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Corpos dissonantes: O ingresso da atleta transexual Tifanny na Superliga feminina de vôlei e a desestabilização da unidade corporal

Dissonant Bodies: The Entry of the Transsexual Athlete Tifanny in the Women’s Volleyball Super League and the Destabilization of Body Unity

Resumo

O presente artigo se vale da dissonância introduzida pelo corpo da atleta transexual Tifanny Abreu na Superliga Feminina de Vôlei para tensionar as bases científicas e morais nas quais o funcionamento dos esportes de alto rendimento está assentado. A análise da controvérsia acerca da legitimidade da presença de Tifanny na competição supramencionada, realizada à luz das contribuições de Latour (1994, 2012), Haraway (1995, 2009), Preciado (2002) e Mol (2008), fornecerá elementos importantes para questionar a unidimensionalidade usualmente atribuída à concepção de corpo.

Transexualidade; Ciência; Esporte; Corpo; Ontologia

Abstract

This article makes use of the dissonance introduced by the body of the transsexual athlete Tifanny Abreu in the Women's Volleyball Super League to tension the scientific and moral bases on which the operation of high-performance sports is based. The analysis of the controversy about the legitimacy of Tifanny’s presence in the aforementioned competition, carried out in the light of the contributions of Latour (1994, 2012), Haraway (1995, 2009), Preciado (2002) and Mol (2008), will provide important elements to question the unidimensionality usually attributed to the conception of the body.

Transsexuality; Science; Sport; Body; Ontology

Introdução

Durante a partida entre as equipes do Sesc-RJ e Sesi-Bauru, disputada no dia 27 de março de 2019, Bernardinho – comandante da equipe carioca e também técnico da seleção brasileira masculina da modalidade – foi flagrado pelas câmeras televisivas do canal por assinatura Sportv ao reclamar indignadamente para um de seus assistentes sobre a performance da jogadora da equipe rival: “Um homem... é foda” ( Veja , 27 de mar. de 2019:s.p.). A jogadora a quem o técnico se referiu pejorativamente como homem era, na verdade, Tifanny Abreu, atualmente com 36 anos, a primeira atleta transexual a competir profissionalmente nesta categoria esportiva em território brasileiro. Prontamente, a equipe de vôlei LGBT Angels Volley postou uma nota de repúdio ao técnico no Instagram:

foi triste ouvir da boca de um técnico referência mundial, bicampeão olímpico, recordista em prêmios da Superliga, que ela era um homem! ‘Um homem! É foda!’. Transfóbicos e homofóbicos não vão passar sem serem apontados na nossa página! Pode ser o papa do vôlei... Vamos desmascarar todos! Parabéns para o time feminino do Vôlei Bauru, mulheres incríveis que ganharam jogando por merecimento e sem nenhuma vantagem (Instagram @angelsvolley, 27 de mar. de 2019:s.p., grifos meus).

Em sua resposta, Bernardinho adotou um tom conciliatório ao pedir desculpas àqueles que se sentiram ofendidos com suas palavras, alegando que seu comentário havia sido mal interpretado: “me referia ao gesto técnico e ao controle físico que ela tem, comum aos jogadores do masculino e que a maior parte das jogadoras não tem. Sempre trabalhei e tentei ajudar com meu trabalho diversos jogadores e jogadoras sem qualquer tipo de preconceito” ( O Tempo , 27 de mar. de 2019:s.p.). Embora Tifanny tenha aceitado o pedido de desculpa, seu corpo dissonante ( Camargo e Kessler, 2017CAMARGO, Wagner Xavier; KESSLER, Cláudia Samuel. Além do masculino/feminino: gênero, sexualidade, tecnologia e performance no esporte sob perspectiva crítica. Horizontes Antropológicos (on line), v. 23, 2017, pp.191-225. ) já estava de volta à ordem do dia. Uma vez que tensionava e expunha as definições corporais e morais tácitas à prática desportiva do vôlei feminino em alto nível, a porosidade sobre as fronteiras do corpo da atleta, ressaltada por conta de seu desempenho extraordinário naquela partida, serviu para reativar a polêmica sobre a legitimidade de sua presença no campeonato em questão.

No mesmo dia 27 de março, a ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel, uma das vozes mais atuantes no combate à participação de Tifanny na modalidade feminina de vôlei, prontamente saiu em defesa de Bernardinho ao questionar a incorporação da atleta transgênero ao desporto profissional: “leio que a militância a favor de trans no esporte feminino, e contra as mulheres , atacou Bernardinho por ele ter dito a verdade, que Tifanny tem um ataque de homem. Minoria barulhenta que quer empurrar a todo custo que sentimentos são mais importantes que fatos e biologia . Não são” ( Lance , 29 de mar. de 2019:s.p., grifos meus). A declaração de Ana Paula se revela bastante preciosa por contemplar, como pano de fundo da linha de raciocínio que elabora, a dimensão do que Latour (1994)LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994. definiu como acordo modernista , a saber, o desenvolvimento de uma epistemologia de caráter dualista fundamentada na oposição entre natureza e cultura, que caracterizaria a emergência histórica da noção de modernidade mediante o estabelecimento das bases para a consolidação do projeto científico – em detrimento de um momento anterior marcado, sobremaneira, pela imbricação entre tais instâncias. A ruptura anunciada, entretanto, segundo Latour, processava-se apenas em aparência, pois a pretensão purificadora da modernidade, em sua tentativa de delimitar fronteiras rígidas para as expressões da natureza e da cultura, revelava-se uma tarefa vã – ainda que, paradoxalmente bem sucedida –, afinal, implicava simultaneamente a multiplicação de uma infinidade de novas entidades híbridas.

Assim sendo, a encarnação da esportista Tifanny, concebida enquanto atriz material-semiótica ( Haraway, 1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (05), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.7-41. ), apresenta-se como uma figura híbrida na medida em que borra as fronteiras imediatamente tangíveis na operacionalização da distinção entre homens e mulheres ao explicitar, por intermédio da indocilidade do seu processo transicional, o caráter materialmente construído do próprio corpo biológico. Não obstante, o que se pretende abordar no exercício analítico que se seguirá consiste na apresentação da disputa pela purificação do corpo de Tifanny operado por parte de um conjunto distinto de agentes sociais – com destaque às vozes autorizadas do discurso científico. Para tanto, a compreensão mais refinada desta dinâmica solicita a contribuição de Mol (2008)MOL, Annemarie. Política ontológica. Algumas ideias e várias perguntas In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo (org.). Objectos impuros. Experiências em estudos sociais da ciência. Porto, Edições Afrontamento, 2008, pp.63-77. por meio do deslocamento que a autora propõe rumo ao reconhecimento da performatividade de múltiplas ontologias possíveis a respeito de um mesmo objeto de análise. Deseja-se, assim, evidenciar a ruptura com a pressuposição da noção de corpo enquanto realidade unidimensional e unívoca. Logo, observar-se-á que os procedimentos de purificação que visam performar a feminilidade (ou ausência de feminilidade) da jogadora Tifanny – a fim de integrá-la (ou apartá-la) a (de) uma estrutura esportiva previamente concebida a partir da separação entre as categorias masculino e feminino –, estão estruturados em torno de concepções distintas do que seja um corpo feminino e, portanto, obedecem a parâmetros de avaliação específicos.

Antes de proceder à análise, serão introduzidas as bases epistemológicas e conceituais que norteiam a abordagem dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia , com a qual este presente trabalho comunga. Assim, a primeira seção contemplará a discussão realizada por Haraway (1995HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (05), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.7-41. ; 2009HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue. Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, D.; KUNZRU, H.; TADEU, T. (org.). Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte, Autêntica, 2009, pp.33-118. ) com o intuito de evidenciar a necessidade de se compreender a dimensão social para além de uma matriz de pensamento dualista, de maneira a compreender de forma mais refinada os processos de agenciamento que se realizam entre humanos e não-humanos. A discussão seguinte, por sua vez, que antecede a análise propriamente dita, pretende mostrar as implicações epistemológicas apontadas na revisão do entendimento sobre o corpo, de maneira a explicitar sua compreensão enquanto um processo de emergência e romper com concepções que o assumem como uma expressão dada ou naturalizada.

Além do pensamento dualista

Antes de Latour, em 1991, desmontar o tão estimado mito fundacional da modernidade ao proclamar enfaticamente que jamais fomos modernos – dado que os processos de purificação das práticas sociais operacionalizados, sobretudo, por meio do advento do conhecimento científico, não eliminavam, senão estimulavam a criação de novas formas híbridas de existência –, a pensadora feminista estadunidense Donna Haraway, em 1985, havia sugerido uma provocação ainda mais radical: teríamos nós um dia sido, de fato, humanos ? Embora a intelectual seja ponderada e, a princípio, situe a emergência histórica da figura do ciborgue em fins do século XIX ( Gane, 2010GANE, Nicholas. Se nós nunca fomos humanos, o que fazer? Entrevista com Donna Haraway. Ponto Urbe, Revista do Núcleo de Antropologia Urbana da USP, n. 6, 2010 [http://journals.openedition.org/pontourbe/1635 – acesso em 03 mar. 2022]. DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.1635.
http://journals.openedition.org/pontourb...
), o que está em jogo por trás da imagem que evoca é a subversão da estrutura epistemológica que conforma as práticas de pensamento modernas, fundamentadas, sobremaneira, pela racionalidade dualista. A alegoria do ciborgue ( Haraway, 2009HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue. Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, D.; KUNZRU, H.; TADEU, T. (org.). Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte, Autêntica, 2009, pp.33-118. ), neste sentido, pretende questionar a premissa da substancialização que fundamenta a lógica classificatória assimetricamente polarizada para enfatizar, mediante o reconhecimento do processo político de demarcação de fronteiras , as experiências concretas, localizadas precisamente no continuum entre os polos imaginários – embora, com frequência, tais experiências sejam obliteradas em prol do desenvolvimento de processos de normalização. A emergência do ciborgue – enquanto um misto de realidade social e imaginação ficcional que aponta para a existência de outros desfechos históricos possíveis –, proveniente da centralidade adquirida pela chamada cultura high tech na conformação da vida social contemporânea, ajuda a borrar a precisão das fronteiras de três pares de oposição consagrados pela tradição modernista, quais sejam: a) animais x humanos; b) humano-animal (orgânico) x máquina (inorgânico); c) físico (material) x não-físico (simbólico).

O questionamento de tais pares dicotômicos, a que a alegoria do ciborgue faz alusão, está na base de uma crítica epistemológica ainda mais profunda, de inspiração feminista, sobre a natureza do processo de conhecimento moderno, cujos referenciais acionados correspondem tanto ao legado da tradição representacional kantiana como à figura do sujeito epistêmico cartesiano. Haraway, portanto, pretende criticar o recorrente acionamento de um sujeito do conhecimento descorporificado, portador de uma consciência unitária e coerente, que apreende um mundo – assumido como passivo – de maneira isolada, valendo-se, para tanto, da adoção um procedimento de ordem estritamente mental, legitimado pelo discurso da racionalidade metódica. Trata-se de uma relação de conhecimento assimétrica que não reconhece a afetação do mundo sobre a constituição desse próprio sujeito – pressuposto como entidade acabada, pronta, autocentrada. Além de uma imagem de ciência inverossímil, quando contrastada à prática concreta, Haraway a compreende como perigosa, pois a transforma em um absoluto abstrato transcendente universal inumano – a Ciência – que mascara sua dimensão eminentemente política sob a alegação de se configurar como uma produção técnica, extrassocial, desinteressada, neutra, apolítica. Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (05), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.7-41. denomina esse efeito de objetividade frequentemente acionado pelos cientistas por olhar de Deus , ou seja, aquela visão que a todos enxerga, porém não é visto por ninguém; aquele que a todos representa, mas que por ninguém é representado; em suma, um conhecimento sem face. Como alternativa a esse modelo epistemológico, a pensadora propõe uma concepção que reconheça a dimensão material e corporificada das práticas de conhecimento. Afinal, este não pode ser reduzido à faceta estritamente representacional, visto que os homens aprendem a se perceber enquanto tais por meio do manejo concreto dos objetos circundantes do mundo. O indivíduo, longe de estar pronto, é também fruto de um perpétuo processo de produção de caráter pragmático (incluindo as dimensões emocional e sensorial da experiência) e não meramente uma instância discursiva (racionalizada).

Com o intuito de potencializar as virtudes dos modelos construtivistas e marxistas-materialistas, dirimindo suas fragilidades, Haraway propõe o estabelecimento de uma síntese entre tais perspectivas de maneira a compreender esse novo sujeito epistêmico sob a condição de atores material-semióticos . Para além disso, a pensadora também enfatiza que o mundo não é passivo e, ao oferecer resistência, age de maneira determinante na produção da corporalidade e da subjetividade dos sujeitos que emergem nesse processo. Haraway questiona o ego narcísico do sujeito cartesiano ao equiparar a agência e relevância das entidades humanas às não-humanas, reconhecendo o necessário imbricamento entre essas duas instâncias, distinguíveis apenas segundo a adoção de fronteiras analíticas. Ademais, quem conhece, necessariamente, o faz desde um ponto de vista situado e sempre de uma maneira parcial. Em um contexto histórico no qual a ciência e os desenvolvimentos tecnológicos são instâncias centrais à conformação da vida social – produzindo efeitos concretos sobre as condições de existência das múltiplas formas de vida que habitam a Terra –, torna-se necessário o reconhecimento dos interesses existentes por trás das práticas de conhecimento, dada a responsabilidade que se deve assumir em virtude das consequências que tal conhecimento causará à produção da vida em sociedade.

A alegoria do ciborgue, portanto, opõe-se à pretensão totalizante que se esconde atrás da noção de seres humanos ao reconhecer que, no âmbito das relações de poder que se estabelecem, tal mito corresponde a uma substancialização diferencialmente manejável. Ser humano é, antes de tudo, uma questão de poder ser humano. Entretanto, quem tem o poder de definir o sentido de humanidade ideal? A monstruosidade irônica do ciborgue assusta ao mesmo tempo que encanta ao colocar em xeque os pilares fundamentais que sustentam o mito do ser humano: gênese, pureza, identidade, totalidade, transparência, inocência e coerência. O ciborgue contrapõe-se à pretensão modernista do ser humano, questionando as formas de normalização que o ideal humanista carrega consigo. Assim, advoga em prol da multiplicidade e da legitimidade das diferentes formas de se poder ver, falar e conhecer o mundo. Embora os saberes parciais, socialmente localizados, não se integrem em um todo coerente – mas, ao contrário disso, estabeleçam uma tensão entre si –, estes são justamente a condição de possibilidade da produção de um ver junto, ou seja, da formação de coalizões improváveis que apontem caminhos novos e inesperados para o desenvolvimento da vida social. Tal dinâmica reforça o fato de que o conhecimento, para Haraway, é um processo que não ocorre de maneira isolada, numa simples articulação sujeito-objeto, mas que implica o estabelecimento de uma rede de associações responsável por colocar frente a frente uma multiplicidade de agentes humanos e não humanos.

O corpo como emergência

A epistemologia proposta por Haraway é de central importância no âmbito da problemática abordada por este trabalho, pois permite pensar a concepção do corpo para além da substancialização pela qual ele tende a ser usualmente concebido – em especial, por meio de um processo de purificação forjado por uma discursividade científica de matriz médico-biologicista que o vincula à esfera da natureza. De forma alternativa, o corpo passa a poder ser pensado sob a condição de uma verdadeira emergência , isto é, um lugar concreto de entrecruzamento de saberes e objetos a partir do qual emana tanto uma compreensão como uma experiência particular a respeito da sua resistência material. Longe de ser um produto acabado, circunscrito, o corpo passa a ser considerado em sua dimensão plástica na medida em que, tal como observa Silbermann (2014)SILBERMANN, Marcos. No limiar do humano - Doping e performance esportiva em perspectiva antropológica. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2014. na esteira de Deleuze, configura-se como um verdadeiro devir a ser permanentemente atualizado mediante as práticas concretas dos agentes nas relações em que estão inscritos.

Uma consequência diretamente tributária dessa nova maneira de pensar o corpo aberta pela contestação ao dualismo proporcionada por Haraway diz respeito à problematização empreendida por Butler (2000BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2000, pp.151-172. ; 2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. ) acerca da noção de gênero. Segundo a filósofa, a abordagem tradicionalmente acionada para delinear tal conceito peca pela pressuposição de um caráter inatamente biológico que definiria a materialidade do corpo, estruturado de antemão pela existência de uma distinção entre os sexos. Nessa perspectiva, gênero corresponderia à discursividade social – em termos da produção de uma ideia de masculino e de feminino – que se acoplaria sobre essa materialidade presumida, prescrevendo os comportamentos a serem adotados pelos indivíduos. Há, implícita a essa conceitualização, uma ancoragem dualista estabelecida a partir da oposição entre matéria fixa e um pensamento moldável. O que Butler pretende chamar a atenção é justamente para a insustentabilidade da premissa de que os corpos sejam dados, pretendendo argumentar que o processo de construção dos gêneros não é uma etapa subsequente, mas concomitante ao próprio processo de produção dos corpos por meio da categorização sob as fronteiras estanques dos sexos, processo de normalização que oblitera a inteligibilidade de corpos outros possíveis de emergirem. É com base nesta mudança de eixo analítico que a autora confere centralidade à dimensão performática do gênero , apontando para a refração entre corpo e matéria que ocorre de maneira pragmática mediante a encenação reiterada das normas sociais sobre os corpos, conformando-os a padrões de comportamentos socialmente preconfigurados. Não obstante o importante deslocamento proposto por Butler, Preciado (2002)PRECIADO, Beatriz. Manifiesto contra-sexual: prácticas subversivas de identidad sexual. Madrid, Pensamiento Opera Prima, 2002. observa que a abordagem da filósofa americana é ainda insuficiente, visto que a concepção performativa desta ainda se apega demasiadamente ao processo de disciplinamento dos corpos a partir de uma dimensão eminentemente discursiva, desconsiderando a dimensão constitutiva das tecnologias na produção desses mesmos corpos, o que o pensador espanhol define como caráter protético . A construção corporal, para além de sua dimensão semiótico-pragmática, deve incluir também seu aspecto eminentemente tecnológico, afinal, os agentes se constroem no mundo a partir da manipulação dos objetos com os quais entram em contato.

A crítica de Preciado à Butler, neste sentido, corresponde precisamente à diferenciação acionada por Rohden (2018)ROHDEN, Fabíola. “Os hormônios te salvam de tudo”: produção de subjetividades e transformações corporais com o uso de recursos biomédicos. Mana, v. 2, 2018, pp.199-229. , inspirada na conceitualização forjada por Barad (1998), entre interação e intra-ação . Assim, enquanto a primeira noção ainda está restrita à dimensão pragmática estritamente vinculada a uma mútua afetação que se processa apenas entre indivíduos e tem seu foco associado, sobremaneira, à reconfiguração subjetiva por intermédio de uma troca simbólica, o último deixa de conceber as entidades não humanas como meros acessórios para elevá-los à condição de dispositivos que participam diretamente da materialização da produção dos corpos e das subjetividades que emergem a partir da constituição de um fenômeno social particular. No caso particular do estudo de Rohden, a pesquisadora tenta mostrar como da intra-ação empreendida entre Márcia, sua entrevistada, e os hormônios sintéticos que esta passa a utilizar a fim de combater problemas de saúde que se situam na imprecisa fronteira entre os domínios psicológicos e a experiência da menopausa, emerge a produção de um corpo e de uma subjetividade que não existiriam se Márcia e o “chip de regulação de testosterona que lhe fora instalado não fossem colocados em contato concreto. A tecnologia, portanto, não se configura enquanto mera mediação na produção do agente, senão enquanto uma dimensão constitutiva sobre a forma como este percebe a si mesmo em sua relação com o mundo. No caso particular de Tifanny, objeto de atenção do presente trabalho, deve-se ressaltar, igualmente, o caráter determinante da reposição hormonal1 1 Camargo (2017) alerta para a distinção entre as práticas da terapia hormonal – cujo intuito está voltado à hipertrofia muscular visando à melhoria de desempenho atlético – e da reposição hormonal – que aponta para os processos de readequação, no plano dos desejos subjetivos, a uma nova condição física/psíquica reivindicada pela pessoa trans. como parte imprescindível ao processo de transição corporal que ela reivindica para si na passagem de uma corporalidade pressuposta como masculina para a produção de uma corporalidade feminina. A intra-ação, novamente, apresenta-se como uma ferramenta conceitual importante na medida em que aponta para o processo de emergência da nova autopercepção corporal e subjetiva como resultado direto da relação que a atleta estabelece com um composto hormonal sintético.

Essa autopercepção, explicitada e publicizada, produz uma forte dissonância ao borrar os contornos forjados pela demarcação tácita entre as fronteiras ideais da masculinidade e da feminilidade dos corpos, deslocamento que se torna ainda mais pronunciado quando esse corpo transicional, híbrido, reivindica o ingresso ao interior da estrutura esportiva de alta performance, uma das instâncias mais importantes na contemporaneidade na produção e reforço não apenas da distinção entre o masculino e o feminino, mas, também, de certo ideal normativo de corpo definido como natural e saudável ( Camargo; Kessler, 2017CAMARGO, Wagner Xavier; KESSLER, Cláudia Samuel. Além do masculino/feminino: gênero, sexualidade, tecnologia e performance no esporte sob perspectiva crítica. Horizontes Antropológicos (on line), v. 23, 2017, pp.191-225. ). A disjunção operada pela presença do corpo transicionado de Tifanny no palco do vôlei profissional feminino, portanto, suscitou um debate social amplo acerca do direto da atleta acessar esse espaço, debate esse forjado no imbricamento dos discursos científico e moral – em que pese o fato de, retoricamente, muitos cientistas convidados a emitirem seus pareceres procurarem purificar suas posições ao se escorarem no recurso, questionado por Haraway (1995)HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (05), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp.7-41. , do olhar divino da ciência, como se tal prática de conhecimento pudesse ser desvinculada do seu caráter político.

A análise que será empreendida na seção abaixo, portanto, procura contrastar as distintas posições a partir das quais a legitimidade da jogadora Tifanny em exercer a condição de atleta profissional da modalidade feminina é defendida ou questionada. A avaliação moral da licitude de tal corpo dissonante no espaço social requerido está assentada em uma compreensão das práticas esportivas de alta performance pautada pela existência de um princípio de igualdade de condições de competitividade entre os participantes de uma categoria desportiva particular. Todavia, o que a comparação argumentativa permite entrever são não apenas diferentes versões de ciência ( Bourdieu, 1983BOURDIEU, Pierre. O Campo científico. In: ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu: Sociologia. São Paulo, Ática, 1983, pp.122-155. ) acionadas para emitir pareceres – desmontando a suposta consensualidade do empreendimento científico –, mas, sobretudo, diferentes versões da própria ideia de corpo mobilizadas pelo discurso científico para embasar as posições presentes no debate instaurado pela condição de mulher trans assumida por Tifanny.

As múltiplas realidades do corpo de Tifanny

Um dos alicerces da configuração das competições esportivas de alta performance consiste na pressuposição de um princípio de isonomia entre os competidores. Tal princípio encontra materialidade no procedimento de substancialização das categorias acionadas para a classificação de atletas, sendo a produção da fronteira masculino x feminino parte fundamental desta arquitetura. Nesse contexto, Tifanny, em decorrência de seu processo transicional, desestabiliza a rigidez dessa separação. Ainda mais quando se tem em mente que, antes de iniciar o procedimento de transição aos 29 anos de idade, Tifanny, em seu registro identitário anterior como Rodrigo, fora praticante de vôlei e teve importante participação na condução da equipe masculina da UFJF – com sede na cidade mineira de Juiz de Fora – à competição mais importante da modalidade no Brasil, a Superliga ( Toque de Bola , 16 de jan. de 2018). Portanto, a avaliação sobre a legitimidade da presença da atleta no vôlei de alto rendimento em sua categoria feminina no Brasil remete à produção de uma argumentação de caráter normalizador que procura encaixá-la na divisão binária homem x mulher . O ingresso de Tifanny na categoria feminina coloca em questão a tentativa de definir o totalizante significado de ser mulher . Com o intuito de traçar as fronteiras entre o que se pode se reconhecer como mulher e o que não se pode, o discurso científico é convocado para a produção de um conhecimento que procure alinhavar a substancialização da mulheridade ao princípio desportivo da isonomia. Se aos olhos leigos essa tarefa de demarcação pareceria simples, na prática ela se torna demasiadamente espinhosa, afinal, o processo de purificação da natureza do ser mulher torna evidente a heterogeneidade da própria prática científica. Isso se torna patente quando o locus de análise que pareceria o mais autoevidente, a saber, o corpo, não constitui uma única e mesma realidade unidimensional, compartilhada igualmente por todos os cientistas ( Mol, 2008MOL, Annemarie. Política ontológica. Algumas ideias e várias perguntas In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo (org.). Objectos impuros. Experiências em estudos sociais da ciência. Porto, Edições Afrontamento, 2008, pp.63-77. ). Uma pequena genealogia histórica fornece um retrato sobre as dificuldades, por parte do Comitê Olímpico Internacional (COI), de operacionalizar, de maneira definitiva, a presumida fronteira entre os sexos:

Os testes de “verificação de gênero” para evitar “fraudes”, instituídos pelo COI nos anos 1960, iniciaram-se com a verificação da existência (ou não) dos órgãos sexuais reais (análise da anatomia externa). (...) Em 1968, se iniciou a análise da cromatina sexual (concepção cromossômica). Os testes eram realizados com a intenção de evitar que bio-homens se disfarçassem de bio-mulheres. Entretanto, o excesso de erros de interpretação fez com que se mudassem os procedimentos, pois algumas bio-mulheres (do ponto de vista fenotípico) tinham padrões de cromatina de homens, devido a “anormalidades congênitas”. Entre 1968 a 1998, elas precisaram passar por inspeção física ou teste cromossômico. Tal teste, porém, não considerava a anatomia ou status psicossocial. Em 1992, o teste de reação ao gene SRY (concepção genética) tentava aperfeiçoar as tecnologias de identificação dos sexos. Entretanto, apesar das formas de detecção via laboratorial, adicionou-se a consideração do sexo psicológico (desde criança), demonstrando também a importância da subjetividade desses indivíduos na sua classificação. Mais recentemente, a partir das Olimpíadas de Londres 2012, o COI adotou políticas de regulação a partir do hiperandrogenismo. Dessa forma, instituiu-se um “passaporte biológico de atleta” (investido de saberes médicos), embora os efeitos da testosterona ainda sequer sejam plenamente entendidos nos diferentes corpos ( Camargo; Kessler, 2017CAMARGO, Wagner Xavier; KESSLER, Cláudia Samuel. Além do masculino/feminino: gênero, sexualidade, tecnologia e performance no esporte sob perspectiva crítica. Horizontes Antropológicos (on line), v. 23, 2017, pp.191-225.: 217).

Implícitas às tecnologias de verificação acima apresentadas, na esteira da proposição formulada por Mol, podem-se encontrar múltiplas formas de performar a ideia de corpo. Não se tratam, neste sentido, de meros aspectos diferenciais de uma mesma realidade, senão da compreensão de distintas realidades acerca do objeto corpo, realidades tais que, por um lado, guardam certas relações de continuidade entre si ao passo que, por outro, são portadoras de uma autonomia relativa não sendo, portanto, redutíveis umas às outras. Cabe ressaltar, segundo a abordagem desenvolvida pela filósofa holandesa, que não se tratam de perspectivas representacionais distintas de um corpo assumido como dado, senão de uma multiplicidade de formas de performar o corpo que fazem com que, exatamente em virtude de tal performance, este emerja e se torne visível em termos da especificidade da realidade que compartilha em meio à teia de associações na qual está inserido.

Com a finalidade de cumprir com os propósitos dessa análise, foram consideradas, a título de corpus , quatro reportagens sobre a controvérsia instaurada pela presença de Tifanny na categoria feminina de vôlei profissional brasileiro: Por que Tifanny e seu desempenho no vôlei ainda são vistos como um problema? ( Martinelli, 07 de abr. de 2019MARTINELLI, Andréa. Por que Tifanny e seu desempenho no vôlei ainda são vistos como um problema?. Huffpost Brasil, São Paulo, 07 de abr. de 2019 [https://www.huffpostbrasil.com/entry/tifanny-transfobia-esporte_br_5ca7f0e0e4b0dca0330198db - acesso em: 25 nov. 2019].
https://www.huffpostbrasil.com/entry/tif...
), do portal Huffpost Brasil; Caso Tifanny: só controle de testosterona não tira a vantagem (04 de jan. de 2018), do portal on-line da revista Veja ( Laguna, 4 de jan. de 2018LAGUNA, Marcelo. Caso Tifanny: só controle de testosterona não tira a vantagem. Veja, São Paulo, 4 de jan. de 2018 [https://veja.abril.com.br/esporte/caso-tifanny-so-controle-de-testosterona-nao-tira-a-vantagem/ - acesso em: 25 nov. 2019].
https://veja.abril.com.br/esporte/caso-t...
); Leva vantagem? Consultora do COI não crê em reviravolta do caso Tifanny (01 de fev. de 2018), do portal Globo Esporte (Oliveira; Guerra, 1 de fev. de 2018); e, por fim, Números mostram que Tifanny pontua menos e oscila mais que suas rivais (05 de abr. de 2019), do portal UOL ( Lisboa, 5 de abr. de 2019LISBOA, Rubens. Números mostram que Tifanny pontua menos e oscila mais do que suas rivais. UOL, São Paulo, 5 de abr. de 2019 [https://www.uol.com.br/esporte/volei/ultimas-noticias/2019/04/05/numeros-mostram-que-tifanny-pontua-menos-e-oscila-mais-do-que-suas-rivais.htm - acesso em: 25 nov. 2019].
https://www.uol.com.br/esporte/volei/ult...
). Para a composição do presente corpus de análise, o primeiro critério adotado correspondeu à seleção de conteúdo de caráter jornalístico extraído da internet relativo ao impasse suscitado pelo ingresso da atleta transexual Tifanny Abreu na Superliga feminina de vôlei, em um período temporal compreendido entre a estreia da atleta na competição – ocorrida no dia 10 de dezembro de 2017 ( Botta, 10 de dez. de 2017BOTTA, Emílio. Primeira trans na Superliga, Tiffany estreia e São Caetano bate Vôlei Bauru. Globo Esporte, Bauru, 10 de dez. de 2017 [https://globoesporte.globo.com/sp/tem-esporte/volei/noticia/em-dia-historico-tiffany-estreia-e-sao-caetano-bate-volei-bauru-pela-superliga.ghtml - acesso em: 16 maio 2021].
https://globoesporte.globo.com/sp/tem-es...
) – e a cobertura sobre a repercussão do comentário proferido pelo técnico Bernardinho, descrito na introdução deste texto – a data final do intervalo considerado correspondeu ao dia 30 de abril de 2019.

A opção pela análise desse tipo particular de narrativa encontra respaldo na importância historicamente adquirida pelo jornalismo enquanto esfera promotora e fomentadora do debate público. Nesse sentido, a capacidade da atividade jornalística em não apenas fornecer visibilidade social a um conjunto particular de temáticas – definidas pelos veículos de imprensa sob a condição de portadoras de interesse público , segundo seus critérios de noticiabilidade específicos –, mas, principalmente, orientar a maneira como tais temáticas propostas deveriam ser interpretadas pelo público receptor2 2 Compete destacar aqui que tal pretensão ao direcionamento do olhar não deve ser encarada como uma imposição inevitável, pois a interpretação dos significados difundidos pelas narrativas jornalísticas é um processo complexo que tem correlação direta com a especificidade das mediações culturais acessadas pelos sujeitos em suas experiências cotidianas ( Martín-Barbero, 1997 ). , reforça a centralidade dessa instituição no processo de construção social da realidade na contemporaneidade ( Traquina, 2005TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: Porque as notícias são como são. Florianópolis, Insular, 2005. ). Contribui decisivamente para o reforço da legitimidade social alcançada pelo jornalismo – à exemplo da prática científica – a reiterada associação entre o exercício dessa atividade profissional e uma ideia de objetividade – compreendida como controle procedimental da subjetividade – que se traduz na noção – compartilhada tanto no interior da mitologia dos próprios jornalistas como pelo público consumidor – de fato jornalístico ( Henriques, 2018HENRIQUES, Rafael Paes. O problema da objetividade jornalística: duas perspectivas. Griot: Revista de Filosofia, [S. l.], v. 17, n. 1, 2018, pp.256-268. ). A esse respeito, a avaliação preliminar de um conjunto mais extenso de matérias jornalísticas referentes à polêmica envolvendo a participação da supramencionada esportista transexual na modalidade profissional de vôlei feminino, tal como efetuada durante a execução deste trabalho, evidencia o caráter heterogêneo da configuração das narrativas jornalísticas e, por conseguinte, ajuda a colocar em xeque a ideia de fato jornalístico: em que pese a adoção de uma rotinização procedimental estratégica 3 3 Dentre tais rituais estratégicos adotados pelos jornalistas, Tuchman (1993) destaca: a apresentação da possibilidade de conflito ; a apresentação de provas auxiliares para corroborar a argumentação ; o uso judicioso das aspas para localizar e responsabilizar as fontes ; e a estruturação do texto em uma sequência apropriada – estrutura denominada como pirâmide invertida , que hierarquiza o conteúdo da narrativa segundo um critério de importância. por parte dos membros dessa tribo (Tuchman, 1993), os relatos jornalísticos não correspondem a um mero processo de restituição inequívoca de um acontecimento – assumido como preexistente – ao terreno da linguagem, mas, na verdade, por intermédio da performance que suas materializações específicas empreendem, são eles mesmos elementos constitutivos da produção e manutenção de um sentido de realidade. A inteligibilidade do relato jornalístico produzido, portanto, corresponde a um processo de codificação narrativa de uma matriz particular de significados culturais responsável por situar a direção moral a partir da qual o acontecimento configurado deve ser avaliado pelo público receptor ( Hall, 1997HALL, Stuart. The work of representation. In: HALL, S. (org.). Representation: cultural representation and cultural signifying practices. London/Thousand Oaks/New Delhi, Sage/Open University, 1997, pp.13-74. ). A dissonância introduzida pela corporalidade transicionada de Tifanny traz à tona um dilema de classificação cultural, pois colide com um modelo desportivo calcado no estabelecimento de fronteiras rígidas construídas a partir da pressuposição da existência incontroversa de parâmetros biológicos de diferenciação sexual – forjados no interior de uma discursividade biomédica orientada por uma matriz epistemológica cartesiana de caráter dualista (Fausto-Sterling, 2001) –, que seriam responsáveis por assegurar um princípio de isonomia na performance esportiva. Como pergunta tácita, os relatos jornalísticos referentes a essa problemática pretendem questionar se a participação de Tifanny na Superliga de vôlei seria moralmente legítima. Para tanto, organizam as vozes sociais que mobilizam, por meio de modos operatórios particulares, com o objetivo de apresentar as correspondentes bases argumentativas que avalizariam ou se oporiam à presença da jogadora transexual na modalidade feminina de vôlei profissional.

A partir do exame do corpus extenso que serviu de apoio para a realização deste trabalho, foi construída uma tipologia , para fins analíticos, com base nas duas principais abordagens concernentes à construção jornalística do acontecimento Tifanny, a saber: uma estrutura narrativa centrada na discussão de caráter biomédico ; e uma construção argumentativa amparada no desempenho desportivo da atleta. A propósito dos materiais jornalísticos que integravam a querela biomédica, foi possível notar a existência recorrente de três angulações editoriais distintas: uma primeira na qual a publicação se posicionava de maneira explicitamente favorável à presença de Tifanny; uma segunda em que ocorria o inverso, e o texto privilegiava a argumentação contrária à presença da jogadora; e uma terceira construção narrativa em que havia a preocupação de não se fechar o sentido da controvérsia, com o intuito de emular um debate de pontos de vista. Além disso, um olhar mais apurado sobre a construção das argumentações que sustentavam a divergência contemplada no âmbito da primeira tipologia tornou patente que o cerne da discussão sobre a legitimidade da presença de Tifanny no vôlei feminino de alto rendimento residia na existência de duas compreensões científicas distintas sobre a constituição da realidade corporal, utilizadas pelos especialistas consultados no interior de cada matéria jornalística como parâmetro para a equiparação de Tifanny ao desempenho esportivo esperado para mulheres cisgênero: as concepções hormonal e biomecânica de corpo.

Uma vez que não foi percebida qualquer significativa modulação no tipo de construção de argumentos dos distintos especialistas biomédicos consultados pelos diferentes veículos que contemplavam o corpus extenso deste trabalho – diferindo suas posições, conforme mencionado, pela maneira segundo a qual cada um deles concebia a matriz definidora da realidade corporal –, para evitar redundância sem acarretar prejuízo à análise proposta, optou-se pela escolha de quatro matérias, cada qual representando uma das posições no interior das tipologias acima apresentadas. Deste modo, para a tipologia da abordagem biomédica foi eleita uma matéria favorável à participação de Tifanny (Huffpost Brasil), uma contrária ( Veja ) e uma última que mantinha a divergência moral em aberto (Globo Esporte), de modo a contemplar todas as nuances envolvidas na avaliação da pertinência da presença da atleta transgênero. Como importante contraponto ao enfoque biomédico, a tipologia esportiva foi contemplada com um relato jornalístico que realizou o levantamento do desempenho da jogadora transgênero na Superliga, em comparação com a performance das demais atletas cis durante o período temporal compreendido pelo corpus (UOL).

Para chegar à definição final do corpus utilizado na análise empreendida a seguir, foi estabelecida a satisfação de três condições. A primeira diz respeito à profundidade argumentativa associada à cada matéria jornalística virtualmente disponível no corpus extenso. Por profundidade argumentativa, pretende-se chamar a atenção para a escolha das matérias portadoras do maior grau possível de riqueza no detalhamento das descrições realizadas pelos especialistas acionados no interior da configuração jornalística, sobretudo no que tange à maneira como estes concebem um dado estatuto de realidade corporal. Considerando a centralidade do jornalismo na prática de construção social da realidade na contemporaneidade, a segunda condição corresponde ao alcance dos relatos jornalísticos mobilizados. Logo, optou-se por privilegiar a escolha de veículos que tivessem um maior poder de visibilidade no ambiente digital4 4 Em auditoria realizada pela empresa americana Comscore relativa ao ranqueamento dos portais de notícia mais acessados no Brasil ( Meireles, 24 de jun. de 2020 ), o portal Globo liderava o ordenamento – em que se hospeda o site do Globo Esporte –, o UOL ocupava a segunda posição, o site da revista Veja estava em oitavo lugar e o Huffpost Brasil era o décimo da lista. , conferindo primazia àqueles que não oferecessem quaisquer restrições ao acesso do conteúdo pelos internautas. Em que pese o recorte empírico ter se limitado às matérias veiculadas na internet, a fim de fornecer a maior pluralidade editorial possível para o corpus , o último critério considerado consistiu na tentativa de escolha de matérias que estivessem vinculadas a grupos de comunicação historicamente conhecidos pelo destaque em suportes midiáticos específicos. Assim, a Veja 5 5 Versão online da revista de circulação semanal de mesmo nome que foi lançada pelo Grupo Abril em 11 de setembro de 1968, sendo idealizada pelo jornalista e empresário Victor Civita sob inspiração da publicação estadunidense Time . Se em seus tempos primevos – sobretudo com a chefia editorial de Mino Carta durante o período da ditadura civil militar – a publicação tinha uma orientação editorial mais progressista e contestatória, associada à centro-esquerda, a partir da década de 1990 ela passou a se notabilizar pela adoção de uma angulação jornalística mais vinculada ao liberalismo econômico e à direita política brasileira. remonta diretamente à prática do jornalismo impresso; o Globo Esporte6 6 Lançado em 2003, o Globo Esporte é um site especializado na cobertura jornalística de esportes. Parte do Grupo Globo – o maior conglomerado de mídia e comunicação do Brasil e da América Latina, cuja ampliação e consolidação em território nacional ocorreu durante o período da ditadura civil-militar em virtude do apoio do empresário Roberto Marinho aos membros do governo vigente durante essa época –, seu conteúdo é supervisionado pela Central Globo de Esportes, subsidiária da Direção Geral de Jornalismo e Esporte da Rede Globo. Para prover o abastecimento de informações, o portal conta com cinco redações próprias – localizadas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Recife – além do suporte das afiliadas da Rede Globo e dos demais veículos de comunicação do Grupo Globo. associa-se à estrutura televisiva da Rede Globo; nativo da internet, o UOL7 7 Fundado em abril de 1996 por Luiz Frias, o UOL foi primeiro portal de conteúdo do Brasil e, inicialmente, integrava o Grupo Folha, responsável pela publicação do jornal Folha de São Paulo , periódico de propriedade da família Frias que passou a ganhar prestígio em âmbito nacional após seu posicionamento favorável à realização de eleições diretas para a presidência da república em 1984, durante o processo de redemocratização do país. Atualmente, pertence ao Grupo UOL Pagseguro – cujo foco está centrado na comercialização de conteúdo, produtos e serviços de internet –, sendo considerado o maior portal de mídia online do Brasil com o terceiro site mais acessado em território nacional, atrás apenas do Google e do Facebook . foi primeiro portal de conteúdo lançado no Brasil; e o Huffpost Brasil8 8 Fruto de uma parceria com a editora Abril, o Huffpost Brasil, lançado em janeiro de 2014, era o braço nacional do agregador de blogues americano de mesmo nome, criado originalmente por Arianna Huffington e Kenneth Lerer em 2005 e comprado pela AOL em 2011. Sua aposta consistia em um jornalismo de curadoria – uma prática calcada na produção de notícias por meio de uma combinação entre apuração própria e cotejo de material jornalístico preexistente ( Becker; Carvalho, 2016 ) –, de cariz progressista, preocupado em filtrar as principais conversações desenvolvidas nas redes sociais a partir de um olhar alternativo à cobertura dos veículos de comunicação tradicionais. Encerrou suas atividades no Brasil em novembro de 2020. demarca um desenvolvimento mais contemporâneo do jornalismo realizado na internet.

O procedimento metodológico empregado na presente análise, por seu turno, consistiu na comparação entre as matérias que compõem o corpus apresentado, com o objetivo de mapear as diferentes posições do diálogo social a respeito da problemática acima construída, conferindo particular atenção à realidade corporal a partir da qual os especialistas entrevistados pelos veículos jornalísticos em questão configuram a materialidade física e simbólica da atleta Tifanny. Assim, o foco desta análise consiste em apresentar as compreensões sobre a noção de corpo que são acionadas no interior das reportagens em questão por meio dos argumentos das vozes mobilizadas para a construção da tessitura de cada um dos respectivos textos jornalísticos e, em decorrência de tais concepções corporais, evidenciar os parâmetros utilizados para a avaliação da pertinência ou não da presença da atleta transgênero na modalidade feminina do esporte em questão.

Um primeiro índice a ser observado refere-se ao enquadramento das matérias supramencionadas, entrevisto por meio dos títulos escolhidos para efetuar um contato inicial com os leitores. Em duas matérias – Globo Esporte e Veja – a legitimidade de Tifanny é colocada em dúvida de maneira explícita mediante o emprego do termo vantagem ; já a matéria do Uol assume a dúvida sobre a vantagem como ponto de partida para efetuar um contraponto do desempenho de Tifanny com outras atletas. Apenas o Hoffpost explicita a legitimidade da jogadora em fazer parte do vôlei profissional – sua chamada indaga as motivações do incômodo que a presença da atleta no vôlei profissional feminino causa em uma parcela da sociedade brasileira. Ainda a propósito dos títulos das notícias, também se pode observar o estatuto ambíguo a partir do qual a (i)legibilidade de Tifanny tende a ser recorrentemente forjada no interior das matérias: ela não parece ser concebida propriamente como uma mulher – ou, ao menos, uma mulher em sua plenitude – senão como um corpo intruso, estrangeiro, que escapa ao reconhecimento inequívoco; alguém que é afirmada e apresentada por meio do contraste com as demais atletas-mulheres – mesmo quando, no caso da matéria realizada pelo UOL, a comparação tem o objetivo de produzir uma aproximação. A exceção a este enquadramento é a reportagem do Huffpost, que parte da premissa oposta e equipara Tifanny às demais formas de ser mulher.

Ainda a respeito do enquadramento geral das reportagens, convém observar uma distinção no que se refere à gradação do tom adotado por cada veículo. Enquanto o Huffpost abertamente tenta argumentar a favor da presença de Tifanny na prática esportiva em alto nível, a entrevista realizada pela Veja com o professor de medicina esportiva da Unifesp Paulo Zoagib adota uma postura de restrição ao ingresso da atleta. A matéria do Globo Esporte, neste campo, tenta oferecer uma panorâmica mais ampla sobre a questão, convocando uma maior multiplicidade de especialistas a fim de manter a controvérsia em aberto. Diante do esboço geral do quadro a ser explicitado, o ponto de partida utilizada para as análises empreendidas ao longo de tais matérias refere-se às diretrizes adotadas pelo COI para a inclusão de atletas transexuais no cenário esportivo de alto nível:

A entidade recomenda que as organizações esportivas aceitem como elegíveis mulheres trans que se declararam do gênero feminino (reconhecimento civil) e que ficaram pelo menos 12 meses em tratamento hormonal com no máximo 10 nmol/L de nível de testosterona – o índice deve ser mantido durante o período de elegibilidade. Segundo o COI, exigir mudanças anatômicas cirúrgicas não é necessário para preservar uma competição justa e é inconsistente com as noções de direitos humanos ( Oliveira; Guerra, 1 de fev. de 2018OLIVEIRA, Carol; GUERRA, Marcos. Leva vantagem? Consultora do COI não acredita em reviravolta do caso Tifanny. Globo Esporte, Rio de Janeiro e São Paulo, 1 de fev. de 2018 [https://globoesporte.globo.com/volei/noticia/leva-vantagem-consultora-do-coi-nao-acredita-em-reviravolta-do-caso-tifanny.ghtml - acesso em: 25 nov. 2019].
https://globoesporte.globo.com/volei/not...
: s.p.).

A argumentação desenvolvida pela matéria do Huffpost se concentra no preenchimento dos requisitos estipulados pela norma emitida pelo COI. Para justificar a legitimidade da presença de Tifanny, a publicação lança mão de um importante aliado, qual seja, uma escala de referência internacional – ainda que a publicação não especifique precisamente a fonte da escala em questão – que aponta para o intervalo de testosterona presente no sangue que define a condição de normalidade no interior do organismo de uma mulher: entre 0,21 e 2,98 nanomol/L. A dosagem de Tifanny, ressalta o portal, costuma estar em 0,2 nanomol/L, taxa inferior ao mínimo da escala adotada ( Martinelli, 07 de abr. de 2019MARTINELLI, Andréa. Por que Tifanny e seu desempenho no vôlei ainda são vistos como um problema?. Huffpost Brasil, São Paulo, 07 de abr. de 2019 [https://www.huffpostbrasil.com/entry/tifanny-transfobia-esporte_br_5ca7f0e0e4b0dca0330198db - acesso em: 25 nov. 2019].
https://www.huffpostbrasil.com/entry/tif...
). De tais informações, duas implicações podem ser retiradas. Em primeiro lugar, para amparar a métrica em questão, observa-se um esforço, por parte da discursividade biomédica, em tentar deduzir uma dimensão social particular – a produção de uma norma específica de mulheridade calcada no quadro dualista masculino-feminino e compatível não apenas com a isonomia esportiva, mas, sobretudo, com expectativas simbólicas mais amplas acerca de como uma mulher deve ser e se comportar ( Rohden, 2008ROHDEN, Fabíola. O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 15, supl., Rio de Janeiro, 2008, pp.133-152. ), incluindo, neste sentido, os limites considerados toleráveis para a apresentação de sua corporalidade e consequente desportividade – de propriedades associadas a uma substância naturalizada a partir da instauração de um processo de purificação ( Latour, 1994LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994. ). Deste modo, há a produção, por intermédio da aferição da quantidade de hormônio “masculino” no sangue, de uma substancialização do que é aceito como mulher. Tal definição de mulheridade se ampara em uma estrita concepção hormonal de corpo . A viabilidade da presença de Tifanny na disputa de partidas de vôlei feminino encontra respaldo na readequação hormonal realizada ao longo de um intervalo de tempo mínimo, a fim de se processarem mudanças de ordem metabólica e fisiológica capazes de integrar a atleta a um ideal de performance esportiva vinculado às mulheres, garantindo o princípio da equidade de condições de disputa. Em segundo lugar, não obstante a tentativa de compartimentação operada pela discursividade biomédica no intuito de subordinar o gênero – assumido enquanto construção social – às disposições prefiguradas por uma suposta primordialidade do sexo – compreendido como materialidade fisiológica irredutível – no interior da relação dicotômica formada por tais termos no âmbito da inteligibilidade dualista cartesiana que tende a ordenar a concepção ocidental de mundo, Fausto-Sterling (2001) atenta para o caráter herético dos corpos concretos, cuja complexidade que lhes é inerente teima em resistir e não se acoplar às categorizações estanques, tal como aquela expressa pelo binarismo homem – mulher. A bióloga assinala, a este respeito, o pecado original da busca pelo parâmetro físico incontroverso para a determinação da diferença sexual, pois o resultado dessa jornada apenas torna patente que tal intento não pode ser assegurado por uma base física pura. Antes, o que ocorre é precisamente o contrário, a saber, o caráter entranhado do gênero é diretamente responsável por modelar o conhecimento realizado pelos cientistas em suas respectivas práticas – compreendendo, portanto, os saberes relativos ao que se define sob a alcunha de sexo biológico . A propósito dos hormônios, Fausto-Sterling destaca a influência do processo de generificação embutido na própria classificação dos hormônios esteroides, distinguindo-os como sexuais e não-sexuais quando, argumenta a pensadora feminista, eles poderiam ser agrupados sob a mesma condição de hormônios de crescimento, cuja atuação contemplaria um grande espectro de tecidos, dentre os quais fariam parte os órgãos reprodutores. De acordo com esse movimento categorizador, os hormônios sexuais, por um lado, passam a ser assumidos enquanto operadores da diferenciação sexual – convém mencionar que a discursividade médica costuma negligenciar a constitutiva coexistência da ação dos múltiplos hormônios sexuais sob um mesmo corpo em detrimento da reiterada equiparação da testosterona ao caráter masculino e da progesterona ao caráter feminino – e, por outro, sexualizam partes do corpo até então consideradas neutras quanto à generificação, como aponta a bióloga. A conflituosa imaginação social aberta por via do acesso à realidade hormonal do corpo – realizado no interior dos laboratórios de pesquisa através da mediação de objetos sociotécnicos ( Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do Ator-Rede. Salvador-Bauru, Ed. EDUSC/EDUFBA, 2012. ) – inscreve-se no seio de uma dupla dinâmica, interdependente, de caráter político-moral acerca da relação entre ciência, cultura e corporalidade:

A principal afirmação aqui é que as verdades sobre a sexualidade humana, devidas aos estudiosos em geral e aos biólogos em particular, são um componente das lutas morais, sociais e políticas travadas em nossas culturas e economias. Ao mesmo tempo, componentes de nossas lutas morais, sociais e políticas são, em termos literais, corporificados no nosso ser fisiológico mesmo. Minha intenção é mostrar como essas afirmações mutuamente dependentes operam, em parte, enfrentando questões como a da criação, pelos cientistas – em suas vidas cotidianas, experimentos e práticas médicas – de verdades sobre a sexualidade; como nossos corpos incorporam e confirmam essas verdades; e como essas verdades esculpidas pelo meio social em que os biólogos praticam seu ofício, por sua vez, dão forma a nosso ambiente cultural (Fausto-Sterling, 2001:20-21).

Como contraponto à incorporação de Tifanny ao vôlei profissional amparada tão somente pelo controle dos níveis de testosterona, emerge uma nova linha de argumentação para abordar a controvérsia expressa nas palavras do médico Paulo Zoagib – e compartilhada pelo fisiologista Turíbio Bastos na reportagem do Globo Esporte. O que tais especialistas pretendem destacar corresponde à faixa etária em que o processo transicional foi iniciado por Tifanny – 29 anos. A transição tardia ofereceria à atleta vantagens corporais masculinas que as demais mulheres cis não teriam acesso em seu desenvolvimento fisiológico, afinal, estas não se aproveitariam da influência da testosterona em doses elevadas por um período extenso de tempo na conformação de seus corpos, tal como afirma Zoagib:

Ela passou 30 anos desenvolvendo o corpo de uma forma diferente de uma mulher. Ao fazer a operação e a terapia hormonal, ela vai reduzir, evidentemente, a concentração de testosterona e isso vai diminuir o poder anabólico. O rendimento diminuí, mas o fato é que ela já teve essa vantagem durante estes 30 anos. Não quero entrar em aspecto ético, moral, politicamente correto ou incorreto, de inclusão ou não, não é este o caso. Só que fisiologicamente isso é um fato. (...) O coração de um homem é maior que o coração de uma mulher. A quantidade de sangue que o homem tem é maior do que a da mulher. Isso é biológico. A Tifanny completou toda a maturação sexual, todos os órgãos dela se maturaram. Ela tem uma capacidade de transporte de oxigênio muito maior do que uma mulher, porque ela tem um coração maior e tem mais sangue do que uma mulher. Os pulmões são maiores, a própria estrutura do aparelho locomotor é diferente, a largura dos quadris, o tamanho dos ossos. Isso é o que diferencia um homem de uma mulher e por isso o desempenho físico do homem é maior do que o da mulher. Não é somente pela concentração de testosterona ( Laguna, 4 de jan. de 2018LAGUNA, Marcelo. Caso Tifanny: só controle de testosterona não tira a vantagem. Veja, São Paulo, 4 de jan. de 2018 [https://veja.abril.com.br/esporte/caso-tifanny-so-controle-de-testosterona-nao-tira-a-vantagem/ - acesso em: 25 nov. 2019].
https://veja.abril.com.br/esporte/caso-t...
: s.p.).

Um aspecto interessante acerca da declaração fornecida pelo médico diz respeito à imagem de corpo que ele aciona para produzir seu argumento. Embora não negligencie a dimensão constitutiva dos hormônios, os parâmetros que ele elenca para produzir a demarcação entre os corpos de homens e mulheres estão construídos sobre outras bases. Se a realidade corporal produzida pelo comitê do COI responsável por trabalhar a integração dos atletas transexuais ao esporte de alta performance está fundada em uma compreensão bioquímica que confere primazia à aferição e ao controle hormonal – afirmando, inclusive, a ausência de necessidade de intervenções cirúrgicas para correção anatômica dessa classe de atletas –, a argumentação empreendida por Zoagib dá um passo atrás e se apega a um modelo biomecânico de corpo que contempla a dimensão fisiológica mais visivelmente expressa, sobretudo, pela imagem dos órgãos – pulmão, coração e tecido ósseo. Neste sentido, a fronteira entre o masculino e o feminino é construída tanto pelo tamanho desigual de tais órgãos como pela consequente performance diferencial de que atletas homens e mulheres poderiam usufruir em virtude dos desenvolvimentos fisiológicos distintos. É notável observar que embora haja certa continuidade sobre as performances do corpo hormonal e do corpo biomecânico – expressa, sobretudo, pelo reconhecimento da importância dos hormônios em ambas realidades corporais –, as ênfases sobre os aspectos distintivos de cada uma dessas versões sobre o corpo não são as mesmas, de modo que tais realidades não podem ser simplesmente acopladas – no modelo corporal acionado pelo COI, a taxa de hormônios circulante acaba por substancializar as propriedades do feminino e do masculino, enquanto no modelo corporal evocado pelo médico, os hormônios são vetores, mas os parâmetros de delimitação de fronteira dizem respeito à capacidade diferencial de utilização dos órgãos por parte dos sexos. Ademais, há na fala do médico outro aspecto bastante interessante de ser trazido à tona, qual seja, a forma pela qual ele procura legitimar o conhecimento científico, purificando-o sob um ideal de objetividade compreendido enquanto neutralidade, à medida que demarca esse saber de conteúdos que sugere ser de ordem político-ideológico. A utilização dos argumentos “fisiologicamente isso é um fato” e “isso é biológico” exprime a tentativa de legitimação do conhecimento científico pelo estratagema do olhar divino. O médico negligencia a dimensão localizada e parcial de seu conhecimento, fixando-o como universal, impessoal, incontroverso e incontestável.

Sob a condição de autoridade científica chamada a prestar esclarecimentos a respeito de uma pauta de relevância social, o médico reitera uma imagem de ciência unívoca como estratégia argumentativa. Para tanto, evoca a existência de um embasamento científico abstrato, como se todos os pontos de vista a respeito da temática em questão fossem convergentes sobre a vantagem de performance de Tifanny em relação às demais jogadoras da categoria, o que inviabilizaria o princípio da equidade esportiva. Não obstante, conforme a comparação entre as matérias evidencia, o consenso retórico no âmbito científico acionado por Zoagib é inexistente na prática, e suas conclusões a respeito do ganho de desempenho de Tifanny são alvo de questionamento por outras produções científicas. A reportagem do Huffpost aciona dois aliados vinculados ao campo científico para realizar esse contraponto. O primeiro corresponde a um estudo publicado na revista Science ( Kornei, 25 de jul. de 2018KORNEI, Katherine. This scientist is racing to discover how gender transitions alter athletic performance—including her own. Science, Portland, Oregon, e Phoenix, 25 de jul. de 2018 [https://www.sciencemag.org/news/2018/07/scientist-racing-discover-how-gender-transitions-alter-athletic-performance-including?fbclid=IwAR3Wj7M9rhL3-CEbV-hGbCu5U1Bh1SjNMBMDg4hFARMTjFtk5UPgB3dyl0E - acesso em: 25 nov. 2019].
https://www.sciencemag.org/news/2018/07/...
), que questionava a tese do ganho de performance defendida por Zoagib ao mostrar que mulheres trans submetidas ao tratamento para readequação dos níveis de testosterona não conseguiram se beneficiar da herança corporal anterior ao disputarem provas de atletismo contra mulheres cis. A inevitabilidade da vantagem que, nos dizeres de Zoagib, sequer precisaria ser corroborada por dados estatísticos da performance de Tifanny, por ser autoevidente, não fora confirmada em outro contexto esportivo. Além disso, a mesma reportagem acionou o depoimento de Alexandre Saadeh, médico psiquiatra e coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero do Hospital das Clínicas da USP, para desestabilizar a premissa de Zoagib, enfatizando que, em vez de ganho, a terapia hormonal de transição pode acarretar perda de desempenho:

“É uma falácia que a força muscular dela ou de qualquer outra mulher trans no esporte é diferenciada”, diz Saadeh. “A crítica biológica e hormonal não se fundamenta. Ela está hormonizada há algum tempo e, esse processo, como bloqueia produção de testosterona, pode colocá-la até em desvantagem.” Essa desvantagem a qual ele se refere é em relação à perda muscular. Saadeh explica que, após seis meses de hormonização ― quando hormônios femininos são ministrados, no caso do organismo de uma mulher trans, e os chamados bloqueadores de testosterona são aplicados ―, esta perda de força é uma das consequências. O que fica, então, é memória celular ( Martinelli, 07 de abr. de 2019MARTINELLI, Andréa. Por que Tifanny e seu desempenho no vôlei ainda são vistos como um problema?. Huffpost Brasil, São Paulo, 07 de abr. de 2019 [https://www.huffpostbrasil.com/entry/tifanny-transfobia-esporte_br_5ca7f0e0e4b0dca0330198db - acesso em: 25 nov. 2019].
https://www.huffpostbrasil.com/entry/tif...
: s.p.).

O depoimento do psiquiatra se revela interessante pelo paradoxo que evoca, qual seja, apesar de o início de sua argumentação questionar a crítica biológica e hormonal – esse ponto é interessante porque Saadeh equipara formas de produção da corporalidade, pela ciência, que, conforme observado, possuem implicações que não são coincidentes no tratamento da controvérsia envolvendo Tifanny – ele evoca justamente uma compreensão hormonal de corporalidade para questionar a pressuposição de ganho de performance que está contida na noção de herança corporal do modelo biomecânico de corporalidade. Para além disso, Saadeh inclui no debate uma dimensão até então não mencionada para explicar o sucesso de Tifanny: a percepção de jogo adquirida pela atleta antes da transição – qualificada pelo psiquiatra como uma vantagem técnica.

A matéria publicada no site Globo Esporte complexifica a discussão ao trazer, como contraponto científico aos representantes do saber médico, a voz da mulher trans estadunidense Joanna Harper, pesquisadora sobre transexualidade e consultora a respeito da temática junto ao COI. Harper pauta seu depoimento pela égide da ambivalência. Assim, não negligencia a existência de que mulheres transexuais possuam maior estatura e força como vantagens. Por outro lado, a pesquisadora observa no processo transicional uma verdadeira faca de dois gumes: as mulheres trans também têm desvantagens em relação às mulheres cis – após o tratamento hormonal – pelo fato de seus corpos maiores serem impulsionados por uma massa muscular e capacidades aeróbicas reduzidas ( Oliveira; Guerra, 1 de fev. de 2018OLIVEIRA, Carol; GUERRA, Marcos. Leva vantagem? Consultora do COI não acredita em reviravolta do caso Tifanny. Globo Esporte, Rio de Janeiro e São Paulo, 1 de fev. de 2018 [https://globoesporte.globo.com/volei/noticia/leva-vantagem-consultora-do-coi-nao-acredita-em-reviravolta-do-caso-tifanny.ghtml - acesso em: 25 nov. 2019].
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). Essa observação da pesquisadora estadunidense é compatível com a declaração da própria Tifanny sobre as mudanças em seu desempenho atlético por conta do processo de transição hormonal. A atleta alega uma sensação de perda de força muscular, que alterou a dinâmica do seu ataque à bola. Embora Tifanny traga consigo certa memória técnica sobre o vôlei adquirida durante sua trajetória identitária anterior, ela teve de passar por um processo de readaptação à prática esportiva para que pudesse se acostumar com a nova realidade de seu corpo. Conforme apontou, foi necessário ampliar seu repertório de jogo para ingressar na modalidade feminina de vôlei profissional:

No vôlei feminino não é força o tempo todo. Aprendi isso durante a minha transição, dosando bastante. Nosso técnico (Fernando Bonatto) pede para não cometer o erro. Se não dá para fazer o ponto, então fazemos a jogada mais técnica, “largamos” a bola. Tento seguir à risca. Mas minha adaptação está boa, as meninas me ajudam muito. Jogar na posição de oposta no feminino é bem diferente do oposto no masculino, que só ataca. No feminino, é preciso defender também e ter um jogo mais cadenciado ( Beagá, 16 de dez. de 2017BEAGÁ, Fernando. Tifanny, a primeira trans na Superliga feminina: ‘o amor vencerá’. Veja, São Paulo, 16 de dez. de 2017 [https://veja.abril.com.br/esporte/tifanny-primeira-trans-na-superliga-feminina-o-amor-vencera/ - acesso em: 25 nov. 2019].
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: s.p.).

Ademais, outro aspecto também salta aos olhos de Tifanny quando avalia a reação do seu corpo à reposição hormonal: uma percepção de maior sofrimento decorrente do desgaste físico mais pronunciado – o que acarreta a necessidade de um tempo de recuperação e descanso mais extenso se comparado às demais atletas. Não por acaso, Tifanny diz conviver com uma maior incidência de câimbras, além de ser substituída com mais frequência ao longo das partidas. O relato da jogadora encontra um importante paralelo em suas estatísticas de desempenho. A matéria do portal Uol enfatiza um contraste interessante acerca da performance de Tifanny. Após alcançar a espetacular marca dos 27 pontos na fatídica partida contra o Sesc-RJ, na partida seguinte, contra o Praia Clube, Tifanny teve um desempenho muito mais modesto, alcançando apenas 8 pontos – com um baixíssimo percentual de aproveitamento no ataque. A matéria ainda destaca que enquanto na temporada anterior a jogadora tinha uma média de 22 pontos por partida – com uma média de 43,5 ataques por jogo –, na atual, Tifanny possuía uma média de 12 pontos por jogo – com uma média de 25 ataques por partida. Quando seus números são comparados com as principais atletas do campeonato, torna-se evidente que, apesar de sua qualidade, não se trata da jogadora com os melhores números9 9 Na temporada atual, a central Carol Gattaz lidera o ranking de eficiência com 57% de aproveitamento, enquanto Tifanny, com 45%, não figura no top 5 divulgado pela CBV ( Oliveira; Guerra, 1 de fev. de 2018 ). :

Comparada a outras jogadoras de destaque nos últimos dois anos, nenhuma vantagem aparece. Jogadoras como Bruna Honório, do Minas, Destinee Hooker, do Osasco, Nicole Fawcett e Fernanda Garay, do Praia Clube, por exemplo, têm números superiores aos de Tifanny na atual temporada. Mesmo a temporada passada, quando a jogadora do Bauru teve melhor aproveitamento, seus números não foram melhores do que, por exemplo, os da oposto Tandara, destaque da campanha que levou o Vôlei Nestlé, de Osasco, às semifinais da Superliga. Com um calendário extenso, de 28 partidas disputadas, Tandara teve melhor média de pontos e atacou mais bolas do que Tifanny, que jogou apenas 14 partidas ( Lisboa, 5 de abr. de 2019LISBOA, Rubens. Números mostram que Tifanny pontua menos e oscila mais do que suas rivais. UOL, São Paulo, 5 de abr. de 2019 [https://www.uol.com.br/esporte/volei/ultimas-noticias/2019/04/05/numeros-mostram-que-tifanny-pontua-menos-e-oscila-mais-do-que-suas-rivais.htm - acesso em: 25 nov. 2019].
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: s.p.).

Da comparação entre as jogadoras que integram a Superliga feminina de vôlei emerge a performance de uma realidade corporal estatística , isto é, uma realidade que consiste na avaliação do desempenho das atletas em função da classificação das marcas numéricas por elas alcançadas no decorrer da competição, segundo as especificidades da posição que ocupam na quadra. Ao contrário da pressuposição realizada pelo médico Zoagib – de que as estatísticas seriam desnecessárias para atestar a vantagem ilegítima acessada por Tifanny –, os números da jogadora transexual, embora expressivos, revelam uma performance esportiva irregular quando comparada às rivais mais destacadas que atuam em sua posição. A esse propósito, mesmo nas circunstâncias particulares em que as marcas estatísticas alcançadas por Tifanny pareceriam destoar mais significativamente do desempenho das demais jogadoras de sua posição, a explicação para sua atuação, com frequência, está vinculada à análise da própria dinâmica de jogo, o que é corroborado, inclusive, pela própria opinião da adversária Aline, central da equipe de Brasília:

O ataque dela é forte sim, é pesado, mas a Tandara também ataca pesado, ataca forte. Ela também erra, também larga. Ela se sobressai? Sobressai sim. Mas eu não achei tudo isso que todo mundo fala. Ela recebe noventa bolas por jogo, é normal ela fazer trinta pontos. Vamos ver os confrontos contra os times grandes, contra o Rio, contra o Praia. Porque daqui a pouco esses times vão começar também a parar o ataque dela (Globo Esporte, 14 de jan. de 2018:s.p., com grifos meus).

A fala da rival de Tifanny – em referência à temporada de 2018 – oferece elementos importantes para se pensar por conta do esforço contextual que desenvolve. Ainda que reconheça a força no ataque como característica do estilo de jogo da atleta transexual, Aline equipara essa força à outra jogadora que possui estilo semelhante. Além disso, reforça que a pontuação de Tifanny é proporcional à quantidade de vezes em que esta é acionada em quadra, ponderando também sobre os erros que a atacante comete ao longo do jogo – à época em que a entrevista com a jogadora de Brasília foi realizada (janeiro de 2018), Tifanny sequer figurava entre as cinco atletas com maior aproveitamento de pontos na Superliga ( Oliveira; Guerra, 1 de fev. de 2018OLIVEIRA, Carol; GUERRA, Marcos. Leva vantagem? Consultora do COI não acredita em reviravolta do caso Tifanny. Globo Esporte, Rio de Janeiro e São Paulo, 1 de fev. de 2018 [https://globoesporte.globo.com/volei/noticia/leva-vantagem-consultora-do-coi-nao-acredita-em-reviravolta-do-caso-tifanny.ghtml - acesso em: 25 nov. 2019].
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).

A respeito do corpo estatístico de Tifanny, uma dupla argumentação pode ser mobilizada para a proposição de uma interpretação. A primeira corresponde à proferida por Joanna Harper, que parte do reconhecimento de que mulheres cis e trans nunca serão exatamente iguais. Constatação que, segundo a pesquisadora, não impossibilita uma competição legítima entre estes grupos – mediante as devidas equiparações hormonais: “Vantagens ou desvantagens são injustas somente se impedem a concorrência equitativa significativa entre dois grupos. A Ciência disponível e a experiência de atletas trans indicam que é razoável que mulheres trans e mulheres cis compitam juntas” (Oliveira; Guerra, 1 de fev. de 2018:s.p.). O corpo estatístico que emerge, neste sentido, pode ser utilizado para corroborar o pressuposto de Harper acerca da premissa da igualdade de condições de disputas, frequentemente associada à prática de esportes de alto rendimento. Fossem desconsiderados marcadores de distinção entre mulheres trans e cis, as estatísticas de Tifanny mostram que o desempenho dela não destoa do das demais atletas da Superliga feminina, sendo, em muitos casos, até mesmo inferior. Contudo, deve ser ressaltada outra chave de leitura acerca da inteligibilidade do corpo estatístico, presente no interessante depoimento trazido à tona por Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra):

É importante a gente lembrar que o esporte se baseia na vantagem de alguém sobre o outro. Se todos os atletas tivessem a mesma altura, a mesma densidade óssea, mesma massa muscular, mesmo peso, se fossem todos exatamente iguais os esportes não teriam outro resultado se não o empate. As vantagens no esporte são o que fazem as equipes serem vencedoras ou não (Oliveira; Guerra, 1 de fev. de 2018:s.p.).

Benevides subverte tanto o princípio tácito de isonomia, que é, reiteradamente, acionado como forma de justificativa moral do esporte de alta performance como, também, a noção de vantagem esportiva como sinônimo de trapaça ao sustentar que, na prática efetiva, se trata justamente do fundamento das competições esportivas. Logo, mais do que propriamente uma igualdade, o esporte profissional solicita a desigualdade como matriz de competitividade, a diferença, a superação dos limites e a quebra de recordes; não o equilíbrio, senão o desequilíbrio, aquele capaz de destoar e se destacar. Como observa Silbermann (2014)SILBERMANN, Marcos. No limiar do humano - Doping e performance esportiva em perspectiva antropológica. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2014. , a construção dos corpos de atletas pressupõe, necessariamente, um compromisso com um aperfeiçoamento contínuo, envolvendo, para tanto, um esforço coletivo e interdependente que se expressa por meio do agenciamento heterogêneo que congrega uma série de saberes, práticas e tecnologias com a finalidade de produzir uma distinção vantajosa a ser exposta no desejado momento da consagração. O que se pretende, em meio a essa rede de associações – sobretudo quando se considera a relevância social e econômica adquirida por um grande conjunto de práticas esportivas na contemporaneidade –, é, ironicamente, a emergência de um corpo dissonante, um corpo capaz de redefinir os parâmetros das estatísticas. Não obstante, a presença de Tifanny, enquanto atleta de alto rendimento, serve ao tensionamento esportivo ao levantar, novamente, a questão moral: quais dissonâncias e vantagens estamos socialmente dispostos a aceitar como legítimas? (Lima e Silva; Bresciani; Almeida, 22 de mai. de 2019).

Considerações finais

O presente trabalho procurou reconstituir a discussão pública acerca da legitimidade da atleta transsexual Tifanny Abreu disputar a modalidade feminina de vôlei profissional no Brasil. Ancorada na preciosa sugestão de Mol (2008)MOL, Annemarie. Política ontológica. Algumas ideias e várias perguntas In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo (org.). Objectos impuros. Experiências em estudos sociais da ciência. Porto, Edições Afrontamento, 2008, pp.63-77. , esta investigação procurou mostrar que a avaliação a respeito da pertinência moral da presença do corpo transgênero no esporte de alto nível – fundada em uma matriz categorial heteronormativa como princípio de isonomia estruturante – tinha estreita vinculação com a maneira segundo a qual o corpo da atleta em questão era performado socialmente. Tal raciocínio teve o intuito de apontar a existência de uma multiplicidade de realidades acionadas para se acessar o corpo da atleta, multiplicidade essa que estabelece certa relação de continuidade entre as versões possíveis e simultaneamente conserva especificidades irredutíveis. O corpo, longe de ser expressão de uma materialidade única, emerge a partir de sua performatividade e, assim, levanta um conjunto de implicações específicas a depender da maneira como acontece socialmente.

Antes de recapitular as realidades corporais acionadas no corpus deste artigo, convém recuperar o trabalho de Camargo e Kessler (2017)CAMARGO, Wagner Xavier; KESSLER, Cláudia Samuel. Além do masculino/feminino: gênero, sexualidade, tecnologia e performance no esporte sob perspectiva crítica. Horizontes Antropológicos (on line), v. 23, 2017, pp.191-225. para efetuar um pequeno contraponto, qual seja, observar a estruturação de competições esportivas de alta performance baseadas em um ideal atlético explicitamente não-heteronormativo. Neste sentido, eventos como os Gay Games e os OutGames causaram certo estranhamento aos autores da pesquisa por não colocarem o princípio de categorização das equipes em questão e se aferrarem à demarcação esportes femininos x esportes masculinos para preservar o ideal de equidadade esportiva. Esse aspecto, ressaltam Camargo e Kessler, reforça o forte poder estruturante das práticas esportivas de alto rendimento na sustentação das fronteiras entre masculino e feminino no mundo contemporâneo. Além disso, os autores observaram que a problematização dos corpos não heteronormativos proposta por tais espetáculos tinha por objetivo promover a integração dos atletas em questão, mediante certo processo de normalização, aos olhares mais amplos da sociedade heterossexual. Portanto, o ingresso de atletas transexuais às disputas esportivas de tais eventos não ocorreu de maneira imediata, afinal, a presença desses corpos em trânsito poderia colidir com o projeto político implícito ao conceito de tais celebrações esportivas. Sobre esse aspecto particular, os autores apresentam um ilustrativo exemplo ocorrido na edição de Copenhagen dos Gay Games: apesar de as atletas de vôlei transexuais da Tailândia serem “magras, detentoras de unhas e cabelos compridos e, provavelmente, ‘alimentadas’ por hormônios femininos” ( Camargo; Kessler, 2017CAMARGO, Wagner Xavier; KESSLER, Cláudia Samuel. Além do masculino/feminino: gênero, sexualidade, tecnologia e performance no esporte sob perspectiva crítica. Horizontes Antropológicos (on line), v. 23, 2017, pp.191-225.: 212), elas não competiram contra mulheres lésbicas, senão contra homens gays cheios de testosterona – na partida relatada pelos pesquisadores, a equipe tailandesa transexual venceu a brasileira composta por homens gays. A justificativa para tal alocação reside no argumento de que tais atletas teriam sido beneficiadas com a formação de um corpo masculinizado antes de se submeterem ao processo transicional. Logo, elas teriam de enfrentar outros corpos definidos como masculinizados para que o princípio da igualdade de condições de competição se mantivesse preservado.

Embora as competições esportivas supramencionadas fossem pautadas por uma explícita posição não-heteronormativa, ainda assim, tal como na prática esportiva heteronormativa estudada ao longo deste artigo, a integração do corpo transgênero ao desporto se mostrou igualmente difícil e problemática porque os pressupostos tanto dos jogos heteronormativos quanto dos não-heteronormativos eram os mesmos: a manutenção de um ideal de equidade corporal que fora cristalizado a partir da égide da divisão entre masculino e feminino. Convém observar que enquanto a fala de Bernardinho soou pejorativa e ofensiva aos militantes e simpatizantes da causa trans, uma vez que o técnico da seleção brasileira qualificou Tifanny como homem, o processo de categorização do evento esportivo não-heteronormativo mencionado por Camargo e Kessler (2017)CAMARGO, Wagner Xavier; KESSLER, Cláudia Samuel. Além do masculino/feminino: gênero, sexualidade, tecnologia e performance no esporte sob perspectiva crítica. Horizontes Antropológicos (on line), v. 23, 2017, pp.191-225. , na prática, igualmente equiparou as mulheres trans a um ideal de masculinidade. A inserção de Tifanny na modalidade feminina está balizada pela performatividade de uma realidade corporal distinta da acionada pela presença das atletas de vôlei transexuais da Tailândia na modalidade masculina: enquanto a jogadora brasileira está amparada por uma normativa do COI que utiliza a ideia de um corpo hormonal como princípio de delimitação de fronteira categorial, as tailandesas foram enquadradas a partir da inteligibilidade segundo um modelo corporal biomecânico, que compreende a divisão binária entre masculino e feminino a partir das propriedades histórico-fisiológicas dos órgãos dos(as) atletas. As performances corporais, neste sentido, são fundamentais para produzir e sustentar as fronteiras que elas estabelecem, conforme lembra Mol. O processo de categorização e, portanto, de produção das pessoas ( Hacking, 2002HACKING, Ian. Ontologia histórica. São Leopoldo, Unisinos, 2002. ), não consiste em um a priori que ordenaria a vida social, mas é concomitante às performances executadas. Em consonância com essa observação, a filósofa holandesa considera que “se a medicina performasse os desvios de forma individualizada, muitas das ‘inegáveis’ diferenças biológicas entre os sexos pura e simplesmente desapareceriam” ( Mol, 2008MOL, Annemarie. Política ontológica. Algumas ideias e várias perguntas In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo (org.). Objectos impuros. Experiências em estudos sociais da ciência. Porto, Edições Afrontamento, 2008, pp.63-77.: 71). Duas implicações importantes podem ser extraídas da asserção de Mol.

A primeira corresponde ao risco da substancialização do feminino e do masculino a partir da aferição de um parâmetro – como a taxa de um hormônio em circulação no sangue, por exemplo – estabelecido a partir da pressuposição da existência de uma faixa de normalidade . O que deve acontecer com uma atleta que, endogenamente, ultrapasse os valores médios de produção de testosterona convencionados segundo um modelo ideal de mulher configurado a partir do saber médico? Em princípio, mesmo não se utilizando de nenhum subterfúgio ilícito para o aumento de performance, a esportista levantaria suspeitas e correria o risco de não ser qualificada como mulher, ou seria acusada de obter de uma vantagem desportiva indevida – como ocorreu com a corredora sul-africana Caster Semenya, cujos resultados excepcionais levantaram dúvidas sobre a lisura de seu corpo e justificaram práticas racistas por parte das demais corredoras de sua modalidade (Globo Esporte, 30 de abr. de 2019; Wikipédia, 28 de set. de 2020). Em outras palavras, seria possível obter um princípio de mulheridade a partir da aferição de algum número? Formulada dessa maneira, a questão permanece em suspenso, apesar de a proposição contrária ser verdadeira: a parametrização de determinadas substâncias ou propriedades produz um princípio universalista de mulheridade, legitimado, com frequência, por um saber científico. Logo, a performance do corpo hormonal cria uma forma específica e esperada de ser mulher, distinguindo-a das “não mulheres”.

A segunda implicação da asserção de Mol refere-se ao fato de outras performances corporais poderem retraçar ou mesmo eliminar a existência de certas fronteiras. Um exemplo desse processo, observado no desenvolvimento da análise empreendida, diz respeito à performance do corpo estatístico . A comparação contextualizada do desempenho de Tifanny com as demais atletas profissionais de vôlei embaça as fronteiras entre cis e trans. Por intermédio delas, o parâmetro da qualidade técnica medido pela eficiência de pontuação nos ataques se sobrepõe às realidades corporais biológicas e hormonais – ainda que não as exclua e tampouco delas não se desvincule integralmente. Que os hormônios possuam agência no processo de emergência dos corpos, isso, por si só, é incapaz de produzir uma determinação acerca da qualidade da performance desportiva, afinal, tal emergência é fruto de uma rede de agenciamentos ampla, heterogênea e complexa que, dentre outros fatores, inclui cuidados na alimentação, tipo de treinamento empreendido, acesso a objetos tecnológicos capazes de auxiliar no desenvolvimento de habilidades corporais, regime temporal de dedicação exclusiva à prática esportiva e especificidade anatômica de cada corpo ( Silbermann, 2014SILBERMANN, Marcos. No limiar do humano - Doping e performance esportiva em perspectiva antropológica. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2014. ).

Conforme a análise da inteligibilidade corporal de Tifanny permitiu vislumbrar, a performatividade da realidade é uma dimensão de extrema importância, pois ajuda a constituir e sustentar a promoção de fronteiras que organizam as práticas dos agentes em sociedade. Ao implicar a demarcação entre uma interioridade e uma exterioridade, o traçado das fronteiras visibiliza certas experiências – segundo um problemático ideal de totalização – em detrimento de outras. Como produzem consequências práticas e morais na estruturação e organização da vida social e constituem uma dimensão política por excelência, as fronteiras devem ser forjadas com consciência e responsabilidade.

Agradecimentos

Eu gostaria de agradecer a Vitor Simonis Richter, Pablo Quintero, Ondina Fachel Leal, Simone Maria Rocha, Augusto Leal de Britto Velho, Lucas Ângelo de Fraga Oliveira, Gabriela Propp, Cristina Furlanetto e Maria José Carneiro de Santana, interlocutores extremamente importantes e sem os quais a realização do presente trabalho não teria sido possível.

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  • ENVOLVIDA em polêmica, Tiffany desabafa: “Força de uma mulher”. Globo Esporte, Rio de Janeiro, 14 de jan. de 2018 [https://globoesporte.globo.com/programas/esporte-espetacular/noticia/envolvida-em-polemica-tiffany-desabafa-forca-de-uma-mulher.ghtml - acesso em: 25 nov. 2019].
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  • KORNEI, Katherine. This scientist is racing to discover how gender transitions alter athletic performance—including her own. Science, Portland, Oregon, e Phoenix, 25 de jul. de 2018 [https://www.sciencemag.org/news/2018/07/scientist-racing-discover-how-gender-transitions-alter-athletic-performance-including?fbclid=IwAR3Wj7M9rhL3-CEbV-hGbCu5U1Bh1SjNMBMDg4hFARMTjFtk5UPgB3dyl0E - acesso em: 25 nov. 2019].
    » https://www.sciencemag.org/news/2018/07/scientist-racing-discover-how-gender-transitions-alter-athletic-performance-including?fbclid=IwAR3Wj7M9rhL3-CEbV-hGbCu5U1Bh1SjNMBMDg4hFARMTjFtk5UPgB3dyl0E
  • LAGUNA, Marcelo. Caso Tifanny: só controle de testosterona não tira a vantagem. Veja, São Paulo, 4 de jan. de 2018 [https://veja.abril.com.br/esporte/caso-tifanny-so-controle-de-testosterona-nao-tira-a-vantagem/ - acesso em: 25 nov. 2019].
    » https://veja.abril.com.br/esporte/caso-tifanny-so-controle-de-testosterona-nao-tira-a-vantagem/
  • LIMA E SILVA, Luiz Otávio de Almeida. Hiperandrogenismo & transgêneros no esporte: o limite entre a ciência e os direitos humanos. Bresciani & Almeida, Santos, 22 de mai. de 2019 [http://bresciani-almeida.com.br/artigos/hiperandrogenismo-transgeneros/ - acesso em: 25 nov. 2019].
    » http://bresciani-almeida.com.br/artigos/hiperandrogenismo-transgeneros/
  • LISBOA, Rubens. Números mostram que Tifanny pontua menos e oscila mais do que suas rivais. UOL, São Paulo, 5 de abr. de 2019 [https://www.uol.com.br/esporte/volei/ultimas-noticias/2019/04/05/numeros-mostram-que-tifanny-pontua-menos-e-oscila-mais-do-que-suas-rivais.htm - acesso em: 25 nov. 2019].
    » https://www.uol.com.br/esporte/volei/ultimas-noticias/2019/04/05/numeros-mostram-que-tifanny-pontua-menos-e-oscila-mais-do-que-suas-rivais.htm
  • MARTINELLI, Andréa. Por que Tifanny e seu desempenho no vôlei ainda são vistos como um problema?. Huffpost Brasil, São Paulo, 07 de abr. de 2019 [https://www.huffpostbrasil.com/entry/tifanny-transfobia-esporte_br_5ca7f0e0e4b0dca0330198db - acesso em: 25 nov. 2019].
    » https://www.huffpostbrasil.com/entry/tifanny-transfobia-esporte_br_5ca7f0e0e4b0dca0330198db
  • MEIRELES, Olívia. Comscore: Metrópoles é o 5º portal de notícias mais acessado do Brasil. Metrópoles, São Paulo, 24 de jun. de 2020 [https://www.metropoles.com/brasil/imprensa/comscore-metropoles-e-o-5o-portal-de-noticias-mais-acessado-do-brasil - acesso em: 27 maio 2021].
    » https://www.metropoles.com/brasil/imprensa/comscore-metropoles-e-o-5o-portal-de-noticias-mais-acessado-do-brasil
  • OLIVEIRA, Carol; GUERRA, Marcos. Leva vantagem? Consultora do COI não acredita em reviravolta do caso Tifanny. Globo Esporte, Rio de Janeiro e São Paulo, 1 de fev. de 2018 [https://globoesporte.globo.com/volei/noticia/leva-vantagem-consultora-do-coi-nao-acredita-em-reviravolta-do-caso-tifanny.ghtml - acesso em: 25 nov. 2019].
    » https://globoesporte.globo.com/volei/noticia/leva-vantagem-consultora-do-coi-nao-acredita-em-reviravolta-do-caso-tifanny.ghtml
  • PRIMEIRA transexual da Superliga, Tiffany foi grande destaque como Rodrigo no acesso de JF à elite do vôlei. Toque de Bola, Juiz de Fora, 16 de jan. de 2018 [https://www.toquedebola.esp.br/2018/01/primeira-transexual-da-superliga-tiffany-foi-grande-destaque-como-rodrigo-no-acesso-de-jf-a-elite-do-volei/ - acesso em: 25 nov. 2019].
    » https://www.toquedebola.esp.br/2018/01/primeira-transexual-da-superliga-tiffany-foi-grande-destaque-como-rodrigo-no-acesso-de-jf-a-elite-do-volei/
  • 1
    Camargo (2017)CAMARGO, Wagner Xavier. Corpos Transgêneros no Esporte: algumas questões. Contemporânea - uma (quase) revista, Florianópolis, v. 6, 07 jan. 2017, pp.10-12. alerta para a distinção entre as práticas da terapia hormonal – cujo intuito está voltado à hipertrofia muscular visando à melhoria de desempenho atlético – e da reposição hormonal – que aponta para os processos de readequação, no plano dos desejos subjetivos, a uma nova condição física/psíquica reivindicada pela pessoa trans.
  • 2
    Compete destacar aqui que tal pretensão ao direcionamento do olhar não deve ser encarada como uma imposição inevitável, pois a interpretação dos significados difundidos pelas narrativas jornalísticas é um processo complexo que tem correlação direta com a especificidade das mediações culturais acessadas pelos sujeitos em suas experiências cotidianas ( Martín-Barbero, 1997MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997. ).
  • 3
    Dentre tais rituais estratégicos adotados pelos jornalistas, Tuchman (1993) destaca: a apresentação da possibilidade de conflito ; a apresentação de provas auxiliares para corroborar a argumentação ; o uso judicioso das aspas para localizar e responsabilizar as fontes ; e a estruturação do texto em uma sequência apropriada – estrutura denominada como pirâmide invertida , que hierarquiza o conteúdo da narrativa segundo um critério de importância.
  • 4
    Em auditoria realizada pela empresa americana Comscore relativa ao ranqueamento dos portais de notícia mais acessados no Brasil ( Meireles, 24 de jun. de 2020MEIRELES, Olívia. Comscore: Metrópoles é o 5º portal de notícias mais acessado do Brasil. Metrópoles, São Paulo, 24 de jun. de 2020 [https://www.metropoles.com/brasil/imprensa/comscore-metropoles-e-o-5o-portal-de-noticias-mais-acessado-do-brasil - acesso em: 27 maio 2021].
    https://www.metropoles.com/brasil/impren...
    ), o portal Globo liderava o ordenamento – em que se hospeda o site do Globo Esporte –, o UOL ocupava a segunda posição, o site da revista Veja estava em oitavo lugar e o Huffpost Brasil era o décimo da lista.
  • 5
    Versão online da revista de circulação semanal de mesmo nome que foi lançada pelo Grupo Abril em 11 de setembro de 1968, sendo idealizada pelo jornalista e empresário Victor Civita sob inspiração da publicação estadunidense Time . Se em seus tempos primevos – sobretudo com a chefia editorial de Mino Carta durante o período da ditadura civil militar – a publicação tinha uma orientação editorial mais progressista e contestatória, associada à centro-esquerda, a partir da década de 1990 ela passou a se notabilizar pela adoção de uma angulação jornalística mais vinculada ao liberalismo econômico e à direita política brasileira.
  • 6
    Lançado em 2003, o Globo Esporte é um site especializado na cobertura jornalística de esportes. Parte do Grupo Globo – o maior conglomerado de mídia e comunicação do Brasil e da América Latina, cuja ampliação e consolidação em território nacional ocorreu durante o período da ditadura civil-militar em virtude do apoio do empresário Roberto Marinho aos membros do governo vigente durante essa época –, seu conteúdo é supervisionado pela Central Globo de Esportes, subsidiária da Direção Geral de Jornalismo e Esporte da Rede Globo. Para prover o abastecimento de informações, o portal conta com cinco redações próprias – localizadas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Recife – além do suporte das afiliadas da Rede Globo e dos demais veículos de comunicação do Grupo Globo.
  • 7
    Fundado em abril de 1996 por Luiz Frias, o UOL foi primeiro portal de conteúdo do Brasil e, inicialmente, integrava o Grupo Folha, responsável pela publicação do jornal Folha de São Paulo , periódico de propriedade da família Frias que passou a ganhar prestígio em âmbito nacional após seu posicionamento favorável à realização de eleições diretas para a presidência da república em 1984, durante o processo de redemocratização do país. Atualmente, pertence ao Grupo UOL Pagseguro – cujo foco está centrado na comercialização de conteúdo, produtos e serviços de internet –, sendo considerado o maior portal de mídia online do Brasil com o terceiro site mais acessado em território nacional, atrás apenas do Google e do Facebook .
  • 8
    Fruto de uma parceria com a editora Abril, o Huffpost Brasil, lançado em janeiro de 2014, era o braço nacional do agregador de blogues americano de mesmo nome, criado originalmente por Arianna Huffington e Kenneth Lerer em 2005 e comprado pela AOL em 2011. Sua aposta consistia em um jornalismo de curadoria – uma prática calcada na produção de notícias por meio de uma combinação entre apuração própria e cotejo de material jornalístico preexistente ( Becker; Carvalho, 2016BECKER, Denise; CARVALHO, Guilherme. Jornalismo de Curadoria: o caso do HuffPost Brasil. Revista Alterjor, [S. l.], v. 14, n. 2, 2016, pp.30-42. ) –, de cariz progressista, preocupado em filtrar as principais conversações desenvolvidas nas redes sociais a partir de um olhar alternativo à cobertura dos veículos de comunicação tradicionais. Encerrou suas atividades no Brasil em novembro de 2020.
  • 9
    Na temporada atual, a central Carol Gattaz lidera o ranking de eficiência com 57% de aproveitamento, enquanto Tifanny, com 45%, não figura no top 5 divulgado pela CBV ( Oliveira; Guerra, 1 de fev. de 2018OLIVEIRA, Carol; GUERRA, Marcos. Leva vantagem? Consultora do COI não acredita em reviravolta do caso Tifanny. Globo Esporte, Rio de Janeiro e São Paulo, 1 de fev. de 2018 [https://globoesporte.globo.com/volei/noticia/leva-vantagem-consultora-do-coi-nao-acredita-em-reviravolta-do-caso-tifanny.ghtml - acesso em: 25 nov. 2019].
    https://globoesporte.globo.com/volei/not...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2020
  • Aceito
    10 Jun 2021
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