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Desigualdades em saúde no Brasil: é preciso ter raça

Desigualdades en salud en Brasil: la raza importa

PERSPECTIVAS PERSPECTIVES

Desigualdades em saúde no Brasil: é preciso ter raça

Desigualdades en salud en Brasil: la raza importa

Dóra Chor

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência Correspondência D. Chor Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ 21041-210, Brasil. dorachor@fiocruz.br

"...111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos/Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres/E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos" (Haiti, Caetano Veloso).

No Brasil, o tema "raça e saúde" é controverso. Estou convencida de sua importância em função da escassez de estudos empíricos que investiguem a magnitude e influência das desigualdades raciais no adoecimento. Não se trata de discutir a hierarquia dos condicionantes das desigualdades em saúde no Brasil. Penso ser consenso que a origem é social. No entanto, em um mundo em que o pensamento conservador avança, é preciso conjugar o universal e o particular incluindo evidências empíricas sobre discriminação, racismo, raça e saúde no Brasil.

Já fui questionada, por colegas e alunos, sobre os motivos pelos quais alguns pesquisadores brasileiros são contrários a estudos de saúde com recorte racial. Nunca consegui responder a essa pergunta de forma direta. A discussão foi acalorada nos anos 2000, o tema foi apresentado em mesa redonda no VI Congresso Brasileiro de Epidemiologia (2004) e suas palestras publicadas em Cadernos de Saúde Pública (ver Fórum: Raça, Racismo e Saúde no Brasil 1,2,3,4) em 2005. Recentemente, desapareceu dos congressos de Epidemiologia e de Saúde Pública como atividade prioritária, e até mesmo de reuniões científicas dedicadas aos Determinantes Sociais de Saúde.

Apesar do interesse de pesquisadores estrangeiros sobre as desigualdades raciais em saúde no Brasil, não foi possível incorporar investigações empíricas suficientes a esse respeito no abrangente painel sobre o país, publicado em 2011, no The Lancet. As exceções apontaram consistentemente para a desvantagem dos mesmos grupos raciais – alarmante mortalidade por violência que atinge jovens pretos e pardos 5, maior mortalidade de crianças pretas e pardas até 5 anos de idade 6, dificuldades e insatisfação mais frequentes no atendimento de gestantes pretas, e a ocorrência de doenças crônicas entre indígenas 7.

Na contramão dessa tendência, setores da imprensa abordam casos de racismo como o do menino negro quase expulso de uma concessionária de automóveis no Rio de Janeiro, onde os pais adotivos brancos se encontravam. Nessa matéria, Zuenir Ventura 8 questiona se "o que muitos chamam de racismo cordial, não seria o contrário, velado, camuflado, que quando flagrado se disfarça, alegando engano ou má interpretação". Como curiosidade, Zuenir finaliza a matéria informando que a mortalidade por doenças infecciosas é 43% maior entre crianças negras do que entre brancas. Quais são as consequências, na saúde, do tratamento que aquele e outros meninos recebem? Como saber se a assistência à saúde não é permeada pela discriminação?

A imprensa noticiou a existência do "SPP" (se parar parou). É a triagem na fila de espera de serviços de saúde. Será que sendo todos pobres, os pretos ficam no final? Como saber sem pesquisar? E já que o assunto é delicado, difícil de ser mensurado, vamos transformá-lo em tabu no que tange a pesquisas empíricas? Não, o SUS não é racista, como apontam os autores 9. Ao contrário, seu ideário é o da universalidade, igualdade entre todos os brasileiros. No entanto, não podemos achar que em função desse ideário, tratamentos racistas ocorrem somente em outras instituições.

Há resultados de investigações brasileiras que fornecem evidências de iniquidades (porque injustas e evitáveis) raciais em saúde. Em Pelotas (Rio Grande do Sul), a taxa de mortalidade infantil de filhos de mães brancas em 1982 (30 por 1.000 nascidos vivos) só foi alcançada por filhos de pretas e pardas em 2004! Nesse ano, a taxa de mortalidade infantil dos filhos de mães brancas já estava no patamar de países de alta renda (13,9 por 1.000 nascidos vivos) 10. Investigando a realização de mamografia na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2008), constata-se que a prevalência do rastreamento era maior para mulheres brancas, de maior renda, de maior escolaridade ou que moravam em regiões metropolitanas de melhor padrão socioeconômico 11.

A literatura internacional sobre desigualdades sociais em saúde é volumosa, não descarta a influência da raça e a relaciona com as condições socioeconômicas, apontando a complexidade e desafios desse entrecruzamento. É necessário aprofundar esse esforço no campo da Saúde Pública brasileira.

Os resultados dos estudos nacionais, assim como a comparação com a literatura internacional, reforçam a hipótese de que também no Brasil o eixo da desigualdade racial, além do socioeconômico e o de gênero, merece investigação na área da saúde. Esses três eixos podem atuar juntos, criando grupos especialmente expostos a riscos. Em muitos casos, a adversidade econômica será a explicação mais importante. Em outros, esse eixo não será suficiente e a compreensão do papel da raça e do gênero será indispensável para explicar o desfecho e contribuir para a elaboração de políticas públicas.

Citando Edward Telles 12 (p. 38), "compartilho da preocupação de que o uso do termo raça fortalece distinções sociais que não possuem qualquer valor biológico, mas a raça continua a ser imensamente importante nas interações sociológicas e, portanto, deve ser levada em conta nas análises sociológicas". Estudos sobre raça têm tradição nas ciências sociais brasileiras. Na educação, as iniquidades raciais foram diagnosticadas como "fortes", merecendo ação imediata 13. O que podemos afirmar no campo da saúde? Penso que não temos evidências suficientes para descartar a raça como um dos determinantes distais de doenças e agravos, uma vez que influencia as "causas das causas": oportunidade de frequentar boas escolas, a "escolha" da profissão (também condicionada pela avaliação de ingressar naquelas mais disputadas) e a renda decorrente do trabalho.

Considerando raça como um construto social que reúne diversas dimensões da história de vida de indivíduos e gerações, os estudos de raça e saúde realizados em outros contextos não são suficientes para dar conta da nossa realidade. A ausência de segregação legal em toda a nossa história, a miscigenação, e o denominado "preconceito de ter preconceito" configuram quadro único no mundo, diferente do norte-americano e do sul-africano. No campo das pesquisas sobre discriminação, instrumentos de medida adequados ao nosso contexto são necessários e podem fornecer resultados mais próximos da realidade brasileira 14.

As limitações metodológicas são citadas como obstáculos para os estudos epidemiológicos de raça e saúde. Por exemplo, nas taxas de mortalidade específicas por grupos de doença segundo raça, o fato do numerador (número de óbitos) e do denominador (população sob risco em cada estrato de raça) serem provenientes de fontes de dados diferentes – Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM; Ministério da Saúde) e Censo Demográfico (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), respectivamente, limita a acurácia dos resultados. No entanto, problemas ainda mais importantes, como a cobertura do SIM, não nos impediram de estudar a mortalidade brasileira nos anos 80. Na realidade, esses e outros problemas foram evidenciados na medida em que os dados foram analisados e suas limitações apontadas. Esse processo auxiliou no aperfeiçoamento do sistema e trouxe informações de grande relevância sobre mortalidade no país.

Outro problema apontado refere-se à variabilidade com que as pessoas se autoclassificam. Como em outros países, também no Brasil a identidade racial não é fixa nem imutável e sua validade e confiabilidade são limitadas. Embora seja plausível imaginar que as pessoas não alterem sua autoclassificação racial em um estudo epidemiológico da mesma forma como podem se sentir constrangidas a fazer em uma candidatura a emprego, essa é uma limitação frequente para os epidemiologistas interessados nos efeitos de exposições psicossociais. Nesse caso, não há padrão-ouro e a mensuração não pode ser feita por meio de aparelhos, material biológico ou exames de imagem. Mesmo assim há fortes evidências de seus efeitos sobre a saúde.

Recentemente, em uma banca de qualificação, perguntei ao aluno por que iria ajustar o modelo estatístico de sua tese por raça uma vez que, do meu ponto de vista, não fazia muito sentido. Ele respondeu que essas análises eram apresentadas em outros artigos... mas se deu conta de que eram todos norte-americanos. A escassez de investigações brasileiras bem fundamentadas do ponto de vista conceitual e metodológico assim como de discussões consistentes de seus resultados, pode levar jovens pesquisadores a imitar raciocínios pertinentes a outras configurações sociais.

As evidências disponíveis indicam que as desigualdades de saúde refletem as desigualdades mais abrangentes na sociedade. Raça, posição socioeconômica e gênero influenciam a saúde dos brasileiros por meio de diferentes relações e com magnitudes diversas a depender da pergunta que se deseja responder. O estudo de exposições que se encontram mais próximas do desfecho na cadeia de causalidade não é incompatível com a investigação de fatores distais, entre os quais se encontra a raça. Não é prudente criar barreiras a essa linha de pesquisa sem investigações empíricas suficientes. O aparente consenso (não explicitado) de que estudar as desigualdades raciais em saúde cria divisões sociais no Brasil ao invés de expô-las, pode reforçar o determinismo biológico, distorce a abrangência de outros aspectos da discriminação ou não ajuda a compreender as origens das desigualdades sociais em nosso país parece ser tão polarizado quanto restringir a discussão à criação de programas de saúde específicos voltados exclusivamente para pardos e pretos. Concluo este texto com a dedicatória que um colega, que não compartilha do meu ponto de vista, me dirigiu em um livro sobre o tema: acima de tudo, que se amplie o debate!

Agradecimentos

A Álvaro Cesar Nascimento pelo auxílio na edição do manuscrito.

A versão em inglês deste texto está disponível online no Portal SciELO (http://www.scielo.br/csp).

The English version of this text is available online in the SciELO (http://www.scielo.br/csp).

La versión en Inglés de este texto está disponible en línea en el SciELO (http://www.scielo.br/csp).

Recebido em 31/Mar/2013

Aprovado em 01/Abr/2013

  • 1. Faerstein E. Fórum: raça, racismo e saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2005; 21:1584-5.
  • 2. Chor D. Lima CRA. Aspectos epidemiológicos das desigualdades raciais em saúde no Brasil. Cad Saúde Pública 2005; 21:1586-94.
  • 3. Lopes F. Para além da barreira dos números: desigualdades raciais e saúde. Cad Saúde Pública 2005; 21:1595-601.
  • 4. Cardoso AM. Santos RV, Coimbra Jr. CEA. Mortalidade infantil segundo raça/cor no Brasil: o que dizem os sistemas nacionais de informação? Cad Saúde Pública 2005; 21:1602-8.
  • 5. Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Maternal and child health in Brazil: progress and challenges. Lancet 2011; 377:29-42.
  • 6. Reichenheim ME, Souza ER, Moraes CL, Jorge MHPM, Silva CMFP, Minayo MCS. Violence and injuries in Brazil: the effect, progress made, and challenges ahead. Lancet 2011; 377:69-82.
  • 7. Schmidt MI, Duncan BB, Azevedo e Silva G, Menezes AM, Monteiro CA, Barreto SM, et al. Chronic non-communicable diseases in Brazil: burden and current challenges. Lancet 2011; 377:1949-61.
  • 8. Ventura Z. Brasil: um país com racismo, mas sem racistas. O Globo 2013; 26 jan.
  • 9. Maio MC, Monteiro S, Rodrigues PHA. O SUS é racista? In: Fry P, Maggie Y, Maio MC, Monteiro S, Santos RV, organizadores. Divisões perigosas: políticas raciais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Record; 2007. p. 235-40.
  • 10. Matijasevich A, Victora CG, Barros AJD, Santos IS, Marco PL, Albernaz EP, et al. Widening ethnic disparities in infant mortality in southern Brazil: comparison of 3 birth cohorts. Am J Public Health 2007; 97:692-8.
  • 11. Chor D, Oliveira EXG, Melo ECP, Pinheiro RS, Carvalho MS. Desigualdade socioeconômica afeta a chance de realizar mamografia no Brasil. http://dssbr.org/site/2011/10/desigualdade-socioeconomica-afeta-a-chance-de-realizar-mamografia-no-brasil/ (acessado em 27/Mar/2013).
  • 12. Telles E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará; 2003.
  • 13. Arbix G. Apresentação. In: Soares S, Beltrão KI, Barbosa MLO, Ferrão ME, organizadores. Os mecanismos de discriminação racial nas escolas brasileiras. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; 2005.
  • 14. Bastos JL, Faerstein E. Desafios metodológicos para a mensuração da discriminação interpessoal no Brasil. In: Bastos JL, Faerstein E, organizadores. Discriminação e saúde: perspectivas e métodos. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012. p. 75-102.
  • Correspondência

    D. Chor
    Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz.
    Rua Leopoldo Bulhões 1480, Rio de Janeiro, RJ
    21041-210, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jul 2013
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