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O jovem e a formação (Bildung) do gênio no jovem Nietzsche

The young and the education (Bildung) of the genius in the Young Nietzsche

Resumo:

O objetivo deste artigo consiste em investigar qual seria o papel do jovem nas críticas do jovem Nietzsche à cultura alemã nas Considerações Extemporâneas. Em um primeiro momento, investigaremos sob o viés da formação (Bildung) de que maneira o jovem pode contribuir para a cultura. Nesse sentido, investigaremos a hipótese de que o jovem possui algum tipo de relação com a formação (Bildung) do gênio.

Palavras-chave:
Juventude; formação; cultura; gênio

Abstract:

The purpose of this article is to investigate the role of the young in the criticism of the young Nietzsche to the German culture in Untimely Meditations. At first, we investigated from the perspective of education (Bildung) how young people can contribute to culture. Thus, we will investigate the hypothesis that the young person has some kind of relationship with the education (Bildung) of the genius.

Keywords:
Youth; Education; Culture; Genius

Nietzsche, em uma carta a Rohde, admite que, na Consideração Extemporânea II, Sobre a utilidade e a desvantagem da História para a vidaNIETZSCHE, F.W. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Trad. André Itaparica. São Paulo: Hedra, 2017. (versão e-book)., foi adicionado um hino à juventude: “Mas agora me vinguei e, no final de minha segunda extemporânea cantei um hino para os jovens, eles perturbarão terrivelmente essas pessoas desagradáveis, meticulosas e mesquinhas” (Carta a Erwin Rohde em Hamburgo, no dia de São Silvestre entre 1873 e 1874). O que nos leva a refletir: Quem são as pessoas a que NietzscheNIETZSCHE, F.W. Fragmentos Póstumos (1869 - 1874). V.1. Trad. Luis Guervós. Madrid: Tecnos, 2007. se refere? Será que o jovem ou a noção de jovem ou juventude exerce algum importante papel no pensamento do jovem Nietzsche? Se considerarmos o contexto histórico e cultural no qual o jovem Nietzsche estava inserido1 1 Qual era o contexto? Com a vitória da Alemanha unificada e liderada pela Prússia na guerra de 1871 contra a França, os alemães acreditavam na vitória da cultura alemã sobre a francesa, mas para Nietzsche isso é falso. Não só a cultura francesa é superior, bem como a cultura genuinamente alemã não existe ainda: “Até os próprios franceses reconheceram a superioridade decisiva dos oficiais alemães em termos de conhecimento e das tropas alemãs em termos de treinamento, bem como a melhor organização de sua estratégia. Deixando a instrução alemã de lado, então, em que outro sentido a cultura alemã pode alegar ter vencido? Nenhum: já que as qualidades morais de uma disciplina mais severa e uma obediência mais serena nada têm a ver com treinamento; foi o que distinguiu, por exemplo, os exércitos macedônios dos incomparavelmente mais educados exércitos gregos. A conversa sobre a vitória da formação e da cultura alemã só pode ser uma confusão, uma confusão baseada no fato de que na Alemanha se perdeu o conceito puro de cultura” (DS/Co. Ext. I 1, KSA 1.162). Vale ressaltar que, com o advento da unificação política, Nietzsche tinha expectativas de que uma cultura alemã genuína fosse emergir. , é possível refinar a questão: Qual seria o papel do jovem nas críticas de Nietzsche à cultura alemã nas Considerações Extemporâneas? O motivo de utilizarmos as Considerações Extemporâneas como um todo, ampara-se na possibilidade de encará-las como pontas de lança da crítica de Nietzsche à cultura alemã vigente, como vemos declarado em Ecce homoNIETZSCHE, F.W. Ecce Homo. Trad. Paulo Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 2 2 Quando for o caso, serão utilizadas as traduções de Nietzsche para o português feitas por Paulo César de Souza, André Itaparica, Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan, respectivamente, pelas siglas, PCS, AI, GRTT. As obras utilizadas constam nas referências. (1888):

O primeiro ataque (1873) dirigiu-se à cultura alemã, à qual já então eu descia os olhos com inexorável desprezo. Sem sentido, sem substância, sem meta: uma mera “opinião pública”. Não há pior mal-entendido, dizia eu, do que acreditar que o grande êxito alemão nas armas demonstre algo em favor dessa cultura - muito menos a vitória dela sobre a França... A segunda Extemporânea (1874) traz à luz o que há de mais perigoso, de corrosivo e contaminador da vida em nossa maneira de fazer ciência: a vida enferma desse desumanizado engenho e maquinismo, da “impessoalidade” do trabalhador, da falsa economia da “divisão do trabalho”. A finalidade se perde, a cultura - o meio, o moderno cultivo da ciência, barbariza... Nesse ensaio, o “sentido histórico” de que tanto se orgulha este século foi pela primeira vez reconhecido como doença, como típico sinal de declínio. Na terceira e na quarta Extemporâneas são contra isso levantadas, como indicações para um mais elevado conceito de cultura, para restauração do conceito de “cultura” (EH/EH, As Extemporâneas 1, KSA 6.316, tradução de PCS).

Nesse sentido, interessa para nós o que Nietzsche tem a dizer também acerca da formação3 3 Para evitar maiores danos à interpretação, manteve-se no decorrer da pesquisa a tradução de Bildung por “formação” e de Kultur ou Cultur por “cultura”. Nesse aspecto, acompanho Frezzatti (2006, p. 64): “Preferimos traduzir aqui Bildung por formação. No entanto, poderíamos ter traduzido essa palavra também por cultura, desde que tenhamos em mente que Nietzsche está aqui criticando o que seus contemporâneos chamam de cultura, ou seja, criticando a confusão que fazem entre cultura e formação ou instrução, ou ainda erudição. Para nosso filósofo, a cultura é algo muito superior a uma formação ou mesmo a uma erudição”. E Gonçalves (2015, p. 18): “Por utilizarmos formação como correspondente em nosso vernáculo ao termo alemão Bildung, justificamos nossa opção pela expressão filisteus da formação para traduzir o termo nietzschiano Bildungsphilister”. Tendo isso em mente, haverá comentários explicativos nos contextos das citações tanto nos casos em que Bildung tem sentido de Kultur quanto nos casos em que Kultur tem sentido de Bildung. Essa variação de sentidos ocorre pelo motivo de que tanto a Bildung quanto a Kultur possuem sentidos sobrepostos. A constituição desses conceitos foi historicamente marcada pela oposição entre o domínio político e o intelectual, portanto esses conceitos fazem referência ao mesmo campo semântico, ambos tratam das atividades intelectuais, artísticas e religiosas, seja de um indivíduo ou de um povo. (Bildung), pois acreditamos que não se trata de uma crítica isolada, pelo contrário, percebemos que o jovem se relaciona intimamente com a formação, e, por meio dessa mesma relação, é possível observar que o jovem se envolve, especialmente em Schopenhauer como educador (1874NIETZSCHE, F.W. Schopenhauer como Educador. Trad. Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Mundaréu, 2018.) também com a figura do gênio. Portanto, convém investigar o papel do jovem perante a formação (Bildung) do gênio, como uma etapa necessária para a construção da crítica nietzschiana acerca da cultura alemã vigente.

Ao investigar o papel do jovem sob o viés da formação4 4 Os conceitos de cultura e formação tem uma longa e complexa história, especialmente na Alemanha. Na segunda metade do século XVII, após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e a divisão do Império Germânico em 360 estados, a burguesia alemã se encontrava economicamente enfraquecida, o que dificultava a sua participação no poder político. No entanto, isso não impediu um grupo da burguesia (em especial os servidores dos príncipes) de tentar estabelecer uma intelectualidade genuinamente alemã. Esse grupo tentou constituir na esfera intelectual a unidade que não foi possível na esfera política. Segundo Elias (1982, pp. 22-48), será a burguesia, em busca de afirmação, que constituirá os conceitos de formação (Bildung) e cultura (Kultur). E justamente pela carência de expressão política que a burguesia alemã contrapôs as atividades intelectuais, artísticas e religiosas às atividades políticas, econômicas e sociais. Para Elias, devido ao comércio, transportes e indústria estarem nesse período sob o jugo da aristocracia militar (que era muito fechada), a burguesia alemã refugiava-se nos domínios do espírito e dos livros: ciência, arte, filosofia e religião, ou seja, no enriquecimento intelectual e espiritual - na “formação” da personalidade individual e na “cultura” da coletividade. em Schopenhauer como educadorNIETZSCHE, F.W. Schopenhauer como Educador. Trad. Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Mundaréu, 2018., é possível observar contato do jovem com o gênio5 5 Segundo Nasser (2012, pp. 287-302), a leitura do gênio no jovem Nietzsche é norteada pela supervalorização de um protagonista de extrema importância não só para os rumos educacionais e políticos da cultura, mas também para a metafísica do artista. . A partir desse contato, investigaremos quais seriam as consequências dessa mesma relação no âmbito da formação, pois acreditamos se tratar de uma etapa necessária da crítica nietzschiana para com a cultura alemã vigente. Ademais, é possível observar nessa obra ainda uma forte preocupação do filósofo para com a educação universitária dos jovens da Alemanha de Nietzsche:

O Estado obriga seus escolhidos a se estabelecerem em determinado lugar, entre determinados homens, para realizar determinada atividade, eles devem ensinar cada jovem acadêmico que tenha vontade disso e, com efeito, diariamente e em horários marcados. Pergunta: Um filósofo pode realmente se comprometer, com boa consciência, a ter diariamente o que ensinar? [...] Ele não se priva de sua mais soberana liberdade, a saber, a de seguir seu gênio quando ele chama e na direção em que chama? Na medida em que se compromete a pensar publicamente acerca de algo predeterminado em horários determinados. E isso diante de jovens! (SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.416, tradução de GRTT).

Desse modo, é possível entender que o ensino de filosofia é inviável, uma vez que o Estado impõe condições que impedem o filósofo de filosofar. Tendo isso em mente, é possível inferir que em tal forma de ensino a figura do filósofo é dispensável, afinal, seria conveniente um repetidor para ocupar tal cátedra, alguém capaz de repetir o grande roteiro da milenar história da filosofia seria capaz de contar diariamente algo que seus alunos não sabem, cumprindo a demanda imposta pelo Estado. Entretanto, essa forma de ensino promove gradualmente o desprezo e o repúdio dos jovens para com a filosofia, pois ela lhes é apresentada como mera erudição, como conhecimento da história da filosofia, mas não do filosofar6 6 Sobre o efeito da filosofia universitária nos jovens, discorre Nietzsche: “Que diabos importa a nossos jovens a história da filosofia? Será que, por conta da confusão das opiniões, eles devem ser desencorajados a ter opiniões? Será que devem ser ensinados a rejubilar-se, em uníssono, por termos chegado tão magnificamente longe? Será, por acaso, que devem aprender a odiar ou desprezar a filosofia? É quase como se devêssemos pensar que esse é o caso, quando se sabe como os estudantes se martirizam, por ocasião de seus exames de filosofia, para imprimir em seus pobres cérebros as mais loucas e sutis ideias do espírito humano, ao lado das mais grandiosas e difíceis de apreender. [...] ensina-se sempre a crítica das palavras pelas palavras. E que se pense em uma cabeça jovem, sem muita experiência de vida, na qual são armazenados cinquenta sistemas feitos de palavras e cinquenta críticas desses sistemas, justapostos e emaranhados - que deserto, que selva, que escárnio a uma educação para a filosofia! Na realidade, reconhecidamente não se educa de modo algum para ela, mas para os exames de filosofia: cujo êxito usual e notório é que o examinado - ah, por demais examinado! - admita com um suspiro pesaroso: graças a Deus não sou um filósofo, e sim um cristão e cidadão do meu Estado!” (SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.417-418, tradução de GRTT). .

Para tratar do problema da erudição pela erudição7 7 Segundo Figueira (2015, p. 20): “O sujeito erudito torna-se aquele que projeta no outro sua própria falência, representada em discursos que reproduzem sua mentalidade obtusa, pautada num constante falatório que diz pouco de si e de suas vivências, mas muito dos outros. O erudito, que não é filósofo, quando muito historiador da filosofia, a partir disso, por não ser ele mesmo, mas muitos outros e ao mesmo tempo nenhum, torna-se exemplo de massa também, por não lhe ser própria a singularidade”. Desse modo, o erudito, enquanto figura que negligencia a sua própria singularidade, em pouco pode contribuir para a formação (Bildung) do gênio. em NietzscheNIETZSCHE, F.W. Obras completas V. 1: escritos de juventude. Trad. Joan Llinares, Diogo Meca e Luis Guervós. Madrid: Tecnos , 2011., é preciso ter em mente que, para o filósofo, a principal finalidade da formação (Bildung) seria a possibilidade de alcançar o maior valor próprio possível. E, segundo o jovem Nietzsche, isso só é possível quando os indivíduos se inspiram nos gênios8 8 A concepção nietzschiana de gênio que mais interessa para nós é a de que o gênio é encarado pelo jovem Nietzsche como a voz que se sobressai perante as demais: “As vozes individuais desses grandes artistas e pensadores sobressaem sobre a história do mundo, por maior que seja o barulho e mal-estar que produza com seus gritos guerrilheiros e suas ações de Estado. Eles avançam, apesar do fato de que se levanta contra todos os gênios um clamor confuso produzido pelas mentes medíocres que os dominam, apesar do fato de que em face de seu julgamento inúmeros erros querem ganhar validade e prestígio: uma nota sustentada que permanece imperturbável e inabalável em meio a um caos ruidoso de vozes e no final emerge vitoriosa e heroica” (NF/FP 1870, 2 [23], KSA 7.53). . Embora a formação (Bildung) possa soar como um convite para todos os tipos de indivíduos, é possível observar que o jovem Nietzsche dedica especialmente aos jovens essa nobre tarefa de perseguir o exemplo dos gênios:

Como a vida do indivíduo obtém o valor mais alto, o significado mais profundo? Apenas se você viver em proveito dos exemplares mais raros e valorosos, e não em proveito da maioria, quer dizer, daqueles exemplares que, tomados individualmente, não possuem qualquer valor. E é justamente essa a disposição que se deveria plantar e cultivar em um homem jovem, de modo que ele compreenda em si mesmo, por assim dizer, como uma obra malograda da natureza, mas ao mesmo tempo como um testemunho das mais grandiosas e maravilhosas intenções dessa artista; ela não foi bem sucedida aqui, ele deve dizer a si mesmo, mas eu quero honrar sua excelente intenção pondo-me a seu serviço, de modo que um dia ela possa sair-se melhor (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.384-385, tradução de GRTT).

Essa passagem sugere uma relação íntima entre a figura do jovem e a do gênio, o que permite refletirmos acerca das possíveis consequências dessa mesma relação, afinal, a figura do jovem serve de estímulo para o afloramento do gênio? A juventude e a genialidade, vistas como impulsos rumo ao aperfeiçoamento cultural do sujeito e posteriormente de seu meio, representam forças plásticas harmoniosas? O jovem teria um papel na formação do gênio? Ou seria apenas um instrumento? Um exemplo oriundo da relação jovem-gênio consiste nas célebres fraternidades (Burscherischaften) de jovens estudantes9 9 As fraternidades (Burschenschaft) eram uma forma tradicional de corporação estudantil (Studentenverbindung), ainda hoje encontrada na Alemanha, Áustria e Chile. Em sua maioria as Burschenschaften seguem princípios liberais e nacionalistas estabelecidos pela primeira fraternidade fundada no ano de 1815 na cidade de Jena. A primeira Burschenschaft era composta por antigos combatentes das guerras contra Napoleão Bonaparte, que haviam retomado seus estudos em 1815 na Universidade de Jena. , que encontraram o seu fim justamente pela falta da figura do gênio em seu meio:

E foi esse o destino fatal daqueles estudantes carregados de presságios: Eles não encontraram os guias de que precisavam. Pouco a pouco eles se tornaram inseguros entre si, desunidos, descontentes: Logo perceberam que o gênio capaz de os guiar estava faltando entre eles, e esse crime misterioso também revelou, além de uma força aterradora, o perigo aterrorizante dessa falta. Eles não eram guiados e assim pereceram (BA/EE 5, KSA 1.750).

A falta daquele que conduz e a falta daquele que deve ser conduzido representa grande perigo ao gênio e ao jovem, respectivamente. Afinal, o grande adversário de toda cultura elevada sempre foi e sempre será o que NietzscheNIETZSCHE, F.W. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Trad. André Itaparica. São Paulo: Hedra, 2017. (versão e-book). chama de “resistência do mundo estúpido” (Widerstand der Stumpfen Welt), independente da época e do lugar, a barbárie10 10 O conceito de barbárie é tratado por Nietzsche como o oposto do conceito de cultura, para Nietzsche a barbárie consiste na falta de estilo ou a confusão caótica de todos os estilos. Sobre isso, cf. (DS/Co. Ext. I 1, KSA 1.163-164). humana sempre encontra um jeito de se manter e de se proliferar, isso não é novidade. Entretanto, segundo Nietzsche, a barbárie teve êxito em corromper o espírito alemão, com a bandeira de um nacionalismo exacerbado e com os recursos militares e políticos necessários, promoveu uma série de injustiças com qualquer um que não reconheça a manutenção e o fortalecimento do Estado11 11 Trata-se da unificação da Alemanha liderada pela Prússia com o intuito de combater a França, sendo conhecido como Segundo Reich (1871-1918). como a grande finalidade a ser perseguida. Tendo isso em vista, o jovem, caso esteja isolado, é facilmente seduzido pela oferta do Estado, ele tem as qualidades necessárias para assumir a manutenção do Estado, e não tem em seu horizonte nada além da sua luta pela sobrevivência. De modo semelhante, porém, de forma mais rígida, o gênio, quando isolado, é tratado como louco, como antiquado, como um ser desprezível. O que não o impede de alçar o seu voo para a eternidade, todavia, faz desse voo um momento solene, tornando o que poderia ser uma caravana, em um voo solitário. O Estado teme a figura do gênio justamente porque ele consegue enxergar uma finalidade além desse mundo de necessidades, onde o Estado convenientemente surge como o grande provedor, e é por isso que ele não medirá esforços para debilitar, difamar, adormecer, e até mesmo exterminar qualquer possibilidade de oposição.

Destarte, fica claro que o gênio é aquele que conduz a todos os que carecem de formação (Bildung), pois é ele quem tem a visão mais ampla e aguçada, e o jovem é aquele que se deixa conduzir, assim como todos deveriam se permitir conduzir, com a ressalva de que Nietzsche dedicou especialmente aos jovens a árdua tarefa de servir ao gênio12 12 Apesar da figura do jovem não aparecer explicitamente nas passagens a seguir, concluímos que a partir do capítulo sexto de Schopenhauer como Educador não é mais possível desvencilhar a figura do jovem da figura do gênio. Como já foi mencionado, essa relação surge em decorrência da pergunta: Como a vida do indivíduo obtém o valor mais elevado? Somente quando se vive em proveito dos exemplares mais raros e valorosos. Logo após essa resposta, o filósofo deixa claro que essa disposição deve ser especialmente implantada em um homem jovem (Jungen Menschen). Sobre como o jovem pode ser útil ao gênio, cf. (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.383-385). . E essa é uma subordinação necessária:

E assim como grandes guias precisam daqueles que são guiados, também aqueles que devem ser guiados precisam de guias: Nesse sentido, a ordem dos espíritos (Ordnung der Geister) domina uma predisposição recíproca, se não um tipo de harmonia predefinida. Contra essa ordem eterna, à qual as coisas sempre tenderão com uma força de gravidade de acordo com a natureza, e é precisamente quem deseja interpor, perturbar e destruir aquela Cultura (Kultur) que hoje se assenta no trono do presente. Ela quer humilhar os guias, submetendo-os à servidão para com ela, ou persegue aqueles que precisam ser guiados quando procuram seu guia predestinado e sufoca seu instinto de busca com meios intoxicantes (BA/EE 5, KSA 1.750).

Diante disso, de que modo o jovem pode alcançar os seus guias? Por meio do que o jovem Nietzsche denominou como círculo da cultura (Kreis der Kultur), filha do autoconhecimento de cada indivíduo e da insatisfação consigo próprio:

Eu vejo acima de mim algo mais elevado e mais humano do que eu mesmo, que todos me ajudem a alcançar isso, assim como eu ajudarei quem quer que reconheça as mesmas coisas e das mesmas coisas padeça; que assim finalmente volte a surgir o homem que se sente pleno e infinito no conhecer e no amar, no ver e no poder, alguém que, em sua inteireza, como juiz e medidor do valor das coisas, subscreve a natureza e nela se inscreve (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.385, tradução de GRTT).

Esse estado de autoconhecimento representa o ponto de partida da primeira consagração da cultura13 13 Preferimos traduzir o substantivo Weihe por “Consagração”, pelo fato de expressar a ideia de união, de aliança. Trata-se aqui da aliança realizada por meio da cultura (Kultur) entre o sujeito com sua própria natureza (eterna), que não deixa de ser uma espécie de divindade. (Weihe der Kultur) e da segunda consagração da cultura (Zweiten Weihe der Kultur). Um aspecto presente em ambas as consagrações consiste no fato de que ambas se tratam de um estado de criticidade, porém, ao passo em que a primeira consagração consiste em um estado de criticidade do jovem consigo mesmo, a segunda se trata de um estado de criticidade do jovem com seu meio.

Vale ressaltar que, para o filósofo, não é possível estabelecer uma dicotomia cartesiana entre a mente e o corpo, pelo contrário, uma existência plena nos moldes nietzschianos consiste na harmonia entre aquilo que se pensa (internamente) e aquilo que se faz (externamente). Nesse sentido, quando a harmonia entre o interno e o externo é abalada, perde-se também qualquer possibilidade de desenvolvimento cultural14 14 Estamos empregando cultura com o mesmo sentido de formação (Bildung). , afinal, ao passo em que o sujeito desvincula o seu pensar do seu agir, o que distinguiria ele de um animal que somente é guiado pela batuta do instinto?15 15 Em termos nietzschianos, não é possível sustentar essa cisão entre instinto (Instinkt) e intelecto, trata-se apenas de uma situação hipotética. A partir dessa hipótese, é possível concluir que não haveria nenhum ganho caso existisse um sujeito com tais características. No entanto, a tradição filosófica normalmente trata o instinto (irracional) humano como uma propriedade pouco relevante em comparação com o intelecto.

De modo adverso, um sujeito dotado de uma arrojada bagagem intelectual que permanece alheio a tudo o que acontece em seu meio externo, e sequer registra ou expõe suas principais ideias, seja em livros ou em diários, não contribui em nada para o desenvolvimento cultural de seu meio, no limite, quando sua existência chegar ao fim, todo o seu conhecimento desvanecerá consigo. Diante desse cenário, convém questionar: De que modo é possível harmonizar aquilo que pensamos com aquilo que fazemos? A cultura, como foi apontada pelo jovem Nietzsche, é capaz de fornecer o meio necessário para que a harmonia entre o intelecto e a ação seja alcançada? No que concerne à cultura, apenas aquele que associou seu coração a algum grande homem recebe, com isso, a primeira consagração da cultura:

Vergonha diante de si próprio, mas sem descontentamento, um ódio contra a própria estreiteza e atrofiamento, compaixão com o gênio, que nunca deixou de alçar-se para fora deste nosso ar abafado e seco, sensibilidade para todos os que estão em formação e em luta, e a convicção íntima de se deparar em quase toda parte com a miséria da natureza, quando ela se dirige ao homem, quando ela dolorosamente sente outra vez sua obra malograr, quando, apesar disso, ela consegue produzir em toda parte os mais espantosos rascunhos, traços e formas. De modo que os homens com os quais vivemos assemelham-se a um campo por onde se espalham os destroços dos mais preciosos esboços de esculturas, onde tudo clama a nós: Venham, ajudem, completem, juntem o que convém ser juntado, nós ansiamos desmedidamente tornarmo-nos inteiros (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.385-386, tradução de GRTT).

De acordo com a passagem supracitada, somente com o advento da cultura que a harmonização entre pensamento e ação é possível, pois uma vez imerso na cultura, o sujeito é desafiado paulatinamente a desenvolver-se internamente, conhecer cada vez mais as grandes obras do passado e as vidas responsáveis por tais feitos, isso tudo sem se abster de uma ação digna do nível de seu espírito, o que porventura pode acarretar na edificação de uma grande obra, essas são as características da primeira consagração da cultura.

Ora, se a cultura representa a ponte que conecta o sujeito aos grandes gênios, é importante enfatizar que ele será estimulado tanto na esfera interna quanto externa, pois, para Nietzsche, o filósofo é aquele que fornece grandes contribuições intelectuais, além de concomitantemente ser um exemplo vivo de conduta, digna de ser lembrada e, na medida do possível, seguida16 16 Sobre o ideal de filósofo na ótica do jovem Nietzsche: “A consideração que tenho por um filósofo aumenta na proporção exata em que ele é capaz de se oferecer como exemplo. [...] Esse exemplo, porém, deve ser visível não meramente em livros, mas em sua própria vida, da maneira, portanto, como os filósofos da Grécia ensinavam, mais pela expressão do rosto, postura, vestimenta, alimentação e modos do que pela fala ou escrita” (SE/Co. Ext. III 3, KSA 1.350, tradução de GRTT). . Tendo isso em mente, a figura do gênio representa a vanguarda da formação na medida em que serve de exemplo para todos aqueles que apresentam uma disposição jovem, isto é, uma disposição do espírito totalmente aberta ao aperfeiçoamento cultural tanto de si quanto de seu meio cultural. Precisamente, a primeira consagração da cultura consiste em um estado psicológico em que o sujeito compara a si próprio com as grandes figuras da humanidade, o resultado da discrepância entre dois sujeitos desiguais é a peça chave para que o indivíduo encare a si mesmo como um projeto inacabado, mas, em vista de um exemplar mais grandioso, tende a uma possível ascensão.

No que concerne ao aperfeiçoamento cultural do meio, agora no domínio da ação, é o contexto em que a segunda consagração da cultura vigora, consiste na luta pela cultura e a hostilidade contra influências, costumes, leis, instituições que não reconhecem a sua meta: A formação do gênio17 17 É importante ressaltar que, sob a ótica nietzschiana, a genialidade não pode ser produzida artificialmente, pois o filósofo admite a premissa de que nenhuma formação é capaz de fornecer algo que esteja além daquilo que se é. . Para Nietzsche, esse conflito ocorre pelo fato de tais instituições possuírem uma finalidade distinta da formação do gênio. Por conta de seus respectivos egoísmos, elas instauraram uma finalidade em si mesmas e são nocivas tanto para o jovem quanto para o gênio na medida em que produzem tipos específicos de homens, a saber, o Estado produz o funcionário público e a ciência, o erudito18 18 O caráter nocivo presente no egoísmo das instituições ampara-se no fato de que para cada finalidade existe a demanda por um tipo de homem específico. Nesse sentido, qualquer instituição que não tenha como finalidade a formação do gênio será no mínimo negligente com relação a essa meta, afinal, qual seria o sentido de colaborar com algo que sequer faz parte de seu interesse? Tratando-se das demandas da ciência, exige-se o erudito: “As verdadeiras forças propulsoras presentes nos servidores da ciência mostram-se de modo perfeitamente claro ao olhar isento: e é plenamente aconselhável que se investiguem e dissequem os eruditos, uma vez que eles próprios se habituaram a apalpar e desmembrar de modo insolente tudo o que há no mundo, até mesmo as coisas mais veneráveis. O erudito consiste de uma emaranhada rede de estímulos e impulsos bastante diversos, todo ele é um metal impuro. Tome-se, antes de tudo, uma curiosidade intensa e cada vez maior, a ânsia por aventuras de conhecimento, a força permanente e estimulante do que é novo e raro em oposição ao que é antigo e tedioso. Adicione-se a isso certo impulso dialético de perseguição e de jogo, o prazer predador em pensar a passos tão ardilosos quanto os de uma raposa, de modo que não é exatamente a verdade o que é buscado, mas sim a própria busca, e o maior prazer consiste no espreitar insidioso, no cercar, no bote magistral” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.394, tradução de GRTT). Nietzsche tece mais comentários a respeito do erudito, no entanto interessa para nós deixar claro que o erudito é uma figura incompatível com o jovem e o gênio, pois o erudito está mais preocupado em saciar o seu impulso para a verdade do que contribuir para a própria formação do gênio. .

Segundo o jovem Nietzsche, o egoísmo do Estado consiste em condicionar as gerações de modo que elas possam servi-lo; o filósofo se utiliza da seguinte metáfora: “[...] quando um riacho cruzando a floresta é parcialmente desviado por meio de represas e estruturas para, com sua força reduzida, mover moinhos - enquanto sua força máxima seria mais perigosa que útil aos moinhos. Aquela liberação é ao mesmo tempo, e muito mais ainda, um acorrentamento” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.389, tradução de GRTT). Quanto ao egoísmo da ciência, na medida em que ela é tratada por Nietzsche como uma grande solucionadora de problemas, tem como demanda a figura do erudito, não do gênio, afinal, o gênio busca vislumbrar o todo, enquanto o erudito é habituado a tratar sempre das partes, de uma demanda específica: “Ele decompõe uma imagem em meras manchas, como alguém que, ao usar binóculos na ópera para ver o palco, focaliza ora uma cabeça, ora uma peça de roupa, mas nada inteiro” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.396, tradução de GRTT). Tendo isso em mente, tanto o egoísmo da ciência quanto o egoísmo do Estado têm em seu cerne um fato em comum: ambos usufruem parcialmente das potencialidades dos indivíduos, de modo que seja possível canalizar as capacidades dos jovens em pontos convenientes, que favoreçam a si próprios.

Com o intuito de fazer vigorar essa dinâmica, tanto o Estado quanto a ciência delimitam, especialmente pelas vias educacionais19 19 Cf. Carvalho, 2021, pp. 22-51. (Ensino Médio - Gymnasium e Ensino Superior), quais finalidades os jovens devem perseguir, de modo que sua força e potencial jamais se voltem contra essas mesmas instituições, além de nutrir nos jovens o desejo de permanecer inofensivamente à disposição, por meio do jugo da luta pela sobrevivência20 20 Longe de banalizar a luta pela sobrevivência, reconhecemos que é uma luta legítima, o que é problemático consiste em denominar como instituição educativa aquelas instituições que servem somente para atender as demandas materiais da vida. .

É neste contexto que o gênio é imprescindível para o jovem, devido ao seu caráter libertador. Libertador em que sentido? Do ponto de vista das liberdades condicionadas, o gênio possui o poder de libertar o jovem do ocultamento promovido pela batalha da sobrevivência, responsável por ocultar metas mais elevadas que as elencadas pelo Estado ou pela ciência. Em primeiro lugar, o jovem que não quiser pertencer à massa precisa apenas deixar de ser condescendente consigo mesmo; que ele siga sua consciência que exorta: Seja você mesmo! Tudo isso não é você, o que você agora faz, pensa ou deseja. Entretanto, essa exortação estremece a alma jovem:

Toda alma jovem ouve essa exortação dia e noite e, com isso, estremece; pois, quando pensa em sua real libertação, pressente a medida de felicidade que lhe está destinada desde eternidades: E ela não pode ser auxiliada de modo algum a alcançar tal felicidade, ao menos enquanto estiver posta sob as correntes das opiniões e do medo. E quão desoladora e sem sentido pode ser a vida sem essa libertação! Não há na natureza nenhuma criatura mais desolada e repugnante do que o homem que, após se afastar de seu gênio, espreita à direita e à esquerda, adiante e a toda parte (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.338, tradução de GRTT).

Maior que o medo de tornar-se o que se é, deve ser o medo de tornar-se aquilo que não se é. Toda alma jovem deve ter em mente que a sua própria existência é miraculosa, que ocorre precisamente neste momento, amparando-se no fato de que se vive justamente hoje diante do grande leque de momentos da eternidade para surgir, e ao mesmo tempo aceitar que não se possui nada além de um breve presente e nele temos que mostrar por que e para que se existe precisamente agora. Diante disso, é importante que toda alma jovem se responsabilize pela própria existência, tolhendo a possibilidade de que essa mesma existência se converta em uma casualidade irrefletida. Portanto, é importante assumir grandes riscos, pois no pior e no melhor dos cenários deixaremos de existir completamente. E o que ficará para trás? Somente aquilo que for grandioso o suficiente para ser conservado, nesse sentido, quem melhor que aquelas almas mais sublimes para dar cabo da nobre tarefa de educar os novos gênios da atualidade?

Sobretudo, compreendemos que as características elevadas da noção nietzschiana de jovem constroem uma personagem que deve ser guiada pelo gênio, o que nos levou ao questionamento: guiar para o que exatamente? Schopenhauer como educadorNIETZSCHE, F.W. Schopenhauer como Educador. Trad. Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Mundaréu, 2018. nos apresentou, por meio das consagrações da cultura nietzschiana, o modo como o jovem pode se inserir no círculo da cultura, tornando-se aquilo que se é. Tendo isso em mente, foi possível compreender que o jovem apresenta características não físicas, mas espirituais, pois as consagrações da cultura nietzschiana consistem no modo que a personagem jovem se relaciona consigo mesmo e com seu meio, e esse é um processo que independe da faixa etária. Assim, ao entender o jovem principalmente como uma personagem conceitual, consideramos a noção nietzschiana de jovem ou de juventude como um conjunto de ideias e aspirações extemporâneas, ou seja, conforme Nietzsche afirma na última frase do prefácio da Consideração Extemporânea II, como um conjunto de ações sobre seu tempo, contra seu tempo e a favor de um tempo vindouro.

Referências

  • CARVALHO, C. L. S. A noção de juventude no jovem Nietzsche (2021) Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2021.
  • ELIAS, N. La civilisation des moeurs Paris: Hachette, 1982.
  • FREZZATTI JR, W. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia Ijuí: Ed. Unijuí, 2006.
  • FIGUEIRA, F. L. G. Nietzsche e o eruditismo: uma introdução a uma nova concepção de formação (2015) Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual Paulista, Marília, 2015.
  • GONÇALVES, A. Estilo e formação na filosofia do jovem Nietzsche (2015). Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
  • NASSER, E. O destino do gênio e o gênio enquanto destino: o problema do gênio no jovem Nietzsche. Cadernos Nietzsche São Paulo, n.30, 287-302, 2012.
  • NIETZSCHE, F.W. Fragmentos Póstumos (1869 - 1874) V.1. Trad. Luis Guervós. Madrid: Tecnos, 2007.
  • NIETZSCHE, F.W. Ecce Homo Trad. Paulo Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • NIETZSCHE, F.W. Obras completas V. 1: escritos de juventude. Trad. Joan Llinares, Diogo Meca e Luis Guervós. Madrid: Tecnos , 2011.
  • NIETZSCHE, F.W. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida Trad. André Itaparica. São Paulo: Hedra, 2017. (versão e-book).
  • NIETZSCHE, F.W. Schopenhauer como Educador Trad. Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Mundaréu, 2018.
  • 1
    Qual era o contexto? Com a vitória da Alemanha unificada e liderada pela Prússia na guerra de 1871 contra a França, os alemães acreditavam na vitória da cultura alemã sobre a francesa, mas para Nietzsche isso é falso. Não só a cultura francesa é superior, bem como a cultura genuinamente alemã não existe ainda: “Até os próprios franceses reconheceram a superioridade decisiva dos oficiais alemães em termos de conhecimento e das tropas alemãs em termos de treinamento, bem como a melhor organização de sua estratégia. Deixando a instrução alemã de lado, então, em que outro sentido a cultura alemã pode alegar ter vencido? Nenhum: já que as qualidades morais de uma disciplina mais severa e uma obediência mais serena nada têm a ver com treinamento; foi o que distinguiu, por exemplo, os exércitos macedônios dos incomparavelmente mais educados exércitos gregos. A conversa sobre a vitória da formação e da cultura alemã só pode ser uma confusão, uma confusão baseada no fato de que na Alemanha se perdeu o conceito puro de cultura” (DS/Co. Ext. I 1, KSA 1.162). Vale ressaltar que, com o advento da unificação política, Nietzsche tinha expectativas de que uma cultura alemã genuína fosse emergir.
  • 2
    Quando for o caso, serão utilizadas as traduções de Nietzsche para o português feitas por Paulo César de Souza, André Itaparica, Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan, respectivamente, pelas siglas, PCS, AI, GRTT. As obras utilizadas constam nas referências.
  • 3
    Para evitar maiores danos à interpretação, manteve-se no decorrer da pesquisa a tradução de Bildung por “formação” e de Kultur ou Cultur por “cultura”. Nesse aspecto, acompanho Frezzatti (2006FREZZATTI JR, W. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006., p. 64): “Preferimos traduzir aqui Bildung por formação. No entanto, poderíamos ter traduzido essa palavra também por cultura, desde que tenhamos em mente que Nietzsche está aqui criticando o que seus contemporâneos chamam de cultura, ou seja, criticando a confusão que fazem entre cultura e formação ou instrução, ou ainda erudição. Para nosso filósofo, a cultura é algo muito superior a uma formação ou mesmo a uma erudição”. E Gonçalves (2015GONÇALVES, A. Estilo e formação na filosofia do jovem Nietzsche. (2015). Tese (Doutorado em Filosofia) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. , p. 18): “Por utilizarmos formação como correspondente em nosso vernáculo ao termo alemão Bildung, justificamos nossa opção pela expressão filisteus da formação para traduzir o termo nietzschiano Bildungsphilister”. Tendo isso em mente, haverá comentários explicativos nos contextos das citações tanto nos casos em que Bildung tem sentido de Kultur quanto nos casos em que Kultur tem sentido de Bildung. Essa variação de sentidos ocorre pelo motivo de que tanto a Bildung quanto a Kultur possuem sentidos sobrepostos. A constituição desses conceitos foi historicamente marcada pela oposição entre o domínio político e o intelectual, portanto esses conceitos fazem referência ao mesmo campo semântico, ambos tratam das atividades intelectuais, artísticas e religiosas, seja de um indivíduo ou de um povo.
  • 4
    Os conceitos de cultura e formação tem uma longa e complexa história, especialmente na Alemanha. Na segunda metade do século XVII, após a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e a divisão do Império Germânico em 360 estados, a burguesia alemã se encontrava economicamente enfraquecida, o que dificultava a sua participação no poder político. No entanto, isso não impediu um grupo da burguesia (em especial os servidores dos príncipes) de tentar estabelecer uma intelectualidade genuinamente alemã. Esse grupo tentou constituir na esfera intelectual a unidade que não foi possível na esfera política. Segundo Elias (1982ELIAS, N. La civilisation des moeurs. Paris: Hachette, 1982., pp. 22-48), será a burguesia, em busca de afirmação, que constituirá os conceitos de formação (Bildung) e cultura (Kultur). E justamente pela carência de expressão política que a burguesia alemã contrapôs as atividades intelectuais, artísticas e religiosas às atividades políticas, econômicas e sociais. Para Elias, devido ao comércio, transportes e indústria estarem nesse período sob o jugo da aristocracia militar (que era muito fechada), a burguesia alemã refugiava-se nos domínios do espírito e dos livros: ciência, arte, filosofia e religião, ou seja, no enriquecimento intelectual e espiritual - na “formação” da personalidade individual e na “cultura” da coletividade.
  • 5
    Segundo Nasser (2012NASSER, E. O destino do gênio e o gênio enquanto destino: o problema do gênio no jovem Nietzsche. Cadernos Nietzsche. São Paulo, n.30, 287-302, 2012., pp. 287-302), a leitura do gênio no jovem Nietzsche é norteada pela supervalorização de um protagonista de extrema importância não só para os rumos educacionais e políticos da cultura, mas também para a metafísica do artista.
  • 6
    Sobre o efeito da filosofia universitária nos jovens, discorre Nietzsche: “Que diabos importa a nossos jovens a história da filosofia? Será que, por conta da confusão das opiniões, eles devem ser desencorajados a ter opiniões? Será que devem ser ensinados a rejubilar-se, em uníssono, por termos chegado tão magnificamente longe? Será, por acaso, que devem aprender a odiar ou desprezar a filosofia? É quase como se devêssemos pensar que esse é o caso, quando se sabe como os estudantes se martirizam, por ocasião de seus exames de filosofia, para imprimir em seus pobres cérebros as mais loucas e sutis ideias do espírito humano, ao lado das mais grandiosas e difíceis de apreender. [...] ensina-se sempre a crítica das palavras pelas palavras. E que se pense em uma cabeça jovem, sem muita experiência de vida, na qual são armazenados cinquenta sistemas feitos de palavras e cinquenta críticas desses sistemas, justapostos e emaranhados - que deserto, que selva, que escárnio a uma educação para a filosofia! Na realidade, reconhecidamente não se educa de modo algum para ela, mas para os exames de filosofia: cujo êxito usual e notório é que o examinado - ah, por demais examinado! - admita com um suspiro pesaroso: graças a Deus não sou um filósofo, e sim um cristão e cidadão do meu Estado!” (SE/Co. Ext. III 8, KSA 1.417-418, tradução de GRTT).
  • 7
    Segundo Figueira (2015FIGUEIRA, F. L. G. Nietzsche e o eruditismo: uma introdução a uma nova concepção de formação. (2015) Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual Paulista, Marília, 2015., p. 20): “O sujeito erudito torna-se aquele que projeta no outro sua própria falência, representada em discursos que reproduzem sua mentalidade obtusa, pautada num constante falatório que diz pouco de si e de suas vivências, mas muito dos outros. O erudito, que não é filósofo, quando muito historiador da filosofia, a partir disso, por não ser ele mesmo, mas muitos outros e ao mesmo tempo nenhum, torna-se exemplo de massa também, por não lhe ser própria a singularidade”. Desse modo, o erudito, enquanto figura que negligencia a sua própria singularidade, em pouco pode contribuir para a formação (Bildung) do gênio.
  • 8
    A concepção nietzschiana de gênio que mais interessa para nós é a de que o gênio é encarado pelo jovem Nietzsche como a voz que se sobressai perante as demais: “As vozes individuais desses grandes artistas e pensadores sobressaem sobre a história do mundo, por maior que seja o barulho e mal-estar que produza com seus gritos guerrilheiros e suas ações de Estado. Eles avançam, apesar do fato de que se levanta contra todos os gênios um clamor confuso produzido pelas mentes medíocres que os dominam, apesar do fato de que em face de seu julgamento inúmeros erros querem ganhar validade e prestígio: uma nota sustentada que permanece imperturbável e inabalável em meio a um caos ruidoso de vozes e no final emerge vitoriosa e heroica” (NF/FP 1870, 2 [23], KSA 7.53).
  • 9
    As fraternidades (Burschenschaft) eram uma forma tradicional de corporação estudantil (Studentenverbindung), ainda hoje encontrada na Alemanha, Áustria e Chile. Em sua maioria as Burschenschaften seguem princípios liberais e nacionalistas estabelecidos pela primeira fraternidade fundada no ano de 1815 na cidade de Jena. A primeira Burschenschaft era composta por antigos combatentes das guerras contra Napoleão Bonaparte, que haviam retomado seus estudos em 1815 na Universidade de Jena.
  • 10
    O conceito de barbárie é tratado por Nietzsche como o oposto do conceito de cultura, para Nietzsche a barbárie consiste na falta de estilo ou a confusão caótica de todos os estilos. Sobre isso, cf. (DS/Co. Ext. I 1, KSA 1.163-164).
  • 11
    Trata-se da unificação da Alemanha liderada pela Prússia com o intuito de combater a França, sendo conhecido como Segundo Reich (1871-1918).
  • 12
    Apesar da figura do jovem não aparecer explicitamente nas passagens a seguir, concluímos que a partir do capítulo sexto de Schopenhauer como EducadorNIETZSCHE, F.W. Schopenhauer como Educador. Trad. Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Mundaréu, 2018. não é mais possível desvencilhar a figura do jovem da figura do gênio. Como já foi mencionado, essa relação surge em decorrência da pergunta: Como a vida do indivíduo obtém o valor mais elevado? Somente quando se vive em proveito dos exemplares mais raros e valorosos. Logo após essa resposta, o filósofo deixa claro que essa disposição deve ser especialmente implantada em um homem jovem (Jungen Menschen). Sobre como o jovem pode ser útil ao gênio, cf. (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.383-385).
  • 13
    Preferimos traduzir o substantivo Weihe por “Consagração”, pelo fato de expressar a ideia de união, de aliança. Trata-se aqui da aliança realizada por meio da cultura (Kultur) entre o sujeito com sua própria natureza (eterna), que não deixa de ser uma espécie de divindade.
  • 14
    Estamos empregando cultura com o mesmo sentido de formação (Bildung).
  • 15
    Em termos nietzschianos, não é possível sustentar essa cisão entre instinto (Instinkt) e intelecto, trata-se apenas de uma situação hipotética. A partir dessa hipótese, é possível concluir que não haveria nenhum ganho caso existisse um sujeito com tais características. No entanto, a tradição filosófica normalmente trata o instinto (irracional) humano como uma propriedade pouco relevante em comparação com o intelecto.
  • 16
    Sobre o ideal de filósofo na ótica do jovem Nietzsche: “A consideração que tenho por um filósofo aumenta na proporção exata em que ele é capaz de se oferecer como exemplo. [...] Esse exemplo, porém, deve ser visível não meramente em livros, mas em sua própria vida, da maneira, portanto, como os filósofos da Grécia ensinavam, mais pela expressão do rosto, postura, vestimenta, alimentação e modos do que pela fala ou escrita” (SE/Co. Ext. III 3, KSA 1.350, tradução de GRTT).
  • 17
    É importante ressaltar que, sob a ótica nietzschiana, a genialidade não pode ser produzida artificialmente, pois o filósofo admite a premissa de que nenhuma formação é capaz de fornecer algo que esteja além daquilo que se é.
  • 18
    O caráter nocivo presente no egoísmo das instituições ampara-se no fato de que para cada finalidade existe a demanda por um tipo de homem específico. Nesse sentido, qualquer instituição que não tenha como finalidade a formação do gênio será no mínimo negligente com relação a essa meta, afinal, qual seria o sentido de colaborar com algo que sequer faz parte de seu interesse? Tratando-se das demandas da ciência, exige-se o erudito: “As verdadeiras forças propulsoras presentes nos servidores da ciência mostram-se de modo perfeitamente claro ao olhar isento: e é plenamente aconselhável que se investiguem e dissequem os eruditos, uma vez que eles próprios se habituaram a apalpar e desmembrar de modo insolente tudo o que há no mundo, até mesmo as coisas mais veneráveis. O erudito consiste de uma emaranhada rede de estímulos e impulsos bastante diversos, todo ele é um metal impuro. Tome-se, antes de tudo, uma curiosidade intensa e cada vez maior, a ânsia por aventuras de conhecimento, a força permanente e estimulante do que é novo e raro em oposição ao que é antigo e tedioso. Adicione-se a isso certo impulso dialético de perseguição e de jogo, o prazer predador em pensar a passos tão ardilosos quanto os de uma raposa, de modo que não é exatamente a verdade o que é buscado, mas sim a própria busca, e o maior prazer consiste no espreitar insidioso, no cercar, no bote magistral” (SE/Co. Ext. III 6, KSA 1.394, tradução de GRTT). Nietzsche tece mais comentários a respeito do erudito, no entanto interessa para nós deixar claro que o erudito é uma figura incompatível com o jovem e o gênio, pois o erudito está mais preocupado em saciar o seu impulso para a verdade do que contribuir para a própria formação do gênio.
  • 19
    Cf. Carvalho, 2021CARVALHO, C. L. S. A noção de juventude no jovem Nietzsche. (2021) Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2021., pp. 22-51.
  • 20
    Longe de banalizar a luta pela sobrevivência, reconhecemos que é uma luta legítima, o que é problemático consiste em denominar como instituição educativa aquelas instituições que servem somente para atender as demandas materiais da vida.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2022
  • Aceito
    10 Set 2022
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