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Entre o Brasil e a Europa: brasileiras negociando gênero e raça nas representações sobre “a mulher brasileira”

Between Brazil and Europe: Brazilian Women Negotiating Gender and Race in Representations About “The Brazilian Woman”

Resumo

No século XXI, o fluxo emigratório internacional de brasileiros se modificou quanto a sua direção, intensidade e natureza. Nesse cenário, ocorreu um incremento significativo da participação das mulheres. Diferentemente dos movimentos migratórios que desde a segunda metade do século XX se dirigiam majoritariamente para Estados Unidos, Japão e Paraguai, há, mais recentemente, uma intensificação do movimento rumo ao continente europeu. O presente artigo propõe analisar a mobilidade entre o Brasil e a Europa das mulheres brasileiras que estabelecem relações de afeto com homens europeus nos países de imigração e como negociam gênero e raça nas representações sobre a “mulher brasileira”. Trata-se de um estudo de natureza qualitativa que, a partir de dois bancos de dados de pesquisas realizadas com 46 mulheres, selecionou quatro entrevistas semiestruturadas para refletir sobre os processos de transnacionalização e percepção das marcas da racialização e exotização que as mulheres brasileiras vivenciam ao longo de suas experiências migratórias. Essa reflexão permitiu considerar que as mulheres participantes deste estudo, quando estabelecem relações de conjugalidade com portugueses, alemães ou italianos, repensam seus projetos migratórios em função das condições que as relações de afeto estabelecem, negociam posições de gênero, enfrentam os processos de racialização e sexualização e constroem outros significados para imaginários associados à “mulher brasileira”.

Gênero; Racialização; Casamentos transnacionais; Mulher brasileira; Migração; Brasil-Europa

Abstract

In the 21st century, the international migration flow of Brazilians has changed in terms of its direction, intensity, and nature and there has been a significant increase in the participation of women. Unlike migratory movements that in the second half of the 20th century had mostly been directed to the United States, Japan, and Paraguay, there has been an intensification of the movement towards Europe. This article analyzes the mobility between Brazil and Europe of Brazilian women who establish affectionate relationships with European men, and how they negotiate gender and race in the representations of “Brazilian women.” It is a qualitative study that, based on two databases of research carried out with 46 women, selected 4 semi-structured interviews to reflect on processes of transnationalization and perception of the marks of racialization and exoticization that Brazilian women experience during their migratory experiences. This reflection allowed us to consider that the women participating in this study, when they establish conjugal relationships with Portuguese, Germans, or Italians, rethink their migratory projects according to the conditions that the affective relationships establish, negotiate gender positions, face the processes of racialization and sexualization, and elaborate other meanings for imaginaries associated with “Brazilian women.”

Gender; Racialization; Transnational marriages; Brazilian women; Migration; Brazil-Europe

Introdução

O Brasil, desde o final da década de 1980, vivenciou a intensificação do fluxo de brasileiros para o exterior. Inicialmente, o destino eram os EUA e, na década de 1990, passou a ser, também, a Europa. Como outros fluxos internacionais, nesses primeiros momentos, os participantes desse fluxo eram predominantemente jovens do sexo masculino de camadas médias. As mulheres tinham uma participação reduzida nesses movimentos e eram muitas vezes invisibilizadas ( Assis, 2007ASSIS, Gláucia de Oliveira. Mulheres migrantes no passado e no presente: gênero, redes sociais e migração internacional. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, set.-dez. 2007, pp.745-772. ).

No início dos anos 2000, percebe-se um aumento significativo da presença de mulheres nessas mobilidades transnacionais. As brasileiras, assim como outras mulheres imigrantes, recorrentemente se inserem em redes transnacionais de cuidado, trabalhando como babás, cuidadoras de idosos, empregadas domésticas e, também, no ramo de estética e nos mercados do sexo. Esse mercado de trabalho é segmentado por gênero, classe, raça e nacionalidade ( Piscitelli, 2007PISCITELLI, Adriana. Sexo tropical em um país europeu: migração de brasileiras para a Itália no marco do "turismo sexual" internacional. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, dez. 2007, pp.717-744. ; Assis, 2007ASSIS, Gláucia de Oliveira. Mulheres migrantes no passado e no presente: gênero, redes sociais e migração internacional. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, set.-dez. 2007, pp.745-772. ; Padilla, 2007PADILLA, Beatriz. Acordos bilaterais e Legalização: O impacto na integração dos imigrantes brasileiros em Portugal. In: MALHEIROS, J. M. (org.). Imigração brasileira em Portugal. Lisboa, Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), 2007, pp.217-226. , Anthias and Lazaridis, 2000ANTHIAS, Floya; LAZARIDIS, Gabriela. Introduction: Women in the Move in Southern Europe. In: ANTHIAS, Floya; LAZARIDIS, Gabriela. Gender and Migration in Southern Europe, Women on the Move. Oxford, Berg, 2000, pp.1-15. ). Nessa perspectiva, Sassen (2003)SASSEN, Saskia The feminisation of survival: alternative global circuits.. In: MOROKVASIC, M.; EREL, U.; SHINOZAKI, K. (ed.). Crossing Borders and Shifting Boundaries. Schriftenreihe der Internationalen, Frauenuniversität, Technik und Kultur, v. 10. Verlag für Sozialwissenschaften, Wiesbaden, 2003, pp 59-79 [https://link.springer.com/content/pdf/10.1007%2F978-3-663-09529-3.pdf].
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destaca que esses fluxos migratórios transfronteiriços devem ser compreendidos no contexto da expansão da economia informal, que favorece a flexibilização e desregulamentação da força de trabalho e cria as condições para absorver a mão de obra feminina e estrangeira de modo precário.

Quando partem rumo à Europa, as mulheres brasileiras, assim como outras mulheres latinas e do Caribe, enfrentam um processo de racialização e sexualização. A racialização é um processo com raízes no passado colonial, atualizada no presente, que implica a subalternização das mulheres do ponto de vista social e político que identifica um grupo étnico-racial como distinto ou diferente de uma determinada população por marcadores ligados à cultura étnica ou a características físicas. A racialização se concretiza no cotidiano por meio de processos que configuram a caracterização de um grupo de acordo com uma hierarquização racial. Nesse sentido, a mulher brasileira é representada como mestiça, percebida como exótica, independentemente de ela se autoidentificar como branca, negra ou parda ( Assis, 2011ASSIS, Gláucia de Oliveira. De Criciúma para o mundo: Rearranjos familiares dos novos migrantes brasileiros. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2011, 348 p. , 2018ASSIS, Gláucia de Oliveira. Gênero e trânsitos contemporâneos de mulheres brasileiras emigrantes no século XXI. In: Sueli Siqueira (org.). Ligações Migratórias Contemporâneas. Brasil, Estados Unidos e Portugal. Governador Valadares, Univale, v. 1, 2018, pp.134-154. ; Padilla, 2007PADILLA, Beatriz. Acordos bilaterais e Legalização: O impacto na integração dos imigrantes brasileiros em Portugal. In: MALHEIROS, J. M. (org.). Imigração brasileira em Portugal. Lisboa, Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), 2007, pp.217-226. ; Gomes, 2018GOMES, Mariana Selister. Gênero, Colonialidade e Migrações: uma análise de discursos institucionais sobre a “Brasileira Imigrante” em Portugal. Política & Sociedade, v. 17, n. 38, 2018, pp.404-439. ).

De acordo com os relatos, nos aeroportos já estão presentes as desigualdades pautadas/resultantes da intersecção dos marcadores de gênero, raça, nacionalidade e classe que perpassam as experiências das mulheres brasileiras desde o momento da sua chegada nos países de destino. Nesses locais, essas diferenças se aprofundam em visões estereotipadas – presentes desde o passado colonial e segundo as quais as mulheres negras e indígenas foram sexualizadas e, por isso mesmo, violentadas –, que são reafirmadas e atribuídas às mulheres migrantes. Tal imaginário exotizado insere as mulheres brasileiras numa posição de subalternidade.

O olhar sexualizado do passado é atualizado no presente, quando essas mulheres chegam ao exterior e são confrontadas com representações da “mulher brasileira” presentes na literatura, nas novelas brasileiras e na mídia, reforçando a posição de desigualdades dos homens brancos do Norte em relação às mulheres do Sul ( Piscitelli, 2008PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e cultura, v. [S. l.], v. 11, n. 2, 2008, pp.263-274 [https://www.revistas.ufg.br/fcs/article/view/5247 - acesso em: 9 nov. 2021]. DOI: 10.5216/sec.v11i2.5247.
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; Pontes, 2004PONTES, Luciana. Mulheres brasileiras na mídia portuguesa. cadernos pagu (23), 2004, pp.229-256. https://doi.org/10.1590/S0104-83332004000200008
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; Assis, Siqueira, 2007). Tal imaginário sobre as brasileiras se faz presente no momento em que essas mulheres cruzam as fronteiras, seja para trabalhar, para estudar, seja para passear no exterior; seus corpos são marcados por esses estereótipos1 1 Por estereótipos, neste artigo, estamos nos referindo a construções sociais e históricas produzidas em situações de dominação que implicam hierarquias entre um “nós” e os “outros”. No passado colonial, as hierarquias construídas entre os povos dominadores, homens brancos e europeus, significaram a construção de marcadores de raça e gênero que colocaram discursivamente em um lugar de subalternidade populações negras e indígenas e que produziram discursos sobre homens e mulheres, nos quais sobre as mulheres se acentua o seu caráter exótico e sua sensualidade. Esses estereótipos foram atualizados no presente e associados ao discurso da nacionalidade brasileira que exalta o caráter mestiço, a sensualidade da mulata e a alegria, seja no carnaval, na literatura, nas novelas ou em propagandas turísticas que produzem representações acerca da mulher brasileira e que circulam no Brasil e no exterior nos mais variados discursos. Ver também ( Seyferth, 1994 , Maia, 2009 , 2011 ; Pontes, 2004 ; Gomes, 2013 ). . Portanto, as mulheres brasileiras têm que conviver e negociar com as representações e o imaginário sobre elas, marcados pela ideia de “sexualidade natural” – sempre disponível para o sexo, submissa, com atributos para o cuidado da casa, dos filhos ou de idosos. Essas imagens as colocam em um lugar desigual e inferiorizado em relação às mulheres locais e aos homens nos países de destino (Assis, 2011a, 2018).

No contexto do incremento da migração de brasileiras, e mais recentemente da crise econômica e política brasileira que se inicia em 2014, muitas mulheres foram e ainda são deportadas por suspeita de integrarem redes de tráficos de pessoas ou, simplesmente, por suspeita de não possuírem condições de permanecer no país ( Assis, 2018ASSIS, Gláucia de Oliveira. Gênero e trânsitos contemporâneos de mulheres brasileiras emigrantes no século XXI. In: Sueli Siqueira (org.). Ligações Migratórias Contemporâneas. Brasil, Estados Unidos e Portugal. Governador Valadares, Univale, v. 1, 2018, pp.134-154. ).

Neste artigo, pretendemos problematizar como as dinâmicas de racialização e sexualização estão presentes nas experiências relatadas pelas imigrantes em vários contextos: no trabalho, nas relações sociais e afetivas, contribuindo, assim, para as reflexões centrais colocadas como desafio por este dossiê. Dessa forma, buscamos compreender como, nas suas experiências migratórias, gênero, raça, construções acerca da “mulher brasileira”, seus corpos e os afetos são vivenciados e negociados por mulheres migrantes, a partir de pesquisa qualitativa realizada em Portugal, Itália e Alemanha, num trabalho de campo multissituado. Para análise dessas questões, o artigo reúne banco de dados de duas pesquisas qualitativas realizadas sobre a circularidade de brasileiros na Europa, com ênfase nas trajetórias de mulheres: uma delas realizada no período de 2012 a 2015, em conjunto com o Instituto de Geografia e Ordenamento territorial da Universidade de Lisboa2 2 Edital CAPES/FCT 021/2012, coordenada por Sueli Siqueira , e outra realizada no período de 2014 a 20173 3 Parte dos dados da pesquisa foi realizada durante estágio pós-doutoral realizado no ISCTE, por Gláucia de Oliveira Assis em Apoio Edital Universal 2018 CNPq, Projeto Estar aqui, estar lá: as novas configurações familiares e afetivas na migração de brasileiros para a Europa, e financiado pelo Edital Fapesc/2018 apoio a Grupos de Pesquisa Udesc. . Foram entrevistadas 46 mulheres, no total, nos dois bancos de dados. As entrevistas foram realizadas buscando reconstruir as trajetórias migratórias das mulheres brasileiras vivendo nesses países. Os relatos orais descrevem suas experiências de chegada, o projeto migratório, os relacionamentos afetivos e os sentidos de ser mulher brasileira, dentre outros aspectos que elas foram construindo em suas trajetórias migratórias. As entrevistas foram realizadas em local escolhido pelas entrevistadas e foi solicitada autorização para gravação, bem como garantido o anonimato das participantes. Dessa forma, os nomes que aparecem citados ao longo deste artigo são fictícios.

Conforme Pagnotta (2014)PAGNOTTA, C. O uso de fontes orais nos estudos de migrações contemporâneas. Observações metodológicas nos bastidores de uma pesquisa sobre o caso equatoriano. In: BENEDUZI, L. F.; ASSIS, G. O. (org.). Narrativas de gênero. Relatos de história oral: experiências de ítalo-brasileiros na Itália contemporânea. Vitória, Edufes, 2014, pp.61-76. , utilizamos os relatos orais como fonte de pesquisa sobre migração contemporânea pelo que oferecem de subjetivo, levando em conta a diversidade de situações das experiências migratórias. Importa, portanto, reconstruir o processo no presente, por permitir, na confrontação com outras narrativas, vislumbrar como a emigração contemporânea é vivenciada pelas migrantes. Dentre as várias participantes desses estudos, foram selecionados quatro relatos de mulheres, apresentadas no quadro a seguir, cujas trajetórias migratórias refletem suas experiências afetivas e suas percepções sobre aspectos relativos à racialização e à exotização da mulher brasileira.

Participante (Nome fictício) Idade na época da entrevista País de destino Ano da entrevista Carla 25 Itália 2012 Cristiane 38 Portugal 2015 Eliana 32 Alemanha 2012 Fernanda 38 Portugal 2017

As participantes do estudo são imigrantes de diferentes origens regionais, provenientes de camadas média e baixa da população brasileira, com diferentes níveis de escolaridade. Fazem o trânsito entre o Brasil e a Europa nessa 2ª década do século XXI, em um processo de ir e vir que marca projetos de mobilidade, envolvendo casamentos, famílias transnacionais e mudanças nos projetos migratórios. O que estamos chamando de “ir e vir” é o fato de essas mulheres, uma vez inseridas no processo migratório, construírem múltiplas relações econômicas, familiares, culturais e religiosas, configurando um campo de relações transnacionais com suas localidades de origem (Pereira, Siqueira, 2013). As entrevistadas realizam viagens com regularidade ao seu país de origem, recebem parentes, enviam presentes e apoiam financeiramente aqueles que ficaram no Brasil, configurando um trânsito entre essas localidades de origem e o destino dos fluxos.

Pretendemos demonstrar como o gênero é um princípio classificatório que atravessa o movimento migratório e que, juntamente com outras categorias, como classe, raça e etnia, configura as oportunidades para mulheres ao longo desse processo, marcando suas relações nos países de acolhida. Na primeira parte do artigo, analisamos brevemente a intensificação da emigração de brasileiros para a Europa e o crescimento da participação feminina. No segundo tópico, abordamos como os marcadores de gênero, raça e etnia associados à mulher brasileira estão presentes nas experiências dessas migrantes no cotidiano de suas relações sociais, bem como, principalmente, nos seus relacionamentos afetivos, analisando como são negociadas as posições de gênero ao longo do processo migratório.

A importância do artigo é evidenciar a permanência/reprodução de um olhar colonial e subalterno sobre as imigrantes brasileiras e outras mulheres latinas consideradas não brancas, como as asiáticas e africanas, também submetidas a processos de racialização e sexualização no contexto das mobilidades contemporâneas. Destacar esses aspectos é chamar a atenção para a perpetuação das relações coloniais no tempo presente. Evidenciar esses processos e demonstrar como as brasileiras enfrentam e negociam essas identificações sobre a mulher brasileira é um importante debate acadêmico que contribui para as reflexões de uma perspectiva feminista que favoreça a desconstrução desses imaginários, contribuindo para os estudos de gênero e migração. Dessa forma, contribui-se para problematizar as visões cristalizadas sobre a inserção de homens e mulheres no processo migratório, evidenciando que tais marcadores produzem situações de desigualdade e preconceito em relação às brasileiras, que podem ser ressignificados pelas próprias mulheres imigrantes em um movimento que demonstra processos de agência4 4 A agência neste texto é compreendida no sentido utilizado por Collins (2019) , que define agência como a disposição do indivíduo ou grupo social para se autodefinir e se autodeterminar. No entanto, é importante destacar que, ao utilizar essa noção, não estamos reduzindo a agência a uma manifestação da vontade individual, pois, conforme destaca Ortner (2007) , os processos de agência não podem ser vistos apenas de uma perspectiva individual, pois sempre se inserem em um contexto. Segundo Ortner (2007) , a agência é uma capacidade de todos os seres humanos que é construída e distribuída socialmente e ocorre em um contexto de relações sociais que envolvem negociações e relações de poder. Nesse sentido, os indivíduos envolvidos em relações de afeto ou solidariedade, de poder ou rivalidade, têm acessos diferentes aos processos de agência, pois ela é sempre negociada nas interações. Partindo dessas noções de agência, procuramos compreender como as brasileiras mobilizam situações de estereótipo, preconceito e subalternização e como encontram espaços de agência. dessas mulheres. A agência neste texto é compreendida no sentido utilizado por Collins (2019)COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo Editorial, 2019. , que define o termo como a disposição do indivíduo ou grupo social para se autodefinir e se autodeterminar. A intenção desse texto é demonstrar, a despeito das ambiguidades e das construções acerca da mulher brasileira e de seus corpos sexualizados, que as mulheres mobilizam e negociam outros significados para enfrentar e construir espaços de trabalho e vivência de relações afetivas.

A intensificação dos fluxos de brasileiros rumo à Europa nos anos 2000: Portugal, Alemanha e Itália

A emigração brasileira para a Europa tem sido marcada por uma crescente participação das mulheres que partem rumo ao estrangeiro, algumas acompanhando seus companheiros ou familiares, outras em projetos autônomos, por vezes sendo as primeiras em seus núcleos familiares a deixar o país. Esse fluxo se intensifica no início no século XXI, seguindo um processo mais amplo de feminização das migrações internacionais5 5 Sobre o processo de feminização dos fluxos migratórios, ver Anthias e Lazaridis, 2000 , Padilla, 2012; Frangella, 2014 ; Assis, 2014 ; Assis, 2011 ; Lima; Togni, 2012 . . Os dados sobre a migração brasileira indicam esse processo de feminização dos fluxos.

O Censo brasileiro de 2010 indica que o número de brasileiros residentes no exterior chegou a 491.645 mil, distribuídos em 193 países, sendo 264.743 mulheres (53,8%) e 226.743 homens (46,1%). Além disso, a pesquisa aponta que 60% dos emigrantes tinham entre 20 e 34 anos de idade em 2010. Em que pese os possíveis problemas com a coleta dos dados, os números revelam uma presença significativa de mulheres emigrando, além de demonstrarem a ampliação dos locais de destino dos brasileiros.

Segundo a mesma fonte, o principal destino são os Estados Unidos (23,8%). No entanto, Portugal (13,4%), Espanha (9,4%), Itália (7,0%) e Inglaterra (6,2%) também se apresentam como países de destino. Somando esses percentuais, temos que 36% do total de emigrantes brasileiros se direcionaram para o continente Europeu. No início dos anos 2000, ocorreu uma intensificação do fluxo para a Europa, compreendida como uma das consequências das políticas restritivas para entrada de estrangeiros nos Estados Unidos, após os atentados de 11 de setembro de 2001 - situação que se aprofunda com a crise financeira de 2008 (Siqueira, Santos, 2012; Margolis, 2013MARGOLIS, Maxine L. Goodbye, Brazil: Émigrés from the land of soccer and samba. University of Wisconsin Press, 2013. ; Assis, 2018ASSIS, Gláucia de Oliveira. Gênero e trânsitos contemporâneos de mulheres brasileiras emigrantes no século XXI. In: Sueli Siqueira (org.). Ligações Migratórias Contemporâneas. Brasil, Estados Unidos e Portugal. Governador Valadares, Univale, v. 1, 2018, pp.134-154. ). Além desses fatores, a intensificação está relacionada a outras estratégias, como ao caso da mobilidade de estudantes ( Iorio, 2018IORIO, Juliana Chatti. Território de mobilidade estudantil internacional: estudantes brasileiros no ensino superior em Portugal. Tese (Doutorado em Migrações; Geografia Humana), Programa de Doutorado do Instituto de Geografia e Ordenamento Territorial, Universidade de Lisboa, Portugal, 2018. ; França, Padilla, 2019), à 3ª ou 4ª geração de descendentes europeus que, de posse da cidadania europeia, podem entrar e trabalhar legalmente na Europa ( Savoldi, 1998SAVOLDI, Adiles et al. O caminho inverso: a trajetória de descendentes de imigrantes italianos em busca da dupla cidadania. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis. 1998. ; Assis e Beneduzi, 2014ASSIS, Gláucia de O.; BENEDUZI, Luís Fernando (org.). Os pequenos pontos de partida: novos e(imigrantes) rumo à Itália no século XXI. Curitiba, CRV, 2014, v. 1. ), e às migrações que ocorrem no âmbito de relações afetivas ou das chamadas migrações por amor ( Assunção, 2016ASSUNÇÃO, Viviane. Migrantes por amor? Ciclo de vida, gênero e a decisão de migrar em diferentes fases da vida. Revista Estudos Feministas, 24(1), Florianópolis, 2016, pp.63-80. ; Lima; Togni, 2012LIMA, M. A.; TOGNI, P. Migrando por um ideal de amor: família conjugal, reprodução, trabalho e gênero. Ipotesi Revista de estudos literários, v. 16, n. 1, 2012, pp.135-144. ; Girona, J. R., Masdeu, M.S., Puerta, Y. B., 2012). Embora no período da crise financeira na Europa tenha se observado uma diminuição da migração de brasileiros, o fluxo migratório se manteve e, a partir de 2014, os deslocamentos rumo à Europa se intensificaram novamente.

As segmentações por gênero e por raça do mercado de trabalho, juntamente com a diminuição dos investimentos dos governos em políticas sociais, contribuíram para impulsionar a feminização da emigração, reservando oportunidades de inserção laboral para mulheres, principalmente no setor de cuidados. Em meados da década de 1990, por exemplo, havia anúncios em cidades do sul de Santa Catarina pedindo às brasileiras descendentes para trabalharem na Itália cuidando de idosos ( Assis e Beneduzi, 2014ASSIS, Gláucia de O.; BENEDUZI, Luís Fernando (org.). Os pequenos pontos de partida: novos e(imigrantes) rumo à Itália no século XXI. Curitiba, CRV, 2014, v. 1. ). Esse movimento, que se iniciou nos anos 90, também se intensifica ao longo dos anos 2000, tendo a característica também de um mercado de trabalho bastante feminizado.

Em Portugal, as mulheres representavam 45% dos imigrantes brasileiros em 2003, segundo o Serviço de Estrangeiros e Fronteira (SEF). Em geral, essas mulheres se concentram na rede de serviços domésticos e cuidados de crianças e idosos, fazendo parte da cadeia de cuidados transnacionais ( Malheiros; Padilla, 2015MALHEIROS, Jorge; PADILLA, Beatriz. Can stigma become a resource? The mobilisation of aesthetic–corporal capital by female immigrant entrepreneurs from Brazil. Identities, v. 22, n. 6, 2015, pp.687-705. ). A partir de 2012, depois de um declínio nessa migração, em função da crise econômica na Europa, os números voltaram a crescer. Segundo demonstram os dados de 2020 do SEF, a nacionalidade brasileira mantém-se como a principal comunidade estrangeira residente, representando 27,8% do total (valor mais elevado desde 2012); tais dados evidenciam, também, a consolidação do processo de feminização desse movimento, com as mulheres representando a maioria dos brasileiros residentes – são 81.320 homens e 102.673 mulheres estabelecidos nesse país.

Um outro setor que as imigrantes brasileiras têm se concentrado é no setor de estética e beleza, como manicures, depiladoras e cabeleireiras. As brasileiras construíram nesse setor um nicho étnico de mercado de trabalho que tem contribuído para enfrentar os mecanismos de sexualização e racialização, transformando ou deslocando as marcas de preconceito e discriminação por meio de um processo de ressignificação dos atributos da brasilidade, valorizando as noções de beleza, cuidado e sensualidade, construindo-os como marcas/produtos especializados (Malheiros, Padilla, 2015; Padilla, 2007PADILLA, Beatriz. Acordos bilaterais e Legalização: O impacto na integração dos imigrantes brasileiros em Portugal. In: MALHEIROS, J. M. (org.). Imigração brasileira em Portugal. Lisboa, Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), 2007, pp.217-226. ; Machado, 2007MACHADO, José Igor. Imigração em Portugal. Revista Estudos Avançados, 20 (57), São Paulo, 2007, pp.119-135. ). Voltaremos a esse ponto na análise das entrevistas, com a história de Fernanda.

A Alemanha, ao longo dos anos 2000, também viu crescer o número de brasileiros, principalmente de mulheres. De acordo com os dados estimativos do sistema consular brasileiro, em 2020, residiam na Alemanha 144.120 brasileiros, assim distribuídos: 45.000 em Berlim, 40.000 em Frankfurt, 51.000 em Munique (MRE, 2021). Bahia (2014)BAHIA, Joana. Under the Berlin sky. Candomblé on German shores. Vibrant, Virtual Braz. Anthr, v. 11, n. 2, Brasília, dez. 2014, pp.327-370 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-43412014000200012&lng=en&nrm=iso - access on 29 set. 2020].
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destaca a dificuldade de precisar exatamente esse número, pois muitos brasileiros entram no país com passaporte europeu – sobretudo italiano, alemão ou português – e que conseguem acessar os países por serem descendentes de europeus que imigraram para o Brasil no século XIX. Os estudos apresentados por Bahia (2014)BAHIA, Joana. Under the Berlin sky. Candomblé on German shores. Vibrant, Virtual Braz. Anthr, v. 11, n. 2, Brasília, dez. 2014, pp.327-370 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-43412014000200012&lng=en&nrm=iso - access on 29 set. 2020].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
e Lidola (2013)LIDOLA, Maria. Changing boundaries and redefining relations: migration and work experiences of Brazilian women in Germany. In: Migrations between Spaces in the Americas and Beyond. FIAR Forum for Inter-American Research. The Journal of the International Association of Inter-American Research (IAS), v. 6, n. 2, 2013. pp.1-25. http://interamerica.de/current-issue/lidola/
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e Feijó (2021)FEIJÓ, Glauco Vaz. Retratos do Brasil na Alemanha: 30 anos de imigração. Campinas: Pontes, 2021, 354p. indicam uma característica feminizada desse fluxo de brasileiros para Alemanha, destacando que cerca de 75% de todos os imigrantes brasileiros na Alemanha são mulheres, grande parte delas em casamentos transnacionais ( Bahia, 2014BAHIA, Joana. Under the Berlin sky. Candomblé on German shores. Vibrant, Virtual Braz. Anthr, v. 11, n. 2, Brasília, dez. 2014, pp.327-370 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-43412014000200012&lng=en&nrm=iso - access on 29 set. 2020].
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; Siqueira, Santos, Genovez, Fonseca, 2017; Siqueira, Assis, Genovez, 2020; Feijó, 2021FEIJÓ, Glauco Vaz. Retratos do Brasil na Alemanha: 30 anos de imigração. Campinas: Pontes, 2021, 354p. ).

Feijó (2021)FEIJÓ, Glauco Vaz. Retratos do Brasil na Alemanha: 30 anos de imigração. Campinas: Pontes, 2021, 354p. , ao analisar os dados do departamento de estatística alemão sobre os brasileiros na Alemanha, destaca importante presença feminina nesse movimento, chamando a atenção para o pioneirismo dessa migração e para a manutenção desse padrão de predominância feminina ao longo do período de 1990 até 2019. Há forte presença feminina desde o início do fluxo, de 1990 até 2004; depois, esses números se estabilizam e, entre 2010 e 2014, sofrem uma breve redução, voltando a aumentar entre 2014 e 2016 e mantendo-se estáveis nesses últimos 3 anos. Para o autor, uma das possibilidades para a compreensão desses números está na quantidade expressiva de brasileiras casadas com alemães, padrão mais comum às mulheres do que aos homens brasileiros. No entanto, assim como Lidola (2013)LIDOLA, Maria. Changing boundaries and redefining relations: migration and work experiences of Brazilian women in Germany. In: Migrations between Spaces in the Americas and Beyond. FIAR Forum for Inter-American Research. The Journal of the International Association of Inter-American Research (IAS), v. 6, n. 2, 2013. pp.1-25. http://interamerica.de/current-issue/lidola/
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, Feijó (2021)FEIJÓ, Glauco Vaz. Retratos do Brasil na Alemanha: 30 anos de imigração. Campinas: Pontes, 2021, 354p. não afirma que o casamento seja o principal motivo de migração das brasileiras, pois muitas se casaram após já estarem estabelecidas na Alemanha, outras migraram para estudar ou trabalhar, ou, ainda, para realizar práticas relacionadas à religiosidade, como demonstram os estudos de Lídola (2013), Fusrstenau (2019) e Bahia (2014)BAHIA, Joana. Under the Berlin sky. Candomblé on German shores. Vibrant, Virtual Braz. Anthr, v. 11, n. 2, Brasília, dez. 2014, pp.327-370 [http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-43412014000200012&lng=en&nrm=iso - access on 29 set. 2020].
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No caso das brasileiras na Alemanha, destaca-se também o fluxo de mulheres que migram com o objetivo de estudar (Fusrstenau, 2019; Carnicer, 2019CARNICER, Javier A. Multilinguismo e educação em famílias transnacionais entre o Brasil e a Alemanha. In: BAHIA, J.; SANTOS, M. Um olhar sobre as diferenças: a interface entre projetos educativos e migratórios. São Paulo, Oikos, 2019, pp.18-34. ). Essas estudantes procuram se inserir no sistema educacional alemão e enfrentam as dificuldades de ser mulher e imigrante para conseguir permanecer na Alemanha – semelhante aos estudos de Malheiros e Padilla (2015)MALHEIROS, Jorge; PADILLA, Beatriz. Can stigma become a resource? The mobilisation of aesthetic–corporal capital by female immigrant entrepreneurs from Brazil. Identities, v. 22, n. 6, 2015, pp.687-705. , em relação à inserção das mulheres brasileiras no mercado de trabalho português. Lidola (2013)LIDOLA, Maria. Changing boundaries and redefining relations: migration and work experiences of Brazilian women in Germany. In: Migrations between Spaces in the Americas and Beyond. FIAR Forum for Inter-American Research. The Journal of the International Association of Inter-American Research (IAS), v. 6, n. 2, 2013. pp.1-25. http://interamerica.de/current-issue/lidola/
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analisa ainda a experiência dessas imigrantes no mercado de estética alemão, demonstrando como elas se utilizam dos atributos de beleza e sensualidade para construir um espaço para as mulheres no mercado de trabalho e enfrentar as marcas de preconceito e discriminação.

Com relação à Itália, observa-se que, desde a década de 1990, há um fluxo de brasileiros para esse destino. Segundo Bógus e Bassanezi (1995)BÓGUS, Lúcia M.; BASSANEZI, Maria Silvia. Do Brasil para a Europa – Imigrantes Brasileiros na Península Itálica neste final de Século. In: BOGUS et al. O Fenômeno Migratório no Limiar do 3º Milênio. Rio de Janeiro, Vozes, 1995, pp.68-92. e Bógus (2007)BÓGUS, Lúcia M. Esperança além-mar: Portugal no “arquipélago migratório” brasileiro. Imigração brasileira em Portugal. Lisboa, Acidi, v. 1, 2007, pp. 39-58. , na Itália, os imigrantes brasileiros se inserem no setor de serviços pouco qualificados e mal remunerados, muitas vezes ligados a turismo, restaurantes e comércio – considerado um dos mais rentáveis setores de atividade no país. As autoras indicam que, desde os anos 1990, há um aumento no número de mulheres, além da intensificação do fluxo de descendentes de imigrantes italianos. Muitos migram imaginando uma espécie de “retorno” à terra dos ancestrais, ou seja, a migração é vivida como um encontro com a Itália narrada por seus “nonos” e “nonas”.

A cidadania europeia se torna “um passaporte para o mundo”, como dizem os imigrantes, e abre para esses brasileiros o direito de circular e se inserir no mercado de trabalho da comunidade europeia. A partir de convênios com algumas cidades na Itália e na Alemanha, esses brasileiro-italianos conseguem contratos de trabalho temporários durante o verão europeu e, assim, passam de seis a oito meses na Europa e retornam para o Brasil (Assis, Beneduzi, 2014; Zanini, 2015ZANINI, Maria Catarina Chitolina et al. Cidadãos de direito, estrangeiros de fato: narrativas de ítalo-brasileiros (as) na Itália. História Oral, v. 18, n. 1, 2015, pp.117-145. ).

No entanto, esse encontro com a terra de seus “nonos” e “nonas” é vivido, muitas vezes, como decepção. A cidadania italiana, ainda que lhes garanta o passaporte italiano, não lhes garante uma inserção no mercado de trabalho e nem os isenta do preconceito e da discriminação, pois, embora tenham “o sangue italiano”, não são reconhecidos como italianos de fato ( Savoldi, 1998SAVOLDI, Adiles et al. O caminho inverso: a trajetória de descendentes de imigrantes italianos em busca da dupla cidadania. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis. 1998. ; Assis, 2011ASSIS, Gláucia de Oliveira. De Criciúma para o mundo: Rearranjos familiares dos novos migrantes brasileiros. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2011, 348 p. ; Beneduzi, 2014; Zanini, Beneduzi, Assis, 2015). Quando chegam à Itália, muitos imigrantes, descendentes de imigrantes italianos e que se autodeclararam brancos no Brasil, surpreendem-se quando não são reconhecidos como brancos e nem como italianos, a despeito da cidadania. No caso das mulheres brasileiras, além do choque de não serem reconhecidas como italianas e brancas, tal qual se consideravam antes de partir do Brasil, ganham os atributos de sensualidade, simpatia e outros atributos da “mulher brasileira” que, no Brasil, elas associavam a mulheres negras ou “mulatas”6 6 Sobre a construção social da mulata como objeto de desejo e as articulações entre gênero e raça, o texto de Mariza Correa evidencia como foi se construindo, desde o passado colonial e atualizado ao longo do século XX, na literatura, no discurso médico e carnavalesco, a ideia de um corpo sexualizado e desejável representado na figura da mulata. Conforme Correa (1996:39): “além de cheirosa e gostosa, a mulata é muitas outras coisas nesses e em outros textos: é bonita e graciosa, dengosa e sensual; em suma, desejável”. A autora destaca ainda que a construção social da mulata revela a persistência do racismo, pois, ao torná-la objeto de desejo do masculino, a mulata evidencia o que não se quer revelar: a mulher negra. Para os objetivos desse artigo, essa reflexão é muito importante, pois as mulheres entrevistadas se percebem como brancas, mas, por seus traços considerados brasileiros – cor de cabelo, pele morena –, são representadas como mulatas. Assim, independentemente da cor da pele, são racializadas com tais características, pois são brasileiras, e os atributos de sensualidade, graciosidade e o jeito de falar são atribuídos a elas às mesmas em um processo de exotização e sexualização que demonstraremos ao longo do artigo. e, nesse sentido, sentem os processos de racialização e sexualização.

Gênero e Afetos: negociando os marcadores de gênero e raça nas relações afetivas

Quando chegam à Europa, as brasileiras, em Portugal, na Itália e na Alemanha, deparam-se com um imaginário presente nos discursos cotidianos que constrói uma representação hipersexualizada da mulher brasileira. Isso significa que são vistas como mulheres sexualmente disponíveis, dispostas a saciar os desejos e as fantasias dos homens europeus. Mesmo quando se consideram brancas e descendentes de europeus, são racializadas por meio de um processo de categorização em que lhes são atribuídas uma identidade fixa erotizada e marcada por sensualidade e simpatia – deixam de ser brancas e se tornam brasileiras ou latinas (Padilha, 2008; Padilha, Gomes, Fernandes, 2010; Assis, 2011ASSIS, Gláucia de Oliveira. De Criciúma para o mundo: Rearranjos familiares dos novos migrantes brasileiros. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2011, 348 p. ).

Essas imagens sobre as mulheres brasileiras tendem a homogeneizar representações sobre as brasileiras no exterior. No entanto, Assis (2011a) observa que tais representações, quando acionadas por mulheres imigrantes, podem surtir outros efeitos. Para essa autora, na Europa, em especial em Portugal, as representações de sensualidade e beleza da mulata atribuídas à mulher brasileira produzem uma associação entre gênero e nacionalidade, promovendo a sexualização desses sujeitos, relacionando suas “características” (sensualidade, alegria, simpatia) com o mercado do sexo e as expondo às dinâmicas de discriminação e segregação. Na Itália e na Alemanha, essa representação de mulher brasileira também está presente e é associada às brasileiras quando se casam com os homens provenientes desses países, conforme demonstram Bahia (2013)BAHIA, Joana. Brasileiros em Berlim: sociabilidades e identidades em construção. Migrações Internacionais. Valores, capitais e práticas em deslocamento. Santa Maria, Editora UFSM, 2013. , Lidola (2013)LIDOLA, Maria. Changing boundaries and redefining relations: migration and work experiences of Brazilian women in Germany. In: Migrations between Spaces in the Americas and Beyond. FIAR Forum for Inter-American Research. The Journal of the International Association of Inter-American Research (IAS), v. 6, n. 2, 2013. pp.1-25. http://interamerica.de/current-issue/lidola/
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, Siqueira, Assis e Genovez (2020) e outros estudos que evidenciam a mulher brasileira em um lugar desigual e subalterno em relação ao homem italiano ou alemão. Nessa perspectiva, a subalternidade, conforme destaca Spivak (2010)SPIVAK, Gayatri Chakravony. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010. , refere-se à relação de subordinação – resultado de uma herança colonial, em que o sujeito se encontra em uma posição de poder desigual em relação aos grupos dominantes e, portanto, excluído dos mercados, das representações políticas e sem oportunidades de acesso pleno às camadas sociais dominantes. Para a autora, essa subalternidade é generificada, como podemos demonstrar nas situações enfrentadas pelas brasileiras.

Como se produziram essas representações que associam a mulher brasileira a essas imagens racializadas e sexualizadas? Segundo Pontes (2004)PONTES, Luciana. Mulheres brasileiras na mídia portuguesa. cadernos pagu (23), 2004, pp.229-256. https://doi.org/10.1590/S0104-83332004000200008
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, a associação entre gênero e nacionalidade nas representações da mulher brasileira na mídia portuguesa feminiza o Brasil, ao mesmo tempo em que sexualiza gênero, destacando que essas representações estão relacionadas ainda ao colonialismo e ao imperialismo, bem como aos processos ligados ao turismo internacional, em um cenário de globalização. Nesses processos, as mulheres brasileiras emergem associadas a outros discursos relacionados à brasilidade, em uma posição inferiorizada, aparecendo nas propagandas e nas mídias sempre de biquíni, relacionada ao carnaval, ao futebol, produzindo exotização e sexualização. Nesse sentido, analisando a forma como as brasileiras são representadas em diferentes contextos migratórios – seja no mercado do sexo, nos circuitos do turismo sexual, como trabalhadoras migrantes ou como estudantes –, gênero, nacionalidade, classe e raça marcam suas experiências como Piscitelli (2007PISCITELLI, Adriana. Sexo tropical em um país europeu: migração de brasileiras para a Itália no marco do "turismo sexual" internacional. Revista Estudos Feministas, 15(3), Florianópolis, dez. 2007, pp.717-744. , 2012PISCITELLI, Adriana. “Papéis”, interesse e afetos, relacionamentos amorosos sexuais e migração. In: AREND, Silvia F.; RIAL, Carmen S.; PEDRO, Joana M. (org.). Diásporas, Mobilidades e migrações. Florianópolis, Editora Mulheres, 2012. pp 103-129. ), Padilla (2008)PADILLA, Beatriz. Brasileras en Portugal: de la transformación de las diversas identidades a la exotización. Amérique Latine Histoire et Mémoire. Les Cahiers ALHIM. Les Cahiers ALHIM, n. 14, 2008. pp.1-15. https://doi.org/10.4000/alhim.2022
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e Gomes (2019)GOMES, Mariana Selister. Dos Museus dos Descobrimentos às Exposições do Império: o corpo colonial em Portugal. Revista Estudos Feministas, 27(3), Florianópolis, 2019., pp. 2 -15. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n357903
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demonstram, ao evidenciarem como são atribuídas às mulheres brasileiras os significados de um corpo colonial, construído em um lugar subalternizado e inferiorizado em relação ao homem branco europeu e às suas mulheres (consideradas padrões de civilização). Lugones (2014)LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3), dez 2014, pp.935-952. nos recorda de como foi se construindo esse lugar não apenas em relação aos homens europeus, mas também em relação às mulheres.

Só os civilizados são homens ou mulheres brancas. Os povos indígenas das Américas e os africanos escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas - como animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem europeu, burguês, colonial moderno tornou-se um sujeito/agente apto a decidir, para a vida pública e o governo, um ser de civilização, heterossexual, cristão e um ser de mente e razão ( Lugones, 2014LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3), dez 2014, pp.935-952.: 935).

Dessa forma, no passado colonial, eram atribuídas características não humanas e instintos sexuais incontroláveis às mulheres e às populações escravizadas. Ao homem europeu, era atribuído o lugar de poder, o governo, a ideia de civilização. Essa construção justifica não só a dominação dos europeus colonizadores, mas a violência contra seus corpos, seja de homens ou mulheres, indígenas ou negros. De acordo com Lugones (2014)LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3), dez 2014, pp.935-952. , as mulheres foram usadas para deleite e prazer dos senhores coloniais, sofrendo violências físicas e sexuais, tornando esse corpo passível de ser subalternizado, explorado e violentado.

Padilla (2007PADILLA, Beatriz. Acordos bilaterais e Legalização: O impacto na integração dos imigrantes brasileiros em Portugal. In: MALHEIROS, J. M. (org.). Imigração brasileira em Portugal. Lisboa, Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI), 2007, pp.217-226. , 2008PADILLA, Beatriz. Brasileras en Portugal: de la transformación de las diversas identidades a la exotización. Amérique Latine Histoire et Mémoire. Les Cahiers ALHIM. Les Cahiers ALHIM, n. 14, 2008. pp.1-15. https://doi.org/10.4000/alhim.2022
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) afirma que esse cenário de subalternidade, exploração e violência é atualizado nas relações entre portugueses e mulheres brasileiras migrantes em Portugal, pela associação das mulheres brasileiras com a prostituição e o mercado do sexo. Essa associação também aparece nos relatos das brasileiras na Alemanha e na Itália. Há um imaginário que circula no Brasil, assim como no exterior, a partir o qual, nas mais variadas formas de produções culturais sexualizadas, o corpo, o biquíni, o jeito de andar e os procedimentos estéticos se tornam marcas dessa hipersexualização das brasileiras. Assim, quando chegam na Europa, seja em Portugal, na Alemanha, na Itália ou em outro país europeu, as emigrantes brasileiras lidam com esses processos de sexualização e racialização.

Importante também para nossa discussão é o destaque que Gomes (2019GOMES, Mariana Selister. Dos Museus dos Descobrimentos às Exposições do Império: o corpo colonial em Portugal. Revista Estudos Feministas, 27(3), Florianópolis, 2019., pp. 2 -15. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n357903
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: 2) faz sobre a noção de mulher brasileira construída a partir desses imaginários. Segundo a autora, "Mulher Brasileira é, antes de tudo, uma construção social, discursiva e performática, imersa em relações de poder históricas e em modos de subjetivação sempre reconstruídos”. Ainda segundo a autora, o olhar colonial sobre os corpos das mulheres das ex-colônias permanece e, quando chegam nas ex-metrópoles, essas imigrantes percebem as marcas de racialização e sexualização com as quais se confrontam no cotidiano de suas experiências migratórias.

Para Padilla (2008)PADILLA, Beatriz. Brasileras en Portugal: de la transformación de las diversas identidades a la exotización. Amérique Latine Histoire et Mémoire. Les Cahiers ALHIM. Les Cahiers ALHIM, n. 14, 2008. pp.1-15. https://doi.org/10.4000/alhim.2022
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, esse imaginário vem desde o passado colonial e persistiu mesmo depois de nos tornamos uma nação independente nas relações de colonialidade e subalternidade, que, desde o período colonial, colocaram as mulheres negras e indígenas como exóticas e disponíveis para o sexo, tornando a mulher brasileira e seu corpo exotizados e sexualizados ( Lugones, 2014LUGONES, Maria. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3), dez 2014, pp.935-952. ). A esse imaginário se associam as construções do luso-tropicalismo de Gilberto Freyre, que enfatiza o caráter de mestiçagem de nossa formação populacional e acentua o imaginário da mulata/mestiça como um corpo sensual, disponível para o sexo ( Gomes, 2019GOMES, Mariana Selister. Dos Museus dos Descobrimentos às Exposições do Império: o corpo colonial em Portugal. Revista Estudos Feministas, 27(3), Florianópolis, 2019., pp. 2 -15. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2019v27n357903
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). Segundo Maia (2009)MAIA, Suzana. Sedução e identidade nacional: dançarinas eróticas brasileiras no dançarinas eróticas brasileiras no Queens, Nova York. Revista Estudos Feministas, 17(3), Florianópolis, set.-dez. 2009, pp. 769-797. , essa representação das brasileiras como misturadas e miscigenadas confere um valor ao mesmo tempo racializado e sexualizado nas arenas globais. Assim, é no corpo que se expressam essas marcas de racialização, como veremos no depoimento de Fernanda.

Piscitelli (2012)PISCITELLI, Adriana. “Papéis”, interesse e afetos, relacionamentos amorosos sexuais e migração. In: AREND, Silvia F.; RIAL, Carmen S.; PEDRO, Joana M. (org.). Diásporas, Mobilidades e migrações. Florianópolis, Editora Mulheres, 2012. pp 103-129. considera que o Brasil, assim como outros países da América Latina e Caribe, tem sua história construída por relações coloniais e regimes de escravidão que produzem nesses relacionamentos imbricações entre economia e sexualidade que estão marcadas por processos de sexualização, racialização, subalternidade e pobreza. A autora analisa a experiência de mulheres que se inserem nos mercados do sexo e do turismo sexual e se envolvem em relações afetivas com estrangeiros, de forma que muitas se casam e mudam para o país de seus parceiros. Contudo, nesse deslocamento geográfico, sofrem processos de subalternização, como mulheres pobres e não brancas, e são vistas com suspeita de se casar por interesse ou por estarem associadas ao mercado do sexo, forçadas a negociar sua posição (de mulher, esposa, mãe, trabalhadora etc.) no país de acolhimento. A autora considera, também, que esses intercâmbios acionam diferenciações, articulando gênero, classe social, raça e, em certos períodos marcados pela migração internacional, também nacionalidade. Piscitelli (2008)PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e cultura, v. [S. l.], v. 11, n. 2, 2008, pp.263-274 [https://www.revistas.ufg.br/fcs/article/view/5247 - acesso em: 9 nov. 2021]. DOI: 10.5216/sec.v11i2.5247.
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, ao descrever as mulheres que se inserem nas rotas de turismo sexual, observa esse mesmo processo.

Essas migrantes são afetadas pela imbricação entre noções de sexualidade, gênero, raça, etnicidade e nacionalidade. Assim, independentemente de serem consideradas brancas, negras ou pardas no Brasil, as brasileiras são racializadas como mestiças nos fluxos migratórios para certos países do Norte. No lugar desigual atribuído ao Brasil no âmbito global, a nacionalidade brasileira, mais do que a cor da pele, confere-lhes essa condição, e essa racialização é sexualizada ( Piscitelli, 2008PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e cultura, v. [S. l.], v. 11, n. 2, 2008, pp.263-274 [https://www.revistas.ufg.br/fcs/article/view/5247 - acesso em: 9 nov. 2021]. DOI: 10.5216/sec.v11i2.5247.
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).

A racialização e sexualização que Piscitelli (2012)PISCITELLI, Adriana. “Papéis”, interesse e afetos, relacionamentos amorosos sexuais e migração. In: AREND, Silvia F.; RIAL, Carmen S.; PEDRO, Joana M. (org.). Diásporas, Mobilidades e migrações. Florianópolis, Editora Mulheres, 2012. pp 103-129. aponta em relação a essas mulheres também é observada e relatada por imigrantes brasileiras inseridas em outros contextos e relações de trabalho e conjugalidade, demonstrando que esse processo molda suas experiências migratórias. Embora no caso da Alemanha e da Itália não tenhamos um passado colonial com o Brasil, a relação estabelecida com os imigrantes e, em particular, com as migrantes, confere a essas mulheres uma posição de colonialidade. Conforme observa Bahia (2012BAHIA, Joana. De Miguel Couto a Berlim. A presença do candomblé em terras alemãs. In: PEREIRA, Glória Maria Santiago; PEREIRA, José de Ribamar (ed.). Migração e globalização um olhar interdisciplinar. Curitiba, Ed. CRV, 2012, pp.223-246.: 226):

Não obstante, os brasileiros não terem uma proximidade linguística ou mesmo uma perenidade ou continuidade de um pensamento colonial (o que ocorre em relação a Portugal), pois o Brasil não foi colônia da Alemanha, esses não deixam de ser “exotizados” pelos alemães [...] O Brasil é o lugar do sonho. Do tropical, da floresta, do desconhecido. Dos corpos em movimento.

Portanto, observamos na posição e nas relações de mulheres brasileiras, no seu cotidiano e nas suas relações afetivas com maridos europeus, uma posição desigual, que expressa as desigualdades de poder decorrentes desse lugar colonial que situa essas mulheres como não brancas, provenientes de regiões mais pobres e, portanto, subalternas.

Por conjugalidade, entende-se o estabelecimento de vínculos entre dois indivíduos que resulta na constituição de uma unidade representada pelo casal. A relação conjugal implica a relação afetiva-sexual, que pode estar vinculada às construções do amor romântico ou do casamento por interesse – pode ainda resultar no desenvolvimento de relações de codependência afetiva e financeira, envolvendo o compartilhamento de sentimentos, manutenção dos aspectos materiais, como a moradia e o alimento, além do compromisso de manter a estabilidade da relação. Neste ponto, é importante destacar que essa relação entre brasileiras e europeus é marcada pela subalternidade que essas mulheres vivenciam no processo migratório.

Ao migrarem, as brasileiras não imaginavam que encontrariam essas representações sobre “a mulher brasileira” e têm que negociar esse imaginário no momento em que passam a viver nos países de imigração, independentemente do projeto migratório inicial e de sua atividade no país de destino – seja para trabalhar ou estudar. Essa sexualização é enfrentada por todas as mulheres migrantes entrevistadas e elas procuram demarcar em seus relatos que não são como aquelas que vieram para a prostituição. Há um esforço permanente de se descolar dessas imagens.

Nas trajetórias das mulheres entrevistadas, encontramos projetos migratórios comuns, como trabalhar, estudar e enamorar-se. Para algumas delas, o projeto de encontrar um amor já estava presente no momento da migração; outras, ao longo do processo migratório, envolvem-se em relacionamentos transnacionais. Segundo Assunção (2016)ASSUNÇÃO, Viviane. Migrantes por amor? Ciclo de vida, gênero e a decisão de migrar em diferentes fases da vida. Revista Estudos Feministas, 24(1), Florianópolis, 2016, pp.63-80. , os estudos sobre essas uniões expressam relações entre homens do Norte e mulheres do Sul e focam em diversos aspectos: mail order brides , agências matrimoniais, motivações para a procura de um cônjuge em outros países, ou, ainda, em suas relações com o turismo sexual. Conforme observa Lima e Togni (2012)LIMA, M. A.; TOGNI, P. Migrando por um ideal de amor: família conjugal, reprodução, trabalho e gênero. Ipotesi Revista de estudos literários, v. 16, n. 1, 2012, pp.135-144. , a migração por amor não é um fenômeno recente, mas, em um contexto em que há uma maior facilidade de comunicação e maior mobilidade internacional, os trânsitos femininos intensificam-se, e essas mobilidades passam a ocorrer não apenas para reagrupamento familiar. As mulheres que migram por amor se inserem em um conjunto de estudos ( Assunção, 2016ASSUNÇÃO, Viviane. Migrantes por amor? Ciclo de vida, gênero e a decisão de migrar em diferentes fases da vida. Revista Estudos Feministas, 24(1), Florianópolis, 2016, pp.63-80. ; Girona, Masdeu, Puerta, 2012) que busca compreender as modalidades de migrações femininas e como essas mulheres negociam com afetos e interesses, tendo o objetivo de encontrar ou construir uma família nos países de destino.

Assunção (2016ASSUNÇÃO, Viviane. Migrantes por amor? Ciclo de vida, gênero e a decisão de migrar em diferentes fases da vida. Revista Estudos Feministas, 24(1), Florianópolis, 2016, pp.63-80.: 27) ressalta em sua análise que:

[...] ao considerar essas uniões, devemos, também, atentar para as imagens construídas e enraizadas sobre as mulheres “não ocidentais”, principalmente eslavas, asiáticas e latinas, que incluem as mulheres brasileiras. Se, por um lado, as representações dessas mulheres estão associadas à natureza (em oposição à cultura), o que as caracteriza como irracionais, mais emotivas e sensuais, por outro, relacionam-nas à domesticidade, com características de passividade, maternidade, submissão e especial habilidade para as tarefas de cuidado.

Desse modo, as brasileiras se inserem no mercado matrimonial procurando atenuar as marcas da sexualização ou construir imagens positivas em relação à sexualidade – que é ressignificada quando se tornam esposas e ou mães. Segundo Girona, Masdeu e Puerta (2012), essas mulheres evidenciam essas motivações para migrar por amor e demonstram que, a despeito de se casarem com estrangeiros, enfrentam situações de preconceito e discriminação nas sociedades de imigração, seja no acesso ao mercado de trabalho, seja no cotidiano das relações, que procuram enfrentar, como veremos nos depoimentos a seguir.

A trajetória de Fernanda: quando estigma7e preconceito são ressignificados.

Fernanda, com 20 anos, chegou a Portugal sozinha, no início dos anos 2000. O único contato era o irmão do padrasto, que ficou de recebê-la quando chegasse ao aeroporto de Lisboa. Fernanda nunca havia pensado em migrar, mas, devido a uma desilusão amorosa, movida pelo “desejo liberdade”, resolveu fazê-lo. No entanto, sua chegada foi marcada por uma surpresa e decepção:

Quando cheguei, não havia ninguém me esperando. Era um casal que havia combinado com minha mãe e não foi me encontrar. Acabei pegando um táxi e eu entrei nessa pensão, e ele só me disse assim, o taxista: “aqui ficam todas as suas conterrâneas”. Quando cheguei na pensão, descobri que as brasileiras que trabalhavam lá eram prostitutas. Eu não tinha pra onde ir e fiquei lá (Fernanda, 38 anos, casada com português, entrevista realizada em julho de 2017).

Em seu primeiro contato na sociedade portuguesa, Fernanda foi classificada com o estereótipo de “mulher brasileira”, associada ao mercado do sexo, estendido a todas as brasileiras esse estigma. Em seu relato, destaca que deixou claro para as outras mulheres e à proprietária da pensão que migrara para trabalhar em outras atividades e não no mercado do sexo, mas, da mesma forma, sofreu as marcas do olhar colonial sobre seu corpo e seu jeito.

Após o choque da chegada, seu primeiro emprego foi cuidar de um idoso e fazer faxina, como acontece com a maioria das imigrantes brasileiras recém-chegadas no país. Aos poucos, foi construindo uma rede de amigos brasileiros, sempre procurando se distinguir das “outras brasileiras” que, segundo ela, não eram respeitadas pelos portugueses e nem pelas portuguesas. Naquele início dos anos 2000, era muito forte o imaginário que associava as mulheres brasileiras ao mercado do sexo. Assim, sempre enfrentava a suspeita de que poderia ser prostituta, ou seja, mulher sexualmente disponível e fácil. Posteriormente, seu ex-namorado brasileiro foi para Portugal e, embora não tenham retomado a relação, dividiram apartamento como amigos. Segundo seu depoimento, percebeu nesse momento a diferença de tratamento dado a uma brasileira quando estava acompanhada.

Ficou na mesma casa, mas nós não nos relacionamos. Éramos amigos, conversávamos, tiramos dúvidas, ele me ajudou. [...] eu percebi uma coisa: é totalmente diferente uma mulher brasileira sozinha, aqui, que uma mulher acompanhada. Mesmo ele não sendo nada meu, o respeito era diferente. [...] Por quê? Porque os portugueses olhavam para nós, brasileiras, como prostitutas, mesmo! Mas eu não tô a falar dos rapazes novos, não tô a falar dos rapazes da minha idade. Que hoje eu tô quase fazendo trinta e oito anos. Eu não tô a falar dessa geração. Eu tô a falar dos senhores. [...] Estou a falar dos senhores, quarenta, cinquenta, sessenta anos. Sabe? E as mulheres também, na faixa-etária dessa idade. Sempre olharam... “Ah, lá vem aquela brasileira ali. Deve ser prostituta, de certeza. Nem deve ter formação. Nem estudar deve, nem saber ler e escrever sabe”.

O relato expressa a racialização, sexualização e subalternização que sentiu ao chegar jovem e sozinha em Portugal, marcadas nos olhares de homens e mulheres sobre a brasileira. Fernanda se considerava branca no Brasil, mas sentiu o processo de racialização, como pode-se perceber na sua fala sobre o preconceito que enfrentou pelo sotaque, pelo corpo, pelo jeito de ser.

Fernanda percebe as marcas da colonialidade no corpo e no sotaque por ser brasileira. Essa fala corrobora os argumentos de Gomes (2013)GOMES, Mariana Selister. O imaginário social “Mulher Brasileira” em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. Dados, v. 56, n. 4, 2013, pp.867-900. sobre o lugar colonial das brasileiras. Segundo a autora, “o sexismo e o racismo criam papéis e imaginários para as mulheres, sendo as brasileiras consideradas as “pecadoras, Evas, prostitutas, disponíveis, inferiores, hipersexualizadas”. Dessa forma, esse corpo é visto como disponível, como nos diz Fernanda:

Esse preconceito eu sofri. Como qualquer outra cidadã brasileira que veio para cá imigrante, tenho certeza de que passou por ele. Se não foi pela cor, foi pelo sotaque. Se não foi pelo sotaque, foi pelo corpo, porque era bonita. Ou porque “ah pois, a brasileira tem fala doce”.

A “fala doce” remete à ideia de sensualidade e marca a sexualização das brasileiras em terras portuguesas. Fernanda fez questão de dizer que não foi discriminada pela cor, mas pelo sotaque. O português falado com uma sonoridade percebida como mais suave é considerado erótico, logo, a fala remete a uma voz e um corpo sexualizado, o corpo da “ginga da mulata”8 8 O jeito de andar mexendo os quadris. . Assim, essa mulher, que se considerava branca no Brasil, sente que é colocada numa outra posição e, para não ser confundida com as outras mulheres brasileiras que se inseriram no mercado do sexo, ela toma cuidado com o jeito de falar e de andar. Diz, ao longo do depoimento, que se tornou mais fechada e que, muitas vezes, sofreu preconceito no trabalho por ser mulher brasileira. Em seu último emprego, antes de entrar no ramo da estética, sentia ainda o processo de sexualização.

Os homens, quando se aproximavam da gente, os grandes, nas reuniões ou coisas assim, que viam, eles vinham com essa intenção. Sabe? Do gênero: Hum... “Ah, o seu cabelo cheira muito bem”. Sabe? Quantas pessoas já cheiraram seu cabelo?

Ao longo da sua narrativa, Fernanda apresenta situações cotidianas em que era confrontada com processos de racialização, exotização e sexualização que afetam seu processo de socialização na sociedade portuguesa. O início do seu relacionamento com o atual marido, um colega de trabalho, foi marcado pelo medo de ser confundida com as representações da mulher brasileira associadas à prostituição. Era comum, no seu trabalho, alguns colegas falarem explicitamente que as brasileiras eram prostitutas. A relação também foi marcada pelo preconceito da família, principalmente da sogra, que considerava que ela o estava namorando para conseguir a cidadania portuguesa ou por interesse financeiro. Assim relata Fernanda as palavras da sogra quando a conheceu:

Ela disse-me assim: “eu não vou aceitar que você faça mal ao meu filho”. Como qualquer outra mãe faria.

E eu disse: mas por que eu faria mal ao seu filho?

Ela [a sogra] disse: A Maria disse-me que você tá interessada no dinheiro do meu filho.

Com o tempo, a família portuguesa foi conhecendo e acolhendo Fernanda, pois, como afirma, não dependia economicamente do namorado. Destaca que, para garantir sua autonomia, conseguiu sua documentação por meio do tempo de residência e do seu trabalho, e não do casamento.

Na perspectiva de Fernanda, ao fazer isso, entrava no casamento em uma situação melhor, de mais igualdade, sem dever nada ao namorado e se casando por amor. Mais do que se distanciar da imagem de brasileira relacionada o mercado do sexo, ela queria autonomia financeira e conseguir a documentação de permanência para viver no país.

[...] e nunca quis pegar [documento de residência permanente] pelo casamento. Eu sempre deixei bem claro isso. [...] é uma questão de orgulho, é, talvez seja estupidez da minha parte, mas é uma questão de orgulho. É um direito meu. Do meu esforço, do meu trabalho.

A experiência inicial de preconceito e discriminação foi sendo ressignificada e enfrentada à medida em que Fernanda conquista um espaço tanto na sua relação afetiva, como no mercado de trabalho. Ao montar um pequeno Centro de Estética, torna-se dona do próprio negócio e se descobre empresária. Fernanda demonstra que a exotização e racialização atribuídas à mulher brasileira foram por ela ressignificadas por sua inserção no nicho de trabalho com a estética. Esse trabalho, para ela, associa o cuidado do corpo com o cuidado de si, com a autoestima e com a beleza. Ao fazer isso, ela muda a sinalização de preconceito e estigma em relação à mulher brasileira e se utiliza positivamente dos atributos da brasilidade, construindo um lugar como empresária.

Quando iniciou o Centro de Estética, chegou a receber clientes que perguntavam se era o marido que tinha comprado o lugar. Ela estranhou a pergunta, mas percebeu que era por, novamente, imaginar-se um lugar subalterno para as brasileiras, como se não pudessem ser donas de seu próprio negócio. Fernanda transcende essas marcas de colonialidade e subalternidade em um processo de resistência a esses estigmas e preconceitos.

O que a trajetória de Fernanda demonstra é uma busca de autonomia financeira e a conquista de um lugar no mercado de trabalho – no qual ser brasileira traz vantagem, pelo senso estético, pela alegria, pelo cuidado com o corpo. Hoje, emprega mais 4 mulheres, três brasileiras e uma mulher do leste europeu. Afirma sentir-se em casa em Lisboa e não tem mais planos de retornar ao Brasil. Portugal se tornou um lugar de oportunidade profissional e de construção de uma nova vida amorosa e familiar. Fernanda evidencia, no seu relato, como as mulheres brasileiras são posicionadas em lugar desigual na sua relação com os portugueses, sejam homens ou mulheres, e como essas relações de poder são desiguais. O seu relato evidencia seu processo de empoderamento9 9 Collins (2019) nos diz que o empoderamento das mulheres negras implica rejeitar as dimensões do conhecimento que perpetuam a objetificação, mercadorização e exploração. Nesse sentido, para a autora, o empoderamento é um processo que implica dois movimentos: empoderar mulheres afro-americanas e promover a justiça social. Assim, a ideia de empoderamento está ligada a uma luta coletiva do movimento de mulheres negras. O termo tem sido utilizado também por ativistas, ongs e empresas que buscam apoiar mulheres migrantes e refugiadas e, muitas vezes, esse conteúdo de justiça social e organização coletiva é esvaziado. Ribeiro (2018) observa que a noção de empoderamento adotada pelas agências internacionais, que atuam com o apoio da ONU e ACNUR com mulheres em situação de refúgio, estabelece uma relação de empoderamento como condição para igualdade de gênero. Nessa noção, empoderamento significa conhecimento e acesso à informação sobre direitos e a capacidade de enfrentar desigualdades. Nessa perspectiva, essas noções são aprendidas. Nesse sentido, as agências enfatizam aspectos mais as trajetórias individuais de empoderamento e um certo modelo de autonomização feminina, que é visto de uma perspectiva crítica pelos estudos feministas por esvaziar os conteúdos políticos do movimento feminista. e agência. Fernanda, ao se tornar dona de seu próprio negócio e ao se casar com um português, sem precisar do casamento para se legalizar, transformando sinais de estigma da “mulher brasileira”, desconstruindo estereótipos e positivando certos atributos para se inserir no mercado da estética e no casamento, empodera-se. Embora possa ser analisado num processo de autonomia individual, pois não estava vinculada a nenhum movimento, é importante destacar, no caso específico da Fernanda, que esse processo ocorreu sem apoio de outras instituições, e sim ao longo de sua trajetória, em um movimento de autoconhecimento que a leva a conquistar seu espaço no mundo do trabalho e na relação afetiva, em um contexto que produz mais igualdade de gênero. Contudo, outras mulheres realizam esse movimento participando de movimentos sociais ou com apoio de agências internacionais, o que, conforme demonstrado por Ribeiro (2018)RIBEIRO, Jullyane Carvalho. “I am free”: Gender statements and the empowerment pedagogies for refugee women in Brazil. Comparative Cultural Studies-European and Latin American Perspectives, v. 3, n. 5, 2018, pp.89-101. , não ocorre sem ambiguidades, pois as agências de apoio aos imigrantes e refugiados, às vezes, estabelecem modelos de autonomização para as mulheres.

A trajetória de Fernanda corrobora ainda as análises de Malheiros e Padilha (2015), ao evidenciar como Fernanda mobiliza o que os autores denominam um capital corporal estético. São saberes que elas utilizam para enfrentar e reconstruir estereótipos historicamente atribuídos pelos portugueses às mulheres, para se firmar no mercado de estética, construir seu negócio – que Malheiros e Padilla (2015)MALHEIROS, Jorge; PADILLA, Beatriz. Can stigma become a resource? The mobilisation of aesthetic–corporal capital by female immigrant entrepreneurs from Brazil. Identities, v. 22, n. 6, 2015, pp.687-705. denominam “beauty filière”.

A trajetória de Eliana – Migrando em busca de um grande amor na Alemanha

A entrevista com Eliana foi realizada em 2012 na Alemanha. Em 2000, com 32 anos, Eliana emigrou para a Alemanha. Morava em Olinda com os pais e os irmãos. Terminou o magistério e trabalhava como professora. Sua irmã mais velha havia emigrado antes e deixado a filha com os pais e se casado na Alemanha. A irmã sempre relatava como era boa a vida e fácil de se conseguir um grande amor na Alemanha. Quando a irmã veio buscar a filha, em uma das vindas ao Brasil, insistiu nessa possibilidade:

Disse a irmã: Ah, Eliana! Você vai e a gente vê, procura uma pessoa pra você se casar na Alemanha.

Eliana: Ah, tá bom [...] se acontecer... aconteceu, se não, tá bom. Aí eu estudo, trabalho [...].

Sua irmã retornou para Alemanha com o propósito de conseguir um namorado para Eliana. No dia do seu aniversário, a irmã liga para o Brasil e a coloca para falar com o futuro namorado. Assim fala a irmã ao telefone:

[...] ai, Eliana! Feliz aniversário! Tem um rapaz aqui querendo falar com você.

Eu digo: ai, então bota no telefone, fala. Ele falava alemão, mas ele já tinha preparado antes, com a minha irmã, algumas palavras em português [entre risos]. Aí ele me desejou feliz aniversário, disse que eu era muito bonita e que queria me conhecer.

Eu digo: ah, tá bom, a gente troca cartas. [...]

Aí eu escrevia, mandava foto. [...] eu escrevia em português e minha irmã traduzia pra ele, em alemão, e ele escrevia em alemão e minha irmã traduzia em português e mandava as duas cartas.

As vindas da irmã ao Brasil e os contatos telefônicos evidenciam a construção desse campo de relações transnacionais, no qual o barateamento das comunicações atua como um fator importante para manter esses laços a distância, seja por telefone, no início dos anos 2000, seja por internet, WhatsApp e computador, nos dias de hoje, em que é possível conectar aqui e lá em tempo real, contribuindo para que essas relações se mantenham mais facilmente, apesar da distância. O relato de Eliana expressa o que observou Piller (2007)PILLER, Ingrid. Cross-cultural communication in intimate relationships. In: KOTTHOFF, Helga; SPENCER-OATEY (ed.). Intercultural Communication. Berlin e New York, Mouton de Gruyter, 2007, pp.341-359. sobre o aumento das viagens e das migrações internacionais ter incrementado as relações entre pessoas de países distintos. O telefone, as cartas trocadas por Eliana e seu namorado e, mais recentemente, todas as tecnologias digitais, têm permitido esses encontros, namoros e casamentos a distância.

Depois de alguns meses trocando cartas e fotos, o namorado convidou-a para ir à Alemanha e conhecer seus pais. Para não passar a ideia de que Eliana tinha planos de se casar com um alemão por interesses econômicos e não por motivos afetivos, a irmã não permitiu que ele pagasse a passagem. A intenção inicial era ficar três meses e, se não gostasse do rapaz e do lugar, voltaria para o Brasil. No entanto, Eliana se apaixonou e três meses depois estava casada.

[...] cheguei, ele foi com a minha irmã me buscar no aeroporto, daí fez aquele “click” [risos] né! Ah! Me apaixonei, aí deu tudo certo, três meses depois, eu me casei.

Eliana faz questão de afirmar que se casou por amor, dentro do imaginário do amor romântico ( Giddens, 1993GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade, sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Unesp, 1993. ). Ela afirma sempre ter querido construir uma família e que, quando viu seu marido pela primeira vez, teve certeza de que era com ele que queria realizar seu sonho.

Nesse sentido, Eliana busca demonstrar que não se insere nos casamentos arranjados para poder permanecer no país de imigração como os relatados por Maia (2011)MAIA, Suzana. Cosmopolitismo, desejo e afetos: sobre mulheres brasileiras e seus amigos. Gênero, sexo, afetos e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. In: PISCITELLI, Adriana; ASSIS, Gláucia de O. OLIVAR, José Miguel (org.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.361-383. . No caso de Eliana, assim como observado por Piscitelli (2011)PISCITELLI, Adriana. Amor, apego e interesse: trocas sexuais, econômicas e afetivas em cenários transnacionais In: PISCITELLI, Adriana; ASSIS, Gláucia de O; OLIVAR, José Miguel (org.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.538-582. , Assunção (2016)ASSUNÇÃO, Viviane. Migrantes por amor? Ciclo de vida, gênero e a decisão de migrar em diferentes fases da vida. Revista Estudos Feministas, 24(1), Florianópolis, 2016, pp.63-80. e Assis (2011a), podemos dizer que não há uma dicotomia entre casamento por amor e casamento por interesse. Os casamentos envolvem afetos e interesses, como bem demonstrado por Blanchette (2005)BLANCHETTE, Thaddeus G. “Is it a real marriage?”: imigração e casamento entre brasileiros e anglo-americanos. In: PÓVOA NETO, H.; FERREIRA, A. P. (org.). Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios. Rio de Janeiro, Revan, 2005, pp.133-151. , ao analisar os casamentos entre brasileiras e gringos, ou as trocas afetivas sexuais de mulheres no mercado do sexo, analisadas por Piscitelli (2012)PISCITELLI, Adriana. “Papéis”, interesse e afetos, relacionamentos amorosos sexuais e migração. In: AREND, Silvia F.; RIAL, Carmen S.; PEDRO, Joana M. (org.). Diásporas, Mobilidades e migrações. Florianópolis, Editora Mulheres, 2012. pp 103-129. . Eliana, assim como Fernanda, afirma ter se casado por amor, no sentido colocado por Lima e Togni (2012)LIMA, M. A.; TOGNI, P. Migrando por um ideal de amor: família conjugal, reprodução, trabalho e gênero. Ipotesi Revista de estudos literários, v. 16, n. 1, 2012, pp.135-144. , Togni (2015)TOGNI, Paula Christofoletti. A Europa é o Cacém: mobilidades, gênero e sexualidade nos deslocamentos de jovens brasileiros para Portugal. Tese (Doutorado em Antropologia), ISCTE, Lisboa, Portugal, 2015. 10 10 Togni (2015) também corrobora uma visão menos dicotômica entre casamentos por amor e por interesse em sua pesquisa no Cacém e demonstra que os “interesses” estão presentes em todos os relacionamentos afetivos sexuais, seja para garantir status dentro do grupo social ou para conseguir algum benefício econômico ou material. Demonstra ainda que a sua própria presença em campo sempre foi negociada, pois era visto pelos imigrantes como branca e jovem em relação aos seus entrevistados e, nesse sentido, seus próprios atributos de gênero e sexualidade foram sendo negociados ao longo do trabalho de campo, passando de uma situação de desconfiança junto às mulheres jovens e aos namorados dos homens jovens, que também viviam no Cacém, a uma pessoa a ser cuidada e protegida pelo grupo. E esse jogo de estar dentro e fora do grupo, acompanhou o seu campo. e Assis (2011a). O casamento, para ambas, significou a construção de um vínculo amoroso, a permanência no país de imigração e a inserção nas famílias de seus cônjuges, criando laços com o país de imigração.

Segundo Eliana, o relacionamento com a família do companheiro foi difícil no princípio, pois havia desconfiança em relação ao seu caráter e se era, de fato, amor o que sustentava a relação. No dia do casamento, os familiares foram educados, compareceram à cerimônia, deram presentes, mas estavam distantes e desconfiados. Com o passar do tempo, à medida em que foi aprendendo a língua, Eliana conseguiu estabelecer um bom relacionamento com toda a família. O nascimento da filha aproximou mais ainda a família e promoveu a aceitação. Ela afirma não perceber nenhuma discriminação entre os familiares por ser brasileira atualmente; contudo, entre os colegas de trabalho e amigos, sim.

No relato de Eliana, percebe-se esse lugar colonial e subalterno da mulher brasileira e, por isso, a vigilância e desconfiança da família em relação a ela. Quando passou a ter maior domínio do idioma, percebeu os comentários feitos pelos amigos do companheiro, que a associavam a um corpo adquirido em uma agência de prostituição.

No trabalho, no clube, ele era sempre perguntado. Queriam o endereço da agência que tinha me comprado. Eu não entendia nada, mas eles falavam na minha frente. Depois que comecei a entender, eu chorava de raiva.

O discurso desses homens ilustra a sexualização e a racialização experienciadas por Eliana, construída como um sujeito subalterno, destinada a servir aos desejos de seu marido europeu. Segundo Pontes (2004)PONTES, Luciana. Mulheres brasileiras na mídia portuguesa. cadernos pagu (23), 2004, pp.229-256. https://doi.org/10.1590/S0104-83332004000200008
https://doi.org/10.1590/S0104-8333200400...
:

O processo de sexualização da mulher imigrante brasileira pode ser associado 1) ao fato de ser imigrante, portanto, de um outro grupo étnico-nacional, exótico, periférico, racializado e de uma classe econômica subalterna e 2) ao fato de ser brasileira, portanto, oriunda da cultura do carnaval, da sexualidade, do culto ao corpo e da pobreza, da violência e do subdesenvolvimento ( Pontes, 2004PONTES, Luciana. Mulheres brasileiras na mídia portuguesa. cadernos pagu (23), 2004, pp.229-256. https://doi.org/10.1590/S0104-83332004000200008
https://doi.org/10.1590/S0104-8333200400...
: 244).

O relato de Eliana demonstra como as dinâmicas de subalternização e exotização impactam no cotidiano e no processo de inserção das mulheres brasileiras na sociedade de imigração. Em geral, Eliana sentiu as dificuldades de se adaptar à Alemanha, à família e aos amigos do marido alemão. Ela considera que a situação se torna melhor quando chegam os filhos.

As trajetórias apresentadas revelam aspectos da intrincada teia de relações, afetos e sensações vivenciadas pelas mulheres brasileiras que emigram e de como seus corpos são percebidos numa perspectiva de “sexualidade natural” – sempre disponível para o sexo –, marcando a persistência de um olhar colonial sobre os corpos dessas mulheres e evidenciando como a sexualização impacta suas vidas de maneiras distintas. Fernanda conseguiu, de certa maneira, driblar o preconceito e construir um nicho no mercado de trabalho no campo da estética, ressignificando o preconceito. Por outro lado, Eliana teve mais dificuldades de sair desse processo de sexualização e ressignificar sua experiência. Apenas quando se tornou mãe, conforme seu depoimento, sua aceitação na família foi concretizada, por meio de elogios e convites para os eventos da família.

Nesse sentido, a maternidade coloca as mulheres brasileiras em outra posição, que contribui para seu reconhecimento e atenua o processo de racialização (Siqueira, Assis, Genovez, 2020). Nessas relações de poder e de gênero assimétricas e desiguais entre uma mulher brasileira imigrante e o marido europeu e sua família, o filho contribui para reposicionar as mulheres e lhes atribuir certo poder. A maternidade cria os laços de parentesco, atenuando o conflito e a desconfiança.

Com o tempo, e após uma desconfiança inicial, por se tratar de brasileiras – e talvez interesseiras, como disse a mãe do esposo de Fernanda –, essas mulheres conseguem se colocar de maneira menos desigual nestas relações. As mulheres enfrentam a desconfiança dos familiares e a suspeita de se casarem para se legalizar, suspeita essa que recaiu sobre Fernanda e Eliana. Nos casos analisados, amor, afeto e interesses se entrelaçam, construindo relações de afeto e respeito. Como demonstrou Piscitelli (2011)PISCITELLI, Adriana. Amor, apego e interesse: trocas sexuais, econômicas e afetivas em cenários transnacionais In: PISCITELLI, Adriana; ASSIS, Gláucia de O; OLIVAR, José Miguel (org.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.538-582. , analisando as mulheres que se envolvem afetivamente com estrangeiros, não há uma dicotomia entre amor e interesses. As mulheres brasileiras conseguem, com a maternidade e com o passar do tempo, no casamento, posicionar-se como mães e esposas, tornando mais positivos os atributos relacionados à mulher brasileira.

Como sugerem Piscitelli (2011)PISCITELLI, Adriana. Amor, apego e interesse: trocas sexuais, econômicas e afetivas em cenários transnacionais In: PISCITELLI, Adriana; ASSIS, Gláucia de O; OLIVAR, José Miguel (org.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.538-582. , Assis (2011a), Siqueira, Assis e Genovez (2020), os casamentos transnacionais envolvem gênero e afetos e conduzem a mudanças nas expectativas temporais. Os dados de campo evidenciam que, quando se casam com estrangeiros e estabelecem relações baseadas no afeto, essas mulheres tendem a permanecer no país de seus companheiros e, apesar dos constrangimentos, desenvolvem formas de lidar com esses constrangimentos decorrentes de sua condição de mulher brasileira. Nessas relações desiguais de poder entre mulheres brasileiras racializadas e sexualizadas, seus maridos europeus e suas famílias, elas têm que negociar suas posições para conseguir se colocar em uma posição menos subalterna na sociedade de imigração. O trabalho, o aprendizado do idioma, o cuidado dos filhos e da família e a construção de laços com a família do cônjuge e seus amigos são mecanismos para positivar essas representações e reconhecer processos de agência e empoderamento dessas mulheres.

Para as mulheres brasileiras entrevistadas casadas com europeus, o casamento representa uma mudança na forma como são olhadas perante a sociedade de acolhimento. Dessa forma, transformam um marcador que gera discriminação em uma forma de construir um lugar positivo no mercado matrimonial.

Tentando driblar as marcas de racialização – a disciplinarização dos corpos

Se o casamento pode ser uma forma de inserção social menos problemática e uma estratégia para se distanciar dos estereótipos de gênero que reforçam a discriminação das mulheres brasileiras no país de acolhimento, para as mulheres solteiras, a ressignificação dos marcadores de gênero, raça e nacionalidade ocorre nas situações do cotidiano. Assim, a vigilância sobre o corpo, sobre a forma como se fala ou como se veste revela-se como um processo de disciplinarização dos corpos para evitar o preconceito e a discriminação.

Carla é uma mulher proveniente da região sul do Brasil, descendente de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil no século XIX. Possui passaporte italiano, emigrou para Itália como cidadã e foi descobrindo, nas suas interações, que era percebida e tratada como uma imigrante brasileira como as demais, e não como italiana. Carla se considera branca, mas, ao ser categorizada como uma mulher imigrante, é vista como não branca. Além disso, é interessante observar que tanto Carla quanto Fernanda se consideram brancas, mas perdem os privilégios da branquitude quando migram. Nesse contexto, tornar-se brasileira é tornar-se não branca, mulata, sexualizada e racializada. No caso de Carla, essa constatação é ainda mais impactante, pois, em sua trajetória migratória, carregava o imaginário de uma italianidade construída no Brasil e, quando chega ao destino, é percebida como brasileira, e não como italiana, apesar de sua ascendência e passaporte italianos. A marca da nacionalidade a coloca em uma posição de mulher sexualmente disponível, como outras mulheres brasileiras e latinas. Assim, conforme relata Carla, o corpo é alvo de constantes policiamentos, uma vez que há muitas situações em que a “mulher brasileira” aparece nas suas interações, como o modo de vestir, de sorrir e de se comportar em público, conforme seu relato a seguir.

[...] quando tu vais em locais brasileiros, tu vês como os brasileiros se vestem e como os italianos se vestem. No período do inverno, de neve, as brasileiras geralmente vão com a barriga de fora, com uma sandália. Com isso, aqui, jamais se vê esse tipo de coisa. E é normal que chame a atenção das pessoas. [...] se uma faz justamente pra chamar a atenção, ou não, eu não sei..., mas é a mesma coisa, é... tu tem que tentar te adequar [...] de alguma maneira. Eu não falo nas pessoas muçulmanas, que de repente usam vestidos longos, tudo, porque faz parte de uma cultura delas se vestir dessa maneira. E eu acho que tirar esse tipo de cultura é... é uma coisa inútil, mas eu falo mais de nós, de aprender, [...] tentar se vestir um pouco mais decentemente. E eu tenho visto... agora trabalhando em shoppings daqui [...], pessoas que vestem microgona , microssaia, não míni [...] tu vê de cara [...] quem são brasileiros... na maneira como se vestem, mas não é uma discriminação minha... (Carla, entrevista realizada em 2012)11 11 Esse depoimento está presente no artigo de Zanini et al (2015) e aqui é retomado para analisar a questão dos corpos femininos na migração. .

O depoimento de Carla evidencia como essas marcas de sexualização produzem outras subjetividades e estratégias para fugir dessas categorizações: vestindo-se de outra forma, cuidando do sotaque, da maneira de rir, de disciplinas corporais que buscam driblar o preconceito e a discriminação e marcar outros atributos para as brasileiras.

Essa negociação e esse aprendizado sobre como se colocar na relação com o nativo evidenciam como os marcadores de gênero e sexualidade são renegociados pelas brasileiras. Cristiane, que vive em Lisboa há mais de 15 anos, é casada com um indiano. Quando a entrevistamos, nos recebeu no escritório onde trabalhava, e falava com um leve sotaque de Portugal. Ao se referir ao imaginário sobre as brasileiras, revela:

Eu acho que, por exemplo, eu, mulher, eu me senti no início assim um pouco... como... eu preciso policiar as minhas atitudes aqui. Por quê? No Brasil, lá na minha região, todo mundo já tá acostumado com o afeto, chega e abraça mesmo... o carinho, isso é muito comum, entendeu? Aqui não. Aqui eles te estendem a mão pra te cumprimentar quando cê já tá armada pra dar um abraço [...]. Então, esse histórico da mulher brasileira aqui em Portugal, né, daquela época que algumas mulheres vieram para se prostituírem, eu acho que isso é algo assim, que hoje não é muitíssimo marcado no imaginário do homem, do português. Mas ainda tem um resquiciozinho disso, entendeu? É assim, nosso jeito espontâneo, eu sou uma pessoa muito espontânea. Eu sou assim (Cristiane, entrevista realizada em 2015).

Cristiane diz que não sofre preconceito e discriminação, pois não se encaixa nos estereótipos da brasileira, ela se autodeclara branca e se veste com descrição, procurando não chamar muita atenção sobre o corpo e, conforme seu relato, ela cuida para não fazer muitas demonstrações de afeto, para não ser confundida com um corpo sexualmente disponível.

Tanto os relatos de Carla, na Itália, como o relato de Cristiane, em Portugal, corroboram com o que Padilla, Gomes e Fernandes (2010) denominam como um processo de “aportuguesação”, o que poderíamos chamar de italianização ou germanização, no caso de mulheres brasileiras em outros países. Nos depoimentos, aparecem falas como “sou discreta”, “me visto mais como as italianas” ou “não uso roupas coloridas como no Brasil”. Essa estratégia de mudar o jeito de se vestir e até de falar, como no caso de Cristiane, marca uma tentativa de se afastar dos estereótipos.

Considerações finais

A maior visibilidade das mulheres nos fluxos migratórios coloca questões significativas para compreender os contextos de recepção e como gênero, raça, classe e nacionalidade marcam os projetos, as trajetórias migratórias e os modos de inserção na sociedade de destino. As mulheres, quando se inserem nesses fluxos internacionais, principalmente as que vêm do sul global, como as brasileiras e as latino-americanas, fazem-no trazendo, em seus corpos, as marcas da colonialidade, são vistas como exóticas, como possuidoras de uma sexualidade natural que marca seu modo de falar, de andar ou de sorrir, como se estivessem sempre disponíveis para o sexo. Essas marcas estão presentes quando chegam ao aeroporto e pegam o táxi, como relatou Fernanda, ou nos olhares e piadas dos amigos, como relatou Eliana.

Algumas dessas mulheres, conforme os relatos aqui apresentados, demonstram como as dificuldades inerentes ao ser migrante são atravessadas pelos marcadores de gênero, nacionalidade e raça no trânsito entre países e nas suas relações de afeto. Nesse contexto, enfrentam os processos de racialização e sexualização, que as situam numa posição subalterna em relação às mulheres nativas e aos homens e as fazem ser vistas com desconfiança. As mulheres brasileiras carregam marcas em seus corpos coloniais imaginados e representados como sempre disponíveis para o sexo, e os constrangimentos as levam a se vestir e a falar de outra maneira, para evitar o preconceito e a discriminação. Embora possamos ver, nessas reações, circunstâncias que nos levam a pensar em situações de subalternização e acirramento das desigualdades de gênero, como inicialmente enfrentou Eliana nas trajetórias analisadas, encontramos movimentos de enfrentamento a estes estigmas e estereótipos. Nesse cenário, o casamento com um europeu, que pode ser visto inicialmente com desconfiança por amigos e parentes, é também o lugar de construir um espaço de reconhecimento, de acolhimento, onde pode-se encontrar afeto, segurança e amor. O casamento, para as mulheres entrevistadas, foi importante para marcar a mudança nas expectativas temporais e na decisão de permanecer nos países de imigração. Esses envolvimentos afetivos enfrentaram o preconceito de parentes e amigos, e as mulheres entrevistadas foram enfrentando o estigma e preconceito, buscando se afastar dos estereótipos da mulher brasileira.

Fernanda procurou demonstrar isso se tornando autônoma financeiramente e regularizando sua situação migratória com sua profissão, e não pelo casamento. A sua história evidencia, ainda, como, por meio da constituição de seu próprio negócio no ramo da beleza, ela conquistou seu lugar no mercado de trabalho e no plano dos afetos. Eliana teve mais dificuldades, pois ainda teve a questão do aprendizado da língua. Mas, com a chegada dos filhos e com mais conhecimento da língua, conseguiu transitar melhor entre familiares e amigos. Para essas mulheres, transitar na sociedade de seus companheiros pode representar uma forma de saírem de uma posição de subalternidade e poderem ser reconhecidas pelo seu trabalho, e não pelos estereótipos de gênero. Elas mantêm no seu cotidiano atenção especial no contato com os homens, principalmente com seus futuros companheiros e familiares e amigos desses. Esse esforço é uma tentativa de desmistificar ou apagar esses marcadores de racialização e sexualização.

Por elas não dominarem corretamente o idioma, o preconceito é, às vezes, sutil ou incompreensível, mas, ainda assim, mina a resistência e a confiança, levando ao adoecimento, como aconteceu com Eliana, que, apesar do acolhimento, depois de uma desconfiança inicial da família do companheiro, teve problemas para adaptar-se às novas relações sociais e culturais.

Vivendo no estrangeiro e conquistando sua autonomia financeira, essas mulheres também sentiram mais liberdade para escolher seus companheiros, para buscar relações que consideravam mais igualitárias em relação às que tinham no Brasil. Embora, muitas vezes, sejam esposas e permaneçam em posições consideradas tradicionais do ponto de vista das relações de gênero, ficando com o cuidado do marido e dos filhos, elas consideram que têm mais autonomia e que são mais respeitadas do que no Brasil.

As narrativas sobre os cuidados com o que vestir, como falar e como se apresentar revelam as estratégias para fugir do estigma e, ao mesmo tempo, demonstram como as mulheres ressignificam esses estereótipos se construindo como boas esposas, mães e trabalhadoras, mulheres carinhosas em relacionamentos com homens europeus. Isso pode ser visto como uma conformação ou acomodação, no entanto, para essas mulheres; pode, também, representar um relacionamento em que confiança e afeto possibilitam a realização do projeto migratório.

Neste artigo buscamos compreender os processos de percepção das marcas da racialização e exotização que as mulheres brasileiras vivenciam ao longo de suas trajetórias de imigração e, apesar de as trajetórias aqui apresentadas não expressarem toda a complexidade das experiências vivenciadas pelas mulheres migrantes brasileiras, elas dão indícios de como questões de gênero, raça e classe são ressignificadas e negociadas por essas mulheres para driblar o preconceito e a discriminação.

Nesse percurso, o enfrentamento do preconceito implica tentar transformar marcas de estigma em recursos facilitadores da inclusão no mercado de trabalho, como é o caso das mulheres no setor da estética. Em outros casos, na tentativa de apagar essas marcas que denunciam o corpo colonial, acaba-se por efetivá-las – na maneira de se vestir ou falar. Ambos são processos que marcam a experiência das mulheres brasileiras e evidenciam suas estratégias entre a resistência e a conformação, para driblar os preconceitos e os estereótipos em relação às brasileiras.

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  • 1
    Por estereótipos, neste artigo, estamos nos referindo a construções sociais e históricas produzidas em situações de dominação que implicam hierarquias entre um “nós” e os “outros”. No passado colonial, as hierarquias construídas entre os povos dominadores, homens brancos e europeus, significaram a construção de marcadores de raça e gênero que colocaram discursivamente em um lugar de subalternidade populações negras e indígenas e que produziram discursos sobre homens e mulheres, nos quais sobre as mulheres se acentua o seu caráter exótico e sua sensualidade. Esses estereótipos foram atualizados no presente e associados ao discurso da nacionalidade brasileira que exalta o caráter mestiço, a sensualidade da mulata e a alegria, seja no carnaval, na literatura, nas novelas ou em propagandas turísticas que produzem representações acerca da mulher brasileira e que circulam no Brasil e no exterior nos mais variados discursos. Ver também ( Seyferth, 1994SEYFERTH, Giralda. A invenção da raça e o poder discricionário dos estereótipos. Anuário antropológico, v. 18, n. 1, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,1994, pp.175-203. , Maia, 2009MAIA, Suzana. Sedução e identidade nacional: dançarinas eróticas brasileiras no dançarinas eróticas brasileiras no Queens, Nova York. Revista Estudos Feministas, 17(3), Florianópolis, set.-dez. 2009, pp. 769-797. , 2011MAIA, Suzana. Cosmopolitismo, desejo e afetos: sobre mulheres brasileiras e seus amigos. Gênero, sexo, afetos e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. In: PISCITELLI, Adriana; ASSIS, Gláucia de O. OLIVAR, José Miguel (org.). Gênero, sexo, amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.361-383. ; Pontes, 2004PONTES, Luciana. Mulheres brasileiras na mídia portuguesa. cadernos pagu (23), 2004, pp.229-256. https://doi.org/10.1590/S0104-83332004000200008
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  • 2
    Edital CAPES/FCT 021/2012, coordenada por Sueli Siqueira
  • 3
    Parte dos dados da pesquisa foi realizada durante estágio pós-doutoral realizado no ISCTE, por Gláucia de Oliveira Assis em Apoio Edital Universal 2018 CNPq, Projeto Estar aqui, estar lá: as novas configurações familiares e afetivas na migração de brasileiros para a Europa, e financiado pelo Edital Fapesc/2018 apoio a Grupos de Pesquisa Udesc.
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    A agência neste texto é compreendida no sentido utilizado por Collins (2019)COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo Editorial, 2019. , que define agência como a disposição do indivíduo ou grupo social para se autodefinir e se autodeterminar. No entanto, é importante destacar que, ao utilizar essa noção, não estamos reduzindo a agência a uma manifestação da vontade individual, pois, conforme destaca Ortner (2007)ORTNER, Sherry. Poder e projetos: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, Miriam P; ECKERT, Cornelia; FRY, Pitter. Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau, Nova Letra, 2007, pp.45-80. , os processos de agência não podem ser vistos apenas de uma perspectiva individual, pois sempre se inserem em um contexto. Segundo Ortner (2007)ORTNER, Sherry. Poder e projetos: reflexões sobre a agência. In: GROSSI, Miriam P; ECKERT, Cornelia; FRY, Pitter. Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas. Blumenau, Nova Letra, 2007, pp.45-80. , a agência é uma capacidade de todos os seres humanos que é construída e distribuída socialmente e ocorre em um contexto de relações sociais que envolvem negociações e relações de poder. Nesse sentido, os indivíduos envolvidos em relações de afeto ou solidariedade, de poder ou rivalidade, têm acessos diferentes aos processos de agência, pois ela é sempre negociada nas interações. Partindo dessas noções de agência, procuramos compreender como as brasileiras mobilizam situações de estereótipo, preconceito e subalternização e como encontram espaços de agência.
  • 5
    Sobre o processo de feminização dos fluxos migratórios, ver Anthias e Lazaridis, 2000ANTHIAS, Floya; LAZARIDIS, Gabriela. Introduction: Women in the Move in Southern Europe. In: ANTHIAS, Floya; LAZARIDIS, Gabriela. Gender and Migration in Southern Europe, Women on the Move. Oxford, Berg, 2000, pp.1-15. , Padilla, 2012; Frangella, 2014FRANGELLA, Simone. O tênue equilíbrio no movimento: a vicinalidade na migração transnacional. Revista de Antropologia, n. 57, 2014, pp.73-106. https://www.jstor.org/stable/26605472. Acesso em 18 de junho de 2020.
    https://www.jstor.org/stable/26605472...
    ; Assis, 2014ASSIS, Gláucia de Oliveira. Gender and migration from invisibility to agency: The routes of Brazilian women from transnational towns to the United States. Womens studies international forum v. 46, 2014, pp.33-44. ; Assis, 2011ASSIS, Gláucia de Oliveira. De Criciúma para o mundo: Rearranjos familiares dos novos migrantes brasileiros. Florianópolis, Ed. Mulheres, 2011, 348 p. ; Lima; Togni, 2012LIMA, M. A.; TOGNI, P. Migrando por um ideal de amor: família conjugal, reprodução, trabalho e gênero. Ipotesi Revista de estudos literários, v. 16, n. 1, 2012, pp.135-144. .
  • 6
    Sobre a construção social da mulata como objeto de desejo e as articulações entre gênero e raça, o texto de Mariza Correa evidencia como foi se construindo, desde o passado colonial e atualizado ao longo do século XX, na literatura, no discurso médico e carnavalesco, a ideia de um corpo sexualizado e desejável representado na figura da mulata. Conforme Correa (1996:39): “além de cheirosa e gostosa, a mulata é muitas outras coisas nesses e em outros textos: é bonita e graciosa, dengosa e sensual; em suma, desejável”. A autora destaca ainda que a construção social da mulata revela a persistência do racismo, pois, ao torná-la objeto de desejo do masculino, a mulata evidencia o que não se quer revelar: a mulher negra. Para os objetivos desse artigo, essa reflexão é muito importante, pois as mulheres entrevistadas se percebem como brancas, mas, por seus traços considerados brasileiros – cor de cabelo, pele morena –, são representadas como mulatas. Assim, independentemente da cor da pele, são racializadas com tais características, pois são brasileiras, e os atributos de sensualidade, graciosidade e o jeito de falar são atribuídos a elas às mesmas em um processo de exotização e sexualização que demonstraremos ao longo do artigo.
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    Estamos entendendo estigma como um processo de categorização social que exclui, cria estereótipos e marginaliza um grupo social que não corresponde aos padrões hegemônicos de uma dada sociedade. No caso das mulheres brasileiras, a associação delas com a prostituição e, consequentemente, a sua sexualização, traz junto o estigma que se produz em relação às mulheres que trabalham no mercado do sexo. Segundo Silva e Blanchette (2017)SILVA, Ana Paula da; BLANCHETTE, Thaddeus Gregory. Por amor, por dinheiro? Trabalho (re) produtivo, trabalho sexual e a transformação da mão de obra feminina. cadernos pagu (50), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2017, pp.03-58 [https://www.scielo.br/j/cpa/a/SKbBG7ZFbbjJLtmM4rN4cDs/abstract/?lang=pt] https://doi.org/10.1590/18094449201700500019.
    https://www.scielo.br/j/cpa/a/SKbBG7ZFbb...
    , o estigma é um mecanismo de controle que cria uma hierarquia entre as boas mulheres, esposas e mães e as outras, que não correspondem ao padrão, dificultando o reconhecimento das lutas e os direitos das mulheres que trabalham no mercado do sexo. Ver também a discussão de Malheiros e Padilha (2015), em que analisam como as brasileiras enfrentam os processos de estigmatização, utilizando-se dessas marcas para construir nichos no mercado de trabalho.
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    O jeito de andar mexendo os quadris.
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    Collins (2019)COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo, Boitempo Editorial, 2019. nos diz que o empoderamento das mulheres negras implica rejeitar as dimensões do conhecimento que perpetuam a objetificação, mercadorização e exploração. Nesse sentido, para a autora, o empoderamento é um processo que implica dois movimentos: empoderar mulheres afro-americanas e promover a justiça social. Assim, a ideia de empoderamento está ligada a uma luta coletiva do movimento de mulheres negras. O termo tem sido utilizado também por ativistas, ongs e empresas que buscam apoiar mulheres migrantes e refugiadas e, muitas vezes, esse conteúdo de justiça social e organização coletiva é esvaziado. Ribeiro (2018)RIBEIRO, Jullyane Carvalho. “I am free”: Gender statements and the empowerment pedagogies for refugee women in Brazil. Comparative Cultural Studies-European and Latin American Perspectives, v. 3, n. 5, 2018, pp.89-101. observa que a noção de empoderamento adotada pelas agências internacionais, que atuam com o apoio da ONU e ACNUR com mulheres em situação de refúgio, estabelece uma relação de empoderamento como condição para igualdade de gênero. Nessa noção, empoderamento significa conhecimento e acesso à informação sobre direitos e a capacidade de enfrentar desigualdades. Nessa perspectiva, essas noções são aprendidas. Nesse sentido, as agências enfatizam aspectos mais as trajetórias individuais de empoderamento e um certo modelo de autonomização feminina, que é visto de uma perspectiva crítica pelos estudos feministas por esvaziar os conteúdos políticos do movimento feminista.
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    Togni (2015)TOGNI, Paula Christofoletti. A Europa é o Cacém: mobilidades, gênero e sexualidade nos deslocamentos de jovens brasileiros para Portugal. Tese (Doutorado em Antropologia), ISCTE, Lisboa, Portugal, 2015. também corrobora uma visão menos dicotômica entre casamentos por amor e por interesse em sua pesquisa no Cacém e demonstra que os “interesses” estão presentes em todos os relacionamentos afetivos sexuais, seja para garantir status dentro do grupo social ou para conseguir algum benefício econômico ou material. Demonstra ainda que a sua própria presença em campo sempre foi negociada, pois era visto pelos imigrantes como branca e jovem em relação aos seus entrevistados e, nesse sentido, seus próprios atributos de gênero e sexualidade foram sendo negociados ao longo do trabalho de campo, passando de uma situação de desconfiança junto às mulheres jovens e aos namorados dos homens jovens, que também viviam no Cacém, a uma pessoa a ser cuidada e protegida pelo grupo. E esse jogo de estar dentro e fora do grupo, acompanhou o seu campo.
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    Esse depoimento está presente no artigo de Zanini et al (2015) e aqui é retomado para analisar a questão dos corpos femininos na migração.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2020
  • Aceito
    25 Out 2021
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