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Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva: autonomia científica, lugares institucionais e pluralidade epistemológica

Food and Nutrition in Public Health: scientific autonomy, institutional places and epistemological pluralism

Gratifica-nos constatar - após a ausculta dos três principais núcleos de saberes que compõem o campo da Saúde Coletiva, expressos nas palavras de eminentes pesquisadores, quase todos também inseridos em programas de formação e pesquisa no campo da Alimentação e Nutrição - que o texto apresentado para debate, nas palavras e expressões dos quatro comentaristas, com as quais compomos uma espécie de mosaico, constitui-se em: uma bem-vinda, instigante e necessária discussão sobre o processo de constituição e contornos (tanto os existentes como os desejáveis) daquela área de interseção, em seu caráter intrinsecamente multidisciplinar na origem, e que o esforço tenha correspondido ao que se vislumbra no panorama dos desafios e das perspectivas que se nos colocam.

Fascinante notar que, embora produzidos isoladamente, os textos dos debatedores dialogam entre si, trazendo à luz, de forma vívida, consensos e tensões aí presentes, muitos dos quais por nós assinalados no texto comentado, fato que se evidencia nas distintas e, por vezes, opostas posições assumidas, realçando, assim, a oportunidade e a propriedade do debate proposto e, pelo visto, já em curso.

Outro ponto que nos chamou a atenção foi o fato de muitas das questões abordadas e, portanto, valorizadas pelos debatedores constarem nos quase 40 mil caracteres suprimidos da versão original do artigo submetido ao debate, tendo em vista as normas da revista, aspecto que não impediu que o exercício prosseguisse até podermos delinear e mais bem situar a questão. Os ricos e variados comentários recebidos geram, assim, um espaço para recuperar e recompor, ainda que em parte, o texto original, já que o espaço da réplica tampouco permite percorrer ponto por ponto cada contribuição recebida, conforme seria o nosso desejo. Assim, selecionamos alguns aspectos que julgamos de fundamental importância esclarecer, ao tempo que evidenciaremos confluências entre autoras e debatedores, no que deve constituir uma agenda de discussão concernente ao objeto em tela.

Primeiramente, ainda que com foco mais dirigido a questões internas aos campos, reiteramos nosso entendimento - que julgávamos ter deixado claro - de que é fundamental que conexões necessárias com problemas substantivos devem estar necessariamente presentes em qualquer discussão consequente sobre campo científico. Daí o diálogo com Bourdieu ao longo da nossa exposição; quanto a isso é importante mencionar que, ao empregarmos o termo-conceito "paradigma", a intenção foi mais no sentido de situá-lo ante inúmeras e problemáticas interpretações correntes, o que inclui o seu emprego impreciso na própria obra de Thomas Kuhn, e retirá-lo do senso comum, dada a proliferação de discursos que incorporam o termo sem nenhuma demarcação ou alusão à sua origem. Contudo, melhor seria, talvez, empregarmos a expressão matriz disciplinar, tal como um dos comentários faz uso, de modo a não sugerir como intenção invocar uma explicação sobre a constituição dos dois campos a partir de entrincheiramentos paradigmáticos, o que, com efeito, não foi nosso intuito, uma vez que os conceitos de campo e de núcleos de saberes é que serviram de guia (fio condutor) para nossa análise. De qualquer forma, parece-nos útil acrescentar, enfatizando, a importância de nos afastarmos de leituras que considerem os núcleos de saberes como formações homogêneas, uma vez que ambos os campos e suas respectivas subdivisões estão atravessados por múltiplas vertentes, eventualmente mais conflitantes internamente do que no diálogo com outras disciplinas dos respectivos campos.

Outro ponto importante a ressaltar - e, certamente, a nota de maior relevância neste momento - é que, neste artigo, partimos da constatação de que a escassez da tematização pública dos espaços de embate entre as opiniões-doxa divergentes1 é identificada na literatura brasileira correlata. É dessa perspectiva que visitamos a Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva, considerando para tal os distintos núcleos de saberes que a constituem.

Buscando prosseguir nessa trilha de crítica às instituições e práticas de saúde, desenvolvidas no estado capitalista, conforme reconhecido, cabe sustentar nossa recusa em assumir o caráter datado, desfocado, e captado de ângulo restrito no que concerne à nossa análise relativa ao enfoque epidemiológico, tal como assinalado em outro comentário, registrando uma interessante polarização nas leituras. Claro está, supomos, que nosso artigo está focado na reflexão crítica de problemas substantivos, mas - e a ressalva é importante - relacionado à "ciência histórica e socialmente contextualizada", numa perspectiva bem mais ampla e profunda que aquela que se restringe ao debate acerca de teorias e métodos específicos de determinado núcleo de saberes. Essa, sim, captada de um ângulo [bastante] restrito, já que confunde (reduzindo) o método e técnica. Problemas substantivos esses que, como tal, não são datados - haja vista virem se manifestando desde os primórdios da Modernidade - período em que paulatinamente vai se configurando a hegemonia dos estudos fundados no experimentalismo (portanto, na empiria) de cunho universalista e que advogam uma única forma de fazer ciência - prevendo-se esse predomínio até um futuro tão distante quanto a fragilidade da crítica reflexiva possibilitar.

Nada mais alheio a nossas intenções que negar a potência do referencial epidemiológico e suas contribuições. Não obstante, é absolutamente urgente assumir os seus limites, até mesmo para potencializar e atualizar o lugar desse referencial no campo. Isso justamente porque persistem lacunas importantes de conhecimento acerca do papel de vários determinantes proximais e distais em sua rede causal complexa, que incluem, evidentemente, estrutura e sujeito, consoante a interessante alusão de outro comentário à noção de construção do processo saúde-doença. Assim, a contribuição da epidemiologia nem mesmo aparentemente foi por nós subestimada, já que, da mesma forma, procuramos analisar os demais núcleos: não se questiona o seu amadurecimento teórico e se aponta até uma excessiva sofisticação tecnológica; o que se quer sublinhar é a ausência do que poderíamos demarcar como uma "Epistemologia da Epidemiologia" que, salvo algumas exceções dignas de nota e amplamente reconhecidas, está por ser feita, cedendo espaço para a "tecnologia da Epidemiologia", cujo valor reconhecemos, como também seus limites. Limites que não se resolvem com a mera expansão dos objetos de investigação, mas com a já mencionada reflexão crítica. O trecho que segue, transcrito de um dos comentários, esclarece nossa posição: a pesquisa em epidemiologia no Brasil avança enormemente, em consonância com o aprimoramento no manuseio e no uso das técnicas de pesquisa. Embora muitos pesquisadores brasileiros sigam levando em conta as questões relevantes para as políticas de saúde no Brasil, na hora de definir seus objetos de investigação, a epidemiologia passa, agora sim, a assumir uma perspectiva de ciência mais neutra, com aspirações à universalidade, e pensada em uma dimensão de escala mundial. [...] uma visão tradicional da ciência, buscando produzir um conhecimento neutro, objetivo (visto como o que corresponde à realidade), para uma comunidade de pares no cenário internacional.

Em outras palavras, é na esfera da crítica a certa racionalidade científica - que, com significativa frequência e no afã do desenvolvimento de artefatos técnicos cada vez mais sofisticados, não se faz acompanhar pelo mesmo investimento na reflexão epistemológica e suas inerentes implicações para o mundo da vida2-8 - que advogamos pela necessidade de tais reflexões. Ao fazê-lo, apostamos no enfrentamento de certas contradições, acreditando, como supõe uma perspectiva dialética e histórica consoante os campos aqui tratados, ser possível alcançar sua superação: um devir de cooperação bem mais intensa entre campos de conhecimento que, sem negar o alcance de cada um deles, possibilite mais bem compreender e atuar de modo mais efetivo através da produção de conhecimento relevante que se origine tanto das ciências biomédicas como das ciências sociais.

Longe de considerar isso mera utopia, no atual estado da arte, já se localizam alguns estudos em andamento9 ou publicações que partindo de dados secundários diversos e considerando, evidentemente, suas limitações - afinal, qual base de dados não as tem? - visam discutir a pesquisa brasileira voltada para fenômenos culturais presentes na alimentação10 ou alimentação e nutrição de povos indígenas11 ou o conjunto dos estudos brasileiros no campo alimentar12 e nutricional13. Trata-se, predominantemente, de estudos de base empírica que, parafraseando Vasconcellos-Silva e Castiel1, partem de um explícito ponto de vista e um devir situados no plano da reflexão crítica de base dialética que busca, no exercício da discussão e do dissenso, a consideração da doxa (opinião que nos distanciaria da verdade) e da episteme (conhecimento ou verdade).

Feitos esses esclarecimentos, dirigimo-nos aos agentes - que não chamaríamos de externos, haja vista que a noção de interno e externo é problemática, dada a autonomia do campo científico, tão bem assinalada por Bourdieu - corporificados nas agências de fomento à pesquisa e formação pós-graduada no país (especialmente CNPq, Capes e FAPs estaduais) - para afirmar, agora concordando, que os lugares institucionais hoje destinados ao campo alimentar-nutricional ainda não refletem a existência de suficiente arcabouço teórico e metodológico nas ciências da Alimentação e Nutrição para a sua autonomia institucional, o que se comprova pelas publicações científicas, cursos de graduação, especialização e pósgraduação, revistas especializadas, associações de classe, congressos. Nesse sentido, colocamos, a título de ilustração dos problemas substantivos a serem enfrentados por ambos os campos: (1) a díade "Saúde Coletiva e Nutrição" como espaço de avaliação e distribuição de recursos no CNPq; e (2) a posição de subordinação do campo Alimentação e Nutrição à Medicina II na Capes, que derivam, respectivamente, da justaposição equivocada de campos distintos ou da assunção de um determinado campo como subespecialidade de outro, com evidentes consequências nos planos conceitual e material.

Sem descartar as inúmeras possibilidades de aproximações e interações entre AN e SC, a garantia institucional de autonomia de um campo científico, com a criação de área especificamente dirigida para a Alimentação e Nutrição, vem se constituindo em ideia-força no interior do Fórum Nacional de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Alimentação e Nutrição, apoiado por várias entidades, entre as quais a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), através do seu Grupo de Trabalho ANSC. Observamos, com base no exposto ao longo dos textos que compõem este debate, que esta construção institucional deve ter sempre em conta o olhar ampliado da crítica aos referenciais mais gerais que marcam o fazer científico. Considerando que o investimento em distintos projetos em disputa pela hegemonia14 pouco auxilia, ou melhor, prejudica largamente a construção de perspectivas de cunho democrático no âmbito da geração de conhecimento e formação de pesquisadores, propugnamos que o respeito e valorização da pluralidade epistemológica na ciência, nos campos científicos e em seus núcleos internos de saberes é pacto que necessita ser firmado. E a justificativa figura em um dos instigantes comentários que precedem esta réplica, que por sua precisão e clareza retomamos e com ele finalizamos, deixando-o como reflexão ou inspiração para novos contornos e devires: se ela [Alimentação e Nutrição] mantiver de modo radical o pluralismo epistemológico da Saúde Coletiva, se sustentar as práticas de diálogo entre as diferentes vertentes teórico-metodológicas no seu interior (o que já vem fazendo), e se assumir a perspectiva de produção implicada (o que também pode encontrar na área vários exemplos), poderá contribuir muito para a construção de uma vida digna para nosso povo.

Agradecimentos

Por oportuno, gostaríamos de agradecer à Coordenação Geral de Políticas de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde e ao Centro Colaborador em Alimentação e Nutrição da Região Sudeste da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz, por seu apoio no que concerne à infraestrutura indispensável para o desenvolvimento deste trabalho. Registramos também nossos agradecimentos pelo apoio financeiro recebido do CNPq. Somos profundamente gratas também à Conceição Ramos de Abreu e à Ana Silvia Gesteira, esteio fundamental na fase final de organização dos textos.

  • 1
    Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD. Proliferação das rupturas paradigmáticas: o caso da medicina baseada em evidências. Rev Saude Publica 2005; 39(3):498-506.
  • 2
    Bagrichevsky M, Castiel LD, Vasconcellos-Silva PR, Estevão A. Discursos sobre comportamento de risco à saúde e a moralização da vida cotidiana. Cien Saude Colet 2010; 15(Supl.1):1699-1708.
  • 3
    Bagrichevsky M, Estevão A, Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD. Estilo de vida saludable y sedentarismo en investigación epidemiológica: cuestiones a ser discutidas. Salud Pública Méx 2007; 49(6):387-388.
  • 4
    Castiel LD. Conflitos, interesses e alegorias: o caso SB Brasil 2003. Cad Saude Publica 2010; 26(4):660-662.
  • 5
    Almeida Filho N, Ayres JR. Riesgo: concepto básico de la epidemiología. Salud Colectiva 2009; 5(3):323-344.
  • 6
    Ayres JRCM. Para comprender el sentido práctico de las acciones de salud: contribuciones de la Hermenéutica Filosófica. Salud Colectiva 2008; 4(2):159-172.
  • 7
    Ayres JRCM. Risco, razão tecnológica e o mistério da saúde. Interface (Botucatu) 2007; 11(21):154-158.
  • 8
    Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de saúde. Physis 2007; 17(1):43-62.
  • 9
    Prado SD. A pesquisa sobre Alimentos, Alimentação e Nutrição no Brasil: reflexões sobre a produção de conhecimento e saberes [projeto de pesquisa]. Rio de Janeiro: Instituto de Nutrição, Uerj; 2005.
  • 10
    Silva JK, Prado SD, Carvalho MCVS, Ornelas TFS, Oliveira PF. Alimentação e Cultura como campo científico no Brasil. Physis 2010; 20(2):413-442.
  • 11
    Gugelmin AS, Ferreira AA, Leite MS. A pesquisa sobre alimentação e nutrição de povos indígenas do Brasil: uma análise a partir do Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq; 2009. (mimeo).
  • 12
    Prado SD, Bosi MLM, Carvalho MCVS, Gugelmin SA, Silva JK, Delmaschio KL, Martins MLR. A pesquisa sobre alimentação no Brasil: sustentando a autonomia da Alimentação e Nutrição como campo científico. Cien Saúde Colet 2010; 16(1):107-119.
  • 13
    Delmaschio KL, Prado SD, Carvalho MCVS, Gugelmin SA, Silva JK, Martins MLR. A pesquisa sobre Alimentos, Alimentação e Nutrição no Brasil [projeto de pesquisa]. Rio de Janeiro: Instituto de Nutrição, Uerj; 2009.
  • 14
    Gramsci A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    Jan 2011
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