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O jogo social e a produção de acontecimentos no território: o caso da Rede Arrozeiras do Sul

The social game and the production of events in the territory: the case of The Arrozeiras do Sul Network

Resumos

Neste artigo, identificamos e analisamos as características das relações entre atores sociais e governamentais na produção de acontecimentos visando ao desenvolvimento local. É fruto de um estudo de caso qualitativo sobre a Rede Arrozeiras do Sul, formada a partir do Programa Redes de Cooperação. Para mapeamento e compreensão das relações entre os atores sociais, utilizamos a teoria da produção social de Carlos Matus. As categorias analíticas buscadas em Milton Santos orientaram a compreensão das relações entre os atores e o lugar. Pudemos observar nas relações entre os atores sociais, a produção de fenoestruturação social, ou seja, mesmo que a rede tenha sido criada segundo regras determinadas - as genoestruturas ", os atores que a formam produzem novos fluxos e acumulações, capazes de gerar mudanças nas regras iniciais e, consequentemente, no e para o lugar. Os acontecimentos produzidos e analisados permitiram inferir que as relações entre os atores sociais, em articulação com o território, produzindo e sendo produzidas pelas territorialidades, geram acontecimentos nos lugares e, a depender da direção dos recortes e das forças, indicam as possibilidades de desenvolvimento.

Redes organizacionais; Jogo social; Produção de acontecimentos; Território


In this article we identify and analyze the characteristics of the relations between social and governmental actors in the production of events aiming the local development. It is the result of a qualitative case study on 'Arrozeiras do Sul Network', formed from the Program of Cooperation Networks. For mapping and understanding of the relationship between social actors we used the Theory of Social Production of Carlos Matus. The analytical categories sought in Milton Santos guided the understanding of the relationships between the actors and the place. We observed in the relations between social actors the production of social feno-structuring , i.e., even if the network has been created within certain rules - the geno-structures - the actors who form it produce new flows and accumulations which are able to generate changes in original rules and therefore in and for the place. The events produced and analyzed allowed to infer that the relations between social actors, in conjunction with the territory, producing and being produced by territorialities generate events in places and, depending on the direction of the slots and forces, indicate the possibilities of development.

Organizational networks; Social game; Production of events; Territory


Camila Furlan da CostaI; Sueli GoulartII

IMestre em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Professora Assistente da Universidade Federal do Pampa / UNIPAMPA. Endereço: UNIPAMPA/Campus Santana do Livramento, Rua Barão do Triunfo, 1048, CEP 97573-590, Santana do Livramento - RS, Brasil. Email: camilacosta@unipampa.edu.br

IIDoutora em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco; Professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS; Endereço: Escola de Administração / UFRGS, Rua Washington Luis, 855, CEP 90010-460, Centro, Porto Alegre - RS, Brasil. Email: sueligoulart@ea.ufrgs.br

RESUMO

Neste artigo, identificamos e analisamos as características das relações entre atores sociais e governamentais na produção de acontecimentos visando ao desenvolvimento local. É fruto de um estudo de caso qualitativo sobre a Rede Arrozeiras do Sul, formada a partir do Programa Redes de Cooperação. Para mapeamento e compreensão das relações entre os atores sociais, utilizamos a teoria da produção social de Carlos Matus. As categorias analíticas buscadas em Milton Santos orientaram a compreensão das relações entre os atores e o lugar. Pudemos observar nas relações entre os atores sociais, a produção de fenoestruturação social, ou seja, mesmo que a rede tenha sido criada segundo regras determinadas - as genoestruturas ", os atores que a formam produzem novos fluxos e acumulações, capazes de gerar mudanças nas regras iniciais e, consequentemente, no e para o lugar. Os acontecimentos produzidos e analisados permitiram inferir que as relações entre os atores sociais, em articulação com o território, produzindo e sendo produzidas pelas territorialidades, geram acontecimentos nos lugares e, a depender da direção dos recortes e das forças, indicam as possibilidades de desenvolvimento.

Palavras-chave: Redes organizacionais. Jogo social. Produção de acontecimentos. Território.

ABSTRACT

In this article we identify and analyze the characteristics of the relations between social and governmental actors in the production of events aiming the local development. It is the result of a qualitative case study on 'Arrozeiras do Sul Network', formed from the Program of Cooperation Networks. For mapping and understanding of the relationship between social actors we used the Theory of Social Production of Carlos Matus. The analytical categories sought in Milton Santos guided the understanding of the relationships between the actors and the place. We observed in the relations between social actors the production of social feno-structuring , i.e., even if the network has been created within certain rules - the geno-structures - the actors who form it produce new flows and accumulations which are able to generate changes in original rules and therefore in and for the place. The events produced and analyzed allowed to infer that the relations between social actors, in conjunction with the territory, producing and being produced by territorialities generate events in places and, depending on the direction of the slots and forces, indicate the possibilities of development.

Keywords: Organizational networks. Social game. Production of events. Territory.

Introdução

O estudo que deu origem a este artigo foi movido pelo interesse em contribuir para ampliar o entendimento acerca do modo pelo qual as políticas públicas de incentivo à formação de redes interorganizacionais induzem mudanças em um lugar. Esse interesse surgiu da aproximação com o Programa Redes de Cooperação, política pública do governo do estado do Rio Grande do Sul, que incentiva a formação de redes de cooperação entre pequenas e médias empresas com vistas ao desenvolvimento socioeconômico do estado.

Numa primeira aproximação ao tema, observamos que, nos estudos que abordam formas interorganizacionais, relacionando-as com o desenvolvimento local, predomina o foco nas estruturas e, consequentemente, uma vinculação direta entre a estruturação e os resultados desejados, tomando-os como ações para desenvolver o lugar. Em outras palavras, grande parte dos trabalhos que aproximam esses temas negligenciam as particularidades dos lugares e das relações, enfatizando formas organizacionais referentes a modelos de desenvolvimento amorfos, que dispensam a contextualização sociocultural.

Assim, neste artigo, objetivamos identificar e analisar as características das relações entre atores sociais e governamentais na produção de acontecimentos no território. Tomamos como base o caso da Rede Arrozeiras do Sul, proposta pelo Programa Redes de Cooperação, braço das políticas públicas voltadas para o desenvolvimento promovidas pelo governo do estado do Rio Grande do Sul.

Ao buscar elementos teóricos para compreender essa política e, particularmente, a produção de acontecimentos no lugar, sentimos necessidade de ampliar a análise além das estruturas, considerando efetivamente as relações que, incentivadas pelo programa, extrapolam os limites organizacionais previstos. Julgamos também necessário explorar os acontecimentos produzidos pelas relações incentivadas pelo programa, uma vez que este se propõe a desenvolver o local.

O entendimento dos acontecimentos foi delineado a partir das relações entre os atores sociais e governamentais, utilizando como base a teoria da produção social de Carlos Matus, de modo a compreendê-las no contexto de um jogo, cujos participantes interagem e produzem resultados além ou aquém do inicialmente proposto.

Levando em conta que, como uma política pública voltada para o desenvolvimento local, a formação de uma rede não se justifica apenas pelas implicações para aqueles que dela participam, consideramos necessário investigar as prováveis implicações para o espaço socioterritorial, foco das ações geradas a partir da formação da Rede Arrozeiras do Sul. Nesse sentido, recorremos à noção de território articulada por Saquet (2007) e, também, a categorias analíticas dos estudos de Milton Santos que possibilitaram considerar as das relações entre os atores para o lugar, ou seja, os acontecimentos produzidos no território a partir dessas relações.

O jogo social na produção de acontecimentos socioterritoriais

Ao verificar a literatura referente ao tema, em busca de aporte teórico que permitisse a compreensão das relações entre os atores sociais e governamentais na produção de acontecimentos no território, percebemos que existem poucos trabalhos nos estudos organizacionais brasileiros que tratam as redes através de uma abordagem processual. Em geral, os estudos privilegiam a forma estrutural como foco de análise. Desse modo, foi imprescindível, recorrer a outras áreas do conhecimento para buscar entender as relações produzidas no âmbito do Programa Redes de Cooperação. Essa busca teve o propósito de apropriar construtos de outras áreas aos estudos organizacionais, de modo a ampliar o entendimento das relações entre as organizações em rede e o desenvolvimento local.

Para Fischer (2002), o governo local, as empresas e as organizações sociais articulam-se dentro de uma trama particular de interesses que criam modelos de ações coletivas, representadas por modelos organizativos complexos onde o poder flui, não apenas conforme a verticalização e a horizontalização das relações, mas, também, de acordo com a orientação mais competitiva ou colaborativa. Assim, entendemos que as relações entre os atores, em cooperação ou conflito, são fundamentais na produção de acontecimentos com vistas ao desenvolvimento local.

Propomo-nos, então, a trabalhar com as relações como categoria fundamental do jogo social que se estabelece na formação e implementação de uma política pública de desenvolvimento que almeja transformações nos lugares. Pressupomos que são as relações dos atores e destes com a natureza, mediadas por dimensões políticas, culturais e econômicas, que produzem acontecimentos capazes de construir, continuamente, a realidade social.

Segundo Matus (1996b), o processo de produção social gerado pelas relações entre os atores sociais pode ser entendido como um jogo social, no qual os atores utilizam suas estratégias para vencer resistências ou para obter a colaboração do outro. O autor utiliza a analogia do jogo social, em vez de sistema, porque o jogo é criativo e conflitante, tem regras e, embora certas jogadas tenham consequências previsíveis, é muito difícil para o jogador predizer as próprias jogadas. Para Matus (1996b, p.109):

A produção social pode ser vista como um circuito em que toda a produção realizada por um ator social supõe, inevitavelmente e entre outros vários, o uso de recursos econômicos e de poder, a aplicação de valores e de conhecimentos. Por sua vez, toda a produção social reverte ao ator-produtor como acumulação social (ou desacumulação) de novos recursos econômicos, de poder, de reafirmação, questionamento ou surgimento de novos valores e acumulação de novos conhecimentos.

Os movimentos ou jogadas são os meios utilizados pelos jogadores para alterar suas acumulações, da mesma maneira que os atores sociais alteram a situação através da ação humana. Os jogadores são motivados por valores de acumulação, lucro, privilégio etc., conflitantes, sem os quais o jogo não teria dinâmica interativa. O mesmo ocorre no sistema social com as ideologias e valores dos atores sociais (MATUS, 1996b).

Para Matus (1996b), o jogo social tem regras fundamentais prévias à sua prática que constituem as genoestruturas. Essas regras básicas (genoestruturas) definem um espaço de variedade do possível, um espaço de potencialidades para ação e seus resultados socialmente acumuláveis. A realidade em uma dada situação está sempre dentro desse espaço. Essa determinação genoestrutural determina as acumulações e fluxos de produção possíveis. "São essas genoestruturas que dão ao jogo uma identidade, a qual o faz diferenciável de qualquer outro jogo" (MATUS, 1996b, p. 113). Nas genoestruturas, definem-se os jogadores, seu número e suas capacidades de produção, isto é, os movimentos ou jogadas possíveis.

Entretanto, o autor também afirma que os jogadores em parte são e em parte têm capacidades acumuladas de direção e de produção. Os atores (jogadores) constituem capacidade de produção de fatos políticos, econômicos, organizativos, cognitivos, comunicacionais etc., de bens e serviços econômicos e de valores. Em resumo, são capazes de gerar fluxos de produção.

Durante o jogo social, a situação do jogo não somente se altera após cada jogada, como também tal alteração é distinta para cada jogador, pois alguns perdem e outros ganham. Numa situação inicial, todos têm a mesma condição; entretanto, nem todos têm as mesmas habilidades para jogar. Essas habilidades são adquiridas na prática do próprio jogo social, num processo que Matus (1996b) denominou de fenoestruturação.

Para Matus (1996b, p.118) "as fenoestruturas (acumulações) e a produção (fluxos) existem ou se produzem constantemente dentro do espaço de produção do jogo social, enquanto as genoestruturas são as regras que determinam esse espaço". Alterações nessas genoestruturas marcam as grandes mudanças da história, já que elas são muito estáveis. Para o autor, a estabilidade dessas estruturas é explicada pelo fato destas serem sustentadas por atores sociais mais fortes, que não apenas as sustentam, mas também as defendem. Matus (1996b) afirma existirem dois tipos de conflitos: aqueles verificados entre os jogadores (dentro dessas genoestruturas), visando a objetivos excludentes, e os que visam mudar as regras do jogo (ou mudar o próprio jogo).

Com base nesse entendimento do jogo social, Matus (1996b, p.119) enfatiza a complexidade existente na realidade em que vivemos, pois todos os fluxos de produção provêm das capacidades acumuladas no sistema. Essas capacidades são as fenoestruturas, acumulações sociais que geram ou condicionam os fluxos de produção social, distintas de meros fatos, eventos e ações. Matus (2005) afirma que tudo que existe na realidade social é fruto de um processo de fenoestruturação social, através do qual a produção transforma-se no capital que a produz.

A análise da realidade social, através do processo de produção social, mostra como indivíduos e organizações lutam para abrir o próprio caminho, perseguindo objetivos que, às vezes, são complementares e, às vezes, são conflitantes (MATUS, 1996b). Assim, os atores são parte de uma realidade. São eles os motores da mudança, por meio da declaração de insatisfações, dado que processam e ignoram teorias para entender a realidade em que vivem.

Matus (1996a) caracteriza atores sociais como forças sociais e personalidades que controlam centros de poder. A distinção entre forças sociais e centros de poder é ambígua. As primeiras são entendidas como as que organizam e representam uma parte da população, em termos de objetivos comuns, como a Igreja, as Forças Armadas, os partidos políticos, as instituições sociais e as organizações profissionais. Já os centros de poder, muitas vezes, podem ser confundidos com atores. Por exemplo, um partido político pode ser um ator social, ao mesmo tempo em que é um centro de poder (MATUS, 1996a). O ator deve preencher alguns requisitos:

a) sua ação é criativa. Não segue leis. É singular e único como ente com sentidos de cognição, memória, motivações e força. É produtor e produto do sistema social;

b) tem um projeto que orienta sua ação, mesmo que seja inconsciente, errático ou parcial;

c) controla uma parte relevante do vetor de recursos críticos do jogo. Tem força e capacidade para acumular ou desacumular forças e, portanto, tem capacidade para produzir fatos no jogo social;

d) participa de um jogo parcial ou do grande jogo social. Não é um analista ou um simples observador;

e) tem organização estável, que lhe permite atuar com o peso de um coletivo razoavelmente coerente (ou, tratando-se da exceção aplicável a uma personalidade, tem presença forte e estável, o que lhe permite atrair, com suas idéias, uma coletividade social);

f) pode ser uma ator-pessoa ou um ator-grupo, no caso de se tratar de um líder ou da direção de uma organização. É um jogador real que acumula perícia e emite julgamentos, não uma ficção analítica. É um produtor de atos de fala e de jogadas (MATUS, 1996a, p.204).

Com base nesses requisitos, Matus (1996a) afirma que o ator é o participante de um jogo, que ele produz a realidade e é produto dela. Toda a produção social é fruto das relações entre os atores, assim como o ator é fruto dessas relações, pois ele acumula recursos a cada interação. Outra questão importante é que os atores são apenas intermediários, pontos de referência; o processo está na transferência de sua força para o objeto. O processo acontece num contínuo de relações, com suas conexões e desconexões.

Aqui, podemos situar as redes como o tal objeto, construído por processos relacionais contínuos e descontínuos e, assim, constituídas e constitutivas de relações, produções e acontecimentos. Por isso mesmo, as redes, particularmente aquelas estudadas no âmbito de uma política pública para o desenvolvimento local, não existem dissociadas do seu contexto, do lugar onde elas se efetivam. Por isso, o recurso à noção de território nos parece imprescindível para compreender tanto as relações quanto os acontecimentos que produzem.

Saquet (2007) afirma ser o território condição de processos de desenvolvimento, reforçando a necessidade de se buscar compreender as relações entre os atores e destes com o lugar. Referimo-nos a lugar não apenas como área geográfica, mas como um contexto representado pelo território e pelas territorialidades (SAQUET, 2007).

O território é formado por relações que englobam a natureza, a economia, a cultura, a política e a história do lugar. A territorialidade é um fenômeno social, a envolver indivíduos que fazem parte de grupos interagindo entre si, mediados pelo território. Tais mediações mudam no tempo e no espaço, dependem da existência de relações intersubjetivas, isto é, da existência de redes de relações que ligam o local a outros mundos e que interagem com a natureza. A noção de rede, aqui, como se vê, extrapola os limites estruturais de formas organizacionais.

Seguindo essa lógica, entendemos que as relações e os processos se efetivam no lugar, através de acontecimentos solidários (SANTOS, 1998; SAQUET, 2007). O acontecer solidário no território engloba todos os tipos de diferenças entre pessoas e lugares, apresentando-se de três formas: um acontecer homólogo, um acontecer complementar e um acontecer hierárquico (SANTOS, 1998). O primeiro é caracterizado como aquele das áreas de produção agrícola ou urbana, que através da informação especializada se moderniza " possuindo uma racionalidade dirigida por essa mesma informação que gera contiguidades funcionais - e estabelece os contornos da área assim definidos. O acontecer complementar é caracterizado como aquele gerado tanto pela relação entre campo e cidade, quanto pela relação entre cidades, resultado das necessidades modernas de produção e das trocas entre locais geograficamente próximos. Por fim, o acontecer hierárquico é aquele resultante da racionalização das atividades, dirigido por uma organização, um comando que tende à concentração. Ele obriga a pensar a produção dessa forma, em virtude desse comando, produzindo um sentido particular, tanto na vida das pessoas como na vida dos espaços (SANTOS, 1998).

Além dos acontecimentos solidários, o território e as territorialidades são perpassados por recortes que Santos (2002) chamou de verticalidades e horizontalidades. As verticalidades são um conjunto de pontos formados em um espaço de fluxos. O autor afirma que esse conjunto de pontos é considerado a partir da utilidade produtiva, servindo à lógica hegemônica, e que o modelo hegemônico sempre parte de uma ação individual, a qual é indiferente ao seu entorno. As verticalidades criam interdependência, sendo esta proporcional à necessidade de cooperação entre os lugares. A interdependência tende a ser hierárquica, ou seja, é realizada por ordens técnicas, financeiras ou políticas. A hierarquia é uma condição fundamental do funcionamento do sistema, levando ao crescente processo de homogeneização dos lugares. A homogeneização é entendida em relação à lógica externa, ou seja, os locais passam a adaptar seus comportamentos com base nos interesses globais, que mudam constantemente, gerando descontinuidades. Em contrapartida a essa homogeneização, há o processo de desintegração das solidariedades locais, gerando perda na capacidade de gestão da vida local (SANTOS, 1996).

A tendência é que os interesses corporativos se sobreponham ao interesse público, no âmbito territorial, no da economia e no das sociedades locais (SANTOS, 2002). Nessas condições, há a atuação de forças centrífugas, definidas como aquelas desagregadoras, principalmente, pelo fato de retirarem da própria região sua autonomia, seu comando. Na lógica das verticalidades, o lugar é um recurso, visto que é usado a partir de uma escolha pragmática.

As horizontalidades são zonas contíguas que formam extensões contínuas. Essas zonas contíguas se opõem ao espaço econômico, são um espaço de todos: empresas, instituições, pessoas, o espaço das vivências. Nesses espaços territoriais pode se formar uma solidariedade orgânica, composta por um conjunto de agentes que ali atuam. Eventualmente, o conjunto muda, evolui, embora essa mudança seja marcada pela continuidade.

Nessa situação, mesmo existindo organizações com recursos diferentes, tais como capital, técnica ou organização, o princípio que permite a sobrevivência de cada uma é a busca de uma relativa integração no processo de ação. Há produção local de uma integração solidária, de natureza tanto econômica, social, cultural, como propriamente geográfica (SANTOS, 2002). As forças que agem sobre esse espaço são as centrípetas, definidas como aquelas que conduzem ao processo de horizontalização (SANTOS, 1996). Mesmo não sendo as únicas, elas se tornam dominantes. Essas forças predominam, pelo fato da ação dos atores ser limitada a um espaço geográfico restrito, confundindo-se com sua base de atuação.

Com essas dimensões conceituais de Milton Santos, entendidas como recortes territoriais (horizontalidades-verticalidades), direção dos movimentos de força (centrípeta-centrífuga) e formas de articulação (homologia, complementaridade e hierarquia), articulamos a produção social dos atores/jogadores, com o propósito de analisar os nexos entre redes e desenvolvimento local. Articulado aos procedimentos metodológicos apresentados a seguir, esse aporte orientou nossa tentativa de compreensão das relações estabelecidas a partir da formação da Rede Arrozeiras do Sul no espaço socioterritorial onde está inserida.

Procedimentos metodológicos

Realizamos um estudo de caso qualitativo, concentrado no conhecimento experimental do objeto e focado em sua influência nos contextos social e político, entre outros (STAKE, 2005). Estudos de caso qualitativos examinam a complexidade do objeto formado pelos diversos contextos nos quais o caso está inserido (STAKE, 2005; YIN, 2002).

Delimitamos o caso em uma das redes de empresas, dentre as cerca de 200 criadas no Rio Grande do Sul, desde o surgimento do Programa Redes de Cooperação até dezembro de 2007. Dentre as redes criadas na região central do estado, escolhemos a Rede Arrozeiras do Sul, de indústrias de beneficiamento de arroz, fundada em dezembro de 2005 e lançada em janeiro de 2006. Uma das razões para essa escolha foi o fato da rede ser formada por agroindústrias, principal tipo de indústria da região. Isto é, não se trata de um agregado qualquer de organizações, mas sim de uma rede formada a partir das características históricas, econômicas, sociais, políticas e geográficas do lugar, como se verá na sequência. Além disso, na ocasião da pesquisa, a rede já possuía todas as características estabelecidas pela metodologia desenvolvida pelos técnicos da Secretaria de Desenvolvimento e Assuntos Internacionais (SEDAI), apesar de ser uma rede com menos de quatro anos de funcionamento, o que significa ter superado as três etapas sugeridas pelo programa: o processo de formação, a consolidação e a expansão.

Na coleta de dados, foram utilizadas fontes variadas, primárias e secundárias, para entender o caso de forma mais completa. Foram examinados documentos oficiais, livros, teses e dissertações acerca do programa e realizadas 17 entrevistas semiestruturadas,1 1 Os entrevistados: 12 empresários fundadores da Rede que permaneceram cooperando; uma empresária fundadora que, por motivos familiares, já não permanece cooperando, mas cuja atuação foi fundamental no processo de formação da Rede; o empresário de uma organização localizada em outra região do estado, que aderiu à rede após a fundação; o consultor do Programa Redes de Cooperação, que atuou na formação da rede em estudo; o último coordenador do programa na Universidade Federal de Santa Maria e o atual coordenador estadual do programa. Essas entrevistas contribuíram para a caracterização dos atores sociais e governamentais2 2 Buarque (1999), com base nas formulações de Carlos Matus, propõe uma distinção analítica entre atores sociais e atores governamentais. Para ele, atores sociais são os grupos e segmentos sociais diferenciados na sociedade que estabelecem conjuntos relativamente homogêneos. Podem organizar-se através de entidades, organizações, associações, lobbies e grupos de pressão política, representando interesses e visões de mundo. Atores governamentais são os representantes do Estado, pois este não é um ator como o ator social, mas sim uma expressão dos interesses dos atores, dos seus interesses diferenciais e de suas relações de poder. que interagem no processo de produção social, ocasionando acontecimentos incentivados pelo programa.

Os dados obtidos foram examinados mediante análise interpretativa. Para Gil (1994, p.65), "a adoção de procedimentos interpretativos parte do pressuposto de que a realidade social é subjetiva, mutável, sendo resultado de uma construção dos sujeitos participantes, mediante a interação com outros membros da sociedade".

Assim, visando caracterizar as relações surgidas com a política pública de desenvolvimento, Programa Redes de Cooperação, estabelecemos objetivos específicos que nortearam a definição das categorias analíticas utilizadas na interpretação dos dados empíricos coletados.

O primeiro objetivo foi identificar os atores sociais e governamentais que participam das relações desencadeadas pelo programa. Portanto, atores sociais e governamentais são duas categorias analíticas deste estudo. Foram considerados atores sociais aqueles que detinham no jogo social criado os seguintes requisitos:

• ação criativa, pois são produtores e produto do sistema social, além de apresentarem um projeto orientador da sua ação;

• controlam parte relevante do vetor de recursos críticos do jogo;

• participam de um jogo parcial ou do grande jogo social;

• têm organização estável;

• podem ser uma ator-pessoa ou um ator-grupo, uma vez que produzem atos de fala e de jogadas (MATUS, 1996a).

Consideramos atores governamentais aqueles que, vinculados ao Estado em diferentes áreas de intervenção (e em diferentes instâncias), atuam com a racionalidade técnica, incorporando a visão de governo, nos segmentos específicos de atuação, e a visão política dominante, em cada momento (BUARQUE, 1999).

A identificação dos atores sociais e governamentais foi uma etapa importante no entendimento das relações entre eles, pois cada ator decodifica a realidade com base no papel particular que desempenha no jogo político, econômico e social, bem como na leitura que faz da informação oferecida pela realidade. Portanto, cada ator decodifica a realidade baseado numa lente particular, carregada de interesses, valores e preconceitos acumulados ao longo da sua história (MATUS, 1996b). Assim, o ator é participante de um jogo e sujeito ativo com identidade própria (MATUS, 1996b).

O segundo objetivo foi identificar e analisar as relações estabelecidas entre os atores. Assim, as relações foram outra categoria analítica deste estudo. Foram caracterizadas de acordo com o conceito de jogo social proposto por Matus (1996a). As relações com suas conexões e desconexões são alteradas a cada nova jogada. São as relações dos atores e destes com a natureza que produzem a realidade social. Os atores raciocinam por meio de sistemas criativos e abertos a muitas possibilidades, pelas quais eles, com sua visão subjetiva do mundo, buscam modificar, através das relações, os resultados do jogo social de que participam (MATUS, 1996a).

Além disso, o objeto substrato deste estudo é uma política de desenvolvimento local, o Programa Redes de Cooperação. Portanto, essas relações não acontecem num vácuo, mas numa base territorial. Assim, território foi outra categoria analítica importante. O território tido não como área geográfica, mas como uma forma processual e relacional que contempla elementos materiais (natureza) e imateriais (relações). Essas relações que acontecem no território acabam gerando novas territorialidades, ou seja, novas relações sociais que se materializam no local.

Outro objetivo deste estudo foi descrever os acontecimentos gerados pela interação dos atores sociais e governamentais no território. Desse modo, acontecimentos foi outra categoria analítica considerada, sendo composta pelas formas de articulação (homologia, complementaridade e hierarquia), pelos recortes territoriais que perpassam o território (horizontalidades e verticalidades) e pela direção do movimento de força (centrífuga e centrípeta). De acordo com Santos (1998), essas características permitem o entendimento da base de sustentação e formação das relações entre os atores e podem indicar os acontecimentos no território.

O Programa Redes de Cooperação

O surgimento do Programa Redes de Cooperação pode ser entendido a partir de um contexto de transformação das políticas públicas brasileiras para o desenvolvimento em nível federal e estadual. Em 1999, Olívio Dutra assumiu o governo do Rio Grande do Sul e, entre diversas outras ações, propôs um novo plano de desenvolvimento econômico e social, contrapondo-se ao plano do governo anterior (governo Antônio Brito). O objetivo central do plano era a dinamização da economia gaúcha a partir de possibilidades encontradas na própria matriz produtiva existente. As empresas de pequeno porte compõem a matriz produtiva gaúcha; portanto, era necessário criar uma política pública que atendesse a esse tipo de organização.

Os técnicos da SEDAI acreditavam que a integração consistia na melhor estratégia para o crescimento e, em alguns casos, para a sobrevivência das pequenas e médias empresas do estado, diante das mudanças geradas pela globalização da economia, que aumentava a concorrência e exigia adaptação por parte das empresas. Além disso, baseados na experiência de outros países, principalmente na Itália, acreditavam que tal integração somente seria possível através de apoio técnico de um órgão governamental. Era necessário, então, formatar um programa que incentivasse a formação de redes de empresas.

Depois de um ano de planejamento e da realização de debates com diversos interessados, os técnicos da SEDAI elaboraram o Programa Redes de Cooperação, com objetivo central de: "promover estratégias empresariais conjuntas na forma de redes de cooperação, a colaboração mútua entre empreendimentos e instituições e o fomento a uma maior integração entre o Estado e as diversas esferas da sociedade" (RIO GRANDE DO SUL, 1999, p.1).

Além do objetivo central do programa, foram definidos os quatro princípios básicos de atuação:

1. cooperação horizontal, ou seja, formação de redes em um elo da cadeia produtiva, como, por exemplo, redes da indústria, do comércio ou do setor de serviços;

2. expansão do número de associadas nas redes formadas pelo programa, visando evitar que os benefícios da cooperação restrinjam-se a um pequeno grupo formador, gerando a privatização dos recursos públicos investidos;

3. compreensão associativa da rede, ou seja, coordenação democrática, de modo que as pessoas prevaleçam sobre o capital, com eleições rotineiras e irrestritas da diretoria, impedindo a adoção de estruturas de sociedade por quotas de capital ou outras formas com base na propriedade de ativos; e

4. independência, isto é, no modelo adotado, as organizações participantes das redes não perdem a sua individualidade em relação à propriedade e à autonomia decisória.

Definidos os princípios, os técnicos configuraram a estrutura do programa em três pilares: uma metodologia de formação, consolidação e expansão de redes entre empresas; uma estrutura regionalizada de suporte à implementação do modelo de rede proposto; e uma coordenação estadual do programa na SEDAI, responsável pelos instrumentos de promoção, orientação e apoio (RIO GRANDE DO SUL, 2004).

A metodologia consiste na operacionalização do programa. Tem a finalidade de sistematizar todas as etapas necessárias para que as empresas possam realizar ações conjuntas em prol de objetivos comuns. Os passos da metodologia compreendem a exposição de ideias ao público-alvo, a disponibilização de instrumentos para a formação das redes, o estabelecimento de um plano de ação conjunta, a apresentação das redes aos stakeholders, a execução (pelos empresários) das ações previstas no plano operacional da rede, a análise dos objetivos alcançados e, ainda, o estabelecimento de um planejamento de longo prazo para o desenvolvimento da rede (RIO GRANDE DO SUL, 2004).

As universidades conveniadas com o programa cumprem dois papéis: o da intermediação entre as especificidades locais e a coordenação estadual e o da operacionalização da ferramenta metodológica junto às redes de empresas. O critério adotado pela SEDAI para a escolha das universidades em uma região foi o caráter regional e comunitário das instituições. Essas características asseguram às instituições de ensino uma maior aproximação com a sociedade civil e o conhecimento da realidade local (RIO GRANDE DO SUL, 2004).

Os princípios, os objetivos e a estrutura do programa mostram que a estratégia de cooperação entre a SEDAI e os atores sociais locais e entre estes, é a principal estratégia proposta para que seus objetivos sejam atingidos. A partir dessa estratégia, foram formadas, ainda no governo Olívio Dutra (1999-2002), 43 redes de cooperação da indústria, do comércio e do setor de serviços no estado.

Em 2003, foram promovidas reestruturações nas secretarias estaduais, ocasionadas pelas mudanças de governo que se refletiram em mudanças na SEDAI e, consequentemente, geraram alterações na coordenação e nos objetivos do programa. A primeira coordenadora do programa, durante o governo Olívio, havia estabelecido, juntamente com técnicos, que a meta era a formação de redes estaduais. Posteriormente, no governo Germano Rigotto, o novo coordenador teve como foco ampliar a divulgação do programa no estado. O objetivo central do programa passou a ser a disseminação da ideia de associativismo, quando foram formadas inúmeras redes de cooperação, de diversos seguimentos, mas com abrangência regional.

Durante essa segunda coordenação, em 2004, foi firmado o contrato entre a SEDAI e a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Essa relação contratual, responsável pela operacionalização do programa na região central e na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, levou à formação da Rede Arrozeiras do Sul, caso aqui estudado.

A Rede Arrozeiras do Sul

Levando em conta o aporte teórico de sustentação deste estudo, iniciamos a apresentação da rede com as particularidades geográficas que influenciaram o povoamento e a história do lugar onde se localizam as indústrias de beneficiamento de arroz que a fundaram e a compõem. Com efeito, o Programa Redes de Cooperação está baseado na matriz produtiva existente e, como indica a articulação teórica apresentada, essa matriz produtiva não se dissocia do contexto geográfico, histórico, político, econômico e cultural.

As empresas fundadoras da rede estão localizadas na região central do estado, nos municípios de Santa Maria, São Pedro do Sul, Mata, São João do Polêsine, Restinga Seca e São Sepé. Todas são pequenas indústrias de beneficiamento de arroz que têm como fornecedores pequenos produtores de arroz. Essa particularidade deve-se às características geográficas do lugar e ao processo imigratório, impulsionado pelo projeto do governo de Dom Pedro II de povoar a região através da criação de colônias alemães, num primeiro momento, e italianas, posteriormente. Esses condicionamentos históricos e geográficos contribuíram para que fosse estabelecido nesse lugar um sistema produtivo, baseado em pequenas e médias propriedades, que tem o arroz como um dos seus principais cultivos.

A importância do cultivo do arroz para a região foi crescendo ao longo dos anos, principalmente, em decorrência da implantação de lavouras irrigadas com bombas a vapor e da mecanização. A partir da década de 1980, houve uma grande expansão dessa lavoura, principalmente para a fronteira oeste. A expansão da área cultivada contribuiu para que o Rio Grande do Sul se tornasse o maior produtor nacional de arroz, respondendo por mais de 50% da safra do produto. A expansão da lavoura para a fronteira oeste do estado fez com que as indústrias de beneficiamento se deslocassem para aquela região, pois lá encontrariam maior disponibilidade do produto, reduzindo os custos com transporte. Além da transferência das indústrias que se localizavam na região central, muitos outros engenhos surgiram, aumentando a concorrência entre as empresas nacionais. Além disso, os engenhos enfrentavam a concorrência com o produto importado da Argentina e do Uruguai.

Uma importante distinção deve ser feita entre os sistemas produtivos da fronteira e da região central, pioneira no cultivo. A fronteira tem sua produção baseada no latifúndio, o que a difere da região central do estado, cuja base produtiva é caracterizada pela pequena e média propriedade. Essa estrutura produtiva do campo se reflete no porte das indústrias de beneficiamento. Enquanto na fronteira estão as maiores indústrias de beneficiamento do estado, na região central, em sua maioria, são encontradas pequenas e médias empresas. A importância do setor orizícola, que reúne pequena e média indústria com pequena e média propriedade, é muito grande para a região central. Para Santa Maria, por exemplo, representa um dos principais ramos industriais do município, com 10 indústrias de beneficiamento.

Nesse contexto histórico que abrange a imigração italiana e a alemã, as pequenas propriedades, a diversidade produtiva e a implantação do cultivo do arroz, apropriado para as características geográficas do lugar, terras baixas e planas, é que surge, em 2005, a Rede Arrozeiras do Sul, primeira rede de indústrias do setor orizícola no estado e no país.

Naquele ano, um dos consultores do Programa Redes de Cooperação considerou estratégico para a região central do Rio Grande Sul a formação de uma rede de indústrias de beneficiamento de arroz, levando em conta a importância socioeconômica do setor para a região, obtendo a concordância da coordenação estadual na SEDAI.

Aprovada a ideia da rede pela coordenação estadual, o consultor iniciou a prospecção de empresas para dar partida ao processo de sensibilização. O primeiro contato estabelecido foi com uma ex-aluna do curso de Administração da UFSM, proprietária de uma indústria de beneficiamento no município de São João do Polêsine. Por intermédio dessa ex-aluna, foram contactados outros três empresários da região, que se encarregaram de convidar os demais para uma reunião de apresentação do programa.

A metodologia do programa estabeleceu as regras básicas ou genoestruturas (MATUS, 1996b) para a articulação dos atores sociais, indicando, inclusive, o número mínimo de 12 organizações para iniciar o processo de formação da rede. Posteriormente, foram admitidas cinco indústrias de outras regiões, como o sul do Rio Grande do Sul e a Região Metropolitana de Porto Alegre.

Além de distintas motivações para aderir à ideia, os atores sociais que compõem a Rede Arrozeiras do Sul apresentam capacidades distintas, uma vez que possuem recursos diferentes. Organizações de diferentes tamanhos compõem a rede, desde as que têm apenas quatro funcionários e processam 10.000 fardos/mês, até aquelas que possuem 100 funcionários e beneficiam 80.000 fardos/mês. Essa diferença também está presente no acesso a recursos tecnológicos: algumas organizações detêm controle totalmente automatizado dos seus processos produtivos, enquanto outras ainda realizam controles muito simples. Essas, entre outras diferenças, fazem com que as organizações analisem sua participação na rede de formas distintas e que tenham capacidades diferenciadas de ação diante de um mesmo evento interativo, o que, consequentemente, influencia de forma direta a capacidade de produção social das mesmas. Ao longo do processo de participação na rede, as organizações, como atores sociais, também apresentaram diferenças no que diz respeito às alterações nos seus recursos: enquanto algumas acumularam, outras desacumularam, como se poderá ver na sequência.

As relações entre os atores sociais e governamentais

Com base nos requisitos que caracterizam os atores sociais (MATUS, 1996a), foram identificados, inicialmente, os seguintes atores na Rede Arrozeiras do Sul:

• a SEDAI, como ator governamental, ao propor o programa;

• as indústrias de beneficiamento de arroz, como atores sociais; e

• a UFSM, como ator social local de mediação entre o ator governamental e os demais atores sociais.

Tendo em vista que uma das caracterizações centrais do ator é a participação no jogo (MATUS, 1996a), também identificamos nas interações geradas a partir da estruturação da rede, outros atores sociais, como:

• os fornecedores de matérias-primas, sejam os daquelas diretamente relacionadas à produção (como é o caso dos plantadores de arroz) ou outros (como os fornecedores de embalagens ou serviços de apoio), pois têm interesse e disputam os recursos no jogo constituído; e

• a prefeitura de Santa Maria, como ator governamental local que tem interesse nos recursos acumulados a partir das relações estabelecidas entre as indústrias locais, já que o crescimento das empresas pode aumentar o número de empregos gerados e o volume de impostos arrecadados.

Identificamos, ainda, atores de outros lugares, tais como:

• pequenas e médias indústrias de beneficiamento, que posteriormente foram admitidas na rede;

• o Sindicato das Indústrias de Beneficiamento de Arroz do Rio Grande do Sul (Sindarroz);

• a Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz);

• o Instituto Rio-Grandense do Arroz (Irga);

• e consumidores, como participantes do jogo social estabelecido com a formação da rede.

Coerentemente com a abordagem aqui adotada e com as ponderações já feitas, descreveremos as relações entre os atores sociais e os governamentais, sob os aspectos estrutural e relacional. Nesse sentido, é importante destacar que, embora, tenhamos apresentado a identificação dos atores antes de descrever as relações, foi somente a partir da análise que pudemos perceber os recursos de poder, as habilidades, o conhecimento, enfim, a participação, no jogo, de atores que do ponto de vista estrutural estariam submersos.

Do ponto de vista estrutural, a rede foi organizada pelos associados fundadores, com o apoio do consultor da UFSM e da SEDAI. Identificamos aí uma primeira e fundamental relação entre a secretaria e a universidade. A justificativa para a parceria entre a SEDAI e UFSM está no conhecimento que a universidade detém, tanto técnico quanto do contexto da região central. Entretanto, a contratualização e a hierarquia prevaleceram, já que a identificação da possibilidade de criação de uma rede de pequenas e médias empresas do setor orizícola careceu de autorização formal da SEDAI. Esta forneceu, em atenção à metodologia do programa, os instrumentos que orientaram a definição da estrutura da Rede Arrozeiras do Sul.

Foram elaborados três instrumentos que regem as relações entre os associados e entre estes e os demais atores: o Estatuto Social, o Regulamento Interno e o Código de Ética. O Estatuto Social define os fins da rede, seu quadro social, os deveres e os direitos das associadas, sua organização, seus órgãos de direção, a realização de assembleias-gerais e extraordinárias e o processo eleitoral. O Regulamento Interno e o Código de Ética são normas complementares ao Estatuto Social. O Regulamento Interno regula as parcerias, as políticas de promoções, as compras em conjunto, as mensalidades, as admissões, as penalidades, as exclusões e as transferências e sucessões. Do ponto de vista estrutural, são considerados atores apenas a SEDAI, a UFSM e as indústrias de beneficiamento de arroz.

Contudo, é certo que as relações não acontecem somente de acordo com o que está definido nos instrumentos formais. No jogo social, os atores sociais e governamentais estão sempre produzindo novos acontecimentos, aquém ou alem do previsto nas normas. A partir da articulação contratual entre a SEDAI e a UFSM, muitas outras relações foram construídas.

Do ponto de vista relacional, a rede surgiu de contatos informais com uma ex-aluna da UFSM. A partir daí, as indústrias de beneficiamento de arroz foram convencidas, pelo consultor, da importância de formarem uma rede, mediante argumentos evocando eficiência e ganhos de escala que poderiam obter. Percebemos que, por parte de cada indústria, as razões para essa adesão podiam até ser diferentes: enquanto algumas desejavam fortalecer suas atividades e capacidade de produção, visando à exportação, outras tinham como objetivo ampliar sua participação no mercado interno. Houve, ainda, quem aderisse por receio de que "ficar de fora" representasse uma ameaça.

Assim que a rede entrou em operação, sua primeira diretoria (2006/2007) começou a negociar com fornecedores de matérias secundárias, como embalagens e material para manutenção dos engenhos, buscando uma redução de até 30% nos valores dos contratos. Foram também negociadas, com êxito, reduções tributárias para as pequenas e médias indústrias de beneficiamento, no âmbito federal.

A compra em conjunto de arroz, ao contrário da compra de matérias-primas secundárias e do que indicam as proposições do programa, não foi operacionalizada. Esse fato aconteceu em decorrência de uma série de fatores: do porte dos fornecedores (pequenos e médios produtores); das relações anteriormente existentes entre cada uma das indústrias integrantes da rede e os produtores do seu entorno, de regiões próximas às empresas; e do custo do transporte, tornando inviável a compra do produto de outros lugares. Outra característica que influiu para que as relações entre as indústrias e os produtores de arroz permanecessem como antes da formação da rede foram as diferenças na organização dos atores sociais que a integram, bem como suas diferentes motivações.

Além dos conflitos que poderiam emergir numa eventual compra conjunta, alguns atores consideram que o pequeno e o médio produtor, principais fornecedores das indústrias da região, são muito sacrificados pela grande indústria ou pelas constantes flutuações de preço. Por isso, julgam que a compra em conjunto do produto poderia inviabilizar o setor nessa região. Ao mesmo tempo, a forma como as associadas integrantes da rede se relacionam com os produtores e a oferta de arroz disponível na região permitem que as indústrias não necessitem comprar produtos de outras regiões do estado ou, até mesmo, importar da Argentina. A compra realizada em outros lugares aumenta o custo da produção, visto que o transporte é um dos itens que mais oneram esse tipo de indústria. Além disso, as relações foram mantidas porque, quanto à qualidade do arroz em casca, são variadas e flexíveis as exigências feitas pelas indústrias de beneficiamento que integram a rede. Desse modo, a relação estabelecida entre as indústrias de arroz e os produtores da região parece ser uma relação de complementaridade, pois quando estes produzem em quantidade, não é preciso buscar arroz em outros lugares.

No período da entressafra e em épocas de seca há falta do produto na região. Quando isso ocorre, as indústrias optam por adquirir o arroz em outras localidades ou através de leilões realizados pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). A compra dos lotes nesses leilões somente é viável se realizada em conjunto pelas pequenas e médias indústrias. Para que tal processo se realize, é preciso que haja mudança nas regras de tais leilões, permitindo que os lotes sejam fracionados. Essa é uma das principais reivindicações dos membros da Rede Arrozeiras do Sul. Esta, como associação de pequenas e médias indústrias de beneficiamento, representa os interesses de suas associadas na disputa por regras que rejam o setor orizícola.

A principal entidade do setor no Rio Grande do Sul, segundo as associadas da rede, é o Sindarroz, onde as grandes indústrias, atualmente sediadas na fronteira do estado, detêm maior poder. Embora tenham pouco poder, quando consideradas individualmente, com a formação da rede, as pequenas e medidas indústrias passaram a ter representação nas relações com os órgãos do setor, conquistando maior capacidade de interferência nas normas ali definidas. Na prática, a rede se tornou um mediador nos conflitos entre o Irga e o Sindarroz. Em 2007, seu presidente na gestão 2006/2007 foi eleito vice-diretor do Sindicato, fato que, dentro do jogo de poder estabelecido nesta entidade, representa uma mudança de posição das empresas componentes da rede Arrozeiras do Sul. Para as associadas da rede, nenhuma organização que a compõe teria capacidade de acumular poder político dentro do Sindicato se continuasse atuando sozinha, pois existe uma pressão muito forte das grandes empresas do estado sobre o setor orizícola.

Ao acumular recursos políticos, a rede ampliou seu espaço de atuação na defesa dos interesses das associadas: obteve uma cadeira na Câmara Setorial do Arroz, em Brasília, e participou de uma missão de negócios na China (patrocinada pelo governo estadual) e de outra (patrocinada pela Prefeitura Municipal de Santa Maria. Esses fatos mostram o reconhecimento dos atores governamentais, desde a esfera nacional até a local, onde evidentemente a prefeitura demonstra interesse no crescimento do setor.

O processo de expansão da rede, iniciado em 2007, ao mesmo tempo em que se coaduna com os princípios do Programa Redes de Cooperação de não privatização dos recursos públicos e de ganhos de escala, também demonstra o alcance regional de suas ações. As associadas admitidas se interessaram em participar da cooperação depois de conhecerem a rede em reuniões do Sindarroz: encaminharam o pedido de associação que fora aprovado pelas associadas fundadoras, de acordo com os critérios estabelecidos no regulamento da rede.

As indústrias admitidas são pequenas e médias empresas, tais como as associadas fundadoras. Estas afirmam não haver diferença entre as indústrias participantes. Entretanto, como lembra Matus (2005), a capacidade de produção social é adquirida com a prática do jogo social. Assim, entrar tardiamente no jogo influencia a capacidade de produção social das associadas admitidas. Nenhuma delas, até o agora, integrou a diretoria executiva da rede.

Outra questão importante refere-se à localização das novas indústrias admitidas: as regiões sul do Estado e Metropolitana de Porto Alegre. As associadas fundadoras estão localizadas na região central, cujas características são resultado da articulação de elementos materiais, como a natureza do lugar, e elementos imateriais, como as relações sociais que formaram nesse território. O programa, ao incentivar a expansão das redes para outros lugares, como aconteceu com a Rede Arrozeiras do Sul, incentiva os atores locais a se relacionarem com atores de outros lugares. Essas relações produzem novas territorialidades, portanto, novas conexões entre pontos descontínuos no território, uma vez que não há uma relação de proximidade entre os atores. Esses novos integrantes trouxeram para a rede novos conhecimentos sobre o setor orizícola, já que estão localizados em regiões diferentes. Essas regiões possuem características geográficas e socioeconômicas distintas daquelas da região central.

Em 2008, começaram as negociações para a exportação. As primeiras tentativas aconteceram durante a 18ª Festa de Abertura da Colheita de Arroz, da qual, além da rede, participaram o Irga e a Federarroz. Posteriormente, reuniram-se produtores de arroz e suas entidades representativas visando concretizar as vendas para países da América do Sul e da África. Em julho daquele ano, foi realizada a primeira exportação da rede para o Egito, através da Risoy Corretora de Mercadorias, com a participação de quatro associadas. O contrato previa a exportação de 1.950 toneladas de arroz, envolvendo as 16 empresas integrantes da rede. Como apenas quatro se mostraram efetivamente interessadas em participar, totalizou-se a quantidade prevista conforme o volume que cada empresa estava disposta a comercializar. Essa situação mostra a diferença de interesses entre as empresas componentes da rede, principalmente, em decorrência dos diferentes recursos de que cada uma dispõe.

Algumas organizações que compõem a rede atuam nos mesmos mercados, quadro que permaneceu inalterado, pois, de acordo com as regras estabelecidas, esse espaço continua livre para as associadas. Isso acabou gerando alguns conflitos, como no caso de uma organização que tentou entrar num mercado atendido por outra associada. Esta considerou-se prejudicada, já que fora ela que fornecera as informações sobre o mercado em questão, que passou a ser disputado por ambas.

A maioria das associadas comercializa seus produtos para o Rio Grande do Sul, principalmente, para as cidades onde estão localizadas suas indústrias. Entretanto, seus principais mercados concentram-se nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, ainda que algumas empresas também comercializem com a região Nordeste. Além dos diferentes mercados atendidos, a maioria das organizações associadas também difere quanto ao tipo de cliente atendido: algumas focam os grandes varejistas; outras, apenas atacadistas, e existem aquelas que atendem minimercados e restaurantes. Essas diferenças fazem com que os interesses sejam distintos, mas conciliáveis. Matus (1996a) afirma que quando essa configuração se estabelece, a estratégia de cooperação desemboca na típica análise de intercâmbios de problemas. Na interação, há negociação entre os atores, que comparam o custo de ceder alguma coisa com o benefício de receber outra em troca. Nesse sentido, as trocas estabelecidas podem resultar em negociações realizadas em conjunto, visando aumentar o volume de arroz beneficiado, por exemplo.

Quanto ao crescimento das organizações, destacamos que, se comparada às demais, uma em particular cresceu ao participar da rede. Era uma das menores em termos de volume de arroz beneficiado: em 2006, beneficiava em média 15 mil fardos/mês; em 2008, atingiu a média de 40 mil fardos/mês. Fica claro que essa organização acumulou conhecimentos por meio da troca de informações com outras empresas na rede, viabilizando sua expansão.

Pudemos observar que a cada jogada os atores acumularam conhecimentos e habilidades. Entretanto, cada ator, ao participar do jogo social proposto pela SEDAI, intermediado pela UFSM, conseguiu obter um resultado diferente, pois, como já referimos, possuíam motivações distintas para a cooperação. Além disso, as empresas maiores, atores que já detinham recursos econômicos, políticos e tecnológicos acumulados, integraram a rede porque consideraram uma ameaça estar fora do jogo, uma vez que não teriam acesso às informações compartilhadas entre as demais indústrias.

Entretanto, ao mesmo tempo, os recursos acumulados pelos atores durante o jogo social podem modificar sua posição no mesmo. As diferenças entre os interesses, as motivações, os conhecimentos, os valores e as capacidades vão sendo produzidos a cada nova interação entre os membros da rede e destes com outros atores. Além disso, o poder político acumulado pelos atores ao formar a rede " principalmente, dentro do Sindarroz " mostra que ela passou a ser, simultaneamente, um ator e um centro de poder onde são disputados recursos a cada nova interação entre os atores que a formam. Essas conexões e desconexões produzidas geram acontecimentos, pois uma rede está em constante mutação, sempre produzindo novos atores e sendo produzida por eles. Nesse processo, vê-se, aquilo que Matus (1996b) chamou de fenoestruturação social, ou seja, mesmo que o jogo tenha se iniciado a partir das regras básicas (genoestruturas) determinadas pela SEDAI, os atores que formam e se relacionam com e na Rede Arrozeiras do Sul, produzem dentro deste espaço, novos fluxos e acumulações capazes de alterar tais regras.

As regras iniciais do programa indicaram, à partida, a produção de um acontecimento hierárquico no território. Isso pode ser observado na necessidade de autorização da SEDAI " aqui caracterizada como um ator governamental " para a formação da Rede Arrozeiras do Sul. Amarrado às determinações da metodologia, o alegado conhecimento do consultor vinculado à UFSM " aqui caracterizado como um ator social " não assegurou autonomia decisória para se propor uma rede no setor.

Quanto às relações estabelecidas entre as indústrias de beneficiamento de arroz fundadoras, parecem norteadas pela mesma informação especializada sobre o setor orizícola, pois compartilham conhecimentos sobre a natureza do lugar, o processo produtivo, as tecnologias empregadas e os produtores da região. A troca de informações segue uma mesma racionalidade; portanto, produz um acontecimento homólogo no território.

Além disso, as associadas continuam se relacionando com empresas e produtores localizados em lugares geograficamente próximos. Principalmente, na compra do arroz, seu principal produto, que permanece sendo adquirido de lugares contíguos às sedes das indústrias de beneficiamento. Desse modo, as relações estabelecidas entre as indústrias de beneficiamento e os produtores de arroz parecem gerar um acontecimento complementar.

As interações históricas existentes entre as indústrias de beneficiamento fundadoras e os produtores mostram como eles organizam a produção local, sobretudo em relação às questões técnicas, ligadas à particularidade da produção naquele lugar. Entretanto, até a formação da rede, os atores locais não acumulavam poder político capaz de influenciar as regras do setor orizícola, muito provavelmente em decorrência da estrutura da produção local, que se baseia na pequena e média propriedade e indústria, sem nenhuma articulação. Até então, as regras do setor eram influenciadas, particularmente, pelo interesse das grandes indústrias, localizadas na fronteira do estado, lugares geograficamente distantes, ou, por decisões políticas tomadas em Brasília, das quais as pequenas e medidas indústrias da região não participavam.

Isso foi alterado a partir da formação da rede, pois as pequenas e médias indústrias de beneficiamento associadas, ao atuarem conjuntamente, acumularam recursos políticos que viabilizaram a sua participação na disputa pelas regras do setor orizícola. Assim, a formação da rede produziu horizontalidades ao permitir que esses atores pudessem também influenciar as decisões políticas referentes a normas reguladoras da organização da produção, haja vista que foi auferida representatividade a órgãos que estabelecem as regras. Além disso, ao permanecer comprando dos produtores locais " e ao se posicionar politicamente ao lado do Irga e da Federarroz, entidades que defendem o pequeno e o médio produtor ", as associadas e os produtores complementam seus objetivos na disputa pelas regras do setor.

Contudo, ao admitir indústrias de outros lugares, poderá se configurar um recorte vertical no território, uma vez que são estabelecidas relações entre pontos descontínuos. Essas verticalidades criam fluidez na troca de informações entre empresas geograficamente distantes, produzindo novas territorialidades, o que, com o tempo, pode resultar na perda da capacidade da região central de organizar sua própria produção. A organização da produção pode vir a ser gerada em função de uma orientação externa, tanto de mercados internacionais, quanto de empresas de outros lugares que podem adquirir maior poder dentro da rede. Esse recorte gerado segue as determinações da metodologia do Programa que incentiva a expansão das redes para outros lugares.

Considerações finais

As relações incentivadas pelo Programa Redes de Cooperação produziram diversos acontecimentos no território, uma vez que as indústrias de beneficiamento de arroz que interagiam prioritariamente com atores do seu entorno, passaram a se relacionar de forma regular com atores de outros lugares, principalmente, outras indústrias de beneficiamento que foram admitidas na rede. Interações eventuais foram estabelecidas com consumidores de outros países, através da exportação de arroz. Foram criados novos fluxos que possibilitaram a troca de informação e de produtos entre os atores locais e destes com atores de outros lugares.

Portanto, as relações geradas com a formação da Rede Arrozeiras do Sul, produziram vários acontecimentos no território. Os recortes territoriais produzidos a partir das relações entre os atores identificados neste estudo indicaram a existência de importantes horizontalidades, como aquelas existentes entre as indústrias integrantes da rede e entre os pequenos e médios produtores do entorno e as indústrias de beneficiamento.

As conexões com atores de outros lugares podem gerar perda da capacidade dos atores locais de estabelecer a organização da produção local, que pode vir a ser direcionada externamente, por atores de outros lugares, como aconteceu no processo de formação da Rede Arrozeiras do Sul. Mesmo a UFSM conhecendo a realidade local, sua ação foi condicionada à ordem da SEDAI, assim como as ações das indústrias de beneficiamento, que também passaram a ser guiadas pelas orientações do ator governamental. Além disso, o incentivo à expansão do número de organizações associadas à rede orienta a desterritorialização das ações, que passam a acontecer através dos fluxos, ou seja, através de trocas entre atores geograficamente distantes.

Nos campos teórico e empírico, consideramos relevante chamar a atenção para a necessidade de aprofundar o entendimento das relações entre formas e práticas organizativas e o desenvolvimento local. Nem aquelas são meras formas estruturais e nem este se constrói a partir de modelos universais. Como bem lembra Oliveira (2001), em nosso ponto de vista, ele pode ser uma maneira de reforçar as solidariedades comunitárias, vinculando-as aos contextos cultural, histórico, geográfico e político, o que pode ser entendido como participação ativa nas decisões que afetam os viventes do lugar. Em outras palavras, produzindo territorialidade. Mesmo que as atividades sejam predominantemente comercias, como no caso da Rede Arrozeiras do Sul, parece haver espaço para a identidade ou para o que Santos (2002, p.96) caracterizou como o sentimento "de pertencer àquilo que nos pertence".

Os acontecimentos analisados neste estudo permitem inferir que não há como vincular diretamente a ideia de rede, como forma organizacional, à capacidade de produzir desenvolvimento local. As relações entre os atores (em articulação com o território), produzindo e sendo produzidas pelas territorialidades podem, efetivamente, gerar acontecimentos nos lugares. Tais acontecimentos são fruto e semente das relações entre atores sociais que se mobilizam em torno de projetos orientados por interesses diversos, mas que são portadores de capacidade de produção social. Os estudos organizacionais voltados para as redes e os relacionamentos interorganizacionais podem oferecer contribuição valiosa aos estudos sobre desenvolvimento, gestão de políticas públicas etc. mediante uma ampliação de seu escopo teórico. Tal ampliação possibilita, concomitantemente, maior visibilidade de nosso campo de conhecimento, em interações multidisciplinares. Se aportes da ciência política e da geografia nos são instigantes e pertinentes, é certo que também temos muito a oferecer não apenas a esses e a outros campos disciplinares, mas, fundamentalmente, à sociedade.

Artigo submetido em 12 de novembro de 2009

Aceito para publicação em 07 de janeiro de 2010.

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  • O jogo social e a produção de acontecimentos no território: o caso da Rede Arrozeiras do Sul

    The social game and the production of events in the territory: the case of The Arrozeiras do Sul Network
  • 1
    Os entrevistados: 12 empresários fundadores da Rede que permaneceram cooperando; uma empresária fundadora que, por motivos familiares, já não permanece cooperando, mas cuja atuação foi fundamental no processo de formação da Rede; o empresário de uma organização localizada em outra região do estado, que aderiu à rede após a fundação; o consultor do Programa Redes de Cooperação, que atuou na formação da rede em estudo; o último coordenador do programa na Universidade Federal de Santa Maria e o atual coordenador estadual do programa.
  • 2
    Buarque (1999), com base nas formulações de Carlos Matus, propõe uma distinção analítica entre atores sociais e atores governamentais. Para ele, atores sociais são os grupos e segmentos sociais diferenciados na sociedade que estabelecem conjuntos relativamente homogêneos. Podem organizar-se através de entidades, organizações, associações, lobbies e grupos de pressão política, representando interesses e visões de mundo. Atores governamentais são os representantes do Estado, pois este não é um ator como o ator social, mas sim uma expressão dos interesses dos atores, dos seus interesses diferenciais e de suas relações de poder.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Aceito
      07 Jan 2010
    • Recebido
      12 Nov 2009
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