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O simulacro participativo: revisão do Plano Diretor de São José dos Campos

Resumo

O presente artigo tem por objetivo evidenciar os conflitos e as disputas no âmbito do espaço participativo durante o processo de revisão do Plano Diretor de São José dos Campos/SP. Neste contexto, verificou-se uma visão ideológica municipal comprometida com a criação de suporte territorial para atração de capitais, que deveria ser legitimada durante a revisão do Plano Diretor. Considerando isso, analisam-se: a formação do espaço participativo institucional, a ação discricionária do poder público municipal para aprovação do Plano Diretor em 2018 e os cenários de resistência à ordem implantada por meio das ações da sociedade civil organizada.

plano diretor; participação; planejamento urbano; sociedade civil organizada

Abstract

This paper approaches conflicts and disputes in participatory spaces during the review of the Master Plan of the city of São José dos Campos, state of São Paulo, Brazil. In this context, we detected a municipal ideological view committed to the creation of territorial support for attracting capital, which should be legitimized during the review of the Master Plan. Therefore, we analyze the formation of the institutional participatory space, the discretionary action of the municipal government to approve the Master Plan in 2018, and the settings of resistance to the implemented order through actions of the organized civil society.

master plan; participation; urban planning; organized civil society

Introdução

Este artigo tem como objetivo explicitar os conflitos e as disputas no âmbito dos espaços de participação no processo de revisão do Plano Diretor de São José dos Campos/SP entre os anos 2017 e 2018. O município de São José está localizado na Região Metropolitana do Vale do Paraíba (RMVPLN) e se situa entre os dez maiores Produto Interno Bruto (PIB) do estado de São Paulo, destacando-se por seu parque industrial tecnológico aeroespacial internacionalmente reconhecido. Nos últimos cinquenta anos consagrou-se uma visão de cidade comprometida com a atração de investimentos vinculados a diferentes capitais, entre eles o imobiliário.

Neste contexto, é válido destacar a produção de uma segregação socioespacial que alocou a população mais empobrecida em áreas menos valorizadas e com frágil estrutura urbana, constituindo hoje uma problemática urbana negligenciada pelo próprio poder municipal em espaços como dos debates do próprio Plano Diretor, lei municipal complementar que deve ser elaborada a partir da mobilização popular pelo poder executivo e aprovado pelo poder legislativo. O Plano Diretor, conforme o Estatuto da Cidade (lei n. 10.257/2001), é o instrumento básico da política de desenvolvimento da expansão urbana, que deve assegurar, aos cidadãos, a justiça social, ser retificado a cada dez anos e, em sua elaboração/revisão, deve-se garantir a participação popular.

As primeiras discussões do Plano Diretor Municipal em São José dos Campos são derivadas ainda da década de 1960. Após 1988, e com a aprovação da lei do Estatuto da Cidade (2001), intensificou-se o debate sobre a participação da comunidade nas revisões dessa lei. Verifica-se que durante o processo de revisão do Plano Diretor (2017-2018) de São José dos Campos foram construídas estratégias legitimadoras de uma visão de cidade comprometida com a gestão neoliberal dos territórios. Os conteúdos obtidos por meio da participação popular foram enviesados e/ou menosprezados na elaboração da lei em detrimento de interesses de grupos que gerem a cidade. Um simulacro de participação realizou-se no processo.

No entanto, neste mesmo período, houve tentativas de construção de espaços participativos diferenciados daqueles oficiais (oficinas de leituras comunitárias, audiências públicas, etc.). O Fórum Popular de Discussão Urbana apresentou, por exemplo, alternativas de organização política, social e comunitária divergentes daquelas postas pelo poder municipal. Desse modo, aspectos de resistência à ordem urbana neoliberal insurgiram desse espaço. O Plano Diretor de São José dos Campos foi sancionado por meio da lei complementar n. 612, de 30 de novembro de 2018, com o aval de um processo participativo questionável que legitimava a funcionalidade contemporânea das cidades de vocação neoliberal excludente.

Considerando esse contexto, o artigo apresenta questionamentos sobre os limites e as possibilidades da participação popular nos processos de revisão de planos diretores. A metodologia é qualitativa, centrada na análise de materiais publicados pela prefeitura municipal de São José dos Campos em seu portal destinado à publicação do processo; analisam-se os resultados das oficinas de leituras comunitárias, os mapas e os relatórios das audiências e fóruns. Esses documentos foram produzidos pelos técnicos da prefeitura em parceria com o Ipplan (Instituto de Pesquisa e Planejamento). Consideram-se também relatos descritivos das experiências dos pesquisadores envolvidos na elaboração deste artigo durante os debates de revisão do Plano Diretor e do Fórum Popular de Discussão Urbana.

A reflexão está organizada em três seções: a primeira lança considerações gerais sobre o contexto da urbanização brasileira e da luta pelo direito à cidade; a segunda analisa os espaços oficiais de participação política e decisão em relação às diretrizes do Plano Diretor; e, por fim, são explicitados outros espaços participativos (insurgentes).

O contexto da urbanização brasileira e a luta pelo direito à cidade

O processo brasileiro de urbanização evidenciou as raízes estruturais da relação entre a formação social e a apropriação do território por setores dominantes da sociedade, o que possibilitou a prevalência da racionalidade patriarcal, patrimonialista e colonialista evidenciada nas obras de autores como Freyre (1932,1936), Holanda (1936, 1995), Faoro (1958FAORO, R. (1958). Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Rio de Janeiro /Porto Alegre /São Paulo, Editora Globo. , 1973). A propriedade da terra e sua valoração, como poder e controle sobre a riqueza e a organização do trabalho, constituíram-se em estratégia central da dominação de classes no País, historicamente. A estrutura de estado e, fundamentalmente, do poder judiciário como elemento central da preservação e da defesa da propriedade privada garantiu a produção de cidades segregadas, de privilégios para poucos, amparados na ideia da ordem urbana e, consequentemente, na desqualificação dos setores sociais que não se adequaram ou foram impossibilitados de inserir-se nessa norma e regra.

Há uma ordem econômica que organiza o espaço da cidade e associa-se a uma ordem social que, em princípio, deve corresponder à primeira e vice-versa. Por consequência, aquilo que não se adequa aos parâmetros dessa racionalidade se insere no campo da desordem. A cidade da população trabalhadora, em sua maioria periférica, promove o custo barato da mão de obra de serviços menos qualificados, algo essencial à organização dos setores médios e da elite urbana em especial ( Villaça, 1998VILLAÇA, F. (1998). O espaço intra-urbano no Brasil. São Paul, Studio Nobel/Fapesp/ Lincoln Institute. ). Além disso, o processo de industrialização com baixos salários tornou caro, aos trabalhadores, o acesso à terra e a moradia pela via do mercado imobiliário formal, o que ocasionou ocupações e loteamentos irregulares, provenientes de um mercado da informalidade urbana ( Maricato, 2001MARICATO, E. (2001). Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, Vozes. ).

Um marco contemporâneo a partir do qual se estabelece a tentativa de analisar a dinâmica urbana brasileira neste trabalho é o Fórum Nacional de Reforma Urbana, realizado no Rio de Janeiro, em 1963. Nesse cenário se evidenciou a problemática habitacional urbana brasileira das grandes cidades. No contexto das reformas de base propostas pelo governo João Goulart, deposto pelo regime militar de 1964-1985, tais pressupostos teriam que aguardar o novo desenho constitucional e do Estado brasileiro em 1988.

No período de redemocratização, a mobilização de diversos setores da sociedade possibilitou a emenda popular que demandou a inserção de capítulo sobre a política urbana na nova Constituição, e, após esforços coletivos e ação parlamentar, foram introduzidos os artigos 182 e 183 na Constituição Federal de 1988.1 1 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#art182 . Acesso em: 28 fev 2019. Ao menos conceitualmente, parecia possível rediscutir os termos do direito à propriedade, regulando-a à vinculação de sua função social, o que pareceu um avanço de consideráveis proporções, tendo em vista serem a propriedade privada e a terra um dos elementos estruturais de nossa formação social e territorial.

No entanto, foi necessário aguardar 13 anos para que fosse sancionada a lei federal n. 10257, de 10 de julho de 2001,2 2 Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2001/lei-10257-10-julho-2001-327901-publicacaooriginal-1-pl.html . Acesso em: 28 fev 2019. que criava o Estatuto da Cidade, que estabelecia como principal instrumento de política urbana, o plano diretor elaborado por meio da participação popular. A institucionalização do Ministério das Cidades, em 2003, a criação e a eleição do Conselho Nacional das Cidades, em 2005, bem como as primeiras conferências municipais, estaduais e nacional da cidade, em 2006, indicavam um novo marco regulatório e de possibilidades de avanço na gestão democrática da cidade e de promoção de justiça socioterritorial. O governo federal por meio do Ministério das Cidades estabelecia a exigência de se aprovarem planos diretores municipais participativos até 2006, seguindo as diretrizes do Estatuto da Cidade.

Tendo em vista a herança pouco democrática e inibitória à participação popular nas discussões e decisões sobre os destinos da cidade, o Conselho Nacional das Cidades aprovou, entre outras, as resoluções 25 e 34, que parametrizam formas mais garantidoras de participação social no planejamento e gestão das cidades. Decorridos 21 anos da aprovação do Estatuto da Cidade e, estando a maioria das cidades no início da vigência da primeira revisão dos planos diretores de 2006, poucos avanços e poucas transformações foram observados nas cidades brasileiras que se inseriram nesse processo. Raros foram os instrumentos que incidiram sobre imóveis ociosos e vazios urbanos que se consolidaram nesse período. O aumento de empreendimentos de habitação social e loteamentos irregulares ainda se mantém na racionalidade do urbano contemporâneo no Brasil, além de outra amplificação: loteamentos fechados de alto e médio padrão e áreas de investimento para as práticas rentistas que asseveram verticalização em determinados vetores de valorização imobiliária, evidenciando claramente o conceito de Villaça (1998)VILLAÇA, F. (1998). O espaço intra-urbano no Brasil. São Paul, Studio Nobel/Fapesp/ Lincoln Institute. , no qual configura a produção social do “perto” e do “longe”.

Cabe ressaltar que, do ponto de vista da gestão democrática da cidade por meio de processos de participação popular na revisão ou formulação, os planos diretores municipais apresentaram índices inferiores aos desejáveis no que concerne à constituição de instâncias deliberativas. De acordo com a análise de Santos Junior (2007)SANTOS JUNIOR, O. A. dos (2007). “Cidade, cidadania e planejamento urbano: desafios na perspectiva da reforma urbana”. In: FELDMAN, S.; FERNANDES, A. (orgs.). O urbano e o regional no Brasil contemporâneo: mutações, tensões, desafios. Salvador, EDUFBA. , no primeiro levantamento sobre efetivação de planos diretores em 1684 municípios brasileiros, apenas 24% dos municípios – 362 Planos – foram participativos; em 64% dos municípios – 951 Planos –, os processos de elaboração do Plano não foram participativos. Destacam-se, ainda, 11% de situações – 174 Planos – nas quais houve divergências entre gestores e representantes da sociedade civil quanto ao caráter participativo do processo. Em 2007, criou-se a Rede Nacional de Avaliação e Capacitação para Implementação dos Planos Diretores Participativos para promover a avaliação dos processos realizados até então e para organizar ações de capacitação por meio das diretrizes do Ministério das Cidades e de uma rede de pesquisadores e agentes sociais.

Ainda que identificado um déficit democrático inerente aos processos de participação no País, a existência do Conselho Nacional das Cidades e os ciclos de realização de Conferências Municipais das Cidades ocorridos até 2016 ainda se apresentavam como possibilidades de debates diante das cada vez maiores assimetrias entre as demandas e anseios populares e a postura alinhada dos poderes públicos locais com as agências multilaterais e o capital financeiro e imobiliário.

Em 2016, derivada do impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, a inflexão do governo federal passa a operar a desconstrução do processo de participação da sociedade e em especial a participação popular nos debates públicos, incluindo os da cidade, deixando de promover a Conferência Nacional das Cidades, em 2016, e esvaziando o Conselho Nacional das Cidades. A situação assevera-se a partir de 2018, quando o governo federal passa a adotar posturas e medidas antidemocráticas no que se refere às possibilidades de participação da sociedade civil organizada na gestão e discussão de políticas públicas e temas de interesse nacional e coletivo. É, nesse cenário, que o Plano Diretor do município de São José dos Campos foi discutido e aprovado.

São José dos Campos: contexto local-global

O processo de transformação da ordem urbana do município de São José dos Campos está intimamente ligado à constituição de elementos estruturadores do espaço e à instalação de instituições estratégicas de pesquisa e controle militar do espaço terrestre e aéreo a partir dos anos 1950 ( Souza, 2008SOUZA, A. A. M. de (2008). A especialização do lugar: São José dos Campos como centro da tecnologia aeroespacial no País. São Paulo, Universidade de São Paulo. ). E, ainda, desdobramentos determinantes, resultantes da implementação do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), tornaram São José dos Campos um polo para a atração de unidades fabris e tecnológicas de vinculação internacional, incluindo um rápido aumento de setores de classes médias e alta, trabalhadores qualificados e executivos exigentes de melhor oferta de habitação, serviços, lazer e qualidade de vida, entre outras.

A posição territorial estratégica do município de São José dos Campos (eixo São Paulo-Rio, eixo Campinas-litoral norte-porto de São Sebastião) bem como a existência de setores de tecnologia e inovação com mão de obra qualificada permitiram vislumbrar oferta de um mercado imobiliário de investimento rentista e propagador de uma vocação de empreendedorismo urbano decisivo para o ordenamento da cidade.

A atração de investimentos gerou novos postos de trabalho, e novos discursos sobre a cidade assim como ampliaram-se os fluxos migratórios de diferentes qualidades já presentes na Região. Dentre a população que chegou à cidade, destacam-se, em origem, aqueles que migraram dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná e Bahia; e, acompanhando a redistribuição de população no estado de São Paulo, é significativa a entrada de população vinda das Regiões Metropolitanas de São Paulo, de Campinas e das cidades próximas a São José dos Campos, tais como Jacareí, Taubaté, Guaratinguetá, Caraguatatuba ( Maciel, Gomes, Becceneri, 2020MACIEL, L.; GOMES, C.; BECCENERI, L. (2020). Mobilidade pendular integração regional no Vale do Paraíba e Litoral Norte: uma análise a partir dos censos demográficos de 2000 e 2010. Caminhos da Geografia (UFU, on-line), v. 21, pp. 192-210. ). Os Censos Demográficos de 1980, 1991, 2000 e 2010 apresentaram dados significativos da evolução da população de São José dos Campos. Em 1980, eram 285.587; 1991, 439.231; 2000, 538.298; e 2010, 629.106 mil habitantes. As estimativas do IBGE apontavam que, em 2020, a população joseense já ultrapassaria 720 mil habitantes. Esses números indicam uma pressão direta na disposição de terras para moradia.

Desse modo, com o aumento significativo da população – “necessária” ao desenvolvimento econômico da cidade –, a demanda por habitação popular cresceu significativamente. A expansão do perímetro urbano deu origem a bairros criados na ânsia da especulação imobiliária, muitos dos quais permanecendo irregulares durante muitos anos. A terra urbanizada não estava acessível pela via do mercado imobiliário formal aos novos moradores. As Figuras 1 e 2 evidenciam o processo de expansão do perímetro urbano, tomando-se 1996, como etapa inaugural da construção do anel viário de São José dos Campos, constitutivo de um sistema macroviário, cujo aporte financeiro contou e conta com investimentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Figura 1
Malha urbana, município de São José dos Campos (1996)

Figura 2
Município de São José dos Campos (2016)

Observa-se, nas imagens datadas de 1996 e 2016, respectivamente, a tendência de espraiamento sul/sudeste/leste (habitação de interesse social, loteamentos populares, loteamentos irregulares), bem como o crescimento do vetor centro-oeste (maiores investimentos imobiliários em prédios de apartamento e loteamentos fechados no extremo oeste). A Figura 3 , elaborada por Zaratine (2016)ZARATINE, G. (2016). Resistência e Arquitetura. Estruturação urbana da Vila Nova Esperança-Banhado. Trabalho Final de Graduação. São Paulo, Universidade de São Paulo. , sintetiza a ampliação do anel viário, o crescimento de empreendimentos imobiliários, as remoções de assentamentos subnormais/loteamentos clandestinos e a destinação de população de baixa renda oriunda desses assentamentos para conjuntos habitacionais periféricos.

Figura 3
Ampliação do anel viário – 2016

Nesse sentido, no contexto da expansão capitalista de escala transnacional, as perspectivas do planejamento neoliberal e de direcionamento de fluxos de capital para o setor de infraestrutura e empreendimentos imobiliários tornaram a cidade de São José dos Campos atraente a investimentos dessa ordem. Ressalta-se, desse modo, que mais especialmente a partir de 1996 se planejaram e se prepararam as bases que levaram à segregação socioespacial, por meio de sistema macroviário, remoção de favelas, loteamentos fechados e verticalização no eixo centro-oeste, proliferação de loteamentos irregulares leste e norte. Torna-se notória a identificação do que Villaça (1998)VILLAÇA, F. (1998). O espaço intra-urbano no Brasil. São Paul, Studio Nobel/Fapesp/ Lincoln Institute. denominou produção social do “perto” e do “longe” na constituição do sistema macroviário e da consolidação do vetor centro-oeste da cidade.

O plano de erradicação de favelas e de construção ampliada do sistema macroviário associado aos investimentos em áreas de valorização imobiliária estruturaram as bases possíveis do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado de 2006, com revisão no período 2016-2018. Nesse sentido, a análise de Maricato (2019MARICATO, E. (2019). Por um projeto para as cidades brasileiras. São Paulo, Outras Palavras. Publicado em 14/7/2017 às 17:27; atualizado em 15/1/2019. Disponível em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/por-um-projeto-para-as-cidades-brasileiras/. Acesso em: 12 mar 2019.
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, p. 3) confirma-se:

Alinhados ao primado do rodoviarismo e do mercado imobiliário dirigido para poucos, os governos municipais promoveram, com a ajuda da flexibilização da regulação fundiária, um radical espraiamento urbano, em especial nas cidades de porte médio, aumentando os custos da urbanização, favorecendo a especulação com terras, ampliando as viagens diárias. Essa dinâmica lançou os trabalhadores de baixa renda para a periferia da periferia, em bairros resultantes da autoconstrução ou de conjuntos habitacionais de promoção público/privada, altamente subsidiados.

Consolida-se o ordenamento territorial que consagra níveis de segregação socioespacial bastante evidenciados na materialização dos espaços da cidade desigual no que se refere ao direito à cidade e à promoção de justiça socioterritorial. Assim, simultaneamente aos processos de contínua estruturação de uma visão de cidade de inovação, da tecnologia, atrativa aos investimentos de capital, sucessivas reformas administrativas foram sendo implementadas, amplificando a perspectiva empreendedora como vocação da cidade ( Souza e Reschilian, 2018SOUZA, J.; RESCHILIAN, P. (2018). Reforma da estrutura orgânica dos municípios e institucionalização das representações sociais sobre a cidade: a primazia da gestão gerando uma (des)ordem urbana em São José dos Campos, Brasil. Revista de Geografia e Ordenamento do Território. Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território, n. 15, pp. 403-428 ). Verifica-se, então, que a perspectiva de pensar planejamento urbano participativo e democrático é limitada pela própria estrutura que hoje se apresenta. Entre os anos de 2016 e 2018 ocorreu, em São José dos Campos, a revisão do Plano Diretor, cuja forma de construção e as consequentes reações serão tratadas a seguir.

Ensaiando a participação popular: a construção de espaços participativos oficiais

O Estatuto da Cidade, lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, define as diretrizes gerais da política urbana e, em particular em seu artigo 40º, apresenta as definições do Plano Diretor: “aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”; e, no seu quarto parágrafo, cita-nos a necessidade das esferas participativas no seu processo de definição.

§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão: I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade. (Lei n. 10.257 de 10 de julho de 2001)3 3 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10257.htm . Acesso: em 28 fev 2019.

Desse modo, segundo Ribeiro e Cardoso (2003RIBEIRO, L. C. de Q.; CARDOSO, A. L. (orgs.) (2003). Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro, Observatório Ippur/UFRJ-Fase. , p. 93), “A tarefa de planejar a cidade passa a ser função pública que deve ser compartilhada pelo Estado e pela sociedade [...] A gestão democrática é o método proposto pela própria lei para conduzir a política urbana". No entanto, o entendimento do que sejam a participação e a maneira como ela se efetiva pode ser controverso. O atual Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado do Município de São José dos Campos foi aprovado em 30 de novembro de 2018 e, conforme exigência do art. 40, parágrafo 4º do Estatuto da Cidade, foi revisado com a participação pública e social, que “elaborou”, “colaborou”, “fiscalizou” o processo.

Em São José dos Campos, o rito do processo de Revisão do Plano Diretor contou inicialmente com a instituição do Conselho Gestor4 4 Para aprofundamento das atribuições do Conselho, ver decreto n. 17.141, de 12 de agosto de 2016. Disponível em: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resources/uploads/Link/Arquivo/Decreto_17141_2016.pdf . Acesso em: 14 abr 2022. – órgão colegiado, integrado por representantes do poder público municipal e da sociedade civil, de natureza temporária, que cumpriu as funções de acompanhar e discutir o processo de revisão do plano junto à Secretaria de Urbanismo e Sustentabilidade e à equipe técnica da empresa contratada –, o Ipplan e a equipe técnica da própria prefeitura municipal. Na equipe, conta-se também com a formação de uma equipe universitária voluntária.

O processo de participativo realizou-se por meio de: oficinas de leitura comunitária, fóruns de discussão por regiões, fórum final de debates das propostas e rodas de conversas (no distrito de São Francisco Xavier) e audiências públicas. Nesses momentos, de maneira geral, observou-se que foi resguardada, à população, uma possibilidade “passiva” de atuação nas decisões do Plano Diretor, o que elucida uma dimensão inconclusa e simulada de participação.

Para Maffesoli (1984)MAFFESOLI, M. (1984). A conquista do presente. Chapecó/Santa Catarina, Argos. , o simulacro, enquanto categoria de pensamento, refere-se àquilo que não remete a um modelo original, àquilo que não busca se lançar para além das aparências, a fim de atingir a essência. A noção de simulacro deve ser entendida como uma construção artificial destituída de um modelo original e incapaz de se constituir ela mesma como modelo original.5 5 Disponível em: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/simulacro/ . Acesso em: 12 mar 2019. Nesse sentido, considerando os instrumentos legais participativos, as oficinas de leitura comunitárias foram, inicialmente, os espaços privilegiados para o ensaio artificial de participação, seguidos pelos fóruns e audiências. O desenho metodológico e os resultados publicados indicam como os espaços participativos são marcados por hierarquias da ordem estrutural da gestão pública.

Oficinas de leitura comunitária, fóruns e audiências públicas

Em respeito ao artigo 40, parágrafo 4º, do Estatuto da Cidade e como forma de promover a participação da “sociedade”, a prefeitura de São José dos Campos, ainda em 2017, convocou a população para uma rodada de oficinas de leitura comunitária, realizadas de maneira segmentada por região, centro, sul, sudeste, norte, leste e zona rural norte – Bonsucesso, São Francisco Xavier; foram realizadas 19 oficinas de Leituras Comunitárias. O objetivo delas era “identificação da realidade enfrentada pelos munícipes em cada região, para que se possa auxiliar no diagnóstico do município, como base para a elaboração de proposta para a revisão do Plano Diretor” ( Ipplan, 2017IPPLAN – Instituto de Pesquisa e Planejamento (2017). Leitura Comunitária. Relatório Oficinas. Disponível em: sjc.sp.gov.br. Acesso em: 9 abr 2022.
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, p. 6). Segundo o levantamento do relatório final: 843 pessoas estiveram presentes, a média de participação de cada oficina foi de 44 pessoas e o maior índice de participação foi na região central.

A metodologia foi definida pelo Ipplan e pela prefeitura municipal de São José dos Campos, e o rito seria efetuado pelo oficineiro, consistindo na formação de Grupo de Trabalho que deveria discutir temas pré-selecionados pela equipe responsável. As categorias prioritárias foram: segurança e defesa do cidadão, saúde, educação, mobilidade, economia rural, esporte e lazer, comércio e serviços, social e cultural, infraestrutura, paisagem e ambiente, trabalho e renda, habitação e outros.

Os temas foram representados por adesivos colantes, utilizados pelos participantes para apontar no mapa, também fornecido na oficina, a problemática vivenciada no bairro ou na região. Os participantes também recebiam uma ficha em que questões eram colocadas: “Com base no que foi apresentado e na sua vivência, que dificuldades podem ser destacadas na Região?”; “Quais aspectos positivos podem ser destacados na sua região?; “Desses aspectos levantados, quais os cinco impactam mais na qualidade de vida de sua região?”; e, por último: “Que contribuições podem ser dadas relativas às outras regiões da cidade?”. Abaixo das questões, havia ainda três orientações: 1) seja específico na descrição, indicando bairro, rua, ponto de referência que auxilie o entendimento da resposta; 2) escreva suas respostas em tópicos; e 3) marque os lugares no mapa. Para registrar formalmente a execução do processo participativo, havia uma lista de presença que foi assinada pelos participantes. Havia uma argumentação, por parte dos técnicos-moderadores, que a atividade ofereceria uma perspectiva qualitativa da realidade social dos territórios joseense.

Por parte dos proponentes das oficinas de leitura comunitária, havia certa preocupação em registrar observações variadas dos moradores sobre as dificuldades que impediam o desenvolvimento local. No entanto, a avaliação do documento publicado no site do Plano Diretor, com todas as indicações realizadas pela população, ou seja, os dados brutos, quando comparada com as análises realizadas pelo Ipplan, no documento “Relatório das Oficinas” das reuniões de 2/10/2017 a 31/10/2017, demonstra que os temas pré-selecionados pela metodologia proposta foram aqueles que sobressaíam na visão dos “participantes” e nas análises dos técnicos.

Assim, anteriormente à execução das oficinas, já haviam sido selecionados os temas privilegiados. Desse modo, paira sobre nós a dúvida sobre qual necessidade de chamar a população para a discussão da problemática vivida no nível local, se os temas prioritários, considerados para a elaboração do texto final do Plano Diretor, já haviam sido selecionados pela Equipe de realizadores da Revisão do Plano Diretor. A Figura 4 apresenta uma fotografia de divulgação.

Figura 4
Oficinas de leitura comunitária (2017)

A partir de uma análise dos conteúdos do documento referente ao Relatório das oficinas de 2017, o que se evidencia, no primeiro ensaio de devolutiva e análise dos dados feito pela equipe técnica, foi, em primeiro lugar, uma tentativa de legitimação dos procedimentos por meio de uma descrição apurada do método utilizado como o mais adequado à participação popular. A objetividade do processo é descrita minuciosamente: desde a elaboração a partir de uma experiência técnica, não “ideológica”, até as formas de divulgação e chamada da população à participação. Assim, não devem restar dúvidas, ao leitor, de que o processo de participação foi estimulado e manejado de forma correta pelo Ipplan/PMSJC. E, ainda, a metodologia para execução das oficinas foi revisada e aprovada pelo Conselho Gestor, composto por representantes de diversos segmentos da sociedade civil.

O segundo aspecto que chama a atenção é a utilização de estratégias de legitimação do processo e do documento a partir do argumento da “seriedade” dos técnicos; são inúmeras as vezes em que é citada a importância da presença da universidade na execução das oficinas. Isso se apresenta como uma estratégia de aumento do capital simbólico, legitimador do processo, nos termos definidos por Bourdieu (1989)BOURDIEU, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. . Os técnicos selecionados possuíam formação nas áreas de geoprocessamento, engenharia de produção e, majoritariamente, em arquitetura e urbanismo. Observa-se que nenhum deles tinha, em seus currículos, conhecimentos relacionados às metodologias qualitativas de coleta e análise de dados.

O documento organiza de forma textual e gráfica a incidência dos conteúdos já pré-determinados pelos adesivos temáticos. A análise que os técnicos julgam ser “qualitativa” recupera apenas a frequência dos temas pré-selecionados, e não se baseia verdadeiramente nos princípios qualitativos aplicados ao planejamento urbano, que devem recompor processos conflitivos do tecido urbano. E, ainda, comete-se um equívoco conceitual ao se afirmar que metodologias qualitativas recuperam a “qualidade das informações”, quando sua preocupação original é a recuperação de sentidos e processo, expondo a profundidade das questões. “É o estudo em amplitude e em profundidade, visando à elaboração de uma explicação válida para o caso” ( Martins, 2004MARTINS, H. T. de S. (2004). Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 30, n. 2, pp. 289-300. , p. 295).

Os fóruns de discussão por regiões foi o segundo momento da participação popular no processo de revisão do plano diretor e teve como objetivo: discutir a proposta do plano diretor divulgada pela PMSJC em abril/2018, compreender a percepção do cidadão e quais são seus consensos e dissensos dentre os temas da proposta.6 6 Disponível em: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/estudo-tecnico/31 . Acesso em: 18 abr 2022. Vale salientar que se reproduziram os mesmos procedimentos que incidem em uma participação popular inconclusa e simulada, presentes na etapa anterior, no que se refere tanto ao aspecto metodológico do rito, quanto à proposta de análise dos resultados da participação.

Em relação ao conteúdo, observa-se que a “Proposta do Plano Diretor” deveria correlacionar a leitura técnica e a leitura comunitária, o que não faz. Ao analisar o material, chama a atenção uma predeterminada orientação para política de ordenamento territorial que pouco incorpora as dimensões tratadas nas leituras comunitárias, a saber: a proposta geral de macrozonas (consolidação, estruturação e ocupação controlada); áreas de desenvolvimento estratégico e um eixo nomeado de centralidades urbanas.

Avalia-se que a metodologia proposta para fóruns de discussão por regiões apresentou uma divisão de narrativa pouco aberta ao diálogo e ao debate. A equipe técnica apresentava a proposta do plano diretor em 30 minutos e, na sequência, iniciava o que nomeou de “contribuições orais, debates, discussões e apontamentos acerca do tema exposto”; havia também a possibilidade de serem protocoladas propostas por escrito.

No entanto, o que se observou foi uma fala técnica superficial sobre uma proposta que demandaria um tempo maior de explanação e que deveria garantir maior interlocução da sociedade no processo. A participação da sociedade enquanto narrativa isolada pouco tem a contribuir para uma efetivo processo participativo. Nas análises dos fóruns as falas são incorporadas na íntegra, porém de maneira descritiva, sem abrir possibilidades para um diálogo ou mesmo para um contraponto com a proposta anteriormente exposta. Nesse sentido, repete-se a análise que recupera a frequência dos temas (foram selecionados 15 temas a partir do caderno de propostas do plano diretor) e que se distancia de um debate apto a recuperar o processo de elaboração da proposta e, fundamentalmente, justificar e expor, para os participantes, quais aspectos motivaram a construção de tais diretrizes de ordenamento territorial.

No documento de análise, nomeado “Relatório dos Fóruns Regionais de Discussão da Proposta do Plano Diretor realizados de 5/5 a 16/5/2018”,7 7 Disponível em: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resources/uploads/Link/Arquivo/Relatorio_Foruns_V6_entregue_13_07.pdf . Acesso em: 18 abr 2022. também é exposto que, no processo de análise dos fóruns, foram agregados quatro temas aos quinze anteriormente expostos. Notou-se que três deles versavam sobre as incongruências presentes na metodologia do processo participativo, que são: metodologia do fórum; metodologia do plano diretor e participação popular. O relatório apresenta todas as manifestações e expressões dos participantes, no entanto, mais uma vez de maneira quantitativa e que revela uma condução do rito que promove uma participação inconclusa e simulada.

Já, o fórum final de debates das propostas,8 8 No Distrito de Francisco Xavier foi realizado o que nomearam de Rodas de Conversa. segundo as informações que constam dos documentos oficiais, teve como objetivo “promover uma devolutiva objetivando a validação da proposta com a participação popular, antes da elaboração do Projeto de Lei que será apresentado em Audiências Públicas”.9 9 Disponível em: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resources/uploads/Link/Arquivo/2018%2008%2031%20-%20Relatorio_ForumFinal_PD_R3.pdf Acesso em: 18 abr 2022. A proposta de metodologia partiu de uma sistematização dos 15 temas, anteriormente apresentados, em três grandes eixos, a saber: Eixo A – ordenamento territorial; Eixo B – mobilidade urbana; Eixo C – modelos de desenvolvimento urbano e rural.10 10 Ver: http://planodiretor.sjc.sp.gov.br/resources/uploads/Link/Arquivo/2018%2008%2031%20-%20Relatorio_ForumFinal_PD_R3.pdf Acesso em: 18 abr 2022

Na análise da metodologia, mais uma vez, observou-se um distanciamento entre uma proposta previamente concebida e pouca aberta ao diálogo e um espaço possível para interlocução dos participantes. Ainda que, durante o debate realizado no espaço dos eixos, tenha ocorrido a síntese das principais propostas populares e/ou questionamentos e dúvidas sobre a proposta apresentada pela prefeitura, no momento resguardado para o debate o encaminhamento foi a leitura das sínteses, sem nenhuma possibilidade de debate, ou seja, uma leitura final de "consensos”, incorporada ao relato sem deliberar sobre pontos que eram totalmente opostos em alguns casos. Ao observar os relatórios de análise das etapas de participação popular, fica evidente seu caráter ardiloso, pois todas as manifestações são incorporadas ao relatório apenas de maneira descritiva e nada problematizadora. Ainda vale apontar que a participação popular durante todo processo procurou questionar o processo metodológico, e essas expressões estão presentes nos relatórios; no entanto, foi quase nula a incorporação delas no processo de revisão do plano.

Por fim, as audiências públicas (total de 9) mantiveram as orientações metodológicas, ou seja, a equipe técnica num primeiro momento apresentava a proposta final do plano diretor e, no segundo momento, abria para a participação da população; as observações, no entanto, eram apenas anotadas e respondidas posteriormente de forma textual e publicizadas no site da prefeitura. A proposta de plano diretor foi encaminhada à Câmara Municipal, em julho de 2018, e aprovada em 30 de novembro do mesmo ano (lei complementar n. 612). Reafirma-se, pela análise, que as instâncias participativas foram respeitadas, a participação ocorreu de maneira orquestrada, mas não se efetivou na letra da lei.

Na análise desse processo de participação popular, vale destacar o papel do conselho gestor e da câmara técnica, visto que as metodologias e os calendários do processo foram deliberados e debatidos nesses espaços. O debate sobre a participação efetiva da sociedade no processo da revisão do plano diretor foi tema central de reuniões, assim como de manifestações e documentos protocolados por diferentes setores representados nesse conselho. As colocações apresentadas salientaram: as incongruências das metodologias, que não foram abertas ao debate, e do mapeamento dos conflitos; a elaboração de um plano realizado pelos técnicos da prefeitura, sem incorporar as propostas e as problemáticas apresentadas pela população; a ausência efetiva de um espaço deliberativo no formato proposto e orientado no art. 10º da resolução n. 25, de 18 de março de 2005, que previa a realização de plenárias para a escolha de representantes de diversos segmentos da sociedade para a votação das propostas.

Por uma leitura não hegemônica e extraoficial da cidade

Avritzer (2008)AVRITZER, L. (2008). Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações sobre a variação da participação no Brasil democrático. Opinião Pública, v. 14, n. 1, pp. 43-64. , ao analisar aspectos das instituições participativas surgidas na democracia brasileira, aponta três elementos que são determinantes para compreender a efetividade da participação: a forma como a participação popular organiza-se, a atitude como o Estado relaciona-se com a participação e a maneira como a legislação exige do governo a implementação da participação.

Segundo o autor, ao contrário dos orçamentos participativos, os espaços de participação promovidos pelos planos diretores municipais não iniciam o processo de deliberação política, mas, pelo contrário, finalizam um processo já iniciado no âmbito do próprio Estado. Em relação ao processo de partilha de poder, a proposta dos planos diretores municipais envolve mais atores sociais, porém, sua relação é com uma decisão tomada anteriormente pelo Estado. Nesse sentido, as pautas e as leituras urbanas são proposições que antecedem os espaços de participação e têm a legitimidade do corpo de técnicos da municipalidade e/ou contratados.

Do exposto, as discussões que envolvem o planejamento urbano participativo no âmbito das normativas do Estatuto da Cidade e das experiências de participação dos planos diretores municipais, evidenciam alguns limites da sua aplicabilidade, relacionados a uma estrutura da participação inconclusa por sua natureza não deliberativa e legitimada apenas pelas leituras de técnicos e à criação de espaços de representação não paritários à realidade da sociedade e dos processos de exclusão. Contudo, contemporaneamente, tem se evidenciado o papel desempenhado pelas ações coletivas (organizadas) que trazem ao debate um discurso e uma prática contra-hegemônica, apresentando resistências e questionando a ordem estabelecida.

O ativismo urbano contemporâneo e a discussão do urbano

Segundo Oliveira (2014)OLIVEIRA, D. de (2014). Movimentos sociais e uma nova cultura política em tempos de ação direta do capital. ARACÊ\2013. Direitos Humanos em Revista. São Paulo, v. 1, n. 1, pp. 89-109. , com o esvaziamento das possibilidades de atendimento à justiça social e à garantia dos direitos humanos, a demanda política das classes subalternizadas age no sentido de construir espaços de expressão próprios. O autor cita como exemplo as iniciativas territoriais periféricas e os processos de mídias radicais e comunitárias; pontua também que, ao mesmo tempo que eles atuam num ativismo urbano, buscam construir a representação em espaços participativos institucionais.

Um ativismo que se manifesta não especialmente por táticas e estratégias de ganhos institucionais, mas principalmente pela disseminação de novas atitudes que simbolizam valores, pelo desejo de expressar-se per se e sem intermediações e pela construção de arranjos táticos pontuais que possibilitem a construção de novos espaços para as suas manifestações. (Ibid., p. 106)

O autor avalia, ainda, que os sujeitos sociais, envolvidos nesses ativismos, atuam com uma consciência crítica e coletiva dos mecanismos institucionais que os exploram e, portanto, fazem uma pressão constante e exercem a vigilância. Nesse sentido, os estudiosos que se dedicam à construção de uma leitura mais ampla e reflexiva sobre as novas dimensões de ativismos urbanos no Brasil, a partir das jornadas de 2013, trazem para o debate a rediscussão dos parâmetros atuais do direito à cidade, numa releitura do termo cunhado por Lefebvre (2001)LEFEBVRE, H. (2001). O direito à cidade. São Paulo, Centauro. .

Harvey, em As cidades rebeldes (2014), estabelece a crítica aos conceitos individualistas vinculados à propriedade e à lógica do mercado hegemônico. O autor apresenta uma rediscussão do conceito de direito à cidade, ao evidenciar a importância do direito coletivo e humano no processo de urbanização.

Holston, em seu artigo “Rebeliões Metropolitanas e Planejamento Insurgente no século XXI” (2016), considera que as alternativas que surgiram da própria produção da vida cotidiana urbana dos manifestantes apresentam a possibilidade de constituição de uma cidadania urbana insurgente e, portanto, capaz de pensar novas formas de democracia direta e de ampliar o campo de discussão do planejamento urbano, o que ele nomeia de planejamento urbano insurgente.

Silva e Oliveira (2017)SILVA, F. F. do A. e; OLIVEIRA, D. (2017). A potência política dos territórios periféricos na metrópole de São Paulo. Polisemia. Colômbia, v. 13, n. 24, p. 41. , na reflexão sobre as periferias da cidade de São Paulo, evidenciam que a discussão sobre o direito à cidade ultrapassa o debate clássico do acesso aos frutos da produção e do espaço, como o acesso à moradia, à saúde e à cultura. Avaliam que esses grupos, no processo de compreensão dos sistemas que os oprime e os explora, incorporam, em suas lutas, os direitos humanos e igualitários e, portanto, a capacidade de legitimação de seus grupos, ao produzir suas próprias percepções políticas, sociais e culturais sobre e para a cidade.

No entanto, Merklen (2005)MERKLEN, D. (2005). Pobres ciudadanos: las clases populares em la rea democrática (Argentina, 1983-2003). Buenos Aires, Gorla. aponta que essa nova maneira de fazer política sob o ponto de vista das associações populares enfrenta a tensão entre a situação e o projeto, ou seja, entre as urgências determinadas pela miséria e a reivindicação social e institucional de direitos. Nesse cenário, salientamos a importância das universidades e da defensoria pública como agentes fundamentais no apoio aos movimentos sociais. Destacamos o papel das universidades e grupos de pesquisadores que desenvolvem um trabalho extensionista, ao promover, além de uma assessoria técnica clássica, também um processo colaborativo e comunitário de formação técnico-política.11 11 A título de exemplo, destacamos: O Plano Popular da Vila Autódromo, desenvolvido com apoio e assessoria do Neplac/Ettern/Ippur/UFRJ – Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com coordenação de Carlos Vainer. Essas ações e projetos têm garantido uma legitimidade técnica aos processos de resistência, assim como a consolidação de espaços de denúncia e visibilidade das lutas sociais.

No caso do papel desempenhado pela defensoria pública, é importante compreender os processos que permitiram uma ampliação das possibilidades de acesso à justiça para os movimentos sociais. Para Santos (2018)SANTOS, C. S. (2018). O papel da Defensoria Pública no acesso à Justiça para movimentos sociais. Disponível em: http://www.justificando.com/2018/05/03/o-papel-da-defensoria-publica-no-acesso-a-justica-para-movimentos-sociais/. Acesso em: 10 mar 2019.
http://www.justificando.com/2018/05/03/o...
, nos últimos anos, a principal novidade relacionada aos problemas de acesso à justiça foram a expansão e fortalecimento institucional da defensoria pública. O autor dá especial atenção às mudanças no seu modelo institucional, sobretudo com a lei complementar n. 132, de 2009, que favoreceu a relação da instituição com os movimentos sociais, e aponta com destaque três mudanças: 1) a atuação da defensoria pública em conflitos coletivos próprios de movimentos sociais, que possibilitou ampliar a ação dos conflitos individuais, uma vez que se entende que estes são muitas vezes expressão de um conflito coletivo; 2) o fortalecimento dos movimentos sociais no âmbito do processo de formação; e 3) a educação em direitos. Segundo o autor, essas ações da defensoria, além de fortalecer a atuação política cotidiana dos movimentos sociais, criam uma relação mais horizontal e de autonomia entre a instituição e os movimentos sociais; a possibilidade da instituição de desenvolver formas extrajudiciais de atuação sobre as demandas dos movimentos sociais, tais como: mediação de conflitos, celebração de termos de ajustamento de conduta, participação em conselhos que discutem políticas públicas e assessoria jurídica em sentido amplo. O que nos interessa analisar são dois aspectos dessa dimensão. O primeiro, como essas novas estruturas têm construídos um novo modus operandi de fazer e pensar a política, ao apresentar outras formas de organização e formação; e o segundo, como essas mesmas estruturas podem ressignificar os espaços institucionais de participação.

Fórum popular da discussão urbana de São José dos Campos: alternativas ao pensamento hegemônico

O campo de debates sobre o urbano em São José dos Campos, em 2018, girou em torno do processo de revisão do plano diretor. A participação das lideranças populares das periferias da cidade foi significativa ao promover as discussões sobre as questões da regularização fundiária e urbanística, em contraposição ao discurso dominante/hegemônico da cidade dos negócios e da tecnologia. Nesse sentido, vale destacar o processo de formação dessa frente de ação que contou também com a participação e o apoio da defensoria pública e de grupos de investigadores de universidades locais e regionais.

Nesse sentido, iniciou-se, em março de 2016, a I Jornada de Discussão Urbana ( Figura 5 ), espaço que surgiu por demanda das lideranças populares sob organização da defensoria pública do estado de São Paulo e com o apoio técnico dos pesquisadores das universidades, especialmente a Universidade do Vale do Paraíba (Univap) e a Universidade de São Paulo (USP). Foi um processo inicial de capacitação para o debate sobre a cidade em três etapas: num primeiro momento, foram apresentadas as dinâmicas urbanas existentes na cidade e a compreensão dos processos desiguais delas acarretados; em seguida, levantaram-se dados sobre a legislação urbana; e, por último, elaboraram-se leituras sobre as potencialidades e os problemas analisados por regiões da cidade.

Figura 5
Jornadas de discussão urbana – 2017

Esse processo de formação alcançou um dos resultados esperados, ao contar com a participação expressiva do grupo de lideranças na VI Conferência da Cidade, que aconteceu meses depois, nos dias 1º e 2 de julho de 2016. Nessa conferência, uma das questões colocadas em debate foi a necessidade de retomar a discussão da revisão do plano diretor que estava sendo negligenciada pela gestão, ao dar especial atenção ao debate sobre a Lei de Zoneamento; como resultado desse processo, foi constituído o conselho gestor do plano diretor.

Em julho de 2017, com o intuito de construir um espaço mais amplo de debate e de constituição da resistência, foi instaurado, o fórum popular da discussão urbana, por iniciativa de moradores das cinco regiões da cidade envolvidas nos processos de regularização fundiária. Esse fórum contou com o apoio da defensoria pública do estado de São Paulo e das instituições de ensino Universidade do Vale do Paraíba (Univap) e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), atores que têm acompanhado os espaços de discussão e a formação dessas lideranças, contando com reuniões e debates junto à comunidade dos bairros. Em novembro de 2017, o mesmo grupo inicia a II Jornada de Discussão Urbana: regularização fundiária e cartografia colaborativa, que promoveu uma formação técnico-política sobre a questão da regularização fundiária e, posteriormente, um mapeamento crítico e colaborativo sobre os principais conflitos urbanos existentes na dinâmica da cidade.

Esse grupo participou ativamente de todos os espaços de discussão promovidos pela municipalidade. Nesse processo de participação e formação, foi possível identificar cinco grupos de estratégias do fórum da discussão urbana12 12 O fórum popular de discussão urbana foi composto por representantes de bairros/loteamentos irregulares de interesse social, membros de diversos coletivos atuantes na cidade, lideranças populares, com apoio técnico e jurídico-político da defensoria pública do estado de São Paulo em São José dos Campos, bem como de docentes e pesquisadores do campo do planejamento urbano e regional de instituições de ensino e pesquisa da cidade. que demarcaram uma ação contra-hegemônica às ações da gestão municipal na condução do simulacro da participação e, portanto, capaz de trazer à tona outras formas de organização política, social e comunitária.

1 – Processos formativos de suas lideranças e comunidade, ao promoverem um reconhecimento crítico e territorial dos reais conflitos urbanos, identificando suas causas, os agentes e os processos desiguais gerados. Evidenciou-se um domínio da leitura técnica e política dos conflitos, o que demonstra uma autonomia na compreensão dos processos de opressão e exploração que a população tem sofrido. Esta situação aconteceu primeiramente na etapa das jornadas de discussão urbana (2016 e 2017), pela construção coletiva e comunitária do mapeamento dos conflitos, e, posteriormente, numa releitura crítica do material das oficinas comunitárias de 2/10/2017 a 31/10/2017, o que o corpo técnico do município propositadamente não fez, pois adotou como metodologia a individualização dos problemas, tratando conflitos estruturais como demandas individuais.

2 – Outro dado importante foi a análise pontual das reais estruturas de dominação que atuam e interferem nas problemáticas territoriais dos grupos sociais, ao darem prevalência para a questão da regularização fundiária e urbanística que foi desconsiderada nas propostas da gestão municipal. Nesse processo, o aspecto mais importante foi a formação das redes de resistências e reconhecimento, quando os grupos identificaram os mesmos processos de exclusão.

Vale destacar que, ao tratar de regularização fundiária e urbanística, ressaltamos, como Souza (2018SOUZA, J. S. (2018). A regularização fundiária na pauta metropolitana: apontamentos sobre o novo marco jurídico da regularização fundiária de interesse social no Brasil. Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo Habitação e Urbanismo. São Paulo, Edepe, n. 17, pp. 33-43. , p. 38), que,

A regularização fundiária, em sua definição original, congloba, portanto, um leque de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais, todas ostentando igual status de relevância, não podendo ser conduzida apenas sob a ótica de priorização da concessão de títulos de posse ou propriedade, conforme operou a Lei de Regularização Fundiária recentemente promulgada.

3 – Ocupação dos espaços institucionais, como as audiências públicas, apresentando e pontuando seu discurso contra-hegemônico, ao definirem pontos centrais para a discussão da regularização fundiária e urbanística, o que evidenciou uma leitura técnico-política. Evidenciam-se dois momentos significativos da experiência que caracterizam a dimensão técnico-política. O primeiro refere-se à participação ativa das lideranças em todos os espaços de participação oficial que aconteceram nas regiões da cidade, ao apresentarem e protocolarem quatro pontos centrais que evidenciam os conflitos estruturais da produção do espaço negligenciados pela gestão municipal:

  • regularização fundiária e urbanística, com um cronograma de execução;

  • transformação de áreas de loteamentos irregulares em Zona Especial de Interesse Social (Zeis);

  • mobilidade urbana: priorizar transporte público e ciclovias; pensar calçadas para pedestre; e regulamentar alternativas para os locais nos quais o transporte público é pouco acessível;

  • vazios urbanos nos loteamentos irregulares sejam destinados a cumprir a função social da propriedade.

O segundo foi na ocasião da última audiência pública do plano diretor, na qual lideranças e comunidades dessas áreas, grupos culturais e pesquisadores ocuparam a plenária e colocaram em debate as incoerências da proposta institucional, portanto, legitimando outras narrativas. A Figura 6 expõe o princípio democrático que norteou a mobilização coletiva.

Figura 6
Cartaz da audiência pública, em 2018

4 – Promoção de espaços alternativos de discussão e debate em duas ocasiões. A primeira oportunidade foi a organização conjunta entre o Fórum Popular do Vale do Paraíba13 13 Fórum popular formado, em 2018, por coletivos, causas, práticas e movimentos populares de São José dos Campos. e a defensoria do estado de São Paulo de um debate público intitulado “Visões de Cidade” ( Figura 7 ), com a participação de lideranças sociais e representantes das universidades locais e da gestão municipal. A proposta do evento era promover um debate sobre as visões de cidade existentes tanto no âmbito da gestão pública como no das dimensões da sociedade civil. A segunda oportunidade de construção de espaços de diálogos foi a realização de audiência pública do plano diretor: “Por uma cidade justa e democrática”, promovida pelo fórum popular do plano diretor com o Movimento Somos Parque Bethânia14 14 O Movimento Somos Parque Betânia é suprapartidário, formado por moradores de vários bairros da cidade de São José dos Campos. Teve início no dia 8 de março de 2018 na primeira manifestação de moradores da cidade contra o corte de 430 árvores do bosque Betânia, diante da câmara de vereadores. e a defensoria pública do Estado de São Paulo. O evento contou com a participação do representante do Núcleo de Habitação e Urbanismo da defensoria pública do estado de São Paulo, Rafael Negreiros, além de representantes do legislativo, professores e estudantes universitários e dos já mencionados movimentos sociais e lideranças comunitárias. Como resultante do evento, deliberou-se pelo encaminhamento de uma proposta de emenda popular, à câmara dos vereadores do município de São José dos Campos, que inseria, com nova redação, os temas da habitação de interesse social, da regularização fundiária e urbanística das zonas especiais de interesse social.

Figura 7
Cartaz de divulgação da jornada de discussão urbana

5 – Protocolar as discussões em formato de emendas na Lei do Plano Diretor. Com apoio da defensoria pública e após reuniões com vereadores do campo progressista, estabeleceu-se a estratégia de encaminhar, por meio de um(a) vereador(a), a proposta complementar e alternativa ao projeto proposto pelo executivo municipal. A proposta não foi acatada pelas duas comissões da câmara de vereadores que a apreciaram e, portanto, não foi à plenária.

Na derradeira oportunidade de manifestação ocorrida na única audiência pública promovida pelo legislativo municipal, houve inúmeras manifestações pela incorporação das demandas populares, mais uma vez sem sucesso. Assim, verificaram-se, mais uma vez, as limitações da esfera participativa na definição da lei. Como observado no cartaz de convite das oficinas de leitura comunitária, divulgado pela prefeitura de São José dos Campos, em 2017, o “Plano Diretor é um processo participativo e democrático, em que a sociedade pode influenciar diretamente o desenvolvimento e o bem-estar do lugar onde vive”, mas que, no entanto, vale destacar que a “influência” não se realiza efetivamente, em razão do simulacro participativo apresentado.

Considerações finais

Em São José dos Campos, durante a revisão do Plano Diretor de 2018, nenhuma das reivindicações registradas em diferentes documentos e eventos, derivadas dos processos organizativos, foi acatada pela municipalidade, portanto, o que se estabeleceu foi um simulacro da participação. Ainda que tenham sido atendidas as exigências e os ritos da participação estabelecidos para os planos diretores, não houve um compromisso com as demandas pela promoção de justiça socioterritorial e, por consequência, os processos de participação efetivos não foram alcançados.

Esse simulacro da participação teve como elementos centrais as metodologias aplicadas, utilizadas em oficinas de leitura comunitária, fóruns e audiências públicas, que não evidenciam ou valorizam os conflitos urbanos e os processos desiguais de ocupação e produção do espaço. A ausência da expressão dos conflitos torna-se atrelada a visões de cidade que entendem o espaço como mercadoria e oportunidade de negócios; a ideia da cidade tecnológica e as novas centralidades sugeridas no plano diretor proposto. Observou-se o papel estrutural dos meios de comunicação hegemônicos que abrangem as escalas regional, municipal, que intensificou a divulgação de expressões de leitores, agentes públicos e privados críticos a permanências de assentamentos precários em áreas de suposto interesse do mercado imobiliário e promoção de obras viárias que sugeririam a criminalização da pobreza e das lutas dos grupos e comunidades populares que habitavam lugares valorizados da cidade.

Porém, surge um movimento contrário que partiu dos territórios de inclusão precária que, ao compreenderem e tomarem partido dos processos de exclusão e expropriação que vêm sofrendo, desenham possibilidades de resistência e insurgências dentro das ambiências institucionais de participação, ao pautarem as problemáticas e dinâmicas urbanas de exclusão e apresentarem uma leitura técnico-política que potencializa e legitima suas ações e proposições para a produção social do espaço comprometida com a justiça social e urbana.

Do exposto, entende-se que é urgente repensar a prevalência da técnica em processos de participação inconclusos que simulam uma participação social, amparados por metodologias que não promovem o mapeamento dos conflitos e, que, portanto, é necessário colocar em destaque a política popular e urbana.

Compreende-se que as dimensões da luta perpassam pela relação entre resistência, sobrevivência e enfrentamento, o que nos permite pensar que, ainda que ocorram novas formas de ocupar e pensar os territórios, os movimentos socioterritoriais contemporâneos têm como estratégia de legitimação da sua luta e dos processos de sobrevivência a necessidade de ocupar os espaços de participação e de representatividade política oficiais, como intuito de marcar território, estabelecer processos de contenção e de denúncia, assim como de proposição. Cabe ressaltar, por fim, nos processos que têm sido vivenciados na cidade na luta pelo direito à cidade em suas amplas dimensões, o papel fundamental exercido pela defensoria pública do estado de São Paulo em São José dos Campos, em inúmeras mediações, orientações, ações e suporte para o fortalecimento de ativismos e mobilizações populares.

No entanto, sabe-se que cenário político nacional e seus rebatimentos locais acenam para um processo de recrudescimento das ações e políticas antidemocráticas e participativas, seja por meio da militarização do espaço, seja por meio, no caso do município de São José dos Campos, de grandes investimentos em marketing urbano para alavancar e afirmar a ideia de cidade inovadora, inteligente, pretendendo configurar um pacto positivo em defesa de uma modernização que, de fato, mostra-se conservadora e excludente. As instâncias democráticas passam por questionamentos frente à gestão neoliberal dos territórios.

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Notas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2019
  • Aceito
    13 Nov 2019
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