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Corpo: identidades, memórias e subjetividades

RESENHAS BOOK REVIEWS

Eduardo Costa

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Velloso MP, Rouchou J, Oliveira C, organizadoras. Corpo: identidades, memórias e subjetividades. Rio de Janeiro: Mauad X, Faperj; 2009.

Corpo: identidades, memórias e subjetividades é resultado das ideias apresentadas e debatidas no colóquio homônimo realizado pela Fundação Casa de Rui Barbosa em maio de 2008. O livro, publicado no ano seguinte, e o colóquio fazem parte de pesquisa permanente do setor de história da fundação.

Organizado por três pesquisadoras com sólida produção, esta obra nos leva a uma incursão através das percepções múltiplas que eclodiram em busca de sentido para o mistério que é nosso corpo, composto de 100% biologia e 100% cultura, como diria Edgar Morin1.

Temos nessa obra a religação de vários olhares que, abordando o tema a partir de cinco eixos principais – "Corpo e reflexão histórica"; "Escritas de si e do tempo"; "É com o corpo que também nos lembramos..."; "Corpo alegórico e corpos no cinema" –, descortinam um olhar "poliocular", sustentado por mestres e doutores de variadas áreas de saber.

No prefácio, intitulado "Identidade e mudança: o corpo em perspectiva histórica, de Nísia Trindade Lima, encontramos um rico panorama da obra, no qual a autora afirma: "É, em suma, do movimento do corpo no tempo e no espaço que trata esta obra".

Na apresentação, com o sugestivo título de "Corpo: uma obra inconclusa", as organizadoras afirmam a fugacidade das impressões sobre um "objeto" sempre atravessado pelo momento histórico e as questões culturais. Demonstram a pertinência de uma coletânea sobre esse tema, apontando para o crescente interesse da pesquisa histórica com foco nesse objeto de estudo, e esclarecem a busca de olhares múltiplos para a compreensão de tamanha complexidade. As organizadoras também nos presenteiam com uma breve apresentação dos autores e sua inserção no todo.

Em "Uma prostituta no limiar do Modernismo", artigo que abre o primeiro eixo, Eliane Moraes, professora titular de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), colocando a figura da prostituta em foco, a distingue como peça-chave na compreensão da sensibilidade modernista, apontando sua presença constante nas manifestações artísticas desse período, como um símbolo das profundas transformações sociais da época. Ressalta uma obra emblemática, que anteciparia o projeto antropofágico – Madame Pommery, publicada em 1919, e através dela nos presenteia com um retrato daquele momento histórico, assim como das mutações vividas no Modernismo.

Com "Os imageiros do contemporâneo: representações e simulações", Nízia Villaça, professora titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e eminente pesquisadora da corporeidade, apresenta um perfil do imaginário do corpo na contemporaneidade, dialogando com as ideias de Bourdieu, Damásio e Varela, entre outros, que nos auxiliam na compreensão dos paradigmas vigentes. Fala-nos dos processos de hibridização que caracterizam nossos tempos, em que as oposições clássicas natureza/cultura e real/virtual perdem delimitações estanques forjadas pela racionalidade cartesiana.

Abrindo o segundo eixo, temos o artigo "Lascívia e constrição: leituras ocasionadas por um elogio fúnebre", de Márcia Abreu, professora livre-docente do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Ao trazer à luz o "Elogio da Illustrissima, e Excellentissima Senhora D, Anna Xavier de Assis Mascarenhas, Baroneza de Alvito, e Condessa de Oriola", composto pelo padre Teodoro de Almeida, a autora nos coloca diante da radical transformação na valorização e no acolhimento desta obra em dois diferentes momentos históricos – no século XVIII e no início do XIX – que denunciam as mudanças ocorridas no que se considerava passível de censura na relação com o próprio corpo. O elogio do padre ao autoflagelo da baronesa, como sinônimo de virtude e fé, muito bem recebido quando de sua primeira publicação, sofre críticas veementes, por seu suposto teor erótico e licencioso, no século seguinte, pelo mesmo grupo social, na mesma cidade.

"Escritas de si e do tempo: a dança como metáfora", de Mônica Velloso, uma das organizadoras da coletânea, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), discute a construção da estética moderna, trazendo os aportes de Isadora Duncan e João do Rio, que "discordavam do modelo ocidental canônico que, ligado ao pensamento racionalista, positivo e laico, elegia o discurso médico-higienista como seu porta-voz". Outro ponto de contato entre o pensamento da "antibailarina" e do escritor era a crença do corpo como tradutor da alma brasileira, possibilitando pensar uma corporeidade nacional, que se manifestaria especialmente pela dança, em ritmos encarados pela Europa como primitivos.

"Quando a visão se faz gesto", de Vera Lins, professora adjunta da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realiza um percurso pelas novas concepções de corpo, arte e cotidiano urbano no Rio de Janeiro, na virada do século XIX para o XX, a partir dos relatos no diário do crítico de arte Gonzaga Dutra. No bojo dessas idéias, a percepção de que "como obra de arte, ética e estética se juntam na forma urbana vivida pela comunidade" e que a valorização desse fenômeno seria o que de verdadeiramente novo poderia surgir, libertando a arte dos espaços destinados às classes abastadas.

Iniciando o terceiro eixo, temos o trabalho de Viviane Matesco, pesquisadora e curadora do Acervo Banerj/Museu do Ingá/Secretaria de Cultu­ra do Estado do Rio de Janeiro: "Corpo e subjetivi­dade na arte contemporânea brasileira". Nele encontramos, a partir da análise das obras dos artis­tas plásticos brasileiros Hélio Oiticica, Lygia Clark e Barrio, um mergulho no modelo fenomenológico de corporeidade, subversão do corpo literal, que profana a noção/imagem de um corpo idealizado. Na proposta desses três artistas, há a revelação do que Merleau-Ponty denomina de "olhar corporificado", em que o corpo ativo na interação com o mundo produz a percepção e, na dialógica com os objetos e espaços propostos pelos três artistas, faz surgir a obra de arte.

Em "Corpos negros em zonas de contato interculturais", Maria Antonieta Antonacci, professora do Departamento de História da PUC-SP e coordenadora do Centro de Estudos Culturais Africanos e da Diáspora da PUC-SP, parte da análise de "folhetos de cordel" do Nordeste brasileiro como reveladores das tradições orais africanas no Brasil. Nesses relatos, a autora evidencia as marcas corporificadas pela "desmoralização e racialização de povos e culturas africanas", que traziam o corpo como "arquivo vivo" nas culturas orais e que puderam ser eternizados no cordel. Evoca os estudos de Freyre e Meireles como fontes de sustentação de suas reflexões, revelando os "ares de tensão racial vivenciados em zonas de confrontos interculturais".

"Memória do olfato: o cheiro de jasmim", de Joëlle Rouchou, também organizadora do livro, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa e professora de jornalismo na UniverCidade, narra, a partir de entrevistas com exilados do Egito, que chegaram no Rio de Janeiro em 1956 e 1957, a reconstrução de suas identidades, após o trauma da expulsão, ao chegar num país estranho. Também nos mostra, através de seus relatos de memórias olfativas, gustativas e sonoras, como preservaram sua terra natal. A autora dialoga com esses discursos e com a presença dessas memórias na literatura e estudos científicos que as descrevem e comprovam, nos afirmando que "A Memória não está nos suportes materiais convencionais – ela está no corpo".

Paola Jacques, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA) e pesquisadora do CNPq, apresenta seu artigo explicitamente deleuziano: "Corpografias urbanas: a memória da cidade no corpo. Dialogando com premissas de Deleuze e Guattari e aportes de Foucault e com o conceito de Sociedade do Espetáculo, preconizado por Debord, a autora propõe uma reforma no urbanismo hegemônico, utilizando a "errância urbana" – a capacidade de incorporar a cidade – como instrumento de melhor compreender as tensões corpo/cidade e ordenar espaços a partir dessas vivências sensório-motoras. Isso traria, em sua opinião, a "desespetacularização" da cidade e respectivamente de seus cidadãos. O conceito de corpografia fala, portanto, da "incorporação do corpo na cidade e da cidade no corpo", que para Jacques deveria ser a meta do urbanismo e também da historiografia das cidades.

Chegamos, então, ao quarto eixo, que se abre com o artigo da terceira organizadora deste livro, Cláudia de Oliveira, professora do Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes (Ucam) e pesquisadora associada (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro/Faperj) do setor de História da Fundação Casa de Rui Barbosa. Em "A Carioca de Pedro Américo: o corpo pulsante", a autora analisa as reações acerca da tela de 1882, identificando interfaces arte/sociedade e investigando seus sentidos na produção de valores. Aponta que a reação negativa à tela não teria sido em relação à representação desnuda, mas sim em relação a atributos não canônicos, ruptura com as exigências imperiais de imagens "evocadoras de virtudes que exaltassem o patriotismo e a moral". A mestiçagem presente na opulência das formas erotizadas faz aparecer um "corpo pulsante" insuportável à mordomia imperial, talvez por ser metáfora de uma nação "rica, exuberante e mestiça".

Segue-se "Das formas e cores – Fayga Ostrower – do corpo operante", de Maria Luísa Távora, professora de história da arte da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Neste texto, Távora busca "abordar a obra de Fayga Ostrower (1920-2001) como cenário para reflexões sobre o corpo, corpo que constitui o mundo a partir da experiência". A partir de suas gravuras e escritos, a autora mostra as afinidades de Ostrower com as bases do pensamento de Merleau-Ponty, o que norteia o surgimento de um "corpo operante como instância originária a partir da qual todo pensar, todo dizer, todo significar, obtém sentido".

Em "Corpos estranhos: Frankenstein e o objeto eclético", de Marize Malta, também professora da Escola de Belas-Artes da UFRJ, encontramos a obra de Mary Shelley, publicada em 1816, como metáfora para pensar o surgimento do Ecletismo e seu papel na revisão dos conceitos da tradição, perpetuados pelas Escolas de Belas-Artes. Tal fenômeno revela o surgimento de um "gosto diferente, antes impedido de tornar-se visível e que no século XIX pôde aflorar e se expandir – o gosto de uma classe média urbana".

Abrindo o último eixo, o artigo de Ivana Bentes, diretora, professora e pesquisadora da ECO-UFRJ, com vasta obra sobre as interfaces arte/sociedade, nos convida, desde o título, a uma refle­xão embasada em Nietzsche, Deleuze e Guattari na dialógica com o cinema. "O que pode um corpo? Cinema, biopoder e corpos-imagens que resis­tem" narra as transmutações nas estratégias de dominação e controle dos corpos – marcas de um corpo sempre em construção e atravessado pela cultura. Especialmente através da obra de David Cronenberg, Bentes nos desvela a passagem da visão disciplinar ao biopoder, "onde o que é investido é a própria vida em todas as suas poten­cialidades". Contudo, também reflete sobre as possíveis resistências – estados de exceção – em que localiza, apesar do risco de se tornarem novas mercadorias, a produção/visibilidade de "novos sujeitos de discursos" que surgem das favelas e comunidades, especialmente no Rio de Janeiro, "Periferias capazes de ascender à cultura de massas".

"O corpo transparente: o imaginário biotecnológico na ficção cinematográfica", de Ieda Tucherman, professora associada de Pós-Graduação da ECO-UFRJ e pesquisadora do CNPq, trata da nova relação de visibilidade dos sujeitos/corpos a partir da intermediação da fotografia policial, do cinema, em especial dos filmes de investigação, e dos instrumentos de diagnóstico médico. Denunciando o tratamento do corpo cada vez mais como espetáculo, a autora nos indaga sobre os destinos desse "corpo pós-humano" que surge na contemporaneidade.

O artigo que encerra o livro é de Alcides Freire Ramos, estudioso das interfaces cinema e história. Em "Corpo, identidades, memória e sensibilidades em Lição de amor (1976, Eduardo Escorel)", Ramos, acreditando que "o cinema pode se apresentar como veículo privilegiado das sensibilidades partilhadas", utiliza o filme de Escorel como símbolo da crítica ao modo de vida das famílias burguesas no momento histórico da ditadura. O autor reflete sobre a obra literária que deu origem ao filme, o livro Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade sustentando que sua tradução cinematográfica, a despeito da opinião de alguns críticos, foi de extrema relevância e fidelidade à ideia original.

Acreditamos que a ampliação e a diversificação de focos sobre o corpo, proporcionadas pela coletânea, serão de grande valia aos profissionais da Saúde Pública e Educação, possibilitando a compreensão mais abrangente das singularidades e comunhões entre os humanos, a partir de nossa realidade hipercomplexa. As interfaces propostas auxiliam no fomento à religação dos saberes, de forma transdisciplinar, em que o eixo de qualquer intervenção clínica ou educacional é o Sujeito ao qual se destina. Portanto, o livro contribui para uma abordagem mais ética e compreensiva dos Sujeitos/Corpos e de nossa responsabilidade sobre nossos destinos, como produtos, produtores e reprodutores dos processos em saúde em nossa sociedade.

  • 1. Morin E. O Método 5: a humanidade da humanidade Porto Alegre: Sulina; 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2011
  • Data do Fascículo
    Maio 2011
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