O CUIDAR DO ADOLESCENTE COM OBESIDADE NA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE: PERSPECTIVAS DE GESTORES E PROFISSIONAIS^*

RESUMO

Objetivo:

Descrever e explorar, sob a perspectiva de gestores e profissionais de saúde, o cuidado ofertado ao adolescente com obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde.

Método:

Estudo de caso, realizado em município do estado do Ceará-Brasil. A coleta de dados ocorreu em 2022, por meio de entrevistas semiestruturadas. Os dados foram examinados através da Análise de conteúdo de Bardin.

Resultados:

O cuidado ao adolescente com obesidade é fragmentado, cada profissional atua conforme decisão própria, pois o município não utiliza protocolos que subsidiem a prática assistencial. Foram elencadas potencialidades para o cuidado, sendo a principal a equipe multiprofissional. Quanto às dificuldades, destacou-se a procura do serviço de saúde pelo adolescente.

Conclusão:

Faz-se necessária uma (re)organização do modelo de atenção ao adolescente com obesidade no município. Além disso, o estudo ressalta a necessidade de maior atenção a obesidade na adolescência e provoca reflexões acerca do cuidado dispensado a este adolescente.

DESCRITORES:
Obesidade; Saúde do Adolescente; Nutrição do Adolescente; Atenção Primária à Saúde; Assistência Integral à Saúde

ABSTRACT

Objective:

Describe and explore, from the perspective of managers and health professionals, the care offered to adolescents with obesity in the context of Primary Health Care.

Method:

A case study conducted in a municipality in the state of Ceará-Brazil. Data collection took place in 2022 through semi-structured interviews. The data were examined using Bardin Content Analysis.

Results:

The care of obese adolescents is fragmented, and each professional acts according to their own decision, as the municipality does not use protocols that subsidize the practice of care. Potentials for care were listed, the main one being the multidisciplinary team. Regarding the difficulties, the adolescent’s demand for health services was highlighted.

Conclusion:

It is necessary to (re) organize the care model for obese adolescents in the municipality. In addition, the study highlights the need for greater attention to adolescent obesity and causes reflections on the care provided to this adolescent.

KEYWORDS:
Obesity; Adolescent Health; Adolescent Nutrition; Primary Health Care; Comprehensive Health Care

RESUMEN

Objetivo:

Describir y explorar, desde la perspectiva de los gestores y profesionales sanitarios, la atención ofrecida a los adolescentes con obesidad en el ámbito de la Atención Primaria de Salud.

Método:

Estudio de caso, realizado en un municipio del estado de Ceará-Brasil. Los datos se recogieron en 2022 mediante entrevistas semiestructuradas. Los datos se analizaron mediante el análisis de contenido de Bardin.

Resultados:

La atención a los adolescentes con obesidad está fragmentada, y cada profesional actúa según su propia decisión, ya que el municipio no utiliza protocolos para subvencionar la práctica asistencial. Se enumeraron las potencialidades asistenciales, siendo la principal el equipo multiprofesional. En cuanto a las dificultades, se destaca la búsqueda del servicio sanitario por parte del adolescente.

Conclusión:

Es necesario (re)organizar el modelo de atención a los adolescentes con obesidad en el municipio. Además, el estudio pone de manifiesto la necesidad de prestar más atención a la obesidad en la adolescencia y suscita reflexiones sobre la atención prestada a este adolescente.

DESCRIPTORES:
Obesidad; Salud del adolescente; Nutrición del adolescente; Atención primaria de salud; Atención integral de salud

HIGHLIGHTS

1. Ausência de diretrizes para organização do cuidado ao adolescente obeso.

2. Prevalecem dificuldades na assistência em saúde perante a obesidade.

3. As potencialidades existentes são relacionadas à equipe multiprofissional.

HIGHLIGHTS

1. Ausência de diretrizes para organização do cuidado ao adolescente obeso.

2. Prevalecem dificuldades na assistência em saúde perante a obesidade.

3. As potencialidades existentes são relacionadas à equipe multiprofissional.

INTRODUÇÃO

A obesidade é um dos mais sérios agravos à saúde e bem-estar da população mundial na atualidade. A doença afeta mais de um bilhão de pessoas no planeta e apresenta tendência de agravamento para os próximos anos, principalmente para indivíduos na faixa etária dos 10 aos 19 anos de idade, fase que compreende a adolescência^1-2.

Estudos internacionais mostram que a prevalência global da obesidade em crianças e adolescentes aumentou em 10 vezes nos últimos anos, superando o quadro de desnutrição³. Em âmbito nacional, cerca de 25% da população jovem está com sobrepeso ou obesidade e, ao observar apenas os indivíduos adolescentes, verifica-se uma prevalência combinada (sobrepeso e obesidade) que varia entre 11,4% e 27,2% para as meninas e de 9,5% a 26,9% para os meninos⁴.

O acometimento de adolescentes pela obesidade traz danos multissistêmicos, que comprometem o crescimento e o desenvolvimento. Crianças e adolescentes com obesidade apresentam risco elevado de desenvolver doenças cardiovasculares, disfunção autonômica, hipertensão arterial, diabetes mellitus e outras doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), que sobrecarregam o Sistema Único de Saúde (SUS) reverberando na economia com gastos aproximados de mais de três bilhões entre hospitalizações, procedimentos ambulatoriais e medicamentos^5-6.

Além das repercussões biológicas, o adolescente com obesidade também está sujeito ao adoecimento psicossocial, o que reflete nas alterações emocionais e ocasiona, por vezes, depressão, ansiedade, estresse, baixa autoestima, isolamento social e percepção negativa da imagem corporal, comprometendo a qualidade de vida desse indivíduo, bem como as relações interpessoais².

Mesmo diante de tantas complicações, a prevenção e o controle da obesidade ainda representam um grande desafio para o SUS. É possível notar que essa enfermidade é comumente negligenciada, principalmente na adolescência, seja pelo (des)conhecimento da família ou do próprio adolescente, pelo pouco preparo dos profissionais de saúde em diagnosticar e intervir precocemente ou pela escassez de políticas públicas que estimulem a promoção à saúde e maior protagonismo desse público^6-7.

Assim, escolas e serviços de saúde, principalmente os que são vinculados à Atenção Primária à Saúde (APS), desempenham papel indispensável no processo de mudança do cenário atual e atualização das práticas de cuidado, pois se constituem como espaços favoráveis para realização de ações de promoção da saúde e prevenção primária do sobrepeso e obesidade. A APS também se sobressai por favorecer o reconhecimento situacional do seu território, o que viabiliza a construção de um planejamento em saúde que considera a avaliação contínua do estado nutricional e o cuidado integral dos adolescentes⁸.

Nesse contexto, os profissionais de saúde e gestores devem reconhecer a obesidade como um problema de saúde pública e buscar engajarem-se na luta contra essa epidemia, visando contê-la por meio de ações preventivas e criando estratégias de conscientização para seu controle combate⁹. Diante desses apontamentos, buscou-se descrever e explorar, sob a perspectiva de gestores e profissionais de saúde, o cuidado ofertado ao adolescente com obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde.

MÉTODO

Estudo qualitativo, do tipo estudo de caso único e integrado, realizado na Atenção Primária à Saúde de um município de médio porte, localizado no estado do Ceará-Brasil. Esse município foi escolhido por apresentar índices de obesidade infantojuvenil superiores às médias nacional e estadual¹⁰, além disso, é polo de referência em saúde para cidades circunvizinhas.

Para selecionar os participantes profissionais, inicialmente, verificaram-se quais eram as escolas do município, localizadas em território urbano, que possuíam vínculo com o Programa Saúde na Escola (PSE), a partir daí as Unidades Básicas de Saúde (UBS) vinculadas a este programa foram selecionadas por conveniência.

Para participar da pesquisa, além de manter vínculo empregatício na UBS selecionada, os profissionais deveriam ter experiência mínima de seis meses no exercício do cargo e não estarem de férias, atestado médico ou licença maternidade/paternidade no período da coleta de dados. Esses últimos critérios de elegibilidade também se aplicaram aos gestores.

Ao final, 39 participantes, distribuídos entre profissionais e gestores de saúde, foram elegíveis para inclusão no estudo. Apenas 22 concordaram em participar, cinco gestores e 17 profissionais de saúde. O Quadro 1 apresenta uma descrição detalhada da amostra do estudo.

Quadro 1
Descrição da amostra do estudo. Natal, RN, Brasil, 2023

Categoria	Esfera de atuação	Cargo	N° de entrevistados
Profissional de saúde	Municipal	Enfermeiro	08
		Médico	07
		Nutricionista	02
Gestor	Municipal	Secretário de Saúde	01
		Coordenador da APS	01
		Coordenador do PSE	01
	Estadual	Coordenador da Área Descentralizada de Saúde (ADS)	01
		Responsável técnico pela Atenção Primária da ADS	01
Total de participantes			22

• Fonte: Os autores (2023).

Para coleta de dados, que ocorreu entre os meses de março e junho de 2022, realizaram-se entrevistas semiestruturadas individuais, audiogravadas, conduzidas por um pesquisador especialista na temática obesidade e agendadas de acordo com a conveniência dos sujeitos e rotina do serviço, que tiveram uma duração média de 15 minutos. Todos os gestores da APS foram entrevistados. Para o encerramento das entrevistas com os profissionais de saúde, considerou-se a saturação teórica dos dados, e essa situação ocorreu na oitava UBS selecionada.

As entrevistas foram transcritas pelo pesquisador, no processador de texto Microsoft Office Word e, em sequência, foram formatadas e inseridas no software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMuTeQ), versão 0.7 alpha 2.

Por meio do referido software foi obtida a análise de similitude (Figura 1), que auxiliou a desvelar as relações entre os elementos do corpus, identificando palavras conectadas e em oposição. Também foi possível verificar a coocorrência das palavras do corpus, expondo os elementos textuais mais evidentes e relevantes¹¹.

Os dados foram examinados à luz da Análise de conteúdo de Bardin. Na fase de pré-análise, procedeu-se à leitura flutuante e organização das entrevistas em forma de corpus textual; em seguida, na etapa de exploração do material, os dados foram processados e os resultados obtidos viabilizaram a formulação de categorias temáticas. Por fim, na etapa de interpretação dos resultados, buscou-se, por meio da técnica de inferência, estabelecer sentido aos dados obtidos, fazendo associações com a literatura pertinente e atualizada¹².

Este estudo foi aprovado sob o parecer n° 5.272.685 emitido pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes, vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

RESULTADOS

Os cinco gestores entrevistados eram predominantemente do sexo feminino (80%), com idade entre 40 e 59 anos (60%), atuantes no cargo há mais de um ano (80%), com graduação na área da saúde (80%). Todos os gestores afirmaram possuir pós-graduação, do tipo lato sensu, porém apenas 40% deles na área de gestão. Entre os 17 profissionais de saúde, prevaleceram as seguintes características: sexo feminino (64,7%), idade entre 30 e 39 anos (52,9%), atuação de um a nove anos no serviço de saúde (58,8%) e pós-graduação lato sensu (82,3%).

Os dados coletados por meio da entrevista passaram pelo processamento do software IRAMuTeQ, o corpus textual constitui-se de 22 textos, fragmentados em 190 segmentos de texto, com aproveitamento de 77,42%. Como resultado do processamento o software gerou a análise de similitude representada pela Figura 1.

Figura 1
Análise de Similitude. Natal, RN, Brasil, 2023

A análise de similitude centralizou-se em torno das palavras-chave “dificuldade”, “adolescente”, “potencialidade” e “nutricionista”, que representaram os principais campos lexicais do corpus. Dessas palavras partem ramificações menos expressivas, ou seja, palavras que apresentam frequências inferiores, mas fundamentais para dar direcionamento ao fato investigado.

Desse modo, ao observar sua estruturação, foi possível estabelecer conexões com os discursos do corpus textual constituído das entrevistas e, assim, definir as categorias temáticas: I. O cuidado ao adolescente com obesidade na Atenção Primária à Saúde e potencialidades para sua consolidação; II. Dificuldades no cuidado à obesidade na adolescência.

Categoria I: O cuidado ao adolescente com obesidade na Atenção Primária à Saúde e potencialidades para sua consolidação

Para esta categoria, a análise de similitude possibilitou identificar as práticas de cuidado mais citadas entre os profissionais e gestores, a saber: realização de anamnese durante a consulta; solicitação de exames e encaminhamento para outros profissionais. Essas práticas são evidenciadas pelas palavras “encaminhar”, “anamnese” e “exame” e ficam mais claras a partir da observação dos discursos dos entrevistados, expostos a seguir:

Durante a consulta é feita uma abordagem integral do paciente, iniciando pela anamnese, depois exame físico e condutas que são importantes a gente dá sequência. (Enfermeiro 6)

Faço a anamnese médica, identifico o grau de obesidade, presença de comorbidades e sintomas psicológicos, como a ansiedade, por exemplo. (Médico 4)

Quando o paciente chega para consulta, inicialmente, é feita avaliação antropométrica: peso, altura, IMC, circunferência da cintura, em seguida é realizada a anamnese alimentar, além disso, também investigo outros hábitos de saúde. (Nutricionista 2)

Com relação às potencialidades para o cuidado, sua vinculação a essa categoria está em consonância com a articulação demonstrada na análise de similitude, validada pelos profissionais que em sua maioria expõem que o trabalho da equipe multiprofissional e a estrutura do serviço são os principais pontos que podem contribuir para fortalecer e facilitar a assistência em saúde ao adolescente com obesidade, enquanto os gestores entendem como potencialidade a articulação entre os setores saúde e educação, o que não deixa de considerar a atuação da equipe. No Quadro 2, estão representadas as potencialidades mencionadas pelos participantes.

Quadro 2
Potencialidades elencadas pelos gestores e profissionais de saúde para o cuidado ao adolescente com obesidade. Natal, RN, Brasil, 2023

Potencialidades	Citado por	Discurso na entrevista
Estrutura do serviço e equipe multiprofissional	Enfermeiros Médicos Nutricionistas	A potencialidade é a disponibilidade de nutricionista, de educador físico, até o pessoal do CAPS, se necessário. (Médico 2) A potencialidade é a equipe multiprofissional [...] eu enquanto médica não resolveria sozinha. (Médica 7) Os profissionais que tem na UBS são uma potencialidade para gente gerar adolescentes mais saudáveis. (Enfermeiro 7)
Parceria entre o setor saúde e educação, mediada pelo PSE	Gestores Municipais Gestores Estaduais Enfermeiros Nutricionista	Essa parceria saúde e educação tem se estreitado nos últimos tempos, então no ambiente escolar é propício para sensibilizações, para trabalhar a questão de educação e promoção da saúde. (Gestor Municipal 2) O PSE, ele é um programa que você trabalha saúde dentro daquela unidade escolar, é muito bom, para envolver, fazer com que os adolescentes participem e entendam a importância de se cuidar. (Gestor Estadual 2) A grande potencialidade é a equipe em rede, a equipe que eu falo saúde e educação juntas. Desde quando foi criado o PSE houve esse forte impacto de levar saúde, principalmente, para a unidade escolar. (Enfermeiro 5)
Conhecimento do adolescente e seu acesso facilitado à informação	Gestor Municipal Médico	[...] Uma das potencialidades é isso, são pessoas esclarecidas, em sua maioria. (Gestor Municipal 1) O acesso à informação que hoje em dia é muito fácil, todo mundo tem acesso à informação na palma da mão, então a própria internet é forma de facilidade. (Médico 3)
Auxílio da família no tratamento do adolescente	Enfermeiros	O que ajuda é a conscientização primeiro dos pais, porque, às vezes, alimentação da criança é de acordo com alimentação familiar. (Enfermeiro 8)

• Fonte: Os autores (2023).

Categoria II: Dificuldades no cuidado à obesidade na adolescência

Nesta categoria, os participantes do estudo apontam mais dificuldades do que potencialidades no cuidado ao adolescente com obesidade, conforme o seguinte discurso do entrevistado: a gente tem mais dificuldades que facilidades nesse âmbito da obesidade (Médico 4).

Destarte, a mesma situação é demonstrada na análise de similitude, em que a palavra “dificuldade” é apresentada em um tamanho superior e, portanto, aparece mais vezes nos discursos dos entrevistados. Dessa forma, elaborou-se o Quadro 3 no qual estão expostas, por ordem relativa à frequência de aparecimento das palavras no corpus textual, as dificuldades apontadas pelos profissionais de saúde e gestores.

Quadro 3
Dificuldades elencadas pelos gestores e profissionais de saúde para o cuidado ao adolescente com obesidade. Natal, RN, Brasil, 2023

Dificuldades	Citado por	Discurso na entrevista
Procura do serviço de saúde e estabelecimento de uma relação/vínculo entre o profissional e o adolescente	Gestores Estaduais Gestores Municipais Enfermeiros Médicos Nutricionista	Eles não sentem nada e eles não procuram a UBS. (Gestor Estadual 2) A dificuldade eu acho que é você estabelecer um vínculo mais estreito entre o profissional, entre o adolescente e a sua UBS. (Gestor Municipal 1) A principal dificuldade é a questão da procura do próprio adolescente. (Enfermeiro 3) As relações são assim, bem precárias [...] eu acho que a dificuldade seria isso mesmo, a perda do contato, do seguimento. (Médico 1) [...] esse público, é um público que tem uma certa dificuldade de vir à UBS [...] é a questão do interesse. (Nutricionista 2)
Adesão ao tratamento	Enfermeiros Médicos	A dificuldade é a falta de compromisso do mesmo, normalmente, eles procuram quando há algum problema, por sofrer bullying, ou a questão da autoestima mesmo, mas eles iniciam e nunca concluem o tratamento. (Enfermeiro 1) Existe a dificuldade de adesão dos pacientes, é mais nesse quesito mesmo, de adesão do tratamento. (Médico 5)
Pandemia da Covid-19	Gestores Estaduais Gestor Municipal Enfermeiros Nutricionistas	Apesar da gente saber que tem muita coisa para se trabalhar com adolescente, nesses dois anos de pandemia que a gente passou, Covid tomou conta de praticamente tudo. (Gestor Estadual 2) Esses dois anos de pandemia a gente tem ficado órfão, da prática de educação e promoção da saúde. (Gestor Municipal 2) Antes da pandemia em si, quando a gente podia ir para escolas, realizar avaliação nutricional na escola, isso facilitava bastante, mas com a pandemia, ficou difícil. (Enfermeiro 2) A questão da pandemia dificultou um pouquinho. (Nutricionista 2)
Insegurança alimentar	Enfermeiros Médicos Nutricionistas	[...] Às vezes o alimento inadequado é muito mais acessível que o próprio alimento adequado (Nutricionista 1) Você tem uma conduta a ser feita, então você oferta o serviço, mas não oferta a condição para a pessoa fazer o correto, principalmente com a alimentação [...] O paciente pergunta: como é que eu vou seguir essa alimentação se eu não tenho condição, se eu só tenho básico e o básico, envolve o arroz, feijão e o sal. (Enfermeiro 6) Como dificuldade imagino que a questão econômica. (Médico 7)
Falta de profissionais no Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF)	Gestor Municipal Enfermeiros Médicos Nutricionista	Com o desfinanciamento do NASF a maioria das equipes foram desarticuladas, então, hoje só temos o NASF residente e mais um NASF e mesmo assim os profissionais eles estão em uma quantidade muito menor. (Gestor Municipal 1) Eu trabalhava no NASF, que era uma equipe composta por nutricionista, educador físico, psicólogo e fisioterapeuta, mas vem acontecendo o desmonte do SUS e esses profissionais sofreram mudanças de setor e alguns foram até desligados do município, antes disso, tínhamos grupos de educação em saúde nas escolas e era a forma mais prática da gente trabalhar com esse público. (Nutricionista 2) Do NASF nós só temos a nutricionista, mas anteriormente tínhamos a psicóloga, educador físico que ajudava muito, agora no momento só tenho um nutricionista que é o nosso NASF. (Enfermeiro 7)
Falha no processo de contrarreferência	Enfermeiros Médicos	Não há contrarreferência como deveria ser, não vem, não existe, mas como estamos vinculados a pessoa e ela está de vez enquanto aqui na UBS a gente sempre procura saber. (Enfermeiro 8) A contrarreferência do especialista para UBS é um pouco precarizada, quando o paciente chega é que nós perguntamos o que foi que dito pelo especialista, o que foi prescrito, essa é uma grande dificuldade. (Médico 7)
Influência negativa do ambiente familiar	Gestor Municipal Enfermeiros Nutricionista	A maior dificuldade é o ambiente obesogênico, o ambiente familiar, o adolescente não está isoladamente nessa situação, a família influencia. (Gestor Municipal 3) Os familiares não ajudam, muitas vezes gostam de ver o adolescente gordinho. (Enfermeiro 7) A dificuldade é que a obesidade em si, ela é multifatorial, consequentemente precisa de muita coisa, para além dos próprios profissionais de saúde, como o apoio da família [...] (Nutricionista 1)

• Fonte: Os autores (2023).

DISCUSSÃO

Diante dos discursos dos participantes, destaca-se que não há diretrizes para organização do cuidado implementadas na prática dos profissionais de saúde do município investigado. Desse modo, cada profissional age de acordo com o seu conhecimento e realiza o que considera necessário no atendimento ao adolescente com obesidade.

No caso de crianças e adolescentes com obesidade atendidos na APS, é fundamental que desde as primeiras consultas, independentemente do profissional que preste atendimento, sejam investigados parâmetros biológicos como a maturação sexual e aspectos psicossociais, como a relação entre pares nos ambientes escolar e familiar⁸. A coleta dessas informações deve ser feita por meio da anamnese que é uma conduta mencionada pelos participantes do estudo, contudo nenhum deles demonstrou realizá-la conforme recomenda o Ministério da Saúde.

Diante disso, estudos apontam que, apesar de os profissionais de saúde não nutricionistas compreenderem a obesidade como doença, grande parte deles julga não possuir habilidades suficientes para prestar assistência efetiva. Isso porque apresentam deficit em seu processo formativo, além de atuar sob um modelo de fragmentação do cuidado cuja pessoa doente deve ser encaminhada para um profissional especializado^13-14.

Assim, o encaminhamento, ainda que considerado uma prática adequada quando se trata da obesidade, dado que reforça o caráter de assistência multiprofissional¹⁵, muitas vezes é tido como um “repasse” do indivíduo para um especialista e sem grande preocupação da continuidade do cuidado pelo profissional que o encaminhou, como mencionado pelos participantes.

Nessa perspectiva, observa-se que o modelo assistencial vigente para tratar da obesidade é demarcado por práticas biomédicas que possuem baixa capacidade de resolução das demandas reais do sujeito¹⁶. Nesse contexto, salienta-se a importância da construção do Projeto Terapêutico Singular (PTS) para os indivíduos com obesidade. O PTS funciona como uma ferramenta que auxilia na construção do cuidado integral sob a ótica interprofissional, traçando as melhores possibilidades terapêuticas para o paciente, considerando seu contexto de vida e saúde, contribuindo, assim, para melhorar o processo de cuidado e promover confiança e autonomia ao paciente¹⁷.

Diante dos resultados expostos, fica evidente que as potencialidades relacionadas ao indivíduo foram pouco mencionadas e quando aparecem são referidas em um número de vezes, consideravelmente, inferior. Essa situação configura-se como um fator complicador perante o cuidado em saúde dispensado à pessoa com obesidade, haja vista que os profissionais devem direcionar o cuidado de forma que o próprio usuário seja protagonista nesse processo, ao passo que tenha sua família engajada¹⁸.

Dentre as dificuldades, aquela que mais aparece no discurso dos entrevistados, quer seja gestor ou profissional, foi a baixa procura do adolescente pelo serviço de saúde, no caso, a UBS, o que, consequentemente, leva a um processo de afastamento entre profissional e usuário, reconhecido pelos próprios participantes do estudo, que referem a dificuldade do vínculo atrelada à baixa frequência do adolescente no serviço e demonstram que o adolescente não é um público prioritário.

Esses achados pactuam com os resultados encontrados por estudo¹⁹ sobre o cuidado integral ao adolescente na APS cujo o resultado mostrou que os profissionais de saúde revestem-se de certos preconceitos ao lidar com a saúde do adolescente, não se atentando para a singularidade dessa fase, mas em definir adolescentes como difíceis de lidar e autonegligentes, tornando-se, assim, um empecilho na consolidação da assistência em saúde, pautada na integralidade.

O discurso dos profissionais médicos e enfermeiros entrevistados segue voltado para culpabilização do indivíduo, quando expressam que o adolescente não se compromete com seu tratamento e a busca é apenas com finalidade estética, e não de saúde. Atribuir culpa à pessoa com obesidade pelo seu peso é uma das situações mais recorrentes no cuidado a esse público e desestimula o usuário a dar continuidade à busca pela assistência em saúde²⁰.

Quando isso acontece, significa que o profissional tem uma percepção unidirecional, em que a perda de peso só ocorre unicamente pelo comprometimento do indivíduo com o tratamento, quando, na verdade, a obesidade é uma doença complexa e multicausal, determinada não apenas pela adesão do usuário ao tratamento proposto, mas também por fatores biológicos, ambientais e psicológicos. Por isso, é importante estabelecer um processo de corresponsabilização entre profissional e paciente²¹.

Outra grande dificuldade no cenário de cuidado a obesidade foi a crise sanitária causada pela Covid-19. Esta situação de pandemia comprometeu o cuidado em outras situações e quadros de adoecimento que eram tratados na APS, como é o caso da obesidade²². Para o adolescente, esse período também teve impactos negativos, pois, apesar de não ser assídua no serviço, a equipe da ESF, por meio do PSE, realizava ações voltadas à prevenção e controle da obesidade nas escolas, que também estavam fechadas em decorrência do período pandêmico, o que pode ter contribuído para que o quadro de obesidade se agravasse em decorrência da inércia dessas ações no município investigado.

Cabe ressaltar que, para implementação das ações apontadas, tem-se a necessidade de uma equipe multiprofissional, a qual os documentos oficiais produzidos pelo Ministério da Saúde reforçam como essencial na assistência à saúde da pessoa com obesidade. Contudo, o cenário preconizado tende a não se concretizar, especialmente porque políticas públicas, como o NASF, que ampliavam o número de trabalhadores do contexto da APS e desafogavam o número excessivo de atendimentos para equipe básica, foram extintas²³.

Reforça-se, ainda, a imprescindibilidade de fortalecer o sistema de referência e contrarreferência dentro da APS e nos demais pontos da Rede de Atenção à Saúde (RAS), pois este, segundo os médicos e enfermeiros participantes deste estudo, tem sido um grande problema para dar seguimento ao processo de cuidado do paciente com obesidade.

Por fim, dentre as dificuldades referidas por profissionais e gestores, a influência negativa da família aparece com menor frequência, mas representa um campo muito delicado, que necessita de atenção redobrada, pois conforme Patel²⁴ a obesidade nos pais se reflete nos filhos. Assim, o comportamento alimentar dos adolescentes está inserido em uma interação complexa com seu meio cultural, e os hábitos alimentares constituem uma rotina de longa duração.

Os autores compreendem que o estudo apresentou algumas limitações, como a pesquisa em apenas um nível de atenção à saúde e em um único município. Nesse sentido, sugere-se o desenvolvimento de outros estudos que analisem a visão dos gestores em diversos níveis de atenção e em diferentes locais do país, pois atualmente a pesquisa sobre obesidade tem grande foco em intervenções e tratamentos, com pouca abordagem do processo de trabalho de gestores e profissionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É consenso internacional que a APS deve ser a “porta de entrada”, a ordenadora da RAS, além de desenvolver ações, em nível individual e coletivo, que sejam resolutivas. No entanto, quando se coloca em pauta a saúde do adolescente com obesidade, perduram lacunas assistenciais que geram um cuidado deficitário.

Neste estudo, observou-se que as práticas de cuidado ao adolescente com obesidade estão atreladas a ideias e sensos fragmentadores e estigmatizantes que colocam esse sujeito como principal culpado pelo seu adoecimento. Embora alguns profissionais tenham referido a necessidade de um atendimento holístico, preocupando-se, também, com a saúde mental do adolescente, muitas vezes isso tem ficado apenas no discurso.

Assim, é urgente repensar o modelo de cuidado ao adolescente com obesidade e as atitudes dos profissionais de saúde, porém não se pode atribuir, exclusivamente, a esses atores a responsabilidade pela assistência. Cabe aos gestores coordenar a equipe e fornecer os subsídios para sua atuação, por exemplo, a implementação da Linha de Cuidado do Sobrepeso e Obesidade, o que viabilizaria o trabalho melhor articulado.

Por fim, este estudo ressalta a necessidade de maior atenção ao problema da obesidade na adolescência e provoca reflexões acerca do cuidado dispensado a este público na APS. Neste campo, todos os profissionais são igualmente importantes, contudo, é possível destacar a atuação do enfermeiro, uma vez que, está na linha de frente quando se trata da realização de ações do PSE, consultas com acolhimento e escuta ativa, dentre outras possibilidades que se manifestam no seu cotidiano, e embora ainda pouco exploradas no campo da obesidade, possibilitam a prevenção e o controle desta enfermidade.

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela conceção de bolsa de estudos cod.001, ao autor principal deste manuscrito.

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  Artigo extraído da dissertação do mestrado: “Práticas do cuidado ao adolescente com obesidade na Atenção Primária à Saúde”, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil, 2022.

Editado por

Editora associada:

Dra. Luciana Kalinke

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  19 Fev 2024
• Data do Fascículo
  2024

Histórico

• Recebido
  07 Ago 2023
• Aceito
  08 Out 2023