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RESENHAS

Tendências de mudanças na formação médica no Brasil. Tipologia das escolas. Jadete Barbosa Lampert. Editora Hucitec-Abem, Rio de Janeiro-São Paulo. 2002, 283pp

André de Faria Pereira Neto1 1 Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Um sonho a ser sonhado

"Confiro-vos o grau de médico. Podeis exercer a medicina".

Estas célebres palavras, pronunciadas, em geral, em cerimônia solene, nos quatro cantos do país, habilitam simbolicamente o médico ao exercício profissional.

E, que médico será esse? A quem ele vai atender? Quais serão suas normas de conduta? Qual será o sentido geral de sua prática profissional? Como as escolas médicas devem estar organizadas para formar este profissional? Ou melhor: que profissional elas devem formar?

Essas são algumas das perguntas que animaram Jadete Barbosa Lampert a pesquisar e escrever sua instigante tese de doutorado, recém transformada no livro Tendências de mudanças na formação médica no Brasil. Tipologia das escolas.

As palavras de Lampert, atual primeira vice-presidente da Associação Brasileira de Ensino Médico (ABEM), misturam utopias com realidade. Não poderia ser diferente. Analista contumaz do sistema de ensino médico, Lampert apresenta, nesta obra, um diagnóstico e uma terapêutica para curar os males que afligem as escolas médicas brasileiras.

E que males seriam esses? No seu entender, o ensino médico está doente, pois, ainda hoje, prepara um profissional seguindo o denominado "modelo flexneriano", fundado nos Estados Unidos, no início do século 20. Com ele, a formação médica passou a ser organizada em torno de conhecimentos fragmentados, distribuídos em disciplinas isoladas que levaram a uma exacerbada especialização profissional.

Em um texto inteligente, bem escrito, interessante e politicamente engajado, Lampert apresenta uma saída para este, aparente, caminho sem volta. A doença provocada pela hiper-especialização do conhecimento médico teria uma terapêutica simples. Para a autora, bastaria levar o futuro médico a se comprometer, de maneira competente, com o atendimento das "necessidades básicas de saúde" (NBS) da população. O atendimento a essas necessidades compreenderia ações individuais, coletivas, educacionais, preventivas, assistenciais e curativas. Durante sua formação universitária, o estudante de medicina, deveria aprender a ter capacidade resolutiva e sensibilidade diagnóstica, analisando o ser humano por inteiro, em sua integralidade. A autora considera que a mudança de padrão de formação profissional é imprescindível: o ensino calcado em disciplinas dicotomizadas, oferecidas por especialistas, deveria ser substituído por um "novo paradigma". Este "novo modelo", denominado por ela construcionista, é recomendado por agências nacionais e internacionais de educação médica como o Changing Medical Education e a Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (Cinaem). Lampert não está, portanto, sozinha nessa luta.

Ela admite, no entanto, que a mudança, ainda que indispensável, está distante de vir a se concretizar, pois o mercado permanece aberto às especialidades. Apesar desse contexto, a autora continua fiel a seus ideais. Sua tese consiste na apresentação de uma "tipologia de implantação dos currículos de graduação". Com isso, pretende que as instituições formadoras abandonem o "perfil tradicional" em que se encontram, e passem a integrar o "pólo inovador" e de transformação. Ela apresenta cinco "eixos conceituais relevantes em educação médica", a saber: o enfoque teórico, a abordagem pedagógica, o cenário da prática, a capacitação docente e o mercado de trabalho médico e de serviços de saúde.

Em linhas gerais, este é o trabalho que Lampert nos apresenta. Sendo assim, alguns comentários e críticas nos parecem pertinentes.

Em primeiro lugar, a autora negligencia o fato de outros cursos profissionalizantes também estarem organizados em torno de disciplinas dicotomizadas, oferecidas por especialistas, ou seja: o "perfil tradicional" não é um patrimônio exclusivo da medicina. Além disso, cabe lembrar que a formação profissional que enfatiza a especialização insere-se em um contexto histórico fordista. A Reforma Flexner, neste caso, pode ser considerada parte dessa forma de organização das atividades no mundo do trabalho, característica do final do século 19 e início do século 20.

Lampert se dispõe a lutar contra esse "perfil tradicional" em um combate desigual. De um lado, a cultura estabelecida na sociedade entre os médicos e os estudantes defendendo a especialização. De outro, Lampert e as instituições onde milita.

Há, no entanto, um alento para a frente de batalha de Lampert: o profissional que o mundo espera no futuro não será mais aquele da receita fordista, propalado no filme Tempos modernos de Chaplin. O profissional do futuro não vai apertar o mesmo botão todo o tempo. Não vai fazer aquela mesma e única coisa, durante toda a sua vida. No futuro, que se faz hoje, o profissional valorizado será polivalente, criativo, inventivo. O conhecimento, dividido em partes dissociadas, não terá o mesmo prestígio que outrora (Cavalcanti, 2001). Assim, a tipologia oferecida pela autora, pode auxiliar e/ou monitorar as escolas médicas na implementação de medidas que coloquem este estabelecimento em sintonia com as mudanças que estão sendo operadas no mundo do trabalho de hoje. O dirigente universitário sensível aos novos ventos deve tomar este livro em suas mãos, procurando fazer dele uma manual imprescindível para a mudança do rumo até então adotado.

Um segundo comentário refere-se à suposta novidade presente no denominado "modelo da integralidade". As coisas neste campo não são tão novas quanto se espera. Uma retomada da história pode nos ajudar a agir no presente.

Em 1922, no Congresso Nacional dos Práticos, alguns médicos defendiam o exercício profissional amparado na especialização, enquanto outros pleiteavam pela sobrevivência do perfil generalista, muito próximo ao que, hoje, Lampert denomina da integralidade (Pereira Neto, 2001). Na outra ponta encontrava-se aquele que defendia a especialização. Pacífico Pereira era um deles. Este médico baiano, apesar de ter sido o relator mais idoso presente naquele evento, defendeu a especialização da medicina. Como boa parte dos médicos de seu tempo, combinou a atividade clínica, no caso ginecologia, com a pesquisa básica (em histologia, anatomia e patologia). Em termos de poder e prestígio público, chegou a dirigir a Faculdade de Medicina da Bahia e a ser diretor da Saúde Pública Estadual da Bahia. O Congresso dos Práticos prestou-lhe uma homenagem por sua idade, atribuindo-lhe o título de Praeceptor Brasiliae. Suas palavras denotam sua visão ideológica sobre os caminhos que a profissão médica deveria trilhar:

Ninguém pode negar (...) que não só o médico, mas qualquer sábio, em nossos dias, torna-se cada vez mais um especialista, desde que se exige que seja um mestre no ramo restrito que escolheu, e que os gênios universais, especialistas em todos os gêneros, (...) caíram em descrédito.

Os caminhos de Pacífico Pereira se opunham tanto aos que insistiam em preservar a prática médica em moldes clínicos gerais quanto aos que defendiam a panacéia do higienismo. Assim, o construcionismo, propagado pela autora, tem pouco de inovador. Ele tem suas origens na história da profissão médica. Além disso, a implementação das diretrizes propostas por Jampert implicaria o convencimento de lideranças profissionais do quilate de Pacífico Pereira. Este é um ponto importante que merece ser incluído na agenda dos que fazem hoje a história do ensino médico.

Um terceiro comentário enfatiza a problemática teórica, em que o trabalho de Jampert está inscrito: a sociologia das profissões.

Nos últimos anos tem crescido o interesse acadêmico pela problemática profissional. Bonelli (1999), em recente revisão bibliográfica sobre o tema, dividiu os estudos sobre profissões em quatro formas. A primeira aproxima-se da sociologia das profissões. A segunda recorre ao argumento profissional para o entendimento da problemática estudada. A terceira enfatiza as carreiras, e a quarta utiliza a expressão profissão para referir-se a toda experiência ocupacional no mercado de trabalho. Segundo Bonelli, nas duas primeiras formas, estão os trabalhos centrais para a constituição e expansão do campo acadêmico da sociologia das profissões no Brasil.

O livro de Jadete Lampert inscreve-se, sem sombra de dúvida, entre os novos trabalhos sobre o tema e reitera a importância da problemática, incrementando seu debate acadêmico. Essa é sua grande virtude. Lamentamos apenas que a autora não tenha desenvolvido, ainda mais, a discussão teórica e que não tenha utilizado uma bibliografia mais atualizada sobre o tema onde se destacam, por exemplo, os trabalhos de Freidson (1996) e Coelho (1999).

Há, finalmente, um ponto que mereceria a atenção da autora: a pletora. Essa era a expressão que os médicos utilizavam, em 1922, para se referir aos efeitos negativos causados pela superabundância de profissionais oferecidos ao mercado de trabalho.

Hoje em dia a questão da pletora parece estar na ordem do dia. Segundo a Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), cerca de trinta mil médicos foram lançados ao mercado de trabalho entre 1997 e 2000. Os dados fornecidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais (Inep/MEC) comprovam que a maioria das escolas médicas obteve resultado pouco satisfatório no último Exame Nacional de Cursos de Medicina (provão), realizado em 2001. Das 81 escolas que se submeteram a este exame, apenas 11 obtiveram grau A. Outras 35 faculdades de medicina não fizeram o exame pois, apesar de já estarem em funcionamento, não haviam formado uma turma.

Analisando as conseqüências da pletora, o doutor Fernando de Magalhães, presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia em 1922, prestou o seguinte depoimento:

Dentro em pouco, multiplicadas as faculdades, que surgirão como toda a indústria nova largamente explorada, o diploma de médico valerá menos do que o rótulo de uma garrafa vazia ou o escrito de uma casa desabitada. Será, entretanto, muito mais perigoso do que qualquer deles, porque o diploma generalizado vai enganar o desprevenido que não sabe e não pode distinguir a verdade da contrafação, o bom do ordinário, o prestimoso do imprestável. E, desde que se improvise o médico sem cultura e sem consciência, degrada-se a profissão na cupidez e no embuste. Para lá caminharemos, e em pouco tempo, se não houver uma reação enérgica contra o ensino comercializado.

Será que as antecipações de Fernando Magalhães têm se tornado realidade? Será possível pensar em mudança de paradigma na formação profissional médica em instituições que estão mais preocupadas com o pagamento das mensalidades em dia do que com a qualificação do profissional que estão formando? Nessas condições, a utopia de Jampert dificilmente se tornará realidade. Mas o sonho não tem que ser sonhado?

Referências bibliográficas

Bonelli MG 1999. Estudos sobre profissões no Brasil, pp. 287-330. In Miceli, Sérgio (org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). Sociologia (volume II). Editora Sumaré-ANPOCS-Capes, São Paulo-Brasília.

Pereira Neto AF 2001. Ser médico no Brasil. O presente no passado. Fiocruz, Rio de Janeiro.

Cavalcanti M, Pereira Neto AF, Gomes E 2001. Gestão de empresas na sociedade do conhecimento. Um roteiro para ação. Editora Campus, Rio de Janeiro.

Coelho EC 1999. As profissões imperiais. Medicina, engenharia e advocacia no Rio de Janeiro (1822-1930). Editora Record, Rio de Janeiro.

Freidson E 1996. Para uma análise comparada das profissões. A institucionalização do discurso e do conhecimento formais. Revista Brasileira de Ciências Sociais 31, ano 11, pp.141-154.

Gênero & cidadania. Mariza Correa (org.). Pagu-Núcleo de Estudos de Gênero ­ Unicamp, Campinas, 2002, 208pp.

Ludmila Fontenele Cavalcanti1 1 Núcleo de Estudos e Ações em Saúde Reprodutiva, Escola de Serviço Social/UFRJ

Núcleo de Estudos e Ações em Saúde Reprodutiva, Escola de Serviço Social/UFRJ

A coletânea de textos Gênero e cidadania, organizada por Mariza Correa, a partir de um seminário, em dezembro de 2000, é marcada pela vinculação entre gênero e cidadania, ou seja, a violência contra as mulheres relacionada à desigualdade social.

Representa uma grande contribuição para quem quer compreender o quadro da violência contra a mulher, no campo da segurança pública, por meio da reflexão teórica profunda, resultante de pesquisas, comprometida em apontar caminhos para a dimensão interventiva nessa área, especialmente no nível da prevenção.

No primeiro grupo de quatro textos, Debert e Gregori apresentam os resultados de pesquisa, desenvolvida no Pagu, cujo objetivo é compreender os problemas envolvidos na distribuição da justiça e na consolidação dos direitos da cidadania na sociedade brasileira contemporânea, focalizando as delegacias de polícia voltadas para a investigação e apuração dos delitos que envolvem minorias discriminadas.

Duas ordens de questões apresentam-se relacionadas na pesquisa. Primeiramente, a imprescindibilidade de um sistema de informação consistente e bem qualificado como condição para a eficiência, avaliação e aprimoramento das DDMs. Ao contribuir para refinar o sistema de informações, a pesquisa uniformizou os dados acumulados em cada uma das delegacias e congregou material de outras pesquisas. O descuido com as informações oferecidas pelas DDMs no trabalho que desenvolvem é apontado como fruto da falta de motivação e despreparo ou falta de qualificação dos agentes policiais. A segunda ordem de questões exploradas é a visibilidade e a confiabilidade das DDMs quanto à qualidade do serviço oferecido, um desempenho ainda com pouca expressão. Um outro conjunto de problemas relacionados às políticas de segurança pública refere-se à ampliação das atribuições das DDMs, reconceitualizando sua própria função ao se voltar para a violência familiar e doméstica.

Uma reflexão sobre sua experiência na gestão da segurança pública numa perspectiva antropológica é apresentada por Soares, onde descreve e analisa a dimensão simbólica envolvida no cargo por ele ocupado e no enfrentamento da violência.

O autor aborda conceitualmente a segurança pública como a estabilização de expectativas (tipo ideal) pela sua capacidade de incorporação da dimensão simbólica, indissociável da esfera afetiva, em que as expectativas se constroem intersubjetivamente, no campo das percepções dos riscos e das narrativas compartilhadas sobre a vida comum. Ao adotar essa concepção, recoloca o papel dos gestores da segurança pública referido a metas onde se situam as dinâmicas criminais e o domínio em que se configuram as imagens coletivas sobre os riscos.

Posteriormente, examina o resultado prático da aplicação dessa consciência, proporcionada pelo emprego da sensibilidade antropológica. Ao analisar o modelo adotado pelas autoridades da área, no relacionamento com a opinião pública e com a mídia, observa o caráter defensivo da retórica e das práticas mais visíveis. Esse modelo defensivo se compõe da explicação das tragédias, do deslocamento e da disseminação metonímica de responsabilidades, da mobilização analógica da memória, da reatividade, do voluntarismo, da fragmentação discursiva e prática, da estratégia especular e da destruição moral da vítima. Esse modelo reabilita uma prática misógina estigmatizante coerente com a postura sexista, discriminatória e infame, presente na legislação ainda vigente.

Também no campo do exercício reflexivo, na área da segurança pública, Bárbara Soares expõe a incomensurabilidade das lógicas que regem o trabalho interpretativo e sua aplicação no âmbito da experiência executiva, como subsecretária adjunta, responsável pela implantação do programa estadual de segurança da mulher.

Mesmo diante do desafio de dar respostas a situações práticas e de usar instrumentalmente noções e conceitos com o objetivo de transformar comportamentos, implicando uma convicção necessária à tomada de decisões, a autora compartilha um olhar analítico abordando, numa perspectiva antropológica, os subtextos que emergiam dos discursos e ações privilegiados.

O trabalho de Carrara et al. pretende contribuir para a discussão sobre situações de violência denunciadas por mulheres através das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher do Rio de Janeiro e sobre o modo como tais situações são construídas em seus desdobramentos judiciários, através do acompanhamento do percurso dos casos depois que a polícia os envia à justiça.

Ao localizar os casos de violência contra a mulher nos outros níveis do aparelho judiciário, as centrais de inquérito (instância intermediária de avaliação e triagem), as varas criminais e os tribunais, a pesquisa demonstrou que os critérios de avaliação dos inquéritos estão organizados em dois eixos: os relacionados com a percepção do caráter especial da violência contra a mulher diante de outros tipos de violência e com a interpretação dos interesses das vítimas; e os relacionados à manutenção de um determinado padrão de funcionamento do aparelho judiciário.

A lógica do arquivamento e também da absolvição não leva em conta a "violência contra a mulher", mas violências específicas contra mulheres singulares. Quatro ordens de razões foram acionadas para embasar o arquivamento: óbices propriamente processuais, óbices provenientes do próprio crime e do contexto em que foi perpetrado, considerações relativas à função da justiça e avaliação dos atributos sociais e psicológicos das "partes" envolvidas.

As experiências apresentadas nessa coletânea são diversificadas, abordando diferentes instâncias de atuação/investigação, em diferentes regiões do país. As DEAMs, consensualmente, são vistas como instâncias privilegiadas para negociação de conflitos, para visibilizar o fenômeno no sentido da construção dos direitos humanos como também femininos.

Também na defesa incondicional à perspectiva do gênero, outros quatro textos discutem, do ponto de vista conceitual, a complexidade do fenômeno ­ diferenças entre violência de gênero, violência doméstica, violência intrafamiliar.

A necessidade de re-definições do fenômeno da violência de gênero, que quando praticada no espaço da família se denomina violência doméstica, evitando sua simplificação, é defendida por Muszkat, que propõe a denominação de violência intrafamiliar, considerando a exposição de todos os seus membros. As relações assimétricas de poder estão contidas nas relações de gênero, que se tornam mais acirradas no âmbito da família. O espaço privado é visto pela autora como carregado de conflitos devido à própria dinâmica familiar, que se baseia na distribuição de afetos, inerentes à condição humana.

No esforço de reconceituar a violência de gênero, Muszkat afirma que as disputas no âmbito familiar não são orientadas exclusivamente pelas lutas de poder entre os sexos, e que a prática da violência não é incompatível com o desejo de união e manutenção da família. A família assume uma responsabilidade importante na constituição das identidades, onde também pode iniciar-se o ciclo da violência.

A autora expõe a abordagem adotada pelo Pró-Mulher, Família e Cidadania, que permite reavaliar os papéis sociais, restaurar a auto-estima e dignidade da mulher, seus direitos de cidadã, e questionar os mitos construídos sobre as categorias de gênero, buscando atribuir responsabilidades e possibilidades de reparação das partes entre si.

Ao apresentar o estudo que avalia as tendências do fenômeno da violência doméstica, Saffioti faz uma clara distinção conceitual desta em relação à violência intrafamiliar ou familiar, apontando que a primeira é mais ampla, pois atinge não parentes moradores do domicílio, enquanto a segunda abarca pessoas pertencentes à mesma família que podem viver em domicílios, municípios, regiões e países distantes, portanto, apresentam segmentos distintos. A família e a unidade domiciliar são, portanto, referências importantes nessa distinção.

A pesquisa trabalhou com violência doméstica denunciada a partir dos boletins de ocorrência (dimensão quantitativa) e com entrevistas com policiais e vítimas (dimensão qualitativa). Sobre o atendimento dispensado pelas DDMs, Saffioti afirma que deveria ser diferenciado. No entanto, a pesquisa revela altíssimo grau de impunidade. Atribui o mau atendimento, assim como a brutal heterogeneidade de tratamento das vítimas à ausência de qualificação específica dos policiais no tema relações de gênero.

Amaral apresentou os resultados da pesquisa Monitoramento e Mapeamento da Violência contra a Mulher em quatro Capitais do Nordeste, coordenada pela Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher e Relações de Gênero (REDOR), de 1987 a 1997. Tal pesquisa teve como objetivo desenvolver e divulgar um mapeamento da violência exercida contra mulheres em Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher Vítima de Violência e diagnosticar a situação das referidas delegacias, no que se refere a sua estrutura física, forma de atendimento que os policiais dispensam às mulheres vitimadas e capacitação para o exercício de suas atividades.

A autora resgata a trajetória da criação das delegacias da mulher no contexto da luta política do Movimento Feminista desde o final da década de 1970, considerando-a um espaço legal e legítimo para receber as denúncias e transmitir segurança e apoio jurídico às mulheres agredidas.

Constatou a precariedade das delegacias localizadas nas capitais dos quatro estados nordestinos quanto à infra-estrutura física, de pessoal, à sistemática, formas de atendimento e de arquivamento e à falta de privacidade. As policiais e as funcionárias não possuem especialização ou formação que as capacite para lidar com a realidade da violência de gênero. O estudo evidencia a falta de vontade política do Estado na prevenção da violência doméstica. As delegacias não estão necessariamente sintonizadas com o projeto feminista e acabam por reproduzir a dominação masculina imposta às mulheres.

Com a exposição de dez argumentos, Mott mostra porque os gays, lésbicas, e transgêneros são as principais vítimas do preconceito e discriminação da sociedade, considerando sua situação de maior vulnerabilidade. O autor parte da explicação do porquê o amor entre homossexuais foi secularmente considerado crime hediondo, pecado abominável, envolto num complô de silêncio, levando a internalização da homofobia pela sociedade (na família, nas igrejas, na academia, na mídia, nos partidos políticos e nas entidades voltadas para a defesa dos direitos humanos). A homofobia internalizada pelos próprios interessados conduz ao vácuo identitário e à alienação, com baixa auto-estima e incapacidade de ações afirmativas em defesa da homossexualidade.

Diferentemente da maioria dos textos, que aborda a perspectiva sob a ótica do Estado, o último grupo de textos é composto de bons exemplos de atuação, no campo dos direitos humanos, de instituições vinculadas ao Terceiro Setor e ao Movimento Feminista.

Feix apresenta o programa de formação de Promotoras Legais Populares (PLPs), criado em 1993, no contexto da Conferência Mundial de Direitos Humanos, desenvolvido pela Themis ­ Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, organização não-governamental com sede em Porto Alegre.

Inspirado pelo cenário da necessidade de criação de novos caminhos de acesso e democratização da prestação da Justiça para a grande maioria da população aliado à necessidade de sensibilização dos operadores de direito, o programa foi dirigido a mulheres de comunidades de baixa renda da cidade de Porto Alegre. Foram realizados cursos na perspectiva de gênero e defesa dos direitos das mulheres, oficinas de sensibilização, estudos de casos, júris simulados e visitas às instituições sócio-jurídicas. A metodologia é voltada para a formação de pessoas capacitadas para a intervenção social.

O programa de PLPs conta com o apoio institucional do Poder Judiciário, criando condições para atuar como agentes comunitárias de justiça e cidadania, encaminhando e apoiando as mulheres vítimas de discriminação e violência em demandas judiciais e extrajudiciais (institucionalização da experiência de prestação jurisdicional comunitária).

A trajetória do SOS Mulher desde meados dos anos 70 é contada por Taube, tendo como pano de fundo os embates numa sociedade extremamente dura com as transformações do universo feminino e a emergência de um movimento feminista organizado nos espaços universitários. Foi organizado o Coletivo Feminista de Campinas que, atuando na academia, tinha como preocupação as discussões que ocorriam na comunidade e na sociedade. A violência doméstica foi percebida como um fator negativo ao desenvolvimento feminino. Nesse sentido, foi idealizado um espaço de escuta e de denúncia específico da violência doméstica, o SOS Mulher, que se transformou num modelo, numa práxis feminista do fazer em relação à violência. O SOS, em 1982, transformou-se em entidade e passou a chamar-se SOS/ Ação Mulher, ampliando seus espaços para o desenvolvimento de programas sociais mais abrangentes.

A prática cotidiana do SOS foi marcada pela ambigüidade do ativismo feminista e pela teorização da problemática. Entre as preocupações está a prevenção em todos os níveis da sociedade e da família, os danos e os custos sociais da violência contra a mulher e a capacitação para avaliação de momentos de risco em parcerias conjugais.

São apresentadas no apêndice as intervenções do Ministério da Justiça nas questões relacionadas à mulher, construídas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) no âmbito da Secretaria de Estado dos Direitos Humanos.

Enfim, Gênero e cidadania contribui para construir uma consciência feminista ao trazer elementos para o debate da violência de gênero, dando visibilidade ao fenômeno no campo do imaginário e das práticas e desmascarando a fragilidade das políticas públicas nesse terreno.

Epidemiologia. Roberto A. Medronho, Diana M. de Carvalho, Kátia V. Bloch, Ronir R. Luiz, Guilherme L. Werneck (eds.). Atheneu, São Paulo, 2002, 493pp.

Paulo Rossi Menezes1 1 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Este é o resultado do esforço de Roberto Medronho e seus quatro colegas da UFRJ que de maneira muito competente conseguiram reunir mais 32 colaboradores para escrever um livro texto de epidemiologia. Esses colaboradores representam boa parte dos epidemiologistas e demais profissionais da área da saúde coletiva dos três grandes grupos do Rio de Janeiro, a UFRJ, a Fiocruz e a UERJ, e três colaboradores de outras instituições. Dessa forma, o livro contempla distintas formas de pensar e trabalhar com a epidemiologia, que se expressam ao longo de seus 32 capítulos, organizados em quatro partes.

A primeira parte foi denominada Conceitos Básicos, e aborda a história e fundamentos da epidemiologia, medidas de freqüência de doenças, indicadores de saúde, distribuição das doenças no espaço e no tempo, vigilância epidemiológica, transição demográfica e epidemiológica. O primeiro capítulo apresenta uma síntese do desenvolvimento da saúde pública no Brasil e discute o objeto da epidemiologia, permitindo contextualizar a epidemiologia brasileira atual. As medidas de freqüência de doenças são bem definidas conceitualmente, e o capítulo seguinte apresenta o uso das mesmas nos principais indicadores de saúde de populações. O capítulo sobre distribuição das doenças no espaço e no tempo aborda as três questões básicas de estudos epidemiológicos, quem adoeceu, onde a doença ocorreu e quando a doença ocorreu, explorando técnicas de análise espacial e interpretação de dados temporais. O capítulo sobre vigilância epidemiológica apresenta sua concepção atual e suas principais atividades. O capítulo sobre transição demográfica e epidemiológica apresenta de forma clara esses conceitos, e faz uma análise das transições demográfica e epidemiológica no Brasil, com destaque para a evolução das principais causas de mortalidade no país ao longo do tempo.

A segunda parte trata da Pesquisa Epidemiológica, com seus fundamentos, medidas de efeito, tipos de estudos, validade em epidemiologia e inferência causal. No primeiro capítulo dessa parte do livro são definidos os objetivos gerais de uma investigação epidemiológica, o processo de obtenção de dados empíricos, estimação de parâmetros e testes de hipóteses, o método científico no qual a epidemiologia está inserida, e uma apresentação sucinta dos principais tipos de estudos epidemiológicos. O capítulo seguinte discute as principais medidas de associação utilizadas em estudos epidemiológicos, como formas indiretas de estimar medidas de efeito. Os cinco capítulos seguintes apresentam de forma detalhada cada um dos principais tipos de estudos epidemiológicos, com destaque para aspectos do planejamento e condução, análise e interpretação de resultados, vantagens e limitações de cada um desses tipos de estudos. O capítulo sobre validade em estudos epidemiológicos conceitua os possíveis vieses seguindo a corrente da epidemiologia moderna, classificando-os em viés de seleção, informação e confusão, discutindo ainda os erros de classificação diferencial e não-diferencial e o controle de confusão em estudos epidemiológicos. O último capítulo dessa parte discute a complexa questão da inferência causal em epidemiologia, apresentando os principais modelos utilizados correntemente, os critérios de Hill, o modelo de causalidade de Rothman, o modelo de Greenland e Robins, e o modelo de Rubin.

A terceira parte discute o uso da Estatística em Epidemiologia, e inclui análise exploratória, probabilidade e distribuições, testes diagnósticos, inferência estatística, amostragem, tamanho da amostra e associações estatísticas. O capítulo sobre análise exploratória apresenta os conceitos básicos necessários para uma análise quantitativa de dados, como tipos de escalas, medidas de posição ou de tendência central e de variação, e formas de apresentar os dados em tabelas e gráficos. O capítulo seguinte apresenta o conceito de probabilidade, suas aplicações em epidemiologia e as principais distribuições de probabilidade utilizadas para a análise de estudos epidemiológicos. O capítulo sobre testes diagnósticos aborda os conceitos e técnicas estatísticas usados na avaliação do desempenho de tais testes. O capítulo sobre inferência estatística discute a utilização dos testes de hipótese em estudos epidemiológicos e os conceitos de verossimilhança e inferência bayesiana. Esse capítulo é complementado pelo capítulo sobre associações estatísticas, onde são apresentados os testes mais freqüentemente utilizados conforme o tipo de variáveis analisadas. Essa parte do livro inclui também um capítulo sobre amostragem, com uma abordagem clara e prática sobre os diferentes tipos de amostragem, e outro capítulo sobre tamanho da amostra em estudos epidemiológicos, com discussão dos aspectos teóricos envolvidos e uso do módulo Epitable do programa EPIINFO 6.04b para o cálculo do tamanho da amostra de um estudo específico.

A ultima parte aborda diversos Tópicos Especiais relacionados à epidemiologia: sistemas de informação em saúde, epidemiologia e serviços de saúde, epidemiologia e ambiente, epidemiologia e saúde do trabalhador, dinâmica de transmissão de doenças, análise de sobrevida, técnicas de análise espacial em epidemiologia, meta-análise, paleoparasitologia e paleoepidemiologia, e ética em pesquisa. Em cada um desses capítulos os autores desenvolvem tópicos especializados nos quais têm aprofundado suas atividades científicas.

O livro também possui caderno de exercícios correspondentes aos tópicos abordados na maioria dos capítulos, muitos deles desenvolvidos ao longo de anos de experiência dos organizadores no ensino da epidemiologia para estudantes de diversas áreas da saúde. O caderno está organizado por capítulo, e traz os gabaritos dos exercícios.

Essa organização faz com que o livro seja bastante abrangente, cobrindo os principais conteúdos necessários para os estudantes de pós-graduação em epidemiologia. Da mesma forma, estudantes de outras áreas da saúde coletiva e investigadores de áreas clínicas, particularmente da medicina, enfermagem, odontologia e outros profissionais da saúde, podem ter no livro uma ótima referência para o método epidemiológico e suas aplicações na investigação da saúde de populações. O nível de aprofundamento observado ao longo do livro permite indicá-lo como possível referência para cursos de graduação, mas de forma geral sua complexidade excede os conteúdos de disciplinas de epidemiologia em nível de graduação. Concluindo, Epidemiologia é uma obra densa e extensa, que reflete o grau de maturidade da epidemiologia no Brasil e que, como diz Medronho em seu prefácio, "é compromissada socialmente e tem potencial para contribuir na melhoria da qualidade da saúde da população brasileira".

  • 1
    Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
  • 1
    Núcleo de Estudos e Ações em Saúde Reprodutiva, Escola de Serviço Social/UFRJ
  • 1
    Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Jul 2007
    • Data do Fascículo
      2002
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