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Cansaço e violência social: sobre o atual cotidiano materno

Tiredness and Social Violence: About the Current Maternal Daily Life

Resumo

A expressão cansaço tem circulado contemporaneamente em distintas esferas da vida social para significar experiências de maternagem de mulheres de camadas médias brasileiras. “Mães cansadas” figuram, verbalizam ou escrevem sobre o que vivem nos grupos virtuais e presenciais de mães no pós-parto, nos discursos psi e nas telas do cinema e da televisão. Neste artigo, a ideia é refletir justamente sobre “o cansaço” como categoria nativa nesses universos e ponderar sobre os seus sentidos no que tange à vida social mais amplamente pensada, qual seja econômica e politicamente. Afinal, o que pode nos contar o “cansaço materno” sobre a política e a economia, sobre a casa e a rua, sobre o ideário de uma maternidade “mais naturalista” e sobre os papéis de gênero operantes?

Cansaço materno; Violência sexual; Práticas discursivas

Abstract

The expression tiredness has been circulating at the same time in different spheres of social life to mean experiences of motherhood of Brazilian middle-class women. “Tired mothers” figure, verbalize or write about what they live in the virtual and face-to-face groups of mothers in the postpartum period, in psi speeches and on cinema and television screens. In this article, the idea is to reflect precisely on “fatigue” as a native category in these universes and to ponder on their senses in terms of the most widely thought-out social life, which is economically and politically. After all, what can “maternal fatigue” tell us about politics and economics, about the home and the street, about the idea of a “more naturalist” motherhood and about the gender roles that operate?

Maternal tiredness; Social violence; Discursive practices

Notas introdutórias

Este artigo começou a ser escrito devido a uma viagem pela Chapada Diamantina, mais especificamente pelo Vale do Capão, na Bahia. Região úmida, de montanhas que criam uma clivagem e em que vivem pessoas em busca de “uma maior conexão com a natureza”, ou de uma vida considerada “mais simples” do que a oferecida nas grandes cidades. Entre elas, encontramos brasileiros e estrangeiros. O “Capão”, como é conhecido, é uma área de muita água e cristais. Segundo Celeste, essa configuração geológica o torna parecido “com um útero e o motivo das pessoas virem e não desejarem mais sair daqui”. De fato, muitas são as metáforas entre o Capão e o universo dos partos, das entranhas femininas e das maternidades.

Estávamos em sua varanda, depois de meses sem nos vermos, conversando sobre nossas famílias, nossos casamentos, nossa vida e como sempre, partos e nascimentos. Os nossos e os de outras. Havíamos nos conhecido no curso de uma parteira mexicana muito reconhecida no cenário da humanização do parto (Carneiro, 2015). Eu e Celeste, essa parteira local, de 40 anos e minha amiga, que nos apresentava um pouco daquela realidade local. De origem paranaense, vive no Capão já há 14 anos, é mãe de 3 filhos, 2 deles ali nascidos e sob sua própria assistência, tornou-se “parteira da vida”, como gosta de dizer, por meio da transmissão oral de conhecimentos, junto de parteiras latino-americanas em cursos de imersão e no cotidiano da assistência aos partos. Celeste é uma mulher branca, de cabelos longos e castanhos claros, bem magra, de alimentação natural e com mãos meigas, mas duras e ásperas, que denunciam o seu trabalho na terra e com as plantas. Uma mulher calma e intrigantemente muito segura de seu acompanhamento aos partos. Segundo ela, confia muito “na guiança” que lhe acompanha. Naquele mês de julho e nos que o antecederam, era a única parteira tradicional que vivia na Vila, com boas relações com o médico e as enfermeiras obstétricas que atendiam na única Unidade Básica de Saúde do local.

Nessa tarde em que estivemos juntas, entre um assunto e outro, me contou do acompanhamento de um pós-parto difícil. De uma mãe de primeira viagem que teve “endometrite”, que é uma infecção no útero dias depois de nascida a criança. Segundo ela, foi uma situação muito diferente, já que a mulher não tinha febre e tampouco odor de infecção. Enquanto me contava essa estória1 1 Estória aqui se refere ao contado e narrado por mulheres a partir do cotidiano, da casa, do doméstico e do próprio corpo. Essa ideia tem sido desenvolvida em minhas pesquisas mais recentes (Carneiro, 2020 e 2021), no sentido daquilo que se contrapõe ao – em tese- oficial ou status quo, geralmente produzido por uma leitura masculina, para dar vazão as vozes das mulheres, conferindo importância, legitimidade e mesmo status ao que acontece no mundo interno e da casa, em seus muitos sentidos. Para tanto, tenho me inspirado nos debates promovidos por Suely Kofes (2007) e Vania Cardoso (2007). , entre uma fala e outra, comentou: “Nós já estávamos quase acionando as outras mulheres para amamentarem o bebê dela, esperando que ela tivesse de ir ao hospital em Seabra e ali ficar internada por um tempo”. Essa fala de Celeste me fez parar no tempo. Algo que me chamava muito a atenção.

Eu já havia ouvido falar sobre “amamentação cruzada”, quando uma mulher aleita o filho de outra e assim sucessivamente, cruzando peitos, mães e bebês, em regiões rurais e/ou em outras culturas, mas por pesquisas de terceiros (Beraldo, 2016). Mas o que me mobilizou mesmo, nesse caso, não foi esse ponto, mas a rede de apoio e a ajuda aventada por Celeste no caso dessa mulher ter de ficar internada, e outras mulheres do Capão serem acionadas para cuidarem de bebê, dando-lhe o peito e em todos os outros cuidados.

Seguimos conversando sobre seus cuidados com pós-parto e Celeste me disse que suas consultas de pós-parto chegavam a durar até 5 horas, pois, em seus dizeres, “é nessa fase que estouram as piores situações”. Curioso é que, na medicina ocidental moderna e também contemporânea, essa fase de maneira geral é percebida como o momento da “boa pega para mamada”, de o bebê crescer, de a criança receber visitas e ser vista pelo mundo. Pouco se fala sobre as mulheres depois que os bebês nascem. É, de fato, ainda muito recente o movimento feminino que descortina o puerpério ou pós-parto, para além dos diagnósticos biomédicos de depressão pós-parto ou baby blues, como, por exemplo, o que se tem visto na plataforma virtual Temos que falar sobre isso2 2 Para mais, ver https://temosquefalarsobreisso.wordpress.com – acesso em: 19 de abril de 2019. .

Há anos pesquiso o universo de mães de camadas médias de centros urbanos no Brasil. Primeiro, me detive às suas experiências de parto, corpo e sexualidade, mas, depois de ter me tornado mãe e assim ter sido atravessada por essa experiência, tenho refletido nos últimos anos sobre os movimentos maternos e suas relações com os feminismos e a política, alinhamentos de maternagem contemporânea e debate sobre carreiras e maternidades. Ou seja, o modo como essas mulheres têm maternado tem me interessado mais ultimamente. Fala-se sobre gestação, tipos de parto e violência obstétrica, mas e sobre a maternidade, o que sabemos? Justamente por isso, a ideia neste artigo é refletir sobre a prática das maternidades, ou seja, sobre o ato de maternar, e, em especial, o pós-parto entre as mulheres de camadas médias. Mas, mais especificamente, sobre uma categoria êmica que tem operado nesse universo: a noção de “cansaço” – e, a partir dela, ponderar a respeito de mulheres mães, cuidado, cansaço, Estado e políticas públicas.

O cansaço bom para pensar

Se no Capão as mulheres são acionadas para amamentar os filhos daquelas que passam por problemas de saúde, pergunto-me sobre quem cuida das crianças nas grandes cidades em situações parecidas? Como e para que funcionam as redes de apoio para mães, pais e crianças? Elas existem e quem as compõem? Os desenhos dessas linhas de cuidado são certamente bastante diversos se olharmos para as mulheres de camadas populares e de camadas médias e/ou altas, pois o mercado e a economia determinam como acontecerão os cuidados com as crianças, como se depreende dos debates recentes de Silvia Federeci sobre o corpo feminino, trabalho reprodutivo e a acumulação primitiva (2017), mas também dos escritos de autoras como Guita Debert (2014)DEBERT, Guita. Arenas do cuidado. Tempo Social, Revista de Sociologia Política – USP, v. 26, 1, 2014, pp.35-45. e Pascale Molinier (2014)MOLINIER, Pascale. Interseccionalidade, cuidado e feminismo. Tempo Social, Revista de Sociologia Política, USP, v. 26, 1, 2014, pp.11-33. sobre o care e o gênero do cuidado no Brasil e na Europa.

Em uma rápida pesquisa nas redes sociais, em blogs ou plataformas virtuais sobre maternidade, encontramos entre as mulheres de camadas médias a queixa materna recorrente do cansaço. O cansaço da maternidade full time, da maternidade vivida na família nuclear e/ou oriundo da necessidade de se conjugar vida pessoal, família, trabalho e o mito da felicidade contemporânea. Pelos círculos de mães pelos quais passei nos últimos anos como pesquisadora e/ou nativa, despontava a narrativa recorrente do cansaço. Diálogos sobre essa sensação tornaram-se frequentes: “Como você está?”. “Estou exausta”. “Estou cansada”, eram expressões das bocas das mulheres mães que por esses círculos circulavam. A repetição era tamanha que o adjetivo “cansada” passou a me mobilizar e a sua semântica a me interpelar. A que se deveria e em que consistiria tamanho cansaço materno na atualidade?

Philippe Airés (1981) em seu clássico História Social da Família e da Criança discute como se dava a criação das crianças e a relação entre as mães e seus filhos antes da modernidade capitalista. Em sua obra, o aspecto coletivo da criação salta aos olhos: as crianças cresciam pelos feudos, sem tantos cuidados direcionados uma a uma, individualmente, e eram observadas por todos os que ali viviam. Por outro lado, muitas crianças da aristocracia eram amamentadas por amas de leite, e tarefas como aleitar, trocar as roupas, acompanhar quando doente, todas notadamente caras às mulheres das camadas médias de hoje, eram outrora destinadas a outras mulheres, talvez porque consideradas menores ou inferiores (Gomes et al., 2016GOMES, Juliane de Figueiredo et al. Amamentação no Brasil: discurso científico, programas e políticas no século XX. In: PRADO, SD. et al. (org.). Estudos socioculturais em alimentação e saúde: saberes em rede. [online]. Rio de Janeiro, EDUERJ, 2016. Sabor metrópole séries, v. 5, pp.475-491 [http://books.scielo.org/id/37nz2/epub/prado-9788575114568.epub – acesso em: 11 abril 2018].
http://books.scielo.org/id/37nz2/epub/pr...
). Por isso, Badinter (1986) argumenta que a ideia de “amor materno” é uma construção moderna, ancorada na divisão capitalista de mundo privado/mundo público, produção/reprodução e na divisão sexual do trabalho justificada por um discurso que naturaliza o cuidado como biologicamente feminino. Ser mãe, então, teria passado a ser nessa fase algo da ordem do natural e do instintivo. Para além disso, uma espécie de destino final ou razão sine qua non para a existência das mulheres.

Dando um salto histórico relativamente grande, mas para que possamos ter uma compreensão panorâmica do debate sobre o cuidado materno, por volta dos anos de 1970 e 1980, entre as camadas médias brasileiras, o que se passou a ver foi, mais uma vez, a terceirização do aleitamento e dos cuidados diários com as crianças, mas nesse momento com uma outra roupagem: das amas de leite passamos ao leite em pó e ao surgimento da figura das babás e dos cuidados individualizados e remunerados. Por isso, ao nos vermos, contemporaneamente, no começo do século 21, diante de práticas de maternidade rotuladas como “maternidade consciente”, “maternidade ativa” ou “maternidade reflexiva”3 3 Maternidade ativa, maternidade consciente e maternidade reflexiva serão aqui tomadas como sinônimos a partir do que se depreende do universo nativo pesquisado. Via de regra referem-se a uma maternidade crítica, que se pretende mais livre e mais naturalista, no sentido de um maior protagonismo das mães e de menos intervenções médicas e educacionais na vida das crianças. , encaramo-las como algo novo e diferente no que diz respeito aos contornos da ideia de cuidado com as crianças e modos de maternar em nossa sociedade.

O que se vê atualmente entre as mulheres brasileiras de camadas médias, geralmente organizadas em famílias nucleares ou no que Tania Salem chamou de “casal igualitário” (2007), é bastante diferente do mencionado historicamente, qual seja: a não interferência/presença de uma terceira pessoa nos cuidados com os bebês e crianças. Nesse nicho de mulheres mães, é possível encontrar algumas dedicadas totalmente aos filhos durante a licença maternidade por 4 ou 6 meses, mas também outras tantas que desistiram de suas carreiras profissionais em prol da maternidade, que se organizaram ao redor do que tem sido denominado de “empreendedorismo materno”4 4 Empreendedorismo materno: termo usado para se referir as mães que abandonam suas carreiras depois do nascimento dos filhos e se dedicam a trabalhar sob esse selo, indicando que são mães que produzem, a seu tempo e com suas características. ou que então criaram uma rotatividade com os maridos para permanecerem com os filhos em casa por mais tempo, antes de iniciá-los em creches ou escolas maternais.

Entre esses grupos de mulheres circulam livros como os do pediatra espanhol Carlos Gonzales e Dra. Relva da Pediatria Radical no Brasil, que versam sobre a “criação com apego”5 5 Criação com apego: termo usado a partir dos escritos de Carlos Gonzales, pediatra espanhol, que defende o máximo de presença física e emocional junto as crianças, com cama compartilhada, livre demanda para amamentação, não terceirização dos cuidados com a crianças e assim sucessivamente. . Ganha força também a ideia legal do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA, 1990) de “primeira infância”, dos 0 aos 7 anos, como uma fase crucial ao desenvolvimento do ser humano. “Afeto” e “apego” despontam articulados e direcionados às crianças. Em seu epicentro, temos visto as mães, que parecem ter se tornado grandes especialistas em medicina, práticas alternativas de cuidado, conhecedoras das mais diversas linhas da pedagogia, de Montessori à Waldorf, de dietas e da “disciplina positiva” – tudo a fim de criar seres independentes, mas com limites amorosos. Nesse meio, valoriza-se muito o que é hand made, desde os enfeites das festas infantis aos bordados das iniciais dos nomes das crianças nas roupas em que vão para a escola. Fraldas de pano, copos mais anatômicos, carregadores ergonômicos/slings e jogos sensoriais também compõe o que chamarei aqui de “pacote da maternidade consciente”. Nesse interim, as crianças “devem” ficar longe da tecnologia e das telas de maneira geral e contar com a atenção de pais presentes – geralmente, vale ressaltar, muito mais a das mães do que a dos pais, pois são elas quem ainda continuam em casa.

Essa poderia ser, em largas linhas, uma caricatura do que muitas mães de camadas médias brasileiras, diferentes entre si, mas atravessadas pelo ideário da “maternidade consciente”, têm experimentado – um desenho traçado a partir do que tenho visto em grupos virtuais de mães e de debates sobre “maternagem”, de rodas presenciais de mães e de casais nas cidades de Campinas, São Paulo de Brasília e do que escuto de mulheres muito próximas a mim, já que ocupo ambos os espaços de escuta: o de pesquisadora desse universo e o de mãe de camada média atravessada por todos esses discursos “naturalistas” (Tornquist, 2004).

Ocorre que, na maior parte das vezes, as mães não estão somente nesses espaços de circulação materna, mas também em outros tantos, como os seus postos de trabalho, rodas de amigas sem filhos, grupos culturais etc. Dessa maneira, uma vez encerrada a licença maternidade de 4 ou 6 meses, muitas têm de ou querem retornar ao trabalho. Outras permanecem em seus lares. Mas seja em um grupo ou em outro, todas passam a tentar conjugar a casa, a comida, o trabalho e a vida pessoal, bem como, em tese, o cuidado consigo. Essa miríade de papéis sociais6 6 São aqui considerados como as tarefas de ordem física e emocional que compõem a agenda materna: vestir, cozinhar, limpar, acolher, organizar o material escolar, oferecer remédios, acompanhar as atividades escolares e assim por diante. Essa mãe é então conhecida popularmente como uma mulher multitarefas: numa vulgata é economista, psicóloga, professora, cozinheira, enfermeira e faxineira. maternos foi bem explorada em 2016, na charge da cartunista francesa Emma, Era só pedir..., que, numa sequência de imagens extremamente vista e compartilhada na internet, desenvolveu o conceito de “carga mental”7 7 Disponível em: https://www.revistapazes.com/maes-esgotadas/ - acesso em: 19 de abril de 2019. . Em suas lâminas, denunciava que muitas mulheres não somente executam as tarefas de casa e do trabalho, mas estão, a todo o tempo, planejando-as, gerindo-as, comandando-as. A comida, o que falta na dispensa, a roupa da escola que precisa ser comprada, a ajuda na tarefa de casa, a carne para o almoço de domingo com os amigos, a vela para o aniversário do companheiro/companheira, a reunião da escola, o paper para escrever, o relatório de trabalho a ser entregue para o chefe, a criação profissional a ser entregue e assim sucessivamente. Essa charge circulou nas redes sociais como pólvora: milhares de mulheres mães replicaram e divulgaram as ideias de Emma, reconhecendo-se nessa sobrecarga, ressaltando a desigualdade sexual do trabalho doméstico e o recorte de gênero nos cuidados.

No universo científico, criou-se no Brasil uma área de pesquisa denominada “Pesquisas sobre o Uso do Tempo” (PUTs), que procura apurar, dentre outros aspectos, quanto tempo as mulheres dispendem com as tarefas domésticas não remuneradas diária e semanalmente. Esse debate se inicia nos anos 2000, já tardiamente quando comparado à Europa, tendo resultado recentemente na publicação Uso do tempo e gênero (Fontoura et al., 2016).

Se um campo de pesquisas tem se articulado ao redor dos temas de cuidado, gênero e trabalho não remunerado, o assunto também já alcança o campo psi da vida social. Em uma edição da Revista Pazes de 2017, circulou a notícia de que as mães são as mais acometidas pela Síndrome de Burnout, um adoecimento diferente da depressão e que decorre do esgotamento físico e mental, ou seja, depois de a pessoa ter sido cronicamente exposta a uma situação repetidamente estressante. Os discursos da psicologia, portanto, aos poucos passam a nomear e classificar também essas experiências maternas, discorrendo sobre a exaustão e a ideia de cansaço como patologia. Na realidade, como ponderam (Russo et al., 2018), muitos foram/são os nomes para o cansaço. De início, o cansaço era nomeado como “Síndrome da Fadiga Crônica” e tinha um tom marcadamente fisiológico. Porém, a partir dos anos de 1960, sobretudo com a rotina dos operadores de telemarketing, tem sido muito mais pensado no social e como uma consequência de nossas práticas cotidianas, dando ensejo à noção mais atual de Síndrome de Burnout – uma patologia aplicada ao universo materno e que dá nome a esse cansaço, por essas mulheres recorrentemente mencionado. Considera-se:

Ser mãe é um trabalho em tempo integral, 24 horas por dia, 365 dias por ano. A isto se acrescenta que muitas mulheres também trabalham e realizam a maior parte das tarefas domésticas. Em muitas ocasiões, assim que acabam de limpar a casa e colocar tudo em ordem, descobrem que já está tudo sujo e bagunçado novamente, o que cria um intenso sentimento de frustração e impotência que as faz questionar o sentido e o valor do que elas estão fazendo (Revista Pazes, 2017).

Ao redor do debate sobre o 8M, a Paralização Mundial das Mulheres do dia 8 março, no ano de 2019, o periódico espanhol El país, publicou uma reportagem sobre a carga mental no universo materno, fazendo menção novamente à charge de Emma, mas também pautando o assunto como uma questão de direitos à saúde mental. A matéria se intitulava “Carga mental: a tarefa invisível das mulheres da qual ninguém fala”:

Na equipe feminina, as mães são o grupo que mais carga mental suporta. Segundo o estudo anterior, 63% das mães espanholas afirmam que todos os dias têm em mente uma lista infinita de afazeres, frente a 25% de pais que experimentam essa sensação; 87% das mães se consideram as principais responsáveis por que tudo flua adequadamente na casa, e 69% reconhecem que seus parceiros colaboram, mas que é preciso pedir-lhe. Os filhos também percebem de forma inconsciente esta desigualdade de tarefas, já que só 12% dos pais afirmam ser as pessoas de referência para as necessidades diárias de seus filhos, frente a 70% das mães. Outro dado curioso é que só 14% dos pais estão no grupo de bate-papo da escola, frente a 65% das mães8 8 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/01/politica/1551460732_315309.html?id_externo_rsoc=FB_CC&fbclid=IwAR3GqsqjpawWQL8Z9bs47ZLKv52TsFSz4KyCIuXGYidz8vFS3Yh-l8lCe_M – acesso em: 05 de março de 2019. .

Ora, mas voltando ao Vale do Capão e ao que me contava Celeste, onde estão as outras mulheres e/ou outras pessoas que poderiam ser acionadas para ajudar essas mães de camadas médias cansadas e sob pesada carga mental? Elas têm redes de apoio? Elas existem de fato ou pertencem ao mundo virtual ou verbal? Como maternam as mães de camadas médias atualmente no Brasil?

Consideramos a hipótese de que o desenho de família nuclear (Laqueur, 2001) aliado ao “mito do amor materno” (Badinter, 1986), ambos costurados ao discurso naturalista das maternidades conscientes e das teorias de criação com apego, têm atribuído às mães um papel social que, na verdade, congrega muitos outros papéis em uma só pessoa (Badinter, 2011BADINTER, Elisabeth. O conflito: a mulher e a mãe. RJ: Record, 2011.). Via de regra, nas cidades, as mães de camadas médias estão sozinhas com as crianças em suas casas. Dessa forma, se outrora o cuidado tinha uma dimensão coletiva, diluída e pulverizada entre mulheres que viviam no campo, ao que tudo indica, na modernidade e no capitalismo, a maternidade torna-se individual e, mais recentemente, “um projeto”, passando de uma experiência social para experiência individual, quase autoral (Han, 2010HAN, Byung-Chull. A sociedade do cansaço. RJ, Vozes, 2010.). Essas mães “naturalistas” observam e constroem o seu maternar a partir de teorias rígidas sobre como cuidar e criar, em que pesa o rótulo de libertárias e de sua condição de existência, qual seja estando elas sozinhas e solitárias.

Essa é a ideia de ser humano enquanto um projeto de si mesmo, a ser tecido e sustentando perante a sociedade, costurada pelo filósofo coreano Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço (2010). Radicado na Alemanha, o autor desenvolve o argumento de que a sociedade do século 21 seria a “sociedade do adoecimento psíquico, das neuroses e psicoses”. Se antes vivíamos na era das bactérias e do combate ao inimigo, de tudo o que nos fosse externo e que nos representava perigo de fora para dentro, atualmente, o inimigo seriamos nós mesmos, e nossas neuroses brotariam do fato de termos nos tornado uma espécie de “projeto ambulante” a ser vendido e admirado pelos demais. Segundo Byung-Chul Han, essa ideia do sujeito como um projeto singular a ser apresentado à sociedade, a fim de nela obter destaque, tem gerado adoecimentos interna e individualmente, já que a cobrança pessoal (do sujeito para consigo mesmo) é a de ser original e singular a partir de seus feitos pessoais.

Partindo dessa leitura de Han do que ocorre em um panorama social bem mais estrutural, nos perguntamos se a maternidade contemporânea também não teria se tornado uma espécie de projeto de si – um projeto por meio do qual as mães têm de se edificar para serem reconhecidas como sujeitos e pessoas. Se Freire Costa em Ordem Médica e Norma Social (1993) escreveu sobre a figura do médico como o especialista que passa a ditar a vida das famílias no interior das casas, algo antes atribuído aos padres, não seria possível pensar que atualmente essa tarefa é exercida pelas mães de camadas médias? Teriam se tornado elas as grandes especialistas em tudo o que envolve o doméstico e o cuidado, da medicação dos filhos, aos tratamentos à melhor cozinha e atividades a serem desenvolvidas pelas crianças?

O longa-metragem Tully9 9 Tully, 2018. Direção: Jason Reitman. Produção: Bron Studios. 96 min. Estados Unidos. foi lançado no Brasil no mês de maio de 2018 – não por acaso no mês das mães. Trata-se de uma obra sobre o cotidiano e o cansaço de uma mãe de 3 filhos, entre eles 1 recém-nascido. Em pleno puerpério, essa mulher recebe ajuda de uma outra mulher mais jovem, cujo nome Tully intitula a obra. Marlo é uma mulher exausta, com roupas desgrenhadas, cabelos por pentear e olheiras marcadas. Nas primeiras cenas do filme, na única menção ao seu autocuidado, Marlo passa um creme nos pés doloridos, que sustentam o seu corpo grávido, cansado e pesado. Um marido ausente devido ao trabalho contribui para o seu esgotamento, e um filho “singular”, como Marlo mesmo diz, possivelmente no espectro autista, demanda ainda mais a sua atenção e paciência, já que também a escola quer dele se eximir. A casa por arrumar e a comida congelada ocupam as telas do cinema, assim como os atrasos para a escola, para as reuniões e outros compromissos. A vida sempre corrida, afobada, feita naquele instante quase sem fôlego, dá o tom do que vemos no cinema.

O terceiro filho nasce, mas a felicidade parece passar longe de Marlo. O cansaço ocupa todo o espaço possível. A mãe vê de longe a menina recém-nascida no berço e dá pistas de uma falta de vínculo com o bebê, até o momento em que, na rotina da pura repetição de “tira fralda, joga no cesto, coloca a nova e dá o peito”, aceita a proposta do irmão e decide telefonar para o número que ele havia lhe dado com a recomendação de ser uma ótima “babá noturna”.

De início, Marlo havia recusado tal serviço e a ajuda do irmão, disposto a pagar a referida babá, pois não admitia ter alguém em sua casa e tampouco terceirizar a criação de seus filhos. Mas, por fim, decide telefonar para a babá e o drama se transforma: essa mãe passa a ser cuidada por outrem, ao invés de somente cuidar dos outros. Logo no primeiro contato com a babá, Marlo, exausta, escuta: “Eu vim para cuidar de você”. Essa assertiva lhe causa profundo estranhamento, mas sua rotina muda de perfil.

Todas as noites a campainha toca, a jovem babá entra, conversa com Marlo e diz para ela ir descansar, tomando a frente dos cuidados com a pequena menina. Elas conversam, dividem estórias, dão risadas juntas e tornam-se amigas. A mãe, que nunca tinha tempo para fazer ou variar a merenda da filha mais velha, recebe ajuda da babá para cozinhar lindos cookies, o que no dia seguinte surpreende a menina e todos na escola. A jovem babá também ajuda Marlo na retomada de sua vida sexual com o marido, ensinando-lhe a apimentar a relação. Pouco a pouco, aquela mãe exausta parece se recuperar, voltar a sorrir, maquiar-se, ler, brincar e até mesmo se vincular com a menina bebê. O cotidiano torna-se mais leve, porque Marlo tem ajuda, tem com quem conversar e tem quem cuide dela. Mas um dia, repentinamente, a babá lhe diz que precisa partir. Depois de uma noitada de despedida entre as duas, com muita música e bebida, acontece um acidente de carro. E a surpresa do filme se estabelece: Tully, a babá, era na realidade a própria Marlo – ao menos a mulher jovem e divertida que um dia Marlo já havia sido.

Depois do acidente, já no hospital, Marlo sozinha é diagnosticada com depressão. A mensagem que resta a quem está diante das telas é que, a bem da verdade, essa mulher culpava-se por nunca conseguir fazer um bolo para os filhos levarem a escola, por não ter o corpo bonito que um dia tivera e por não dar a atenção necessária ao filho “singular”, mas precisou chegar ao limite de seu corpo físico e psíquico para que as pessoas ao redor a vissem e soubessem o que consigo se passava.

Não por acaso, no mesmo mês das mães e no mesmo ano, o Netflix disponibilizou a série australiana Let me down10 10 Para mais: https://www.netflix.com/title/80198635 - acesso em: fevereiro de 2019. , traduzida no Brasil curiosamente como “A turma do peito”. De novo, o assunto é o cansaço materno e/ou a inaptidão da mulher contemporânea para ser mãe, pois entre o cômico e o trágico tudo parece muito difícil. Audrey, a protagonista, é uma mãe de primeira viagem que aparenta ter 40 anos. Audrey também está em pleno puerpério e, enquanto o marido trabalha fora, ela cuida de sua filha sozinha. Sempre desarrumada, com rugas e sonolenta, figura como mulher estabanada e desajeitada com a bebê. Audrey havia se preparado para um parto normal, mas viveu uma cesárea indesejada e parece ter vergonha disso em um grupo de pós-parto; seu peito está cheio de leite e dói para amamentar, mas ela dedica-se à tarefa arduamente – são essas sugestões de que Audrey deveria ter aderido ao ideário de uma maternidade naturalista, modelo tematizado neste artigo. Audrey também tem saudade de sua memória ágil e de sua vida profissional. Os poucos episódios disponibilizados pelo canal mostram, assim como em Tully, uma mãe cansada e que se vê aquém desse ideal de maternidade contemporânea, intensiva, dedicada e soberana. Mas, nesse caso, diferentemente de Tully, ao invés do drama e da doença, faz-se sátira de uma mãe desajeitada.

Perguntamo-nos por que uma mãe cansada figura ou como uma mulher deprimida ou como mulher patética nas telas de nossas vidas contemporâneas. Eis a questão. Por que razões as mães aparecem cansadas e desastrosas? Bem distantes do “mito do amor materno” (Badinter, 1986) e de idealizarem a maternidade, Tully e Audrey parecem pontuar como a experiência da maternidade intensiva tornou-se uma gaiola de ouro.

Os seus corpos são fisicamente marcados. Em Tully, na mesa com os filhos, Marlo levanta a blusa para coçar a barriga recém-parida, flácida e cheia de estrias e sua filha mais velha, ao ver essa cena, lhe pergunta, com olhar de pesar: “Mamãe, mas o que aconteceu com você? O que aconteceu com o seu corpo?” Já em A turma do peito, a mãe mais bela e descolada do grupo de puérperas frequentado por Audrey urina nas calças ao se irritar com algo, trazendo à tona a incontinência urinária pós-parto, sentindo-se extremamente constrangida diante desse acontecimento e de todos. Esses corpos maternos poderiam ser pensados com o microcosmo do qual nos fala Mary Douglas (2004)DOUGLAS, Mary. Modelo corpo/casa do mundo: o microcosmo como representação coletiva. Revista FAMECOS n. 25, Porto Alegre, dezembro 2004. em “Modelo corpo/casa do mundo: o microcosmo como representação coletiva”. Por esse prisma, esses corpos flácidos e cansados, que foram esticados por sobrecargas da maternidade, são exatamente os mesmos que são julgados pela sociedade a partir do ideal de mãe e de sua necessária e intrínseca resiliência e culpa.

Maternidades, cansaço e violência social: afinal, onde está o cuidado?

O cansaço, portanto, enquanto categoria nativa, opera nos grupos de mães de camadas médias próximos a mim como pesquisadora e como mãe, nas redes sociais, blogs e Instagram de mães de camadas médias, mas, também, nos diagnósticos mais recentes da psicologia e da psiquiatria com a alcunha da Síndrome de Burnout e, mais recentemente, nas telas de cinema. O cansaço, enquanto termo e ideia, se repete e funciona como expressão que explica o que vem acontecendo entre algumas das mulheres dispostas a essa maternidade intensiva, baseada contemporaneamente no afeto e na presença, e veiculada em livros, sites, blogs e Instagram: o adoecimento materno. Um adoecimento decorrente da sobrecarga e da solidão que esse projeto de maternar parece/pode produzir. Mas também, mais do que isso, nos sugere qual é o lugar, quem são as agentes e que tipos de dilemas e limites a noção de cuidado atravessa em sociedades neoliberais como a brasileira. Nesse sentido, refletir sobre esse cansaço materno anunciado emicamente nos abre brechas para adensar um pouco mais o debate atual sobre a teoria do care (Molinier, 2014MOLINIER, Pascale. Interseccionalidade, cuidado e feminismo. Tempo Social, Revista de Sociologia Política, USP, v. 26, 1, 2014, pp.11-33.) e sobre o trabalho doméstico não remunerado (Federeci, 2018FEDERECI, Silvia. Revolucione en punto cero. Trabajo domestico, reproduccion y luchas feministas. Buenos Aires, Tinta Limon Ediciones, 2018.; Hirata, 2020).

Essa exaustão das mães descortina que o cuidado com as crianças nas camadas médias tornou-se concentrado e individualizado e que um discurso naturalista baseado em instintos e afetos o tem assim legitimado. Essa concentração do cuidado, por sua vez, nos coloca diante da acepção neoliberal de um Estado que extingue o cuidado como equipamento e política social – um Estado mínimo, que é inclusive impedido pelo mercado de oferecer qualquer tipo de cuidado. Nos vemos, então, por um lado, diante da ausência de políticas sociais de cuidado e, por outro, diante da difusão massiva da noção de que as mães são as cuidadoras mais adequadas. Mulheres essas que maternam, entretanto, sem nenhum apoio estatal, seja em termos de rede de apoio, escolas e creches de qualidade, incentivo à licença maternidade, redução da jornada de trabalho e cuidados consigo, sua saúde e vida satisfatória.

Esse mesmo Estado neoliberal que se exime do cuidado, segundo Foucault (2008)FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. SP, Martins Fontes, 2008., fomenta a importância do “capital humano” em nossa sociedade. Paradoxalmente, então, não cuida e nem oferece políticas nesse sentido, mas cobra a excelência do sujeito que tem de produzir a si mesmo, como ser singular e investido – ou seja, o “sujeito projeto”, que, para tanto, precisa ser cuidado. Em O nascimento da biopolítica (2008), vemos que Foucault, em suas aulas de 1979, antevia o lugar da mãe em todo esse processo,

Na análise que eles fazem do capital humano, como vocês se lembram, os neoliberais, procuravam explicar, por exemplo, como a relação mãe-filho, caracterizada concretamente pelo tempo que a mãe passa com o filho, pela qualidade dos cuidados que ela lhe dedica, pelo afeto de que ela dá prova, pela vigilância com que acompanha seu desenvolvimento, sua educação, seus progressos, não apenas escolares mas físicos, pela maneira como não só ela o alimenta, mas como ela estiliza a alimentação e a relação alimentar que tem com ele - tudo isso constitui, para os neoliberais, um investimento que vai constituir o quê? Capital humano, o capital humano da criança, capital esse que produzirá renda. Essa renda será o quê? O salário da criança quando se tornar adulta. E para a mãe, que investiu, qual renda? Bem, dizem os neoliberais, uma renda psíquica. Haverá a satisfação que a mãe tem de cuidar do filho e de ver que seus cuidados tiveram sucesso (Foucault, 2008FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. SP, Martins Fontes, 2008.:334-335).

Ao que nos parece, nem mesmo essa renda psíquica as mães cansadas têm recebido. O que cabe às mulheres mães nessa receita econômica que discute investimentos desde a mais tenra infância? Pelo que temos visto em nossas pesquisas e etnografias, cabe o cansaço físico e emocional decorrente de um cuidado solitário, de uma ausência de Estado e da sobrecarga de teorias de como maternar intensivamente nas camadas médias. Cansaço esse que ultrapassa o físico e o mental e pode dar contornos subjetivos a essas mulheres e ao que nossas sociedades entendem como mãe. Vemos, então, a partir da ótica foucaultiana, a importância social dos cuidados maternos, mas a invisibilidade daquelas que cuidam no neoliberalismo. Os seus cuidados curiosamente não lhe resultam em capital humano ou em qualquer outro tipo de investimento. Elas cuidam porque cuidam, pois assim se desenhou socialmente o que compete às mulheres mães, em seus supostos instintos, corpos e natureza.

Nessa linha, não por acaso, o Coletivo Feminista de Sexualidade de São Paulo, em seus escritos dos anos de 1980, versava sobre a necessidade de uma “maternidade prazerosa, voluntária e socialmente reconhecida” (Diniz, 2000DINIZ, Carmen Simone Grilo et al. Saúde das mulheres: experiência e prática do coletivo feminista sexualidade e saúde. São Paulo, CFSS, 2000.). Voluntária porque espontânea, prazerosa para não ser fonte de sobrecarga e, por fim, socialmente reconhecida, para que o Estado e a sociedade em geral reconheçam o trabalho reprodutivo não remunerado como um trabalho social e digno de todo merecimento, nos termos do que vem sendo sustentado por Silvia Federecci (2018). De igual modo, Adrienne Rich, em Nacemos de mujer (2006), também sustentava há décadas a diferença entre uma “maternidade instituição” e uma “maternidade experiência”, alojando na segunda a possibilidade de uma experiência crítica, autoral e livre da ideia social que carregamos de mães e de maternidade.

Ou seja, não são recentes as críticas feministas às práticas de maternagem modernas. Mas recentes são a constatação e as denúncias do adoecimento clínico e do cansaço daquelas que têm passado a cuidar sozinhas, sem poder e querer compartilhar o cuidado, como se viu nas camadas médias dos anos de 1980. Numa aposta de maternidade corpórea, mais próxima e afetiva, em que se oferece o peito, a cama e os braços aos bebês e às crianças a todo o tempo, deixamos um modelo de “maternidade instituição”, mas podemos rumar para outro também institucional e não necessariamente para uma “maternidade experiência”. Nesse campo parece residir um grande ponto de inflexão.

No limite, o que se viu é que, em que pese se recomende socialmente cuidar das crianças como fonte de investimento, todo esse processo tem se concentrado nas figuras das mães – e, assim, na figura das mulheres como sustentáculos de um sistema econômico muito mais abrangente, mas que tem nelas e em suas tarefas dentro de casa a base fundamental para toda sua existência. Recuperando assim, uma vez mais, a ideia de Mary Douglas sobre o microcosmo, aqui o corpo feminino, que acolhe e sustenta, diz do macrocosmo, que constitui um todo social e uma perspectiva panorâmica de mundo, um sistema econômico todo calcado na noção de cuidado por ele, paradoxalmente, repudiada. Sem o cuidado das mulheres e de mães, dificilmente sua engrenagem circularia. Entretanto, é esse o trabalho não remunerado, desconsiderado e que faz adoecer, dada a sua sobrecarga e solidão.

Nos escritos de Thomas Laqueur (2001) sobre o dimorfismo sexual e a divisão sexual do trabalho na modernidade, vemos como o cuidado com os filhos tornou-se um assunto íntimo, da esfera doméstica e do mundo privado e, assim, não pertencente à esfera pública, à política e à economia. Venna Das, no entanto, nos fala sobre a importância dos acontecimentos ordinários, seus eventos críticos e do cotidiano como ambiente potente para pensarmos sobre o social e seus processos de violência. Para isso, muitos de seus trabalhos partem das narrativas de mulheres, em seu dia a dia de violências e possibilidades de agência, a partir de testemunhos.

Ora, neste artigo, mães adoecidas, retratadas como esgotadas física e mentalmente nos cinemas, diagnosticadas com um CID específico pela psicologia e/ou deprimidas confessas estão a testemunhar sobre o seu cansaço e cotidiano. Mas, com a mesma importância e de mesmo modo, tratou-se sobre a economia, o trabalho não remunerado e a atividade dessas mulheres no mundo atual. Pensando assim... Em que medida, ao adoecerem cuidando, não são colocadas frente a frente com processos de violência social, abandono estatal e sobrecargas de trabalho, tanto produtivo quanto reprodutivo? O quanto as novas teorias de maternagem, as contemporâneas amparadas em apego e afeto, não podem ou têm apagado e negligenciado a pessoa da mãe e assim repetido uma proposta normativa de cuidado? O que pode a noção de cuidado nos dizer sobre como nos organizamos socialmente, mas também sobre como poderíamos nos organizar socialmente sobre outros pilares éticos?

Ao nosso ver, múltiplas são as faces da violência e os tons do sofrimento presentes nessas mães cansadas. Esse sistema todo de cuidados, em seus apagamentos e em seus destaques, nos ensina muito sobre as relações possíveis entre Estado, corpos de mães e circulação de valores, ao invés de nos dizer sobre a necessária “circulação de crianças” (Fonseca, 2002). No limite, nos conta sobre quem pode circular e quem não pode circular, ainda que faça a máquina girar.

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  • 1
    Estória aqui se refere ao contado e narrado por mulheres a partir do cotidiano, da casa, do doméstico e do próprio corpo. Essa ideia tem sido desenvolvida em minhas pesquisas mais recentes (Carneiro, 2020 e 2021), no sentido daquilo que se contrapõe ao – em tese- oficial ou status quo, geralmente produzido por uma leitura masculina, para dar vazão as vozes das mulheres, conferindo importância, legitimidade e mesmo status ao que acontece no mundo interno e da casa, em seus muitos sentidos. Para tanto, tenho me inspirado nos debates promovidos por Suely Kofes (2007)KOFES, S. Experiências sociais, interpretações individuais: Histórias de vida, suas possibilidades e limites. cadernos pagu (3), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, Campinas, SP, pp.117–141, 2007 [https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1725 - acesso em: 19 out. 2021].
    https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
    e Vania Cardoso (2007)CARDOSO, Vânia Zikán. Narrar o mundo: estórias do “povo da rua” e a narração do imprevisível. Mana v. 13, n. 2, 2007, pp.317-345 [https://doi.org/10.1590/S0104-93132007000200002 – acesso em: 19 out. 2021].
    https://doi.org/10.1590/S0104-9313200700...
    .
  • 2
    Para mais, ver https://temosquefalarsobreisso.wordpress.com – acesso em: 19 de abril de 2019.
  • 3
    Maternidade ativa, maternidade consciente e maternidade reflexiva serão aqui tomadas como sinônimos a partir do que se depreende do universo nativo pesquisado. Via de regra referem-se a uma maternidade crítica, que se pretende mais livre e mais naturalista, no sentido de um maior protagonismo das mães e de menos intervenções médicas e educacionais na vida das crianças.
  • 4
    Empreendedorismo materno: termo usado para se referir as mães que abandonam suas carreiras depois do nascimento dos filhos e se dedicam a trabalhar sob esse selo, indicando que são mães que produzem, a seu tempo e com suas características.
  • 5
    Criação com apego: termo usado a partir dos escritos de Carlos Gonzales, pediatra espanhol, que defende o máximo de presença física e emocional junto as crianças, com cama compartilhada, livre demanda para amamentação, não terceirização dos cuidados com a crianças e assim sucessivamente.
  • 6
    São aqui considerados como as tarefas de ordem física e emocional que compõem a agenda materna: vestir, cozinhar, limpar, acolher, organizar o material escolar, oferecer remédios, acompanhar as atividades escolares e assim por diante. Essa mãe é então conhecida popularmente como uma mulher multitarefas: numa vulgata é economista, psicóloga, professora, cozinheira, enfermeira e faxineira.
  • 7
    Disponível em: https://www.revistapazes.com/maes-esgotadas/ - acesso em: 19 de abril de 2019.
  • 8
  • 9
    Tully, 2018. Direção: Jason Reitman. Produção: Bron Studios. 96 min. Estados Unidos.
  • 10
    Para mais: https://www.netflix.com/title/80198635 - acesso em: fevereiro de 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2019
  • Aceito
    16 Fev 2021
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