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Fazer família e ser parente: tessituras sobre famílias e parentes entre ciganos calon

Making family and kinship: weaving on families and kinship among calon gypsies

Hacer familia y parentesco: tesituras sobre familias y parentesco entre los gitanos de calon

Resumo:

A proposta deste artigo é uma reflexão das noções de “fazer família”, “ser família” e “ser parente” na perspectiva dos calon. Para tal, faço uma construção empírica sobre os matrimônios entre as famílias calons brasileiras e como as suas configurações direcionam relações de descendência e afinidade ao produzirem família e parentes na perspectiva calon. Costuro a escrita deste texto em momentos subsequentes, nos quais escrevo sobre o deixar de ser criança e os ritos de matrimônios e um caso de separação entre matrimônio de calon com não cigana; posteriormente, analiso as possibilidades de matrimônios; e, finalizo ao escrever sobre as redes familiares e sua importância na elaboração processual da pessoa calon no processo de fazer entre “família”. Por isso, a importância de pensar como os matrimônios se inscrevem na vida das crianças. Os dados analisados são parte de uma pesquisa de longa duração, entre os anos de 2013 e 2019, momento em que estive etnograficamente envolvida com redes familiares calons.

Palavras-chave:
Rede familiar calon; Família; Crianças calon; Parente; Ciganos calon

Abstract:

The purpose of this article is a reflection on the notions of “making family,” “being family,” and “being kin” in the calon perspective. To this end, I make an empirical construction about the marriages among Brazilian calon families and how their configurations direct relations of descent and affinity when producing family and relatives in thec perspective. I sew the writing of this text in subsequent moments, in which, I write about the ceasing to be a child and the rites of marriages, and a case of separation between a calon marriage with a non-gypsy; later, I analyze the possibilities of marriages; and, I finish by writing about family networks and their importance in the procedural elaboration of the calon person in making himself or herself among ‘family’. Hence, the importance of thinking about how marriages inscribe themselves in the lives of children. The data analyzed is part of a long-term research between the years 2013 and 2019, a time when I was ethnographically involved with calon family networks.

Keywords:
Calon family network; Family; Calon children; Relative; Calon gypsies

Resumen:

La propuesta de este artículo es una reflexión sobre las nociones de “hacer familia”, “ser familia” y “ser pariente” en la perspectiva de calon. Para ello, hago una construcción empírica sobre los matrimonios entre familias calons brasileñas y cómo sus configuraciones dirigen las relaciones de descendencia y afinidad al producir familia y parientes en la perspectiva calon. Coso la redacción de este texto en momentos posteriores, en los que, escribo sobre el dejar de ser niño y los ritos matrimoniales, y un caso de separación entre un matrimonio calon con un no gitano; posteriormente, analizo las posibilidades de matrimonios; y, termino escribiendo sobre las redes familiares y su importancia en la elaboración procesal de la persona calon en el hacerse entre ‘familia’. De ahí la importancia de reflexionar sobre cómo se inscriben los matrimonios en la vida de los hijos. Los datos analizados forman parte de una investigación a largo plazo realizada entre los años 2013 y 2019, época en la que me involucré etnográficamente con las redes familiares de calon.

Palabras clave:
Red familiar de calon; La familia; Los niños de calon; Pariente; Gitanos de calon

Ele é minha família, família mesmo.

— José, 58 anos, calon

Ah! Um exemplo... Se eu for embora hoje, posso esquecer meus filhos, eles são da família cigana.

— Dida, 63 anos, jurin

Apresentação2 2 O que denomino como redes familiares calon são as organizações coletivas que compartilham uma ética de valores basilares das relações pessoais/familiares. Essas se formam a partir de várias famílias pequenas (nucleares) que formam duas ou mais famílias grandes (extensas).

As noções de “fazer família” e “parente” partem das observações realizadas ao longo dos anos de trabalho de campo junto a algumas redes familiares2 2 O que denomino como redes familiares calon são as organizações coletivas que compartilham uma ética de valores basilares das relações pessoais/familiares. Essas se formam a partir de várias famílias pequenas (nucleares) que formam duas ou mais famílias grandes (extensas). calon3 3 Calon é a denominação de um dos povos ciganos que se encontram em território brasileiro. Ao logo do texto o leitor poderá encontrar os temos na língua dos ciganos calons (chibi) como: calon (homem cigano), calin (mulher cigana), juron (homem não cigano), jurin (mulher não cigana), rancho (termo usado para referir-se a casa ou lugar de moradia de famílias ciganas). que estão na Paraíba e de uma família no oeste do Paraná para mostrar como os casamentos entre famílias vão determinar a vida das crianças. Com uma dinâmica de relações específicas, as redes familiares ciganas que estão no conjunto desta reflexão residem em seus respectivos municípios há cerca de oito, vinte e quarenta anos. Assim, o tempo de “parada” surge como um indicador que mostra como algumas transformações na organização social destas redes familiares vão sendo estabelecidas a partir das relações em seus determinados contextos. Não precisei de muito tempo em campo até escutar de uma mulher cigana mais velha sobre como o modo como se casa hoje em dia está diferente: “Edilma, hoje a gente até vê nosso povo se misturando, vamos num casamento que você verá isso. Antigamente nós não se misturávamos” (Linda calin Paraíba, com. pess., dez. 2013).4 4 A calin remetia ao casamento que iríamos uma semana posterior a este nosso encontro, um matrimônio entre uma calin e um juron, algo que dentre a rede familiar que ela pertence não é aceito muito fácil.

A calin Linda,5 5 Neste artigo optei por utilizar nomes e sobrenomes fictícios para preservar a identidade das pessoas pesquisadas. autora da frase anterior, fala das mudanças nas preferências de casamento. Na continuidade da conversa, ela remete que hoje os ciganos “casam para fora”, “casam com jurens”, e “termina que nos tornamos ‘misturados’”. Para pensar como tais relações vão interferir na vida das crianças, é preciso atentar para o fato de que o casamento entre os ciganos calons é pensando a partir de união de famílias. Quero assim assentar o debate deste texto nas perspectivas teóricas que partem da crítica inicial de Schneider (2016)Schneider, David M. 2016. Parentesco americano: uma exposição cultural. Petrópolis: Vozes. para repensar o parentesco na teoria antropológica, seguindo para pensar como formações de família e classificações de parentesco devem ser refletidas de formas contextuais. Tomo como caminho as dimensões êmicas dos ciganos calons brasileiros, e o diálogo teórico realizado por Ferrari (2010)Ferrari, Florência. 2010. O mundo passa: uma etnografia dos calon e suas relações com os brasileiros. Tese em Antropologia Social, Universidade de São Paulo., Tesar (2012)Tesar, C. Catalina. 2012 “Women married off to chalices”: gender, kinship and wealth among Romanian Cortorari gypsies. Doutorado em Antropologia, University College London., Campos (2015)Campos, Juliana M. S. 2015. Casamento cigano: produzindo parentes entre os calons do São Gabriel. Dissertação em Antropologia Social, Universidade Federal de Minas Gerais., Monteiro (2017Monteiro, Renan Jacinto. 2017. De menino para homem: a construção do “ser homem” entre os calon da Costa Norte Paraibana. Monografia de graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Campina Grande., 2019Monteiro, Edilma do Nascimento J. 2019. Tempo, redes e relações: uma etnografia sobre infância e educação entre os calon. Tese em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.) e Fotta (2018)Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the era of financial inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan. que refletem as relações familiares dos calons em lugares diferentes do Brasil.

Considerando a percepção êmica das substancializações familiares calons envolvidas na pesquisa, ressalto que a concepção de família para os ciganos calon é fundamental para nortear a fundamentação das moralidades, regras e organização social. Assim, o significado de família calon que observei em campo parte de duas pessoas do sexo oposto, que se casam e reproduzem a continuidade de suas famílias a partir de uma descendência direta que são os filhos. A família ou o devir de família se constitui inicialmente por duas pessoas que se casam e são reconhecidas entre os seus familiares como o início de uma feitura familiar. Existem: famílias nucleares, que são denominadas pelos calons como famílias pequenas; e famílias extensas, que são denominadas por eles como família grande. Neste caminho reflexivo o diálogo com Ferrari (2010)Ferrari, Florência. 2010. O mundo passa: uma etnografia dos calon e suas relações com os brasileiros. Tese em Antropologia Social, Universidade de São Paulo. nos faz perceber a organização social dos calons entre parentesco e negócios como rede calon, mas que acrescento o termo familiar (Monteiro 2019Monteiro, Edilma do Nascimento J. 2019. Tempo, redes e relações: uma etnografia sobre infância e educação entre os calon. Tese em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.), denominando assim como rede familiar calon, por perceber nos contextos etnográficos, relações horizontais quando se dão no interior familiar e verticais quando são com uma pessoa “de fora”, uma pessoa não cigana. A esta junção de uma ou mais de uma família extensa ou família grande, que congreguem relações na organização social de suas respectivas famílias é o que estou chamando de rede familiar calon.

Pensar como as categorias de parentesco são relacionais à experiência dentro de um determinado contexto, ou mesmo qual o significado de ser família e ser parente, instigou a pensar como é dada essa tessitura familiar entre ciganos calon, já que a afirmação de que “[...] quando nasce uma criança, nasce uma família, nascem pais, avós e tios [...]” (Monteiro 2019Monteiro, Edilma do Nascimento J. 2019. Tempo, redes e relações: uma etnografia sobre infância e educação entre os calon. Tese em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina., 241), dá ênfase para pensar a questão sobre: quais são as ressonâncias sobre o ser família em diferentes tipos de arranjos matrimoniais?

As relações familiares dos ciganos calon se baseiam para dentro (entre pessoas de uma mesma família), o que denominamos como relações endogâmicas. Fazer família é casar e ter filhos, é expandir relações, é dar continuidade nas relações entre diferentes famílias na máxima de congregar e fazer uma rede familiar forte e prestigiada. Ser parente é estar relacionado em alguma perspectiva de afinidade com pessoas ciganas, o parente pode fazer parte de uma família, o familiar também é parente. O parente é alguém que chega e pode não permanecer, o parente pode ser o sujeito que era família, mas devido a algum conflito passa a existir na condição de uma pessoa distante ou alguém que é colocado como um “morto social” a partir de conflitos.

Ao trazer as informações a partir de eventos nos contextos etnográficos, que pude perceber como as nuances de classificar alguém como “da família” ou “parente” estava atravessada sobre quem é este sujeito na rede familiar. O fazer família, o ser família, é posto como algo de grande importância na socialidade dos ciganos. A lógica e a dinamicidade da vida cotidiana partem do princípio do viver em família. Parto, portanto, dos arranjos e configurações familiares na perspectiva dos calons da Paraíba para escrever como os matrimônios e as relações de descendência e afinidade produzem família e parentes na perspectiva calon em três momentos. No primeiro momento, descrevo os casamentos que marcam o rito de passagem de casais calons através dos quais tive a oportunidade de acompanhar o processo de transição da infância para a adultez e perceber a importância dos matrimônios para se estabelecer fortes alianças familiares – e um caso de separação entre um casamento entre homem calon e uma mulher não cigana. Posteriormente, analiso as possibilidades de matrimônio e de que maneira esses arranjos matrimoniais vão dimensionando essas percepções em dados de campo, os quais foram ensinando o significado do “fazer família” entre os calons e que a predominância destes casamentos internos deriva no fortalecimento do que denomino redes familiares. E é nesse ínterim que finalizo, escrevendo as redes familiares em sua importância elaborativa, que compreende uma perspectiva coletiva para a individual, a pessoa calon se fazendo na coletividade. Compreender como o fazer família para os calons se relaciona com a totalidade da sua socialidade, vai sendo importante para compreender as demais dimensões da organização social destes povos.

Deixando de ser criança e os ritos de matrimônio

O casamento dos calons é mais do que uma união entre duas pessoas, é o casamento entre famílias, são relações que vão sendo intercambiadas em um sistema de continuidade e expansão que visa fortalecer sua rede familiar. Nos casos em destaque, enfatizo as relações entre as famílias Luna Oliveira, na Paraíba, Oliveira, de Pernambuco, e Nóbrega, Souza e Simas, de outras localidades. Nesta confluência relacional, existe uma expansão e manutenção das redes. Os Luna e os Oliveira já se relacionam há algum tempo. Nestes novos matrimônios, podemos ver a chegada dos Nóbrega, dos Souza e dos Simas nesta rede familiar que vai se expandindo. Estes casos configuram relações internas, um último evento que trato, descreve um caso de crianças descendentes de casamento misturado.

Matrimônios, festejos e a configuração da família calon

Após dezoito meses de contato intenso com os calon durante a pesquisa de mestrado, no ano de 2015 migrei de estado para cursar doutorado e nas primeiras férias de junho, retornei para o Nordeste. Na primeira semana já fui para o Rancho dos calon da Costa.6 6 Entre as observações realizadas para o mestrado e doutorado, a pesquisa esteve sendo deslocada em duas redes familiares em regiões distintas na Paraíba. A primeira que me inseri foi na costa norte litorânea da Paraíba, localizado há aproximadamente 80 km de João Pessoa (capital paraibana), e um segundo contexto localizado no sertão paraibano, com uma distância de aproximadamente 430 km de João Pessoa. Trato ambas, respectivamente, como rede familiar calon da Costa e rede familiar calon do Sertão. Chegando lá, muitas novidades e expectativas de novos acontecimentos, entre elas, falou-se sobre possíveis casamentos e, dentre as possibilidades, o casamento de uma das meninas moças da localidade se colocou como provável ainda naquele ano. Shirley, que é da família Luna Oliveira, por mais que esboçasse um sorriso quando alguém na roda de conversa das mulheres tocasse neste assunto, não mencionava intenção, as conversas não partiam dela. Para os calon da rede familiar da Costa, não é adequado que uma moça fique especulando sobre essas possibilidades. Segundo a sua avó materna, ela é uma menina grande, já uma moça, mas não fala dessas coisas. A antropóloga Sara Sama (2011)Sama, Sara. 2011. “Crianças para brincar y moças para namorar?” sobre el passo de la niñez a la mocedad entre los vendedores ambulantes ciganos de Cidade de Velha. In Etnografías de la infancia y de la adolescência, organizado por María Isabel Jociles Rubio, Adela Franzé Mudanó e David Poveda, 161-94. Malaga: Los Libros de la Catarata., em sua pesquisa com ciganos na Espanha, percebeu que existe um comportamento desejado e esperado para que se cumpram algumas noções de moralidade, de modo que meninas moças7 7 O termo menina moça é utilizado na rede familiar calon em questão para definir a pessoa feminina que está em processo de mudança da infância para a adultez. não ficam especulando sobre casamento em público. Durante aquelas conversas fui percebendo o deslocamento que Shirley estava a fazer, deixando de ser criança para ser uma noiva em potencial.

Retornei das férias e, alguns meses depois, no início de outubro, recebi a ligação de Lúcia (mãe da Shirley), que falava sobre o casamento de sua filha, convidando para chegar uns dias antes do dia 25 de outubro (data da celebração) no seu rancho.

De malas prontas, segui para a Paraíba três dias antes do casamento. Chegamos à rua dos Ciganos dois dias antes da data de celebração. Com um movimento intenso de chegada de familiares, a rua já se encontrava em atividade de festa. Tinha churrasco, música e bebida. As comidas para os festejos estavam sendo feitas em Arês (RN).8 8 Município localizado no Rio Grande do Norte, é uma localidade onde circulam famílias da rede familiar calon da Costa.

As organizações na manhã do grande dia eram em torno “de quem ia com quem” à cerimônia e à festa. Afinal, esse casamento recai bem dentro do imaginário da pessoa peregrina que é o cigano. Estávamos em Mamanguape (PB), e íamos até Itapororoca (PB), cidade vizinha, para a celebração. Depois, retornaríamos para a festa em Arês (RN). A saída para o casamento foi antes das 10h da manhã, pois esse era o horário marcado. Geralmente, os casamentos religiosos entre os ciganos acontecem nas igrejas católicas, os padres, naquele contexto local, parecem ter uma compreensão mais flexível sobre a idade de se casar. Nesse caso, Shirley, com dezesseis anos, está em uma idade que é ideal para se casar, segundo os calon da rede da Costa, já o seu noivo estava com dezessete. É importante destacar que o casamento não é uma imposição obrigatória aos jovens, os pais escutam seus filhos, suas preferências e vontades. A partir da observação, é possível afirmar que em ambas as redes familiares, o casamento para as meninas ciganas, assim como Shirley, com dezesseis anos de idade, é o primeiro passo para tornar-se uma mulher calin: é algo desejado, esperado e festejado por todos. E assim foi a celebração da união de Shirley com Arthur, das famílias Luna Oliveira com os Nóbrega, um matrimônio considerado como um presente para ambas as famílias e para o fortalecimento desta rede familiar.

É importante pensar que as festas sempre entram como um meio de criar e manter relações. Conhecer como se faz uma festa cigana só foi possível participando. A comida é um símbolo de poder, referencial que marca a produção de festas e significa “festa de ciganos” – a comida é material a ser ostentado (Monteiro e Pires 2020Monteiro, Edilma do Nascimento J. e Flávia Ferreira Pires. 2020. “Festa como perspectiva” entre os calon em Mamanguape, Paraíba (Brasil): abundância e ostentação nas fronteiras dos ciganos. Civitas – Revista de Ciências Sociais 20 (3): 488-98. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2020.2.31823.
https://doi.org/10.15448/1984-7289.2020....
). Segundo dona Linda (com. pess., 13 dez. 2013): “Festa de cigano é com carne, farofa e um litro de refrigerante na mesa”. O mais importante a ser celebrado nesse contexto é a aliança formada, é a nova família que começa a ser constituída. A festa celebra a honra (Monteiro 2017Monteiro, Renan Jacinto. 2017. De menino para homem: a construção do “ser homem” entre os calon da Costa Norte Paraibana. Monografia de graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Campina Grande.) das famílias pelo cumprimento do acordo do casamento, celebra o ritual, a garantia de futuro para ambas as famílias e a iniciação da vida adulta para os cônjuges em uma nova família. Nesta situação, o casamento endossa o lugar de família para ambos.

O casamento de Shirley faz parte do processo entre infância e adultez. Durante os meses posteriores, acompanhei, pelas redes sociais, a vida dos dois. Não demorou muitos meses até receber a notícia, “Meu bem, a Shirley está grávida!!! A Shirley e o Arthur tão formando a família deles. Agora vão ter a responsabilidade deles [...]. A gente está tudo numa alegria grande! Meu primeiro bisnetinho [...]. A gente casa para fazer família, Edilma” (Dida, calin, avó da Shirley, com. pess., 8 jan. 2016).

Dona Dida expressava ali a alegria de um ciclo a se cumprir da sua família. A gravidez de Shirley era a legitimação do seu casamento e a formalização da sua família com Arthur. A chegada de Layla concretizou o “fazer família”, são as crianças que marcam a formação da família Luna Oliveira Nóbrega.

Assim como o casamento da Shirley e do Arthur, os preparativos para o casamento do Luan iniciaram-se bem antes do mês de dezembro de 2016. Desde a incursão realizada em agosto de 2016, os ciganos da rede da Costa, em especial, a família de José e de Dida, já respiravam o casamento de Luan e Elaine. No terraço da casa de dona Linda, alguns móveis da casa da futura família já estavam comprados. O casamento de Luan, assim como o de Shirley, marcam momentos importantes da vida calon e, sobretudo, nestes dois casamentos, onde aconteceram novas alianças e uma expansão da rede familiar.

Em dezembro de 2016 parti de João Pessoa (PB) para Caruaru (PE) e, depois, destino à Cupira (PE). A chegada se dá com dois dias de antecedência. Estar em Cupira ampliou meu conhecimento sobre esta rede familiar e me trouxe uma dimensão fora do cotidiano ordinário. A noite caiu e as conversas rolavam pela calçada da construção e da casa vizinha. Ali, naquela rua de Cupira, que elas também denominavam como a rua dos Ciganos, por ter uma grande maioria de residentes calon, dormimos compartilhando o espaço de uma sala da casa em construção. O amanhecer foi bem cedo. Às 6h todos já estavam de pé, rostos lavados e fazendo a primeira refeição do dia. Café preto e sanduíche de queijo coalho. O tempo passou muito rápido (sempre passa) e logo chegou a hora de nos arrumarmos para seguir para a igreja. Luan é um dos filhos mais novos de José e Dida – este é o primeiro casamento de um de seus filhos que participei. A família de Elaine também estava emocionada, ela é a filha mais velha e a primeira a casar. Ali, estávamos contemplando novamente a alegria de uma nova aliança. O pai de Elaine é parente da família do calon José. Sendo assim, o casamento entre seus filhos celebra uma renovação da aliança entre as famílias e a renovação de uma nova família a partir daquela aliança, tanto Luan quanto Elaine são colocados como família e, assim como no caso anterior, pai ou mãe e suas respectivas famílias são ambientes possíveis para viver uma criança cigana.

A celebração deste casamento congrega etapas de um processo que dá início ao período para a vida adulta de ambos, além de reforçar os laços familiares. Luan e Elaine tiveram novos papéis dentro da rede familiar. Ele continuou comercializando junto com o sogro por Pernambuco, e Elaine ganhou destaque por ser uma jovem casada. Foram residir em Pernambuco, mas estão sempre circulando pela rua dos Ciganos na Costa Norte da Paraíba em busca de fazer novos negócios. Assim, podemos ver a dinâmica das responsabilidades. Elaine e Luan tiveram seu primeiro filho no ano de 2020, as famílias comemoraram com alegria a chegada de Israel, que celebra a união da família Luna Simas.

Assim como os matrimônios acima descritos, entre os anos de 2014 e 2018 tivemos mais cinco casamentos, sendo três com matrimônios festivos realizados entre famílias ciganas e dois casamentos realizados a partir de fugas. Nos três matrimônios festivos, a celebração contribui com a perspectiva de alianças fortalecidas e expandidas. No caso das fugas, os matrimônios são uma espécie de união não consentida por uma das famílias ou por ambas. Nas duas fugas, a narrativa foi que os pedidos de casamento já haviam sido realizados pelos rapazes às famílias das moças e, nos dois casos, a negativa foi presente em todas as ocasiões. É importante perceber que as fugas provocam um afastamento entre as famílias de imediato, o que, com um determinado passar do tempo e diálogo ou, até mesmo, com o nascimento do primeiro filho(a) do jovem casal, a relação entre elas pode ser recomposta. Diferentemente do casamento realizado com acordo entre as famílias, o casamento através das fugas9 9 Para conhecer relato etnográfico sobre casamento através de fugas ler Monteiro (2019). constrói uma narrativa de desprestígio entre as famílias envolvidas, por ser um matrimônio que se inicia nas disputas, mesmo que parta de um conflito inicial. O rapaz que rouba ou foge com a moça, passa a ser uma pessoa que afrontou, ameaçou a honra dos homens da família da moça, gerando, assim, um conflito que não será físico, mas produzirá uma ética de evitação, ou seja, as pessoas envolvidas tentarão não se expor a um encontro físico. Por um tempo, essas situações podem até elaborar nas relações o uso da categoria parente, por se tornar um sujeito que provocou um conflito. Quando a criança nasce, as famílias celebram, selando a paz e união entre ambas as famílias.

Acima descrevi situações de casamentos endogâmicos, ou como os calons chamam, “casamento entre famílias ciganas”. O acerto para um determinado casamento pode surgir ainda quando os envolvidos são crianças, estes crescem cientes do compromisso. Outras possibilidades também surgem: existem os matrimônios que são acertados em outros momentos festivos da rede familiar; e existem os acordos matrimoniais que são desfeitos. Existem redes familiares onde os jovens namoram até chegarem ao momento do casamento.10 10 Na rede familiar calon do Sertão é comum ver o namoro entre os jovens e a continuidade do namoro por um tempo até a chegada do matrimônio. Essa é uma prática também presente em outros contextos familiares ciganos. E existem ainda os casamentos exogâmicos ou considerados como “casamento misturado”.

Casando-se com prima(o) versus casando-se com jurin/juron (gadjin/gadjon)

O casamento de uma pessoa calon com uma pessoa não cigana, na maioria das vezes, não é bem aceito, ou melhor, não é desejável para algumas famílias, e não é aceitável para a rede familiar calon da Costa. Isso porque, uma pessoa de fora não participou da educação e não conhece a ética calon. A família calon preza por seus filhos, cuida e os protege. Em alguns casos, o não aceitar um estrangeiro baseia-se em uma sequência de relações e regras que são internas às redes familiares calons e que consiste em toda uma lógica de sistematização de respeito entre as famílias envolvidas nesse elo e no devir de famílias. Se, por acaso, acontece algum conflito entre o casal, se os dois da relação são do mesmo grupo, se saberá como proceder.

O casamento com o homem não cigano, nos contextos etnografados, era possível se a calin já tiver sido casada com algum homem calon, se já tiver tido filhos e, por algum motivo, o primeiro casamento não deu certo.11 11 Acredita-se que uma mulher que passou por um casamento deva se casar, a prioridade será com um calon, mas no caso de mulheres divorciadas, a permissão para se casar com um não cigano também deriva da ideia que não é bom que a mulher fique sozinha. Já para o homem calon, a possibilidade de casar-se com uma mulher não cigana se apresentava com maior facilidade. Em ambos os casos, o pensamento recai sobre a responsabilidade por esse devir família. Em caso de separação, a mulher ficará sozinha para sustentar seu filho, já que seu casamento provavelmente não teve a aceitação do coletivo, o qual já esperava a separação.

Entre os casamentos de tipo exogâmico, a relação entre o calon e a mulher (não cigana) que acaba de chegar à rede, pode ser circunscrita na relação entre o familiar e o estranho, aquela pessoa que também acaba de chegar. Para homens não ciganos e mulheres não ciganas – o casamento – os tornam parentes aparentados, só com a relação da pessoa não cigana com a rede familiar calon que passa integrar, essa pessoa recebe o lugar de uma “pessoa da família”. Para pensar a partir do contexto, quero remeter à situação etnográfica encontrada em um acampamento no oeste do Paraná, onde uma mulher não cigana ficou viúva de um calon (único filho homem de um casal calon). Nessa situação, a mulher não cigana foi casada por um longo período com o calon, sendo que deste matrimônio nasceram dois meninos. Com a morte do calon, a viúva não cigana passou a morar sob a responsabilidade dos sogros, pois na compreensão da ética calon, os sogros eram responsáveis por seus netos e nora. Com o passar do tempo a viúva deixou o acampamento, mas segundo a ética calon, a mãe ou pai (não cigano[a]) perde o direito sobre os filhos. Os filhos, frutos de uma relação como essa, serão criados pela família calon, pois na compreensão dos calons, por mais que a mãe ame seus filhos, ela não terá a compreensão da lógica de vida cigana como uma calin; ela deixou de ser parente e se tornou uma estranha. Para os ciganos, seus netos não podem, nem devem, ser criados por estranhos. O avô das crianças ainda ressaltou: “Dra. Edilma, meus netos não podem ser criados por uma estranha, ela foi casada com meu filho, mas não é nossa família, ela não vai ensinar os nossos netos os nossos valores” (Calon, com. pess., 16 maio 2017).

Percebe-se, então, que as regulações matrimoniais que concretizam a ética calon estão diretamente ligadas ao pensar sobre o devir daquela família e seus filhos. O lugar das crianças e os direitos estão fundamentados em uma noção de pessoa calon (Monteiro 2019Monteiro, Edilma do Nascimento J. 2019. Tempo, redes e relações: uma etnografia sobre infância e educação entre os calon. Tese em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.). Nas muitas situações observadas, bem como no último caso relatado, pensar esses pressupostos dos matrimônios conduz a compreensão para pensar a feitura de uma família calon e as possibilidades de permanência de crianças ciganas neste contexto.

Filhas(os) entre matrimônios possíveis e “idealizados”

O que estou denominando de casamento entre primos (Monteiro 2022Monteiro, Edilma do Nascimento J. 2022. “Entre Primos(as)”: vivências no cotidiano dos ciganos calon. Novos Debates 7 (2): 1-12. https://doi.org/10.48006/2358-0097-7204.
https://doi.org/10.48006/2358-0097-7204...
), são matrimônios realizados entre duas pessoas que pertencem a uma rede familiar calon comum (endogâmico – referindo-se à rede) ou com uma determinada aproximação, já o casamento com jurin/juron são tipos de relações matrimoniais entre ciganos e não ciganos (exogâmicas).12 12 Assim como o casamento falado por dona Linda. Casar-se com primo(a) nem sempre terá uma conotação da realização de um casamento com pessoas da família extensa, casar-se com pessoas classificadas como “primos(as)”, seria casar-se com outro cigano(a). O termo é utilizado para denominar as pessoas que se identificam como ciganas e que estão dentro de uma determinada rede familiar cigana.

Já o casamento com jurons parece tecer o caminho dito por dona Linda, sobre o se misturar. Os que chegam a uma família cigana são colocados como potencialmente familiar, mas são parentes. Chegar a pensar esses matrimônios foi um caminho percorrido por tentar compreender em alguns eventos etnográficos o lugar das crianças na rede familiar. Como alguns tipos específicos de matrimônios incidiam na decisão pela guarda da criança em caso de separação ou de morte, como decidir quem será responsável pela educação e formação de uma criança calon? As possibilidades de aliança (matrimônio) entre os calons se originam na perspectiva de duas ordens: endogâmico (casamento entre ciganos); e exogâmico (casamento de ciganos com não ciganos [juron]). Estas se tensionam e anunciavam a todo tempo, em campo, esse cuidado existente com os casamentos dos jovens. Nos contextos etnográficos em questão, o matrimônio se dá preferencialmente entre membros de uma mesma rede, ou seja, se possível os casamentos são endogâmicos, sendo reforçada a ideia de que “nossas crianças terão família”.

Para pensar a estrutura da organização social e tentar reconstruir a ordem de pertença das crianças a partir de uma lógica compreensiva da produção de família, parto de uma dinâmica dos matrimônios para buscar encontrar quando os sujeitos daquela rede familiar teriam se encontrado, quando os ciganos observados começaram a trilhar os mesmos espaços e quando a rede familiar é ampliada por novos matrimônios.

No convívio cotidiano, é possível observar conflitos e denúncias sobre ser ou não ser um calon. Esses fatos vão delineando como regras e normas são determinadas e expressas pelas redes. Não escrevo sobre os conflitos, mas tentei pensar como as moralidades que vão delineando comportamentos desejados e esperados no ser calon são fortalecidos mediante um confronto com um “estrangeiro” ou comportamento indesejado e que quase sempre vão diminuindo a força de uma rede familiar. Esses comportamentos indesejados podem ser produzidos por ciganos Calons de uma outra rede familiar e causar estranhamento aos ciganos de uma outra rede familiar.

A formalização dessas redes e as alianças podem ser pensadas como um meio em que se cria, produz e reconhece família, parentes e estranhos. Quando os casamentos são para dentro, está se fortalecendo a família, quando se casa com uma pessoa não cigana, se está trazendo um estranho para se tornar parente. O estranho é o de fora, é o que não participa e não coparticipa da ética calon. É a pessoa não desejada para cuidar das crianças. Nesse sentido, as percepções sobre determinados comportamentos constroem noções sobre quais são os fatores predominantes para pensar quem são as pessoas aptas a criar e ser responsáveis por uma criança. Mensuram a ideia ética do direito sobre as crianças em uma perspectiva de responsabilidade da educação e do futuro familiar daquela criança. O sentimento de pertencimento à rede e da unidade familiar vai sendo absorvido no processo educacional calon a partir dos sujeitos que ocupam os espaços nesse processo, sendo dimensionado a partir das formas que cada pessoa integra e se relaciona na rede. Assim, nos eventos presenciados era possível ver as diferenciações entre pessoas ditas como da família (preferenciais), parentes (possíveis) e estranhos (indesejados) para cuidar da criança cigana. As permanências e as mudanças contingentes de uma estrutura territorial da rede familiar podem ditar quem é família ou não. Esses contingenciamentos de mudanças podem ser ocasionados também por conflitos internos, sendo esses uma motivação para produção de afastamento. Seria uma espécie de comportamento político dentro da ética promovida naquela rede. Logo, a política de evitação, de afastamento e de criação de novos “estranhos” para ciganos familiares que divergiram e tiveram algum conflito, constrói novos territórios.13 13 Esses conflitos provocam mudanças de território entre as famílias envolvidas nele.

Em uma perspectiva diversa dos ciganos, podemos pensar a organização social através de um diagrama que identifica e diferencia o paralelo do universo calon vs. universo juron. É importante perceber que regras, normas e valores estão nos circuitos das variadas redes familiares que se identificam como ciganos. Estas criam uma ética familiar de uma determinada rede, uma ética diferentemente daquelas de outras pessoas, que podem até ser vizinhas, mas não estão dentro dessa perspectiva de olhar o mundo, de construir parente e família, de compreender a estrutura social e as relações tecidas internamente. A ética dos calons para os matrimônios é dinâmica e passível de mudanças constantes, principalmente, quando os casamentos acontecem para dentro, não possuem filhos nem registro civil.

A família cigana preza por seus filhos, cuida deles e os protege. Em alguns casos, a mulher pode ser excluída da família e da sua rede familiar por algum tempo, sendo uma espécie de castigo. O não aceitar um homem de fora das famílias calons, baseia-se em uma sequência de relações e regras que são internas às redes calons, e que consiste em toda uma lógica de sistematização de respeito entre as famílias envolvidas nesse elo. Se, por acaso, acontecer algum conflito entre o casal, se os dois da relação são da mesma família, saber-se-á como proceder.

Usemos o exemplo do casamento com o homem não cigano. Nos contextos de pesquisas etnografados, este era possível a uma calin que já tivesse sido casada com algum homem calon, que já tivesse tido filhos e que, por algum motivo, o primeiro casamento não tenha dado certo. Essa determinação é proveniente dos papéis sociais e econômicos da família cigana. No entanto, em caso de separação, a mulher ficará sozinha para sustentar seu filho, já que seu casamento provavelmente não teve a aceitação da família, que já esperava a separação. É certo que existem famílias que aceitam o casamento de suas filhas com homens não ciganos, mas são casos específicos e que devem ser tratados como exceção.

A escolha de casar-se entre primos é uma ação que circunda alianças entre diferentes redes familiares. A preferência desse tipo de casamento se dá principalmente pelo cuidado com os filhos que estão a se casar e com os filhos deste casal que virão no futuro. Caso um casal de matrimônio exogâmico venha a se desfazer, os calons compreendem que os filhos daquela relação pertencem à família calon. No ponto de vista dos calon quem deve educar suas crianças são eles, por isso existe a compreensão de que as crianças pertencem sempre à família calon. São eles os responsáveis em educar as crianças e repassar os valores éticos da vida calon. No caso dos dois matrimônios narrados, vemos que nas duas circunstâncias os jovens casais conhecem pela experiência, as regulações da vida calon.

O que produz a família? Relações consanguíneas e de afinidade em jogo

O sentido de família para os ciganos pertence à ordem da descendência na maioria dos casos: “Edilma, só é cigano quem nasce cigano! Olhe meu filho, é calon puro, filho de dois ciganos” (Mary, calin da rede do Sertão, com. pess., 26 mar. 2017). A sustentação de que para ser cigano precisa nascer cigano é a narrativa presente em todas as redes familiares que já convivi. Mas, quando partimos para a observação, compreendemos que a partir das alianças pode haver indícios de uma aproximação. Uma determinada pessoa pode não ser um familiar consanguíneo, mas será parente, alguém que convive, que constrói junto e que aprende quase tudo da vida calon. Portanto, não dá para definir, limitar, algo que é relacional, e está em constante movimento em uma ética local das redes.

Chego à percepção de que dentro desta ética da organização social podemos compreender que ser família e ser parente é, respectivamente, traduzido nesse misto de sangue e moralidade de uma determinada rede familiar, que compartilham a vida no cotidiano ou em dias eventuais. Podemos pensar a organização social dos ciganos a partir de algumas perspectivas teóricas da antropologia cigana brasileira, como fizeram Ferrari (2010)Ferrari, Florência. 2010. O mundo passa: uma etnografia dos calon e suas relações com os brasileiros. Tese em Antropologia Social, Universidade de São Paulo., Campos (2015)Campos, Juliana M. S. 2015. Casamento cigano: produzindo parentes entre os calons do São Gabriel. Dissertação em Antropologia Social, Universidade Federal de Minas Gerais., Fotta (2018)Fotta, Martin. 2018. From itinerant trade to moneylending in the era of financial inclusion: households, debts and masculinity among Calon gypsies of Northeast Brazil. Cham: Palgrave Macmillan. e Monteiro (2015, 2019Monteiro, Edilma do Nascimento J. 2019. Tempo, redes e relações: uma etnografia sobre infância e educação entre os calon. Tese em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.), que refletem na compreensão da dinâmica da formação de família, nos encaminhado à compreensão de como essa formação está imbricada no processo de educação das crianças, no sentido de dar continuidade àquela família. A lógica de como se faz família reconhece parentes e estranhos, criam-se as alianças que, respectivamente, esfacelam-se por algum conflito eventual. O roubo de uma filha pode ocasionar grandes conflitos. Um negócio mal realizado ou uma palavra não cumprida pode ser motivo de briga. Os matrimônios e as alianças, para os ciganos, partem, antes de tudo, da “Palavra”. E, uso aqui, o termo com a letra maiúscula para enfatizar que a Palavra que não é escrita, mas, sim, verbalizada. É sustentada, mantida e cumprida dentro desta ética calon do respeito.

Entre os calons não precisa de um acordo assinado, de uma folha de papel para manter firme um acordo, a Palavra dada é cumprida em sinal ao respeito e à honra. Talvez até se criasse uma situação para fazer valer esse papel, mas a Palavra e o acordo entre as famílias são fatores importantes, constitutivos de uma norma moral e de honra entre as pessoas compartilhadoras da rede familiar. O valor da Palavra está concretizado na vida de calon. As coisas são ditas e firmadas em conversas e realizadas no cotidiano. O valor da Palavra é o fator constitutivo da honra de mulheres e homens. As crianças aprendem, desde muito novas, que uma vez dada a Palavra em um acordo, é preciso que se cumpra. A falta de Palavra gera conflito; o seu cumprimento enfatiza alianças, promove a pessoa calon e efetiva relações.

Descrever como se constroem os processos familiares, os matrimônios e as alianças, de uma forma mais ampla, como sendo a forma de organização social dos calon, é posto como um desafio durante todos esses anos, e mostrou-me como é necessário tempo para alcançar um conhecimento das pessoas que circulam e formam as redes familiares calon. Assim, digo que as redes são a organização coletiva que compartilha uma ética de valores que baseia suas relações. Essas se formam a partir de várias famílias pequenas (nucleares) que formam duas ou mais famílias grandes (extensas). As famílias se constituem a partir de pessoas calon, ou com pessoas que podem chegar pela afinidade, os parentes, que se unem em matrimônios e “formam família”, com a chegada dos filhos.

Cada rede familiar é formada por famílias grandes de diferentes localidades (famílias extensas). Esses núcleos são congregados por diferentes famílias (famílias nucleares), e compostas por pessoas calons da grande rede. As relações entre essas famílias formam, em muitas circunstâncias, um circuito e rotas que estabelecem uma relação compartilhada, que faz pensar também uma noção de território, e de famílias que compartilham uma mesma ética de vida calon.

À guisa de considerações finais

Por compreender que as redes familiares são compostas por pessoas da família e parentes (pessoas que chegam a uma determinada família por meio de uma relação afim), descrevo a rede familiar calon como sendo formada por mais de uma família grande e várias famílias pequenas. A pessoa da família pode ser também considerada um parente, a categoria parente passa a ser acionada para nomear as pessoas que chegam nas redes familiares, sendo a pessoa que é acionada como parente um possível familiar, mas nem sempre. Além de classificações, são modos relacionais e de jogos sobre posicionamentos sociais e que implicam em uma dinâmica cotidiana sobre lugares sociais nas redes familiares.

As crianças montam e remontam o ciclo de vida dos calons. O momento de casar-se não é definido por uma idade comum, mas é visto como processo na transição da infância para a vida adulta; é a partir do casamento que começa a se pensar em fazer família. Flora, calin da Rede do Sertão, ao falar sobre casamentos e filhos, disse: “A gente casa para fazer família, as crianças são o nosso futuro” (Flora, calin, com. pess.,12 maio 2017). O casamento é marcado como o momento de saída da infância, mas também marca o início de um novo ciclo familiar com a chegada dos filhos do novo casal.

A proposta deste artigo foi de refletir sobre a descendência entre os ciganos calons, estabelecida a partir dos matrimônios, atentando para as noções êmicas de “fazer família”, “ser família”, “ser parente”, “estranho”. Para tal análise, fiz uma construção dos matrimônios observados nos contextos etnográficos e de que maneira o fazer família é visto como primordial para o futuro da rede familiar.

As crianças trazem consigo a dimensão do “fazer família” para os ciganos e a família tem sido compreendida como a regra para arranjos e rearranjos. As alianças matrimoniais, quando acontecem entre diferentes famílias grandes, mas em uma mesma rede, fortalecem o sentido da família. A importância dos filhos é dada pelo fator da produção de uma nova família, a continuação dela em sua extensão e de novas alianças familiares. É a partir dos filhos que se pode demonstrar a prosperidade de uma família. Porém, existem casais que não têm filhos e, nestas situações, observamos que esses casais se tornam segundos pais (padrinhos) de muitas crianças. Entre os calons, após o casamento e com a chegada dos filhos, o jovem casal ganha uma nova dimensão e status, os filhos são a descendência daquela família. O desejo pelo primeiro filho é sempre expresso por todos da família dos recém-casados e, até mesmo, cobrado para sujeitos externos à rede familiar.

A responsabilidade com as crianças de uma determina rede familiar e o direito sobre a criança em casamentos considerados desejados (para dentro) deve ser pensado como sendo das famílias extensas calon ou das famílias grandes maternas e/ou paternas calon. A posição da criança e o direito sobre ela, a pensar em uma perspectiva da responsabilidade sobre, estão fundamentados na ética calon, relacionados com o sangue e a socialidade (Monteiro 2019Monteiro, Edilma do Nascimento J. 2019. Tempo, redes e relações: uma etnografia sobre infância e educação entre os calon. Tese em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina.). Nascer e crescer entre sua família é necessário para que o conhecimento e o reconhecimento sejam dados pela rede familiar calon.

O cuidado com esta nova família vai sendo guiado pelas noções éticas das famílias que os jovens compartilham. O cuidado com a educação das crianças dentro dos valores calon se tornam menores quando o casamento é entre família. Quando o casamento acontece com uma pessoa não cigana, os cuidados passam a ser redobrados. Percebe-se aí, que a criança cresce no limite de reconhecer a família cigana e os parentes jurons e, nesse limite, a criança se relaciona circundada no cuidado para que não se torne uma estranha. O ensinamento, nesses casos, é para assegurar a segurança da manutenção e perpetuação de uma determinada família. O fazer família, ser da família, também delineia quem pode criar e educar as crianças.

É a socialidade que vai substancializar, através do ensino prático (Lave 2015Lave, Jean. 2015. Aprendizagem como/na prática. Horizontes Antropológicos 21 (44): 37-47. https://doi.org/10.1590/s0104-71832015000200003.
https://doi.org/10.1590/s0104-7183201500...
), as noções éticas e práticas cotidianas da pessoa calon. Ao vivenciar no cotidiano, aprender sobre comportamentos desejados ou repudiados dentro de uma determinada rede familiar calon, a criança que tornou um casal em família, vai aprendendo a ser família e fazer família. O “fazer família”, assim, parte do princípio de casar-se, ter seus filhos e dar continuidade às famílias calons. Quando as crianças estão crescidas, elas casam e iniciam um novo ciclo.

  • 2
    O que denomino como redes familiares calon são as organizações coletivas que compartilham uma ética de valores basilares das relações pessoais/familiares. Essas se formam a partir de várias famílias pequenas (nucleares) que formam duas ou mais famílias grandes (extensas).
  • 3
    Calon é a denominação de um dos povos ciganos que se encontram em território brasileiro. Ao logo do texto o leitor poderá encontrar os temos na língua dos ciganos calons (chibi) como: calon (homem cigano), calin (mulher cigana), juron (homem não cigano), jurin (mulher não cigana), rancho (termo usado para referir-se a casa ou lugar de moradia de famílias ciganas).
  • 4
    A calin remetia ao casamento que iríamos uma semana posterior a este nosso encontro, um matrimônio entre uma calin e um juron, algo que dentre a rede familiar que ela pertence não é aceito muito fácil.
  • 5
    Neste artigo optei por utilizar nomes e sobrenomes fictícios para preservar a identidade das pessoas pesquisadas.
  • 6
    Entre as observações realizadas para o mestrado e doutorado, a pesquisa esteve sendo deslocada em duas redes familiares em regiões distintas na Paraíba. A primeira que me inseri foi na costa norte litorânea da Paraíba, localizado há aproximadamente 80 km de João Pessoa (capital paraibana), e um segundo contexto localizado no sertão paraibano, com uma distância de aproximadamente 430 km de João Pessoa. Trato ambas, respectivamente, como rede familiar calon da Costa e rede familiar calon do Sertão.
  • 7
    O termo menina moça é utilizado na rede familiar calon em questão para definir a pessoa feminina que está em processo de mudança da infância para a adultez.
  • 8
    Município localizado no Rio Grande do Norte, é uma localidade onde circulam famílias da rede familiar calon da Costa.
  • 9
    Para conhecer relato etnográfico sobre casamento através de fugas ler Monteiro (2019)Monteiro, Edilma do Nascimento J. 2019. Tempo, redes e relações: uma etnografia sobre infância e educação entre os calon. Tese em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina..
  • 10
    Na rede familiar calon do Sertão é comum ver o namoro entre os jovens e a continuidade do namoro por um tempo até a chegada do matrimônio. Essa é uma prática também presente em outros contextos familiares ciganos.
  • 11
    Acredita-se que uma mulher que passou por um casamento deva se casar, a prioridade será com um calon, mas no caso de mulheres divorciadas, a permissão para se casar com um não cigano também deriva da ideia que não é bom que a mulher fique sozinha.
  • 12
    Assim como o casamento falado por dona Linda.
  • 13
    Esses conflitos provocam mudanças de território entre as famílias envolvidas nele.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela SK Revisões Acadêmicas e submetidos para validação da autora antes da publicação.

Referências

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  • Monteiro, Edilma do Nascimento J. e Flávia Ferreira Pires. 2020. “Festa como perspectiva” entre os calon em Mamanguape, Paraíba (Brasil): abundância e ostentação nas fronteiras dos ciganos. Civitas – Revista de Ciências Sociais 20 (3): 488-98. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2020.2.31823.
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  • Schneider, David M. 2016. Parentesco americano: uma exposição cultural Petrópolis: Vozes.
  • Tesar, C. Catalina. 2012 “Women married off to chalices: gender, kinship and wealth among Romanian Cortorari gypsies Doutorado em Antropologia, University College London.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2022
  • Aceito
    07 Mar 2023
  • Publicado
    03 Out 2023
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