em seu ofício, enquanto Anna se ocupa dos afazeres domésticos.

Italo Calvino, num ensaio de 1962, associa o romance à “temática industrial”, a despeito da ausência de fábricas e operários na trama, exatamente por ser capaz de “representar e exprimir um quadro e um juízo da realidade industrial mais complexo [...] ainda que aqui não se ultrapassem os limites de um protesto anárquico-privado”11 11 “rappresentare ed esprimere un quadro e un giudizio della realtà industriale più complesso […] anche se qui non si esce dai limiti di una protesta anarchico-privata” (Calvino, 2002, p. 69). (Calvino, 2002Calvino, Italo. “La ‘tematica industriale’ (1962)”. In: Calvino, Italo. Mondo scritto e mondo non scritto. Milano: Mondadori, 2002. p. 68-71., p. 69, minha tradução). É interessante observar, porém, que, desde o início dos anos 2000, num contexto não previsto por Calvino na década de 60, nem em 1985, em suas Seis propostas para o próximo milênio, a obra de Bianciardi tem sido alvo de um entusiasmo renovado por parte de uma geração de jovens escritores italianos. Tal entusiasmo, perceptível em referências explícitas e indiretas, vem contribuindo para a formação de um filão literário do qual seria precursora: o “romance sobre o precariado” (Bruni, 2014Bruni, Raoul. “La vita agra reloaded. Aggiornamento sulla fortuna di Bianciardi”. In: Bruni, Arnaldo et al. (Orgs.). La vipera che ‘l melanese accampa. Luciano Bianciardi, Grosseto e La vita agra. Due giornate di studio per i 50 anni de La vita agra e i 90 anni dalla nascita di Luciano Bianciardi. Milano: ExCogita, 2014. p. 31-44., p. 35, minha tradução). Além do olhar cáustico e pessimista sobre o progresso e sobre a sociabilidade urbana, que, de certa forma, se antecipa a outras obras de autoridade reconhecida no século XX, La vita agra aponta, profeticamente, para dinâmicas do mundo do trabalho e da cultura que se intensificaram hoje, em tempos neoliberais e de uberização da economia. Trabalhadores autônomos, assujeitados à falta de salários e de direitos, ou ainda proletários informais, presos a jornadas flexíveis, gozando do privilégio da servidão (Antunes, 2018Antunes, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.), são também Anna e o narrador.

Maria Jatosti reage com profundo desgosto ao lançamento do romance, em 1962, e ao inesperado sucesso, que deu origem a um filme estrelado por Ugo Tognazzi em 1964. Ofende-se ao se enxergar na ficção, a ponto de sentir-se impelida a responder com Tutto d’un fiato (De um só fôlego). “Sim, eu precisei”12 12 “Sì, ho dovuto” (De Nicola, 2007, p. 201). (De Nicola, 2007De Nicola, Antonella. “Intervista a Maria Jatosti. Roma, 4 maggio 2005”. In: De Nicola, Antonella (Ed.). La fatica di un uomo solo. Sondaggi nell’opera di Luciano Bianciardi traduttore. Firenze: Società Editrice Fiorentina, 2007. p. 191-207., p. 201, minha tradução), afirma em entrevista, realizada em 2005, a uma estudiosa da obra de Bianciardi. No excerto de um texto escrito para a comemoração dos 100 anos de nascimento do autor, já apaziguada, quem sabe, pela força do tempo ou das novas gerações, explica sua reação:

Odiei aquele manuscrito e, sobretudo, Anna. Aquela não era eu. Os amigos diziam em coro: “Você não entendeu nada! Este livro é um ato de amor. A literatura é uma coisa, a vida é outra.” Mas eu não entendia a diferença. Aquela era a minha vida, a minha história, a nossa história, a nossa Milão, o nosso sonho. Hoje sei que não se julga um livro assim. Depois de tantos anos, quando o reli, com a distanciamento, a lucidez, a consciência de quem faz as contas com o ofício de escrever, mas também com o coração de tantos jovens que o descobrem, entre eles minha neta de dezoito anos, corrigi a perspectiva13 13 “Odiai quel manoscritto e soprattutto Anna. Quella non ero io. Gli amici dicevano in coro: “Non hai capito niente! Questo libro è un atto di amore. La letteratura è una cosa, la vita un’altra”, ma io non capivo la differenza. Quella era la mia vita, la mia storia, la nostra storia, la nostra Milano, il nostro sogno. Oggi so che un libro non si giudica così. Dopo tanti anni quando l’ho riletto, col distacco, la lucidità, la consapevolezza di chi fa i conti ogni giorno con il mestiere di scrivere, ma anche com il cuore di tanti giovani che lo scoprono, tra cui mia nipote diciottenne, ho corretto la visuale” (Jatosti, 2022, p. 21-22).

(Jatosti, 2022Jatosti, Maria. “L’utopia perduta”. In: Baraghini, Marcello et al. (Orgs.). La Maria del Bianciardi e altre storie. Pitigliano: Strade Bianche, 2022. p. 7-27., p. 21-22, minha tradução).

Vale explicitar que Jatosti manifesta tristeza e rancor nas entrevistas, sentimentos que se exacerbam e se misturam à irritação quando o entrevistador a procura apenas para conversar sobre o companheiro, “[e]xclusivamente sobre o início dele, sobre a história dele, logo, não sobre a nossa história comum” (De Nicola, 2007De Nicola, Antonella. “Intervista a Maria Jatosti. Roma, 4 maggio 2005”. In: De Nicola, Antonella (Ed.). La fatica di un uomo solo. Sondaggi nell’opera di Luciano Bianciardi traduttore. Firenze: Società Editrice Fiorentina, 2007. p. 191-207., p. 191, minha tradução)14 14 “Esclusivamente degli inizi suoi, della sua storia, dunque, non della nostra storia comune” (De Nicola, 2007, p. 191). . Mas o mal-estar, fruto da exclusão, tem raízes mais profundas. Ao ex-diretor da Fondazione Luciano Bianciardi, de Grosseto, queixa-se de seu apagamento durante a convivência com o escritor:

À nossa casa vinham Calvino, Sereni, Mastronardi. Eu escutava, lia, trabalhava, vivia. E escrevia. Mas como escritora, embora publicando contos e novelas em revistas “femininas” de grande tiragem nacional, no ambiente milanês, eu era considerada alguém que entrava pela porta lateral, não exatamente pela entrada de serviço, mas quase. Dos outros trabalhos editoriais daquele período não sobrou nenhum vestígio. No fundo, eu era sempre a mulher de, aquela que está com. E, além do mais, ilegalmente, irregularmente.

[…] Eu era aquela que datilografava as traduções de Luciano, mas não era a datilógrafa dele: o nosso era realmente um trabalho conjunto, e esse era o lado bonito da história, de estarmos juntos. Trabalhávamos lado a lado: duas mãos, as minhas, dois cérebros, os nossos15 15 “A casa venivano Calvino, Sereni, Mastronardi. Io ascoltavo, leggvo, lavoravo, vivevo. E scrivevo. Ma come scrittrice, pur pubblicando racconti e novelle su testate ‘femminili’ a grande tiratura nazionale, nell’ambiente milanese ero considerata una che entrava dalla porta laterale, non proprio di servizio, ma quasi. Di altri, numerosi, lavori editoriali che appartengono a quel periodo (editing, traduzioni, revisioni, eccetera), non v’è traccia. In fondo, restavo sempre la donna di, quella che stava con. Per di più abusivamente, irregolarmente. [...] Ero quella che batteva a macchina le traduzioni di Luciano, ma non ero la sua dattilografa: il nostro era veramente un lavoro in tandem e questo era il lato bello della storia, dello stare insieme. Lavoravamo fianco a fianco: due mani, le mie, due cervelli, i nostri” (Abati & De Rosa, 2003, p. 9-11).

(Abati & De Rosa, 2003Abati, Velio & De Rosa, Tiziana. “Maria Jatosti. Intervista di Velio Abati e Tiziana De Rosa”. Il Gabellino. 10(9), p. 8-15, 2003., p. 9-11, minha tradução).

Tutto d’un fiato é apresentado com o anúncio “romance” abaixo do título da capa, o que poderia indicar o tratamento literário que se propõe a dedicar-lhe Maria Jatosti ou, quem sabe, o cuidado dos editores em evidenciar o caráter ficcional da obra lançada três anos após a morte de Luciano Bianciardi. Dividido em 23 capítulos de memórias esparsas, sem nenhuma atenção à cronologia, o texto se abre com o assassinato de Amílcar Cabral, ocorrido em 1973, e passeia pelas recordações da autora desde a infância modesta, em Roma, até retornar a meados dos anos setenta, em Milão, onde ela conclui a escrita. O fulcro da obra é a relação com Bianciardi – nunca nomeado, sempre citado como um “ele”, que aparece pela primeira vez no terceiro capítulo –, se bem que as reflexões e os episódios relacionados à militância política e ao trabalho como profissional da palavra também ocupem espaço central.

Tendo como pano de fundo acontecimentos locais e mundiais, e fazendo referência tanto ao Partido Comunista Italiano, em que militava, quanto a nomes importantes da vida cultural italiana, que eram de seu convívio, a escritora, em parte, mas sem se restringir a isso, oferece sua própria versão do que é narrado em La vita agra. Faz um atravessamento entre público e privado para relatar algo preso na garganta por muito tempo, de um só fôlego [tutto d’un fiato], sob o regime da urgência, como é característico das obras forjadas, e operadas, pela memória e pelo trauma.

São constantes as menções ao pai, morto antes da mudança de Roma para Milão para viver com o escritor, e ao filho, Marcello Jatosti, detentor apenas do sobrenome materno porque a lei italiana assim determinava. Mas é evidente que a resposta a Bianciardi é o que move a narrativa, ou talvez seja a sombra taciturna dele que o leitor busca, e encontra, em quase todos os capítulos. A chegada à cidade, os primeiros tempos apaixonados, a falta de dinheiro, o aborto clandestino, os vários empregos, aliás, também como revisora de tradução enquanto “ele” ainda era redator da Feltrinelli, até a parceria que já conhecemos, são rememorados em fragmentos com a amargura do depois. Jatosti transpõe décadas, avança e retrocede nos eventos, num relato lacunar e prevalentemente ressentido.

No capítulo 9, relemos uma cena da rotina de La vita agra, que, na ponta da pena da autora, além de confirmar a parceria, ganha afetividade e pode ser comparada a um encontro romântico, íntimo.

Sentávamos lado a lado, e sua voz chegava a meu ouvido desigual, interrompida, com longas pausas pensativas em que eu tinha a impressão de ouvir a atividade do seu cérebro. As mãos corriam pelo dicionário, percorriam os verbetes e quando a palavra soava correta era uma espécie de júbilo que tomava conta dos dois. “Vai, cabeçuda, coragem, bate.” […]

Quando ele se cansava, se esticava na cama com os dicionários em volta e sua voz me alcançava por trás. Eu não gostava tanto assim, era mais emocionante quando os dois mergulhávamos a cabeça no dicionário para procurar juntos, descobrir a palavra que funcionava melhor. Eu me paralisava, fascinada, e ele que me dizia “vai, cabeçuda, vai, que já estamos vendo o fim”. Fazia o cálculo das páginas que faltavam, dos dias, das horas de trabalho que tínhamos para chegar ao final. Uma montanha de páginas16 16 “Stavamo seduti vicini, fianco a fianco, e la sua voce mi arrivava all’orecchio disuguale, interrotta, con lunghe pause pensose in cui mi sembrava di sentire il lavorio del suo cervello. Le mani correvano sul dizionario, scorrevano le voci e quando la parola suonava giusta c’era una specie di gioia che ci prendeva tutti e due. Dài, capatosta, forza, picchia. [...] Quando era stanco lui, si stendeva sul letto, coi vocabolari intorno e la sua voce mi giungeva alle spalle. Mi piaceva meno così, era più bello chinare tutti e due la testa sul vocabolario e cercare insieme, scoprire la parola che andasse meglio. Mi incantavo e lui a dirmi, dài capatosta, dài, che gli abbiamo visto il culo. A fare il calcolo delle pagine del libro che restavano, delle giornate, delle ore di lavoro che ci rimanevano per arrivare in fondo. Una montagna di pagine” (Jatosti, 2012, s. p.).

(Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p., minha tradução).

Já rechaçando o encantamento amoroso, no mesmo capítulo 9 e num tom mais afinado com as outras páginas do romance, manifesta-se o doloroso sentimento de injustiça que a narradora prova ao saber que a esposa oficial engravidara durante uma visita protocolar de seu “ele” à província.

Não, nada de aborto. Nada de consultas humilhantes, tentativas infrutíferas, peregrinações para conseguir o dinheiro e um médico condescendente […]

Nada de naúsea e daquela dor aguda, profunda, lá embaixo, e do velho doutor fazendo manobras em você […] E isso se tudo correr bem, se você tiver dinheiro suficiente para um procedimento higiênico, feito por profissionais de verdade. Quanto mais sério for o profissional, maior é a soma que se tem de conseguir.

Senão, sempre existem as aborteiras […] e aí nem mesa ginecológica, só uma caminha desarrumada, mole, com um tecido encerado atravessado e um caldeirão de alumínio cheio de ferros recém-fervidos, colheres, curetas e grampos, fumegantes e enferrujados. […]

Nada, nada disso, porque ela é a esposa e as esposas não fazem essas coisas, as esposas põem no mundo filhos legítimos reconhecidos com nome sobrenome batismo primeira comunhão universidade e todo o resto. Inclusive a herança, moral e material17 17 “No, niente aborto. Niente visite umilianti, tentativi infruttuosi, pellegrinaggi per trovare i soldi e un medico compiacente [...] Niente nausea e quel dolore acuto, sordo laggiù e il vecchio dottore che ti maneggia […] E questo se ti va bene, se hai tanti soldi da permetterti un intervento igienico, fatto da professionisti veri. Più serio è il professionista, maggiore è la somma da trovare. Altrimenti ci sono le mammane [...] e di là neanche il lettino ginecologico, ma un giaciglio sfatto, molle, com la tela cerata di traverso e un pentolone di alluminio com dentro i ferri appena bolliti, cucchiai, raschietti, becchi d’oca, fumanti e rugginosi. [...] Niente di tutto questo, perché lei è la moglie e le mogli non fanno queste cose, le mogli mettono al mondo figli legittimi riconosciuti com nome cognome battesimo comunione università e tutto il resto. Compresa l’eredità, morale e materiale” (Jatosti, 2012, s. p.).

(Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p., minha tradução).

No entanto, o ressentimento não se dirige apenas ao escritor. São muitas as reflexões em torno dos esforços cotidianos para se afirmar como tradutora, escritora, redatora, enfim, como profissional da palavra que atua em várias frentes na Itália misógina daqueles anos, sobretudo depois da mudança na rotina do casal.

Com o nascimento do filho, as coisas não são mais as mesmas: os horários da mãe passam a ser os da criança, “ele” se isola em busca de sossego, e o trabalho em conjunto se interrompe. Não mais traduções lado a lado, apenas através de fitas gravadas por ele e transcritas por ela com o bebê no colo. É então que a narradora decide retomar um caminho independente e passa a traduzir para Cino Del Duca, editor nomeado na obra e famoso, em especial, pelo grande sucesso dos romances voltados para o público feminino.

Aqui cabe ressaltar que não é simples seguir o percurso estilhaçado da vida narrada da escritora, muito menos reconstituir a sequência e a coincidência de suas atividades ao longo do tempo. Obviamente não há nenhuma preocupação em oferecer informações ordenadas a propósito, tampouco deveria ser uma autobiografia a única fonte para traçarmos essa trajetória. Sabemos que Jatosti escreveu quatro romances pouco lidos, sendo este o terceiro, publicou contos, poesia e textos para o teatro, além de ter colaborado com jornais e revistas femininas; sabemos que, por muitos anos, traduziu dezenas de obras do francês e do inglês para algumas editoras, admitindo não conhecer bem as duas línguas. Aliás, diga-se que Jatosti é modesta, mas orgulhosa, ao fazer balanços de vida nas entrevistas, e se define “uma artesã que exerce honestamente seu ofício” (Abati & De Rosa, 2003Abati, Velio & De Rosa, Tiziana. “Maria Jatosti. Intervista di Velio Abati e Tiziana De Rosa”. Il Gabellino. 10(9), p. 8-15, 2003., p. 14, minha tradução)18 18 “un’artigiana che fa onestamente il suo mestiere” (Abati & De Rosa, 2003, p. 14). . Em tutto d’un fiato, externando preocupação semelhante à do tradutor de La vita agra, aponta para sua condição não só de artesã, mas de operária no mundo editorial italiano, quando conta a experiência com a pornografia, em que atuou por acaso ou conveniência.

Mas para que serve escrever? Escrever como eu escrevo há vinte anos é só pão de todo dia, meio para pagar as contas, todas as contas, menos aquelas com você mesma. Há vinte anos tenho este ofício para pagar o aluguel, as prestações, os boletos, a faxineira, os livros, a gasolina. Escrever não importa o quê. Usar as palavras como pedem que você faça por tanto a lauda. Esta é a minha profissão e sei como exercê-la, sei me adaptar às demandas do mercado. Hoje, por exemplo, a pornografia está na moda. Há riscos, é verdade, mas é só aprender as regras e respeitá-las. Você se senta à máquina e produz um conto, um artigo pornográfico, um livro. Um romancezinho de cem laudas que você rabisca numa semana, leva para o editor amigo que nem lê e manda para a tipografia com uma foto colorida sexy na capa e te passa o cheque. Um bom dinheirinho, ainda que os impostos te mordam uma parte. Para ganhar o mesmo com uma tradução do inglês ou do francês para qualquer editora, como a Del Duca, que paga mil e setecentas liras por lauda, menos os impostos, você leva, no mínimo, três meses19 19 “Ma a cosa serve scrivere? Scrivere come faccio io da vent’anni è solo pane quotidiano, il modo di pagare i conti, tutti i conti, meno quelli con te stesso. Da vent’anni faccio questo mestiere per pagare l’affitto, le rate, le bollette, la donna di servizio, i libri, la benzina. Non importa cosa. Usare le parole come te le chiedono a tanto a cartella. Questo è il mio mestiere e lo so fare, so adeguarmi alla richiesta del mercato. Oggi, per esempio, va di moda la pornografia. Ci sono dei rischi, è vero, ma basta imparare le regole e rispettarle. Ti metti alla macchina da scrivere e produci la novella, l’articolo pornografico, il libro. Un romanzetto di cento cartelle che butti giù in una settimana lo porti all’editore amico che non lo legge nemmeno, lo sbatte in tipografia con un fotocolor sexy in copertina e ti allunga l’assegno. Una bella sommetta anche se le tasse te ne rosicchiano una parte. Per guadagnare altrettanto con una traduzione dall’inglese o dal francese metti per la casa editrice Del Duca che te le paga millessette a cartella meno la ritenuta devi metterci almeno tre mesi” (Jatosti, 2012, s. p.).

(Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p., minha tradução).

Assim, ao se ocupar de pornografia, a narradora se encontra, mais uma vez, às voltas com o anonimato: diferentemente daquele como tradutora, agora, um anonimato previsível e praticado no setor, talvez desejado pelas implicações de uma eventual exposição.

A vida ainda mais árdua da tradutora

Para compreender melhor a espessura do embate entre as duas narrativas, convém salientar o caráter gendrado do discurso que historicamente permeia, e constrói, o campo intelectual e a prática da tradução. Num artigo de 1988, que abriu um rico debate, Lori Chamberlain (1988)Chamberlain, Lori. “Gender and the Metaphorics of Translation”. Signs, 13(3), p. 454-472, 1988. demonstra como as metáforas da tradução associam-se às funções reprodutivas e sociais atribuídas às mulheres. De acordo com a pesquisadora, “o gendramento das traduções ocorre, pelo menos, já no século XVII, quando a bem conhecida expressão les belles infidèles foi cunhada por Gilles Ménage por volta de 1654”20 20 “the gendering of translations occurs at least as early as the seventeenth century, when the well-known tag les belles infidèles was coined by Gilles Ménage around 1654” (Chamberlain, 2001, p. 94). (Chamberlain, 2001Chamberlain, Lori. Gender metaphorics in translation. In: Baker, Mona (Ed.). Routledge Encyclopedia of Translation Studies. New York: Routledge, 2001. p. 93-96., p. 94, minha tradução), ou mesmo antes, no século precedente, em discussões sobre a questão da fidelidade na tradução bíblica. Sem desprezar a força das metáforas na construção de nosso pensamento e na nossa experiência no mundo, Chamberlain (2001)Chamberlain, Lori. Gender metaphorics in translation. In: Baker, Mona (Ed.). Routledge Encyclopedia of Translation Studies. New York: Routledge, 2001. p. 93-96. mostra o jogo entre pureza, servilismo, violação e penetração que se lê nos discursos envolvendo, e delineando, o ato de traduzir e a relação entre os textos de chegada e de partida – em suma, uma relação entre a reprodução, feminina e hierarquicamente inferior, e a criação, masculina e primordial, a exemplo da matriz social mais ampla em que se espelha. Contribuindo para a mesma reflexão, Luise von Flotow, em texto de 1991 traduzido para o português em 2021, evidencia “os tropos tradicionais utilizados para a tradução [que] refletiram as relações de poder entre os sexos e revelaram o medo do materno (ou da língua mãe), a necessidade de sua proteção (controle), assim como a necessidade de conservar a posse dos filhos (textos)” (Von Flotow, 2021Von Flotow, Luise. “Tradução feminista: contextos, práticas e teorias”. Tradução de Ofir Bergemann de Aguiar e Lilian Virgínia Porto. Cadernos de Tradução, 41(2), p. 492-511, 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e75949
https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e...
, p. 507). Já Susan Bassnett, em artigo de 1992 traduzido para o português em 2020, quanto ao debate em curso naqueles anos em torno da subserviência da tradução, julga significativo que “muito do trabalho recente, [...] de meados de 1980 em diante, tenha sido iniciado pelas mulheres” (Bassnett, 2020Bassnett, Susan. “Escrevendo em terra de homem nenhum: questões de gênero e tradução”. Tradução de Naylane Araújo Mattos. Cadernos de Tradução, 40(1), p. 456-471, 2020. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2020v40n1p456
https://doi.org/10.5007/2175-7968.2020v4...
, p. 461).

A marca do gênero também é gritante no conflito entre as identidades narrativas que emanam de Jatosti, a de Anna, do romance La vita agra, e a da narradora de Tutto d’un fiato. Percebe-se que “o código metonímico de dupla inferioridade das mulheres e da tradução”, sustentado na “oposição entre o trabalho produtivo/ativo (realizado por homens e autores) e o trabalho reprodutivo/passivo (realizado por mulheres e tradutoras/es)” (Castro-Vásquez, 2017Castro-Vásquez, Olga. “(Re)examinando horizontes nos estudos feministas de tradução: em direção a uma terceira onda?”. Tradução de Beatriz Regina Guimarães Barboza. Tradterm, 29, p. 216-250. 2017. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v29i0p216-250
https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511....
, p. 226), opera vigoroso, mas sofre ainda um desdobramento em sua operação. Em outras palavras, a relação entre a tradutora invisibilizada e o escritor é só um dos planos do conflito, por não existir ao centro uma obra escrita por um e traduzida por outra, o que não nos impede de distinguir os elementos que compõem a dupla inferioridade, numa variação que, de certa forma, a amplifica.

Como se vê em Tutto d’un fiato e nas entrevistas – outra modalidade de relato de si – dadas por Jatosti, a partir do encontro com um tradutor, menos transparente do que ela já no início da carreira, premiado com uma visibilidade que só o status de romancista de sucesso pode conferir, a tradutora mergulha num anonimato cada vez mais naturalizado. Em tal condição de transparência legítima à vista de todos, é compreensível que pareça não se dar conta, num primeiro momento, da autoria escamoteada, pois o cuidado e o apoio, atribuídos à esfera do feminino, recobrem a atividade profissional do casal e acabam por embaralhar afeto, convivência e produção, validando o apagamento da mulher. Assim, àquele grande volume de trabalho invisível e gratuito, executado em nome do amor ou do dever, que tipicamente compõe a divisão sexual do trabalho no capitalismo, vem se somar outro trabalho invisível, que é potencializado no anonimato em nosso caso específico, num campo já invisibilizado como um todo, ou seja, a tradução.

Tentando dar maior contorno ao quadro, tenhamos em conta que a noção de profissão feminina, segundo a historiadora Michelle Perrot, só veio a ser concebida no bojo de um processo generalizado de profissionalização, iniciado no século XIX, com função instrumental e de organização da diferença. Por serem cativas da esfera privada, as mulheres deveriam realizar tarefas profissionais que fossem menores se comparadas à extensiva tarefa doméstica, basilar e prevista na divisão social do trabalho, ou que fossem prolongamentos desta, para melhor se valerem de qualidades tidas como inatas: “flexibilidade do corpo, agilidade dos dedos – aqueles ‘dedos de fada’, hábeis na costura e no piano, propedêutico do teclado da datilógrafa e da estenotipista” (Perrot, 2005Perrot, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Tradução de Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2005., p. 252). Quanto ao âmbito da criação e da escrita, salienta Perrot, restringem-se, em geral, às tarefas consideradas de meras imitadoras: “copistas, secretárias, tradutoras, intérpretes. Nada mais” (Perrot, 2007Perrot, Michelle. Minha história das mulheres. Tradução de Angela M. S. Correa. São Paulo: Contexto, 2007., p. 96).

Portanto, imitadora – datilógrafa ou tradutora – e, de mais a mais, anônima. Com a morte do companheiro, a subalternidade a que é reduzida a narradora não se dissolve, claro, só revela sua outra face. Se a presença dele era um peso que a achatava à condição de “mulher de”, na ausência dele, vê-se obrigada a começar de novo, a recuperar todo um percurso para prover seu sustento econômico, bem como o do filho. Determinada a “fazer às claras o que por anos vinha fazendo mais ou menos às escondidas”21 21 “decisi di fare allo scoperto ciò che da vent’anni facevo più o meno clandestinamente” (Jatosti, 2012, s. p.). (Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p., minha tradução), recorre à “grande editora”, que lhe propõe um teste de tradução. Em uma conversa com esforço encaixada na agenda de um amigo dos velhos tempos, ela exprime seu espanto – “Mas eu já traduzi para vocês... Pearl S. Buck e outros, vocês não lembram?”22 22 “Ma io ho già tradotto per voi… Pearl S. Buck e altro, ricordate?” (Jatosti, 2012, s. p.). (Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p., minha tradução)23 23 A referência à escritora Pearl S. Buck permite deduzir que o grande editor não nomeado é Angelo Rizzoli e a obra traduzida por Jatosti é Le ragazze di Madame Liang, lançada em 1970. Considerando que Bianciardi morreu em 1971, aqui se percebe uma incoerência entre a narrativa, ou talvez o tempo da memória, e as datas da vida real. –, mas ele não lembra e, com um frio e cerimonioso pronome “lei”, apenas insiste no teste rotineiro.

Neste ponto, cabe explicitar melhor o que pode implicar este embate entre dois romances de forte viés autobiográfico no qual me empenhei até agora. Em primeiro lugar, é imprescindível ressalvar que não se trata, obviamente, de destruir a memória de um importante escritor do Novecentos italiano, dotado de brilho literário e argúcia crítica mais do que suficientes para ser lido com entusiasmo dentro e fora da Itália e para contribuir em debates centrais da contemporaneidade. Não se trata sequer de empreender “a restituição de ‘toda a verdade’ do acontecimento, porque o acontecimento pertence ao domínio do vivido e a escrita literária pertence ao domínio da linguagem” (Figueiredo, 2018Figueiredo, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura. In: Coelho, Haydée Ribeiro & Vieira, Elisa Amorim (Orgs.). Modos de arquivo: literatura, crítica, cultura. Rio de Janeiro: Batel, 2018. p. 153-164., p. 162), como bem resume Eurídice Figueiredo em um dos textos em que analisa relatos autobiográficos. Relatos esses, porém, de um vigor e uma vigência impressionantes, que é o que nos mostra Leonor Arfuch (2010)Arfuch, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. em seu estudo sobre as várias formas de escrita que ocupam o espaço biográfico. Nesse sentido, não é difícil compreender que Jatosti leia o manuscrito do companheiro como uma proposta de representação de um real do qual ela participa, pois as pistas referenciais estão todas lá e são eloquentes; tampouco é difícil compreender a sua raiva e o meu envolvimento solidário de leitora à sua narrativa.

Dito isso, quero precisar que o que julgo fundamental para o âmbito e a justificativa deste trabalho é que, no entrecruzamento das obras, estamos numa arena onde duas construções discursivas visam a acessar o real de maneira crítica. Enquanto a narrativa de Bianciardi ficcionaliza a desumanização provocada pelo progresso urbano e o avanço da produtividade capitalista sobre todas as dimensões da vida – temas nos quais se aprofundam os estudiosos do escritor –, a proposta deste artigo é justamente dar visibilidade ao relato de Maria Jatosti no que este pode ser lido como uma legítima intervenção crítica da autora à crítica cultural bianciardiana. Sua narrativa não se preocupa em questionar a crítica contida em La vita agra, ao contrário, enfatiza a necessidade do exercício intelectual e da militância da esquerda num período que se estende até os anos de chumbo. Em sua reivindicação de reconhecimento e autoria, porém, ao ficcionalizar sua relação com o escritor e com a indústria editoral – o que busquei evidenciar no exame de sua obra –, ela realiza uma operação crítica ulterior, lançando luz sobre a condição específica da mulher, trabalhadora intelectual precarizada, em particular, tradutora, no mesmo período histórico. Aliás, creio que, em vista do meu próprio esforço em salientar tal operação, seria possível associar este artigo a uma das formas de investigação sugeridas por Castro e Spoturno (2022)Castro, Olga & Spoturno, María Laura. “Feminismos e tradução: apontamentos conceituais e metodológicos para os estudos feministas transnacionais da tradução”. Tradução de Maria Bárbara Florez Valdez e Beatriz Regina Guimarães Barboza. Cadernos de Tradução, 42(1), p. 1-59, 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e81122
https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e...
na demarcação de um amplo campo de estudos feministas transnacionais da tradução.

Embora a narradora afirme considerar o feminismo dispensável na luta pela justiça social que deveria ser de todos e para todos – posição, aliás, comum a tantas mulheres de esquerda da época –, através de Tutto d’un fiato, Jatosti constrói uma imagem de si que hoje pode ser merecidamente celebrada a partir de uma perspectiva de gênero, ou, talvez, somente a partir desta perspectiva. Em outras palavras, entendo que apenas um olhar que vê o feminismo como “luta para acabar com a opressão sexista” (hooks, 2020Hooks, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Tradução de Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2020., p. 59) – não como “um estilo de vida, nem uma identidade pré-fabricada ou um papel a ser desempenhado em nossas vidas pessoais” (hooks, 2020, p. 59) – é capaz de ler sua obra e propor sua recepção como uma operação crítica, tirando-a do lugar invisibilizado de queixa ressentida por reconhecimento. É também este olhar o único capaz de depreender da narrativa como a raiva e o ressentimento, que, a princípio, movem a narradora, não a aprisionam à posição de vítima, antes, a fortalecem para reagir ao ambiente misógino da indústria editorial que a cerca.

  • 1
    As obras de Jatosti e Bianciardi não foram traduzidas para o português. Convém advertir que todas as passagens citadas dessas obras, bem como de outros textos não traduzidos listados nas Referências, são traduções minhas.
  • 2
    “È appunto in quei mesi che Giangiacomo Feltrinelli si rivolge al Partito comunista per chiedere qualche nome di giovane intellettuale, anche non interno al partito, da inserire nella nuova redazione [...] Come lui una intera generazione di intellettuali, in quei primi anni cinquanta, stava intraprendendo lo stesso viaggio, dall’Italia provinciale e contadina (piccole riviste, biblioteche, cineforum, notizie di seconda mano) alla grande città dell’industria culturale: giornali, case editrici, rotocalchi, pubblicità” (Corrias, 2011Corrias, Pino. Vita agra di un anarchico. Luciano Bianciardi a Milano. Milano: Feltrinelli, 2011., p. 79-80).
  • 3
    “fanatica e settaria [...] ma senza cattiveria dottrinale [...] tecnica insurrezionale” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 59).
  • 4
    “Certo, tu stai alla macchina, io mi piazzo qui bello papale sul letto, col libro e il vocabolario, e detto” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 88).
  • 5
    “Venti cartelle ogni giorno, compresa la domenica. Venti cartelle di duemila battute. Tutti i giorni, perché poi bisogna calcolarci anche il tempo per rileggere, tre o quattro giorni al mese in tutto, e un giorno che va perduto per fare il giro delle consegne, alla fine del mese”. Sono perciò venticinque giorni a cartelle piene, cinquecento cartelle mensili complessive, che a quattrocento lire l’una danno duecentomila lire mensili. Sessanta vanno a Mara, trenta al padrone di casa, dieci fra luce gas e telefono (e d’inverno anche di più, perché bisogna tenere acceso quasi tutto il giorno, mentre d’estate si consuma meno luce, ma bisogna lavarsi più spesso, e allora quello che hai risparmiato di lampadine ti va per lo scaldabagno), venti di rate fra mobili vestiti e libri (si potrebbe anche non leggere, ma i vocabolari li devi comprare), quindici fra sigarette, caffè, giornali e qualche cinema, cinque fra pane e latte, e ti restano sessantamila mensili per il companatico e gli imprevisti” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 134).
  • 6
    Para uma discussão sobre essa crítica, remeto a Chiarini (2019)Chiarini, Ana Maria. “A crítica do progresso e do trabalho precário em La vita agra, de Luciano Bianciardi”. Revista da Anpoll, 1(50), p. 101-109, 2019. DOI: https://doi.org/10.18309/anp.v1i51.1337
    https://doi.org/10.18309/anp.v1i51.1337...
    .
  • 7
    “Riuscivamo a fare anche quindici, anche venti cartelle al giorno [...] allora, a che punto siamo? [...] alle tre di notte avevamo finito” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 133-136).
  • 8
    “Mi piacerebbe tanto visitar l’Irlanda” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 139).
  • 9
    “Sto qui seduto a dondolare le mie gambe italiane e ripenso a ieri sera, quel che è capitato a Sebastian, la rissa nel bar e poi la fuga in bicicletta com indosso un cappotto rubato” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 140).
  • 10
    “Ciascuno di costoro m’ha portato via un pezzo di fegato, e tutti insieme mi hanno dannato l’anima, mi hanno stravolto persino l’infanzia. Quando non riesco a prendere sonno, penso alle mie vacanze, bambino, su a Streetrock, o nei prati attorno a Plaincastle, St. Flower […] Ripenso ai lunghi viaggi sulle strade verso Download, Hazely, Copperhill […] e poi il ritorno, dalla parte del camposanto di Scrub, nella grande pianura open to winds and to strangers. Then from everywhere crowds had rushed to this newly-found Mecca: black dealers from the South, carrying suitcases filled with oil, speculators from the North, determined to start new enterprises in this promising area, prostitutes, shoeblaks, tramps, ballad-singers, pedlars of combs and shoe-laces, fortune tellers with a parrot and an accordion, and little by little all the others; land officers, policemen, insurance brokers, craftsmen, school teachers and priests” (Bianciardi, 2016Bianciardi, Luciano. La vita agra. Milano: Feltrinelli, 2016., p. 141-142).
  • 11
    “rappresentare ed esprimere un quadro e un giudizio della realtà industriale più complesso […] anche se qui non si esce dai limiti di una protesta anarchico-privata” (Calvino, 2002Calvino, Italo. “La ‘tematica industriale’ (1962)”. In: Calvino, Italo. Mondo scritto e mondo non scritto. Milano: Mondadori, 2002. p. 68-71., p. 69).
  • 12
    “Sì, ho dovuto” (De Nicola, 2007De Nicola, Antonella. “Intervista a Maria Jatosti. Roma, 4 maggio 2005”. In: De Nicola, Antonella (Ed.). La fatica di un uomo solo. Sondaggi nell’opera di Luciano Bianciardi traduttore. Firenze: Società Editrice Fiorentina, 2007. p. 191-207., p. 201).
  • 13
    “Odiai quel manoscritto e soprattutto Anna. Quella non ero io. Gli amici dicevano in coro: “Non hai capito niente! Questo libro è un atto di amore. La letteratura è una cosa, la vita un’altra”, ma io non capivo la differenza. Quella era la mia vita, la mia storia, la nostra storia, la nostra Milano, il nostro sogno. Oggi so che un libro non si giudica così. Dopo tanti anni quando l’ho riletto, col distacco, la lucidità, la consapevolezza di chi fa i conti ogni giorno con il mestiere di scrivere, ma anche com il cuore di tanti giovani che lo scoprono, tra cui mia nipote diciottenne, ho corretto la visuale” (Jatosti, 2022Jatosti, Maria. “L’utopia perduta”. In: Baraghini, Marcello et al. (Orgs.). La Maria del Bianciardi e altre storie. Pitigliano: Strade Bianche, 2022. p. 7-27., p. 21-22).
  • 14
    “Esclusivamente degli inizi suoi, della sua storia, dunque, non della nostra storia comune” (De Nicola, 2007De Nicola, Antonella. “Intervista a Maria Jatosti. Roma, 4 maggio 2005”. In: De Nicola, Antonella (Ed.). La fatica di un uomo solo. Sondaggi nell’opera di Luciano Bianciardi traduttore. Firenze: Società Editrice Fiorentina, 2007. p. 191-207., p. 191).
  • 15
    “A casa venivano Calvino, Sereni, Mastronardi. Io ascoltavo, leggvo, lavoravo, vivevo. E scrivevo. Ma come scrittrice, pur pubblicando racconti e novelle su testate ‘femminili’ a grande tiratura nazionale, nell’ambiente milanese ero considerata una che entrava dalla porta laterale, non proprio di servizio, ma quasi. Di altri, numerosi, lavori editoriali che appartengono a quel periodo (editing, traduzioni, revisioni, eccetera), non v’è traccia. In fondo, restavo sempre la donna di, quella che stava con. Per di più abusivamente, irregolarmente.
    [...] Ero quella che batteva a macchina le traduzioni di Luciano, ma non ero la sua dattilografa: il nostro era veramente un lavoro in tandem e questo era il lato bello della storia, dello stare insieme. Lavoravamo fianco a fianco: due mani, le mie, due cervelli, i nostri” (Abati & De Rosa, 2003Abati, Velio & De Rosa, Tiziana. “Maria Jatosti. Intervista di Velio Abati e Tiziana De Rosa”. Il Gabellino. 10(9), p. 8-15, 2003., p. 9-11).
  • 16
    “Stavamo seduti vicini, fianco a fianco, e la sua voce mi arrivava all’orecchio disuguale, interrotta, con lunghe pause pensose in cui mi sembrava di sentire il lavorio del suo cervello. Le mani correvano sul dizionario, scorrevano le voci e quando la parola suonava giusta c’era una specie di gioia che ci prendeva tutti e due. Dài, capatosta, forza, picchia. [...]
    Quando era stanco lui, si stendeva sul letto, coi vocabolari intorno e la sua voce mi giungeva alle spalle. Mi piaceva meno così, era più bello chinare tutti e due la testa sul vocabolario e cercare insieme, scoprire la parola che andasse meglio. Mi incantavo e lui a dirmi, dài capatosta, dài, che gli abbiamo visto il culo. A fare il calcolo delle pagine del libro che restavano, delle giornate, delle ore di lavoro che ci rimanevano per arrivare in fondo. Una montagna di pagine” (Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p.).
  • 17
    “No, niente aborto. Niente visite umilianti, tentativi infruttuosi, pellegrinaggi per trovare i soldi e un medico compiacente [...]
    Niente nausea e quel dolore acuto, sordo laggiù e il vecchio dottore che ti maneggia […] E questo se ti va bene, se hai tanti soldi da permetterti un intervento igienico, fatto da professionisti veri. Più serio è il professionista, maggiore è la somma da trovare.
    Altrimenti ci sono le mammane [...] e di là neanche il lettino ginecologico, ma un giaciglio sfatto, molle, com la tela cerata di traverso e un pentolone di alluminio com dentro i ferri appena bolliti, cucchiai, raschietti, becchi d’oca, fumanti e rugginosi. [...]
    Niente di tutto questo, perché lei è la moglie e le mogli non fanno queste cose, le mogli mettono al mondo figli legittimi riconosciuti com nome cognome battesimo comunione università e tutto il resto. Compresa l’eredità, morale e materiale” (Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p.).
  • 18
    “un’artigiana che fa onestamente il suo mestiere” (Abati & De Rosa, 2003Abati, Velio & De Rosa, Tiziana. “Maria Jatosti. Intervista di Velio Abati e Tiziana De Rosa”. Il Gabellino. 10(9), p. 8-15, 2003., p. 14).
  • 19
    “Ma a cosa serve scrivere? Scrivere come faccio io da vent’anni è solo pane quotidiano, il modo di pagare i conti, tutti i conti, meno quelli con te stesso. Da vent’anni faccio questo mestiere per pagare l’affitto, le rate, le bollette, la donna di servizio, i libri, la benzina. Non importa cosa. Usare le parole come te le chiedono a tanto a cartella. Questo è il mio mestiere e lo so fare, so adeguarmi alla richiesta del mercato. Oggi, per esempio, va di moda la pornografia. Ci sono dei rischi, è vero, ma basta imparare le regole e rispettarle. Ti metti alla macchina da scrivere e produci la novella, l’articolo pornografico, il libro. Un romanzetto di cento cartelle che butti giù in una settimana lo porti all’editore amico che non lo legge nemmeno, lo sbatte in tipografia con un fotocolor sexy in copertina e ti allunga l’assegno. Una bella sommetta anche se le tasse te ne rosicchiano una parte. Per guadagnare altrettanto con una traduzione dall’inglese o dal francese metti per la casa editrice Del Duca che te le paga millessette a cartella meno la ritenuta devi metterci almeno tre mesi” (Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p.).
  • 20
    “the gendering of translations occurs at least as early as the seventeenth century, when the well-known tag les belles infidèles was coined by Gilles Ménage around 1654” (Chamberlain, 2001Chamberlain, Lori. Gender metaphorics in translation. In: Baker, Mona (Ed.). Routledge Encyclopedia of Translation Studies. New York: Routledge, 2001. p. 93-96., p. 94).
  • 21
    “decisi di fare allo scoperto ciò che da vent’anni facevo più o meno clandestinamente” (Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p.).
  • 22
    “Ma io ho già tradotto per voi… Pearl S. Buck e altro, ricordate?” (Jatosti, 2012Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato. Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012., s. p.).
  • 23
    A referência à escritora Pearl S. Buck permite deduzir que o grande editor não nomeado é Angelo Rizzoli e a obra traduzida por Jatosti é Le ragazze di Madame Liang, lançada em 1970. Considerando que Bianciardi morreu em 1971, aqui se percebe uma incoerência entre a narrativa, ou talvez o tempo da memória, e as datas da vida real.

Referências

  • Abati, Velio & De Rosa, Tiziana. “Maria Jatosti. Intervista di Velio Abati e Tiziana De Rosa”. Il Gabellino 10(9), p. 8-15, 2003.
  • Antunes, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital São Paulo: Boitempo, 2018.
  • Arfuch, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea Tradução de Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
  • Bassnett, Susan. “Escrevendo em terra de homem nenhum: questões de gênero e tradução”. Tradução de Naylane Araújo Mattos. Cadernos de Tradução, 40(1), p. 456-471, 2020. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2020v40n1p456
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2020v40n1p456
  • Bianciardi, Luciano. La vita agra Milano: Feltrinelli, 2016.
  • Bruni, Raoul. “La vita agra reloaded. Aggiornamento sulla fortuna di Bianciardi”. In: Bruni, Arnaldo et al (Orgs.). La vipera che ‘l melanese accampa. Luciano Bianciardi, Grosseto e La vita agra. Due giornate di studio per i 50 anni de La vita agra e i 90 anni dalla nascita di Luciano Bianciardi Milano: ExCogita, 2014. p. 31-44.
  • Calvino, Italo. “La ‘tematica industriale’ (1962)”. In: Calvino, Italo. Mondo scritto e mondo non scritto Milano: Mondadori, 2002. p. 68-71.
  • Castro, Olga & Spoturno, María Laura. “Feminismos e tradução: apontamentos conceituais e metodológicos para os estudos feministas transnacionais da tradução”. Tradução de Maria Bárbara Florez Valdez e Beatriz Regina Guimarães Barboza. Cadernos de Tradução, 42(1), p. 1-59, 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e81122
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e81122
  • Castro-Vásquez, Olga. “(Re)examinando horizontes nos estudos feministas de tradução: em direção a uma terceira onda?”. Tradução de Beatriz Regina Guimarães Barboza. Tradterm, 29, p. 216-250. 2017. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v29i0p216-250
    » https://doi.org/10.11606/issn.2317-9511.v29i0p216-250
  • Chamberlain, Lori. “Gender and the Metaphorics of Translation”. Signs, 13(3), p. 454-472, 1988.
  • Chamberlain, Lori. Gender metaphorics in translation. In: Baker, Mona (Ed.). Routledge Encyclopedia of Translation Studies New York: Routledge, 2001. p. 93-96.
  • Chiarini, Ana Maria. “A crítica do progresso e do trabalho precário em La vita agra, de Luciano Bianciardi”. Revista da Anpoll, 1(50), p. 101-109, 2019. DOI: https://doi.org/10.18309/anp.v1i51.1337
    » https://doi.org/10.18309/anp.v1i51.1337
  • Corrias, Pino. Vita agra di un anarchico. Luciano Bianciardi a Milano Milano: Feltrinelli, 2011.
  • De Nicola, Antonella. “Intervista a Maria Jatosti. Roma, 4 maggio 2005”. In: De Nicola, Antonella (Ed.). La fatica di un uomo solo. Sondaggi nell’opera di Luciano Bianciardi traduttore Firenze: Società Editrice Fiorentina, 2007. p. 191-207.
  • Figueiredo, Eurídice. A literatura como arquivo da ditadura. In: Coelho, Haydée Ribeiro & Vieira, Elisa Amorim (Orgs.). Modos de arquivo: literatura, crítica, cultura Rio de Janeiro: Batel, 2018. p. 153-164.
  • Hooks, bell. Teoria feminista: da margem ao centro Tradução de Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2020.
  • Jatosti, Maria. Tutto d’un fiato Roma: Stampa Alternativa/Nuovi Equilibri, 2012.
  • Jatosti, Maria. “L’utopia perduta”. In: Baraghini, Marcello et al (Orgs.). La Maria del Bianciardi e altre storie Pitigliano: Strade Bianche, 2022. p. 7-27.
  • Marx, Karl. O Capital Crítica da economia política: o processo global da produção capitalista. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
  • Perrot, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história Tradução de Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 2005.
  • Perrot, Michelle. Minha história das mulheres Tradução de Angela M. S. Correa. São Paulo: Contexto, 2007.
  • Von Flotow, Luise. “Tradução feminista: contextos, práticas e teorias”. Tradução de Ofir Bergemann de Aguiar e Lilian Virgínia Porto. Cadernos de Tradução, 41(2), p. 492-511, 2021. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e75949
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2021.e75949

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2023
  • Aceito
    12 Jun 2023
  • Publicado
    Set 2023
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: suporte.cadernostraducao@contato.ufsc.br